You are on page 1of 29
_ IAC E ENSINO DE LINGU Objetivos gerais do capitulo 5 Em que pode a Sociolinguistica contribuir para o ensino de lingua? — questiio norteadora deste capitulo; > Parametros Curriculares Nacionais (ro) ~ énfase nas questdes concer nentes A variagiio linguistica; > Nocdes de norma padrito ¢ norma culta ~ incoeréncias ¢ preconcei- tos envolvidos; 5 Contribuigdes da Sociolinguistica para o ensino de lingua portuguesa: do campo conceitual a pritica do professor em sala de aula. 1. APROPOSTA DOS PCN PARA 0 ENSINO DE LINGUA PORTUGUESA Fechamos este livro com algumas reflexdes sobre variagaio/mudanga linguistica e ensino de lingua. Como se trata do Ultimo capitulo, tera tam- bém um carater de retrospectiva, pois retomaremos alguns aspectos rela- cionados A Sociolinguistica jé estudados ao longo dos capitulos preceden- tes. Percorremos caminhos historicos, passamos por pressupostos tedricos, por questées conceituais e metodolégicas. Agora, tendo em vista a pratica escolar, propomos que pensemos, juntos, em algumas contribuigdes que a Sociolinguistica poderia fornecer a0 ensino de lingua. Nao podemos falar em ensino sem primeiro fazermos referéncia aos Parametros Curriculares Nacionais (PCN). Trata-se de um conjunto de do- n ‘variagao Linguistica. Na se 25 sobre incoeréncias ¢ preconceitos envol ic ‘gdes de norma padrdo e norma culta. E, por tiltimo, tra contribuigdes da Sociolinguistica para © ensino de lingua tomando, de forma resumida, os aspectos mais importantes d longo deste livro que tenham implicagdes pedagogicas. Para contextualizar 0 que vamos dizer sobre variagao ling de lingua portuguesa: ensino, reportemo-nos inicialmente aos PCN ‘A lingua portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades ) Identificam-se geogrdfica e socialmente as pessoas pela forma et falam. Mas ha muitos preconceitos decorrentes do valor social relat que é atribuido aos diferentes modos de falar: é muito comum se consi derarem as variedades linguisticas de menor prestigio como inferiores ou erradas. (Brasil, 1997: 26) A citagiio abre a discussao desta segéo em duas diregées: 1) existem diferentes variedades linguisticas no Brasil; 2) existe preconceito com rela- ¢4o a algumas dessas variedades. Sabemos que as pessoas siio identificadas _ geografica e socialmente pela forma como falam. Mas ha muitos precon- ceitos advindos do valor social atribuido as formas variantes da lingua, &s pecialmente aquelas usadas por falantes que no gozam de prestigio soci na comunidade em que vivem. Os documentos alertam para o fato de que o problema do precone i ‘observado no Brasil em relagao as falas dialetais deve ser 4 escola, como parte do objetivo mais amplo de educagao para 0 resp ferenca. As reagdes de preconceito se manifestam, quase sempre, em tdrios do tipo “fulano fala errado”, “fulano nao sabe falar direito”, “a! falano ¢ feia”, “fulano é burro” etc. A fala (ou a escrita) é julg ~ do status social dos individuos que a utilizam. Parece que Patri © empregado, pais ¢ filhos, irmaos etc.). Esses papéis sociais so “um Conjunto de obrigagdes e de direitos definidos por normas socioculturais [...] e SS construidos no préprio processo da interagao humana” (2004: 23), Ainda segundo os Pen, 0 ensino de lingua portuguesa na escola deve oferecer condigdes para que o aluno desenvolva seus conhecimentos, sabendo: I: ler e eserever conforme seus propésitos e demandas sociais; 2. expressar-se adequadamente em situagdes de interagao oral diferen- tes daquelas préprias de seu universo imediato; 3.refletir sobre os fendmenos da linguagem, particularmente os que tocam @ questo da variedade linguistica, combatendo a estigmatizagao, discrimi- nacido e preconceitos relatives ao uso da lingua, (Brasil, 1998: 59) Como podemos observar, os dois primeiros objetivos dizem respeito a competéncia sociocomunicativa dos alunos, entendida como a habilidade de detectar 0 que é adequado ou inadequado na lingua em cada uma das praticas sociais em que estamos inseridos; o termo “sociocomunicativa” reforga o carater sociolinguistico dessas habilidades. Os dois objetivos teportam-se também ao uso das modalidades oral ¢ escrita da lingua, com praticas de escuta, de leitura ¢ de produgio de textos — 0 que implica ter conhecimentos sobre a estrutura e o funcionamento da lingua em seus di- ferentes niveis — e ao uso adequado das diferentes variedades linguisticas as miiltiplas situagdes na sociedade. O ultimo objetivo remete a reflexio sobre os fenémenos linguisticos em variagaio e sobre a questio do respeito 4s diferengas. Qualquer lingua comporta diferentes variedades, que devem 137 se fala, S6 a partir de uma comparagao entre os diferentes usos e as diferentes variedades linguisticas que, como apontam também os PcN, a norma culta, variedade de maior prestigio social, deve ser ensinada na escola. Concepeées dos PcN sobre as praticas com a linguagem + As situag6es reais de interagdo so condigio para que se dé o ensino da lingua, j4 que a lingua funciona para as pessoas interagirem socialmente; A lingua € heterogénea, historicamente situada, estando sujeita a variagdes e mudancas; © trabalho pedagégico deve contemplar, de maneira articulada, usos linguisticos (ouvir-falar, ler-escrever) e reflexiio sobre a lingua; © uso da lingua deve ser adequado aos propésitos comunicativos e demandas sociais; Deve-se combater o preconceito linguistico; A norma culta deve ter lugar garantido na escola, mas nao deve ser a tinica (norma) privilegiada no processo de conhecimento linguistico proporcionado ao aluno. 2. ATRADICAO GRAMATICAL ESCOLAR VERSUS A (SOCIO)LINGUISTICA Para a escola e a tradigao escolar, é essencial a percepgiio de que as Iinguas mudam com o tempo. A partir da constatagaio de que a mudanga. integra a linguagem humana, reflexdes sobre a lingua falada vernacular — oniisladaiem casa e a lingua do poder ou da escola sto’ necesséra ( )s Falamos até agora que a escola deve garantit 0 dominio da norma culta ao aluno. Aque norma culta estamos nos referindo? A que ¢ associa- daao padréo lusitano desde 0 século xix? Ou a que corresponde ao que os prasileiros escolarizados de fato produzem? Para falarmos de norma linguistica néo poderiamos deixar de citar a obra Norma culta brasileira, de Carlos Alberto Faraco (2008), escrita a pat- tir de reflexdes que o autor vinha fazendo ha pelo menos uma. década. Faraco destaca a necessidade de se considerar que uma lingua ¢ formada por varias normas, uma vez que “norma designa 0 conjunto de fatos linguisticos que caracterizam 0 modo como normalmente falam as pessoas de uma certa co- munidade” (p. 40). Numa sociedade hé intimeras normas linguisticas, que caracterizam as diferentes comunidades: as normas de comunidades urba- nas, as de comunidades rurais, as normas vernaculares, 2 dos grupos de Jetrados, aquelas que caracterizam os grupos jovens, aS dué identifica as populagdes de periferias urbanas, as normas de adolescentes urbanos etc. Como os falantes podem pertencer a varias dessas comunidades simultanea- mente, é possivel dizer que um mesmo falante domina mais de uma norma. Segundo o autor, “uma norma, qualquer que seja, no pode ser compre- endida apenas como um conjunto de formas Tinguisticas; ela é também (e prin- cipalmente) um agregado de valores socioculturais articulados com aquelas formas” (p. 41). Ha uma tendéncia dos falantes a se acomodarem as normas linguisticas e aos valores sociocul is de seu grupo social, mas 0 desejo de se identificarem com outros grupos (Por exemplo, com o grupo dos letrados) vai fevéclos a buscar 0 dominio de outras normas. Essas consideragdes de Faraco thos remetem as priticas linguisticas dos joven’ de Martha’s Vineyard que nfo centralizavam os ditongos /ay! & Jaw; eles nao queriam se identificar como moradores da ilha. Vale lembrar, porém, que (i) nao é possivel estabelecer uma separago nitida entre as diferentes normas (elas sto sempre hibridizadas); (ii) 0 contato entre as normas favorece © desencadeamento de mudangas linguisticas. 139 curta e norma culta, No primeiro e no ; ivo —e, no terceiro caso, com “normalidade” — é norma o que é normal. Para Faraco (2008), norma padrao é “uma codificagio relativamente s abstrata, uma baliza extraida do uso real para servir de referéncia, em socieda- des marcadas por acentuada dialetagdio, a projetos politicos de uniformizacao linguistica” (p. 73). E um complexo entrecruzamento de elementos léxico- seminticos e ideolégicos. No Brasil oitocentista 0 padrao foi construido de forma muito artificial. A elite brasileira letrada nao tomou a variedade urbana culta como modelo a ser seguido, mas um certo modelo lusitano de escrita. ‘Nas palavras do autor, 0 “excessivo artificialismo do padrao lusitano no século xix impediu que ele se estabelecesse entre nés.[..] e continua a nos assombrar até hoje pelos pseudopuristas” (p. 80). Esse padrdo, de fato, nio conseguiu orientar 0 modo como falamos ou escrevemos a lingua portuguesa no Brasil ia— ha mais de um século — ¢ outra. 6, para Faraco, a que tem predominado no evisdo € nos cursinhos pré-vesti- simplesmente porque nossa lingu: ‘A norma curta, por sua vez, sistema escolar, na midia, nos manuals de r bulares. Trata-se de uma norma estreita, com preceitos dogmaticos in| flexiveis, categdricos, advindos da norma padrao purista, que se alastram desde 0 século xxx, sob os rétulos de “certo” e “errado”. Os preceitos dessa norma curta que, segundo 0 autor, sio difundidos em nome de uma norma padrao artificialmen- te fixada, circulam entre nds desqualificando a lingua usada no Brasil ¢ os seus falantes. So regras que pouco (ou nada) refletem do portugués brasileiro ‘empregado por nossos escritores e jornalistas contemporaneos, tomadas como umilhar e constranger as pessoas que nao as dominam. justificativa para hi Finalmente, norma culta, segundo Faraco, “designa 0 conjunto de fenémenos linguisticos [variaveis] que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situagdes mais monitoradas de fala e escrita” (p. 71). Em geral, esse vinculo entre letramento ¢ uso monitorado da lingua leva a sociedade a atribuir valor social positivo a esse conjunto de variedades. _O prestigio social atribuido a essa norma, de acordo com 0 autor, leva 0 ja aparecem ios. O autor nos lembra que tais obras, além de apresentarem a nao se descuidam da inovagdo. No dicionario de regéncia de Celso Luft, por exemplo, aparece a informagaio de que o verbo ‘assistir’ no sentido de “estar presente, presenciar” era transitivo indireto, mas se tornou transiti- vo direto no Brasil. A regéncia inovadora é atualmente corrente na escrita literaria brasileira, mas isso, obviamente, nao impede que algumas pessoas prefiram usar, ainda, a regéncia conservadora. Como vimos, € papel da escola oferecer condigdes para que © aluno de- senvolva plenamente suas competéncias sociocomunicativas. Para tanto, deve ensinar a norma culta (¢ nfo a norma padrao & muito menos a norma curta), nao no sentido de exigir que afuno substitua uma norma (2 dele, vemacular) por outra, mas 10 sentido de capaciti-lo a dominar outras vyariedades para que ‘uso linguistico a diferentes situagdes. E sempre importan= te lembrar que usat apenas uma variedade culta nas situagdes comunicativas que requerem diferentes estilos é tio inadequado (ou disfuncional) quanto usar apenas 0 yernaculo (tenha ele formas estigmatizadas ou nao). ‘Além de mostrar 20s alunos a variagdo que ‘ocorrena sincronia, @ escola deve ter 4 incumbéncia de mostrar as normas usadas em outras épocas para que eles possam. ler textos de sincronias passadas, € Ver que, muitas vezes, o que é considerado errado” ou “feio” hoje em dia jé foi a norma culta no fo. Pensemos um poucd na passagem do latim classico para o latim vulgar; as vogais pos-tonicas fl € Jel, de modo geral, sofreram sincope, uma tendéncia a evitar proparoxitonas, como em viride > verde, opera > obra. Esse fendmeno acontecct também na passage™ do latim vulgar para 0 pot tugués, ha mais de mil anos, © atualmente ainda é comum: observarmos a mesma tendéncia 4 sincope, jlustrada no uso de “fosfro” por ‘fdsforo’, “figo” por ‘figado”, entre Jos. Da mesma forma, diversos outros fe- nomenos de mudang jnexoravelmente aconteceram & acontecem em todas apesat das pressdes normativas da sociedade. Que possa adequar seu srentes movimentos socioculturais. Formas podem surgir ou ser, perder ou ganhar prestigio, mas isso nao significa que a lingua ecbrpior ‘ou melhor — ela apenas muda. Acreditamos que uma reflexio sobre a heterogencidade da modalidade falada toma-se crucial especialmente quando os alunos comegam a conviver com a modalidade escrita, Os pontos de contraste entre as variedades coe- xistentes devem ser apontados, descritos e discutidos pela escola, para que 0 aluno tenha conhecimento dos fenémenos variéveis, das regras linguisticas que regem a variagdo e dos preconceitos relativos ao uso da lingua. 22 Polémicas em torno da lingua portuguesa Os debates em tomo do que ¢ certo ou errado na lingua nao so de modo algum uma novidade. Nesta seg%o, traremos a tona alguns episédios que, desde o século xix, marcaram o discurso sobre a lingua portuguesa no € do Brasil. Para Emilio Pagotto (2013: 31), 0 Brasil oitocentista é palco de uma contradigao linguistica: de um lado apontado como 0 perfodo em que 0 portugués do Brasil chega a um ponto de inflex4o, na dirego de suas caracteristicas atuais; de outro lado, é reconhecido como o periodo em que se fixa a moderna norma padrdo recomendada pelos manuais de gramética atuais. Essa norma padrio foi fixada durante o século xix por meio do exerei- cio do discurso polémico e vem, até os dias de hoje, como modelo idealizado de linguagem. O autor diz que, com a vinda da familia real, “um movimento de constituigao da nacionalidade procurou construir uma elite intelectual € politica que se distanciasse da maioria da populacao” (p. 32). Essa elite bra~ sileira que fundou o Império impés uma norma padrao muito distante da gra matica sada pela maioria da populaglo brasileira, o que permitiu construit ‘a suposta unidade da lingua escrita entre Brasil ¢ Portugal, . era que acusavam os ever . Alencar, por exemplo, foi acusado de escrever numa incorreta ao publicar o livro Jracema, em 1865. Ao mesmo tempo em © escritor era reconhecido por exaltar a identidade do povo brasileiro atra- vés do uso de Palavras relacionadas a fauna, a flora e 4 cultura locais, era criticado re brasileiros como Anténio Henriques Leal e portugueses como Manuel Pinheiro Chagas por “denegrit” a lingua portuguesa com neolo- gismos, galicismos e formas linguisticas que estavam em desacordo com as regras da gramética lusitana, Segundo Pagotto (1998), um dos pontos criticados pelos puristas era 0 fato de Alencar usar com certa liberdade a posiedo dos pronomes dtonos (ou cliticos) em relagaio ao verbo, colocando- os, como afirmava sem reserva, “onde mandassem os seus ouvidos”. Vejamos alguns argumentos de Valdeci Rezende Borges (2010) sobre o embate entre Chagas e Alencar, apresentados no artigo “Manuel Pinheiro Chagas, leitor critico de José de Alencar: a censura e a resposta”, para que possamos entender melhor o teor das discussdes em torno desse tema. A polémica entre Manuel Pinheiro Chagas e José de Alencar “Alencar recebeu elogios ¢ honrarias [Uracema], mas também foi censurado no emprego da lingua portuguesa”. © criticas do fildlogo portugués Manuel de José de Alencar e a resposta Borges diz que pela escrita do livro pela falta de corregao autor traz algumas das Pinheiro Chagas a linguagem dada pelo romancista 20 fildlogo. 10 6 0 defeito que me parece dever noes na Jracema; 0 defeito que eu ‘vejo nessa lenda, 0 defeito que es em todos os livros brasileiros, e contra 0 qual nao as bradar intrepidamente, 6a falta de corregdo na linguagem ‘Nao; esse nai recebendo para além da paisagem e das tia ser brasileiro também na lingua. Advo; ees criar uma individualidade pa anes Aloe na jovem ¢ robusta, muito distinta da velha e gloriosa individualidade portuguesa”. Acrescenta Borges: Frente as questdes apontadas Alencar expds suas opinides ‘em matéria de gramatica, ao discutir alguns principios, re- ras e excegdes presentes na ortografia da lingua portugue~ sa, mencionando suas ambiguidades e as discordancias que ) se mutriam em relago a esses. ES Outra polémica em toro da lingua portuguesa no Brasil se deu no inicio do século xx, com a sangao do Cédigo Civil Brasileiro, em 1916. Cédigo recebeu um parecer longo ¢ detalhado do relator da Comiss&io Especial do Senado, Rui Barbosa. O relator apresentou & comissio que presidia rigorosas criticas a linguagem do projeto, oferecendo emendas a quase todos os seus mais de 1.800 artigos. A polémica girou em torno da concepgdo de lingua pura c da imagem que se tem da relagiio dos brasilei- ros com a lingua por mais de uma década, indicando mais uma vez a forga social do discurso conservador. Quase na mesma época, de 1922 a 1930, modernistas como Mario de Andrade e Oswald de Andrade revelam-se contrarios ao purismo linguisti-~ co, propondo que se escrevesse em lingua brasileira, Oswald de Andrade reclama no “Manifesto Pau-Brasil”, de 1922, o direito a “uma lingua sem arcaismos, sem erudi¢ao, natural ¢ neolégica”, como ilustram os versos: Dé-me um cigarro, diz a gramética do professor ¢ do aluno do mulato sabido ‘mas 0 bom negro ¢ 0 bom branco +0 livro didatico Por uma vida melhor, de ae ©Mm1 Coautoria, destinado & Educagio de Jovens € Adultos (ems oe alvo de discussbes devido ao tratamento que da a variacao linguis- tica. O livro traz, no capitulo “Escrever é diferente de falar”, , ", uma pequena passagem sobre as diferengas entre a norma culta escrita e as variantes que o aluno adquiriu em sua fala até chegar a escola, com exemplos do portugués coloquial, como em “Nés pega o peixe” e “Os menino pega o peixe”. Semo cuidado de analisarem o capitulo mais atentamente, muitos criticaram o livro dizendo que ele ensinaria as criangas a ler ¢ a escrever errado. Novamente, houve a manifestacdo de movimentos antag6nicos e debates acirrados foram travados. Vejamos, a seguir, um pouco mais sobre esses debates. oe A polémica do livro didatico Ao apresentar as diferengas entre as variedades da lingua portuguesa, 0 livro didatico Por uma vida melhor propde que a escola substitua a concepgao de “ to” e “errado’ Por ‘ade- quado” e “inadequado”. Contra ele, muitas vozes de diferentes estratos da sociedade brasileira se ergueram, algumas carregadas sem nenhum fundamento cientifico, por pleno estava escrito. Vejamos uma critica ex- traida de um texto intitulado “O se da ee ee sa”, publicado em uma revista brasileira de amp! rculagao: ue tolera erros gramaticais ga” causa esp no apteniza i de preconceito, desconhecimento do que Livro distribuido pelo como “os livro” e “nds peg a ae ores criticaram o capitulo “Escrever ¢ diferente de falar seguiram perceber que o livro apenas ilustra as vari focando as diferengas entre as modalidades oral ¢ escrite Vejamos agora um depoimento sobre 0 livro, de quem entende a proposta ali veiculada. O tom geral é de escandalo. A polémica, no entanto, nao tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a esta susten- tando pelo lado do escandalo, leu o que nao esté escrito, esti atirando a esmo, atingindo alvos errados ¢ revelando sua espantosa ignorancia sobre a histéria e a realidade social ¢ ) linguistica do Brasil. [...] € indispensavel informar os alunos sobre 0 quadro da variagao linguistica existente no nosso pais ¢, a partir da comparagio das variedades, mostrar-lhes 0s pontos criticos que as diferenciam e chamar sua atengao para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferen- as [..]- Por fim, é preciso destacar a importancia de conhe- cer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra 0 preconceito linguis- tico. E isso — e apenas isso — que fazem os autores do livro. (Carlos Alberto Faraco, disponivel em , acesso em: 19 nov. 2012). Como esclarece Faraco, 0 livro esté de acordo com os PCN de lingua portuguesa (ou seja, em conformidade com a re- comendagao do MEC) ao trazer uma distingdo entre variedade popular e variedade culta da lingua. Mostra que a escola deve ensinar a norma culta, levando em consideragéo a bagagem cultural que o aluno traz de casa como condigao para sua pat- ticipacdo efetiva nas diferentes atividades sociais. e garantir ao aluno o dominio da norma culta para que ele possa ter efetivas de acesso a todos os bens culturais. E a lingua é apenas um deles. Para refletir Tomemos novamente as sentengas do livro didatico que foi alvo de polémica, ‘Nos pega o peixe’ e ‘Os menino pega o peixe’, para discussao. Na primeira, o pronome sujeito ‘nés” indica a pessoa do discurso (P4) e o verbo que o acompanha apresenta morfema zero, isto é, ndo tem morfema de indic: ¢&o de pessoa/ntimero. Na segunda, 0 sintagma nominal sujei- to ‘Os menino’ também acompanha um verbo com morfema zero (‘pega’). Em outras linguas, como no inglés, 0 verbo nao traz marcas flexionais distintivas indicadoras de pessoa/ni- mero. E alguém ja criticou o inglés por isso? No caso da segunda sentenca, hé ainda variag%io na con- cordancia nominal de niimero ‘Os menino’. A marca de plurali- dade encontra-se apenas na primeira casa do sintagma nominal e mesmo assim todos nés entendemos que o sintagma est no plural. J4 nos perguntamos por que a variacao néo poderia ser de qualquer jeito? Por que “erramos” todos de uma mesma maneira nas diferentes regides do pais? Por acaso, ouvimos alguém dizer “O meninos pega 0 peixe’? Pensemos um pouco sobre isso! EN A Antes de fechar esta segao, que gira em torno de polémicas sobre © purismo linguistico, propomos mais algumas reflexdes. Muitas vezes toleramos que pessoas que nunca estudaram como a linguagem funcio- na expressem opinides (em geral agressivas e pouco embasadas) sobre a variedade que se deve usar e como deve ser a linguagem. Toleramos que se diga isso da lingua, mas provavelmente nao tolerariamos que se dis- sesse que 0s fisicos estiio errados ao empregarem métodos experimentais, ai 23 Algumas questées sobre a nogao de “erro” Estudos linguisticos mostram que a crianga — em todas as partes do mun- do —adquire sua lingua materna naturalmente, depreendendo uma gramatica a partir da lingua a que esta exposta. Assim, quando vai para a escola aprender a modalidade escrita, j4 usa a modalidade oral, com todas as regras do sistema de sua lingua falada, porque tem plena competéncia linguistica, ou seja, nasce dotada de uma capacidade inata para a linguagem. Esses estudos, hd muito tempo, comprovaram que os seres humanos so dotados de uma faculdade da linguagem, independentemente de regio, classe social ou demais fatores. Sabemos bem que nossos alunos, quando chegam a escola, jA stio capazes de falar com muita naturalidade o portugués, que é a lingua materna da grande maioria dos brasileiros. A escola nao precisa se preocupar em ensinar a crianga a se comunicar usando a lingua portuguesa em situagdes comunicativas mais rotineiras, do dia a dia, pois isso j4 faz parte de sua competéncia linguistica. Todos nés comecamos a dominar essas tarefas desde nossos primeiros meses de vida, como desenvolvemos a denti¢o ou como aprendemos a andar. Isso significa dizer que, quando 0 aluno vai para a escola, ele jé domina as regras de sua gramitica internalizada; um conhecimento extremamente sofisticado, desenvolvido independentemente dos ensinamentos escolares. Embora as variedades que as criangas adquirem em uma mesma comu- nidade convirjam em grande parte, ha divergéncias relacionadas 4 prondn- cia, ao léxico e a gramatica, sem que isso prejudique a comunicagao. O papel da escola, entéo, nao ¢ o de ensinar a variedade vernacular ao aluno, e sim de expor a ele outras variedades da lingua, a variedade dos amigos, dos pais, de pessoas de outras regides e confronta-las com a norma culta, falada e escrita, que deve ser usada em determinadas situagées comunicativas, A variedade ‘ ) para akém de ser equivocado preconceituoso, ‘atrapatha do que ajuda o aluno a aprender a norma culta, - Pensemos um pouco agora sobre o aprendizado da escrita. Sabe-se que, desde os primeiros registros escritos, a crianga manifesta espontaneamente “ecos” naturais de sua prontincia e também incorpora aspectos convencio- nais da escrita encontrados na sociedade em que esta inserida. Em outras palavras, ela recorre oralidade para levantar hipdteses sobre a escrita e, 20 usar alguma convengao da escrita, conduz também uma andlise da propria fala. E, nesse caso, poderfamos nos perguntar: do ponto de vista da variagao dalidades oral e escrita? linguistica, quais sto as diferengas entre as mo Para responder a essa questo nio poderiamos deixar de trazer reflexdes de Bortoni-Ricardo (2006) sobre 0 estatuto do erro nas modalidades oral ¢ es- crita, Segundo a autora, o que a sociedade chama de “erro” na fala das pessoas a Sociolinguistica considera to somente uma questiio de inadequacao da for- ma utilizada s expectativas do ouvinte. Essas expectativas, por sua vez, decor- rem das imagens que os interlocutores fazem uns dos outros, dos papéis sociais que desempenham e das normas ¢ crengas vigentes na comunidade de fala. O erro na lingua falada ndo é um erro de transgressio de algum sistema de regras da lingua, mas uma variedade (em geral, vernacular) que coocorre ¢ concorre com alguma outra variedade Linguistica (mais prestigiada ou mais culta) exis- tente na sociedade. E, pois, um fato social. Nesse caso, o que presenciamos é a transgressao de uma etiqueta linguistica, uma espécie de inadequagao de uso. “A Sociolingufstica assume uma postura de combate ao estigma associado a variantes de pouco prestigio social —Aquilo que a sociedade chama de “erro” na linguagem falada, Por exemplo, as sentengas: (1) “A gente ¢ feliz’ e (ii) “A gente somos felizes’ so duas maneiras possiveis de dizer alguma coisa com ‘© mesmo significado referencial/representacional. Do ponto de vista social, espera-se que a primeira seja usada mais frequentemente nas variedades cultas da lingua e a segunda, nas variedades vernaculares. Do ponto de vista linguis- al pois erros grificos sto avaliados muito negativamente. Pode- ‘mos: ‘uma transgressio nfo apenas de etiqueta, mas também de regra, porque a ortografia é um cédigo, fixado ao longo de anos, que no — com raras excegdes, cada palavra tem apenas uma grafia. Na eserita hi dois tipos de erros: os que resultam da interferéncia de tragos da oralidade ¢ os que se explicam porque a escrita é regida por um sistema de convengdes arbitririas. Os professores de portugues (alfabe- fizadores ou no) devem aprender a fazer a distingdo entre problemas na cccrita e na leitura que decorrem da interferéncia de regras fonolégicas variaveis e outros que se explicam simplesmente pela falta de familiarida~ de do alfabetizando com as convengdes da lingua escrita, para que possam trabalhar eficazmente com essas questdes em sala de aula. Observemos uma produgao textual de um aluno de 14 anos da quin- ta série do ensino fundamental da rede piblica de Floriandpolis, coletada para a dissertacao de Silva-Brustolin (2009). No ano passado eu ¢ meus amigos fomos jogar no moleque bom de bola mais chegando la nés nao tinha uniforme e a mae do meu amigo teve que ir lé compra ealsio para nés jogar porque cles falaram que jam da uniforme mas nfo dero, quando nés jogamos contra o time do Colegio X nds perdemos de 14 x 0 e no segundo jogo nds perdemos de 4x 1 ¢ tivemos que voutar pra Casa mais sedo. Constatamos inicialmente nessa pequena produgdo do aluno que ha varios problemas gréficos decorrentes da interferéncia da fala na eserita. Ini- ciamos comentando a supressao do /r/ final em palavras como ‘compra’ (por ‘comprar’) ¢ ‘da’ (por “dar’). De fato, no portugués falado no Brasil, tendemos a suprimir o /t/ final nos infinitivos verbais. ‘Veja que em ‘jogar’, ‘ir’ e ‘voutar’ 0 foi marcado. Isso se da porque, na fala, a supresstio do /t/ é uma regra varidvel: ora suptimimos 0 /r/ final, ora 0 realizamos. Outros problemas de 150 Observamos também a variagio encontrada em ‘mas nao dero’ no lu- ~ gar de ‘mas n&o deram’, Vé-se ai que 0 morfema de concordancia foi, de ‘certa forma, preservado (‘dero/deru’). O que ocorreu foi um processo de desnasalizagio, muito comum na prontincia de verbos de P6 no portugués do Brasil. Verificamos a mesma queda da nasal em nomes como ‘homem’ > ‘home’, ‘viagem’ > ‘viage’, ‘malandragem’ > ‘malandrage’. Vale lembrar que a desnasalizagao também é um dos processos fonolégicos ja observados na mudanga do latim para 0 portugués, percebido como converstio de um fo- nema nasal em oral, como em ‘luna’ > ‘lila’ > ‘lua’. Notemos, porém, que no pequeno texto o aluno também usa a nasalizagao, de acordo com a ortografia da lingua, como em ‘eles falaram’. Todos os casos em variagdo apontados até agora se explicam pela prontincia ou interferéncia da oralidade na escrita. Quanto aos problemas de convengao ortogrifica, © que se peroebe é que ‘© autor do texto trocou duas palavras: ‘calga0” por ‘calstio’, e ‘cedo’ por ‘sedo’, ‘mas tem conhecimento pleno dos sons utilizados: s entre consoante & vogal ¢ no inicio de palavras tem som de /s/. 0 erro decorre somente da transgressto de um sistema de convengiio ortogrifica — aliés, no podemos nos esquecer da falta de sistematicidade do portugués quanto a grafia do som /s!: hé pelo menos nove for- ‘mas diferentes para marcar esse som—, , , , , , , . Para familiarizar o aluno com as conveng6es da lingua, o professor poderia introduzi-lo no universo da escrita oferecendo atividades varias de leitura e de escritura. E sempre que uma davida aparecesse, poderia ser uma pratica de sala de aula a consulta a um dicionério. Bortoni-Ricardo (2006) deixa claro que considerar uma transgressa0 4 ortografia como erro nao significa entendé-la como uma deficiéncia do aluno que dé ensejo a criticas ou a um tratamento que 0 deixe humilhado. sminio da ortografia é lento ¢ requer muito contato com a modalidade lingua. Dominar bem as regras de ortografia ¢ um trabalho para storia es olar e, quem sabe, para toda a vida do individuo. oe Me Do ponto de vista da variag’o linguistica, além do dominio da orto- ‘grafia, a escola poderia levantar reflexdes sobre os “erros” de morfossin- taxe (por exemplo, concordancia), de sintaxe (por exemplo, regéncia) e de diseurso (por exemplo, marcadores discursivos tipicos da oralidade) que aparecem na escrita. No texto do aluno que estamos examinando, encon- tramos variag’io na concordancia entre 0 pronome ‘nds’ ¢ o verbo: ora a concordancia aparece marcada, conforme a norma culta da lingua, como em “nds jogamos’ e ‘nds perdemos’, ora o pronome aparece acompanhado de verbo sem flexiio marcada de pessoa, nas sentengas ‘l4 nés nao tinha uniforme’ e ‘pra nés jogar’. Nesses tiltimos casos, observamos na escrita — como comumente encontramos na fala — uma regularizagdo do paradig- ma verbal. Notemos que o sujeito ‘nés’ est preenchido, garantindo assim © significado de P4 as sentengas. Como muitos autores j4 apontaram, 0 morfema verbal zero (originariamente de P3) atua como uma espécie de coringa da conjugagao verbal em portugués (tu fala/vocé fala/a gente fala/ nés fala/eles fala). E como se o aluno tivesse recorrido a oralidade para levantar hip6teses sobre a escrita. 3. EM QUE PODE A SOCIOLINGUISTICA CONTRIBUIR PARA 0 ENSINO DE LINGUA? Ao fazermos remissao aos PCN no inicio deste capitulo, percebemos © quanto o documento é atravessado por pressupostos da Sociolinguistica. Tratamos em seguida de reflexdes sobre a variagao linguistica e, neste mo- mento, queremos apresentar algumas contribuigdes da 4rea para 0 ensino de lingua portuguesa, em especial, referentes a pratica do professor-pes- sposta no € dif, pelo que pudemas gel ‘pelos nen. E preciso ter um embasamento te6rico consistente acerca da Tinguagem em seu funcionamento social para poder atuar, de forma competen- te, na orientago da aprendizagem ¢ na formagio continua do aluno-cidadao. Infelizmente, segundo Faraco (2008: 193), “fica evidente, passados os primei- ros dez anos de sua vigéncia, que eles [os PCN] niio foram assimilados pela es- cola e, por consequéncia, pouco ou nada tém significado para 0 seu cotidiano”. Para (in)formar, o professor precisa, antes de tudo, conhecer. Ao pro- piciar condigdes para que 0 aluno saiba “refletir sobre os fenémenos da inguagem, particularmente os que tocam a questio da variedade linguis- tica, combatendo a estigmatizagio, discriminago ¢ preconceitos relativos 0 uso da lingua” (Brasil, 1998: 59), professor precisa, obviamente, saber fazer isso —nio de forma superficial, seguindo o senso comum, mas de fato com embasamento cientifico ¢ dominio conceitual. O dominio dos postulados sociolinguisticos basicos (¢ seus desdo- ppramentos e implicagdes) é 0 minimo que se espera do professor de lingua portuguesa nos dias atuais. O nivel conceitual, de cardter amplo, natural- mente se aplica a todas as inguas naturais. Nesta segio, vamos focalizar a lingua portuguesa, mais especifica- 5 do Brasil. A titulo de ilustragfio, e como uma forma de mente o portugué: revistio do que ja estudamos, vamos examinar a variagdio/mudanga no pa- radigma pronominal, seus encaixamentos € desdobramentos. De todas as tmudangas por que passou 0 portugues a0 longo dos séculos, talvez.a pro- nominal tenha sido a mais significativa. Refletir sobre as formas pronomi- nnais antigas e as formas novas é uma das importantes tarefas do professor de lingua. Indo nessa mesma dire¢ao, Lopes (2007: 116) defende “a apre- sentagao do que é normal, usual e frequente nO portugués brasileiro, sem ie vista 0 que est dispontvel na nossa literatura, na nossa lingua, na historia” Iniciamos com a discussfo sobre 0 paradigma pronominal ssid veiculado ‘gramatical e na maioria dos livros didaticos tia o com o paradigma usado no portugues kono paradigma_ 2 deve-se a ono i fi “voce"/*voogs’ e fa gente’ na lingua portuguesa. As. ‘for- ‘mas pronominais ‘tu’/‘vés’ ¢ ‘nds’ passaram a conviver com as formas “*vocé’/‘voeés’ ¢ ‘a gente’, respectivamente. As formas novas ‘vocé’/‘vocés’ so resultado de um processo de mudanga: ‘vocé’/‘vocés’ advém do pronome de tratamento de base no- minal ‘vossa mercé’/‘vossas mercés’. Carlos Alberto Faraco, no artigo “0 tratamento vocé no portugués: uma abordagem histérica”, afirma que “mudangas nas formas de tratamento estdo correlacionadas com mudangas ) nas relagdes sociais e valores culturais” (1996: 52). Segundo esse autor, a forma de tratamento ‘vossa mercé’ comegou a aparecer no século xIv no portugués. Usada inicialmente na aristocracia como forma de tratamento respeitoso, aos poucos foi sendo adotada no tratamento nao intimo mais amplo — inclusive entre a baixa burguesia -, perdendo, gradativamente, seu valor honorifico. Pode-se testemunhar, segundo o autor, que “sempre que uma delas [das formas de tratamento] comegava a ter um uso mais geral, escapando de um circulo restrito de usuarios, estes a abandonavam por outra” (p. 61) — como um movimento continuo de redistribuigao social das formas. Depois de ampla expansao social a forma foi afetada por um processo conhecido por gramaticalizagao. QUEEF SES PS Gramaticalizagéo F um processo de mudanga linguistica que se da através de regularizagio gradual, pela qual um item frequentemen- te utilizado em contextos comunicativos particulares adquire fungao gramatical e pode, uma vez gramaticalizado, adqui- rir novas fungdes gramaticais (Hopper e Traugott, 2003). Ou seja, no processo de gramaticalizacao, um item lexical ou uma A processos de gramaticalizagao | - na passagem: (i) de item lexical a pronome (do substa | tivo ‘gente’ ao pronome ‘a gente’); (ji) de verbo lexical a verbo auxiliar (de verbo ‘ir’ de movimento para ‘ir’ auxiliar, como em “vou cantar’, indicando tempo futuro); de advérbios a conjun- ‘gdes (do adverbio ‘agora’, indicativo de tempo, ao conector ‘ago- 1a’, indicativo de conjungao adversativa), dentre outros. ‘No percurso de ‘vossa mercé’/‘vossas mercés’ para ‘vocé’/“vocés’, a forma de tratamento foi se gramaticalizando -vansuncé(s)—vassucé(s) —vacé(s)—vocé(s). Nessa passagem, a forma foi gradualmente sofrendo erosio fonética. Em alguns lugares do Brasil, a redugiio se encontra ainda mais acentuada, como em —0cé(s)—»cé(s). Vamos entender um pouco mais sobre o percurso dessa forma: + A forma nominal ‘vossas mercés’, que estabelece relagao de concor- dancia com P6 (como em “vossas mercés cantam’), ao se gramaticalizar para a forma pronominal ‘vocés’(P5), continua mantendo uma relagao de concordancia com o traco formal de P6 (como em ‘vocés cantam’), € passa a concorrer com ‘vés’ — pronome ja em desuso no portugués do Brasil, exceto em alguns géneros discursivos bastante especificos, relacionados basicamente aos campos religioso e juridico. + A forma pronominal ‘vocé’ (P2) continua mantendo uma relagio de concordancia com o trago formal originario da flexao verbal (morfema zero), do mesmo modo que os demais pronomes de tratamento, como “yossa exceléncia’, ‘vossa senhoria’ etc. Assim, persiste a especificagao de flex original, embora a interpretagao semantico-discursiva seja de P2. Ao se gramaticalizar, ‘vocé’ comega a concorrer com ‘tu’. ‘Ao assumir determinadas propriedades, valores e fungdes, a forma nominal ‘vossa mercé’/‘vossas mercés’ passa a fazer parte de uma nova = categoria (ou classe), a de pronome — ou seja, muda seu estatuto gramatical — de nome (item lexical) para pronome (item gramatical). vl postula-se que * gente’ resultou do cesso: de ‘gente’ (nome genérico) para ‘a gente’ (pronome do) ¢ deste para 0 pronome pessoal ‘a gente’ (P4). A forma prono- minal (P4) continua mantendo uma relagaio de concordancia com 0 trago formal originario da flexiio verbal (morfema zero), porém, a interpreta- ‘go semintico-discursiva se altera, passando a incluir o falante. A forma ‘a gente’ integra-se ao sistema pronominal concorrendo com ‘nds’. ‘As mudangas por que passaram essas formas linguisticas nao afe- taram apenas o paradigma pronominal do caso reto. Esse comportamento hibrido dos pronomes ‘vocé/vocés’ ¢ ‘a gente’, agregando aos tragos ori- ginarios gramaticais tragos seménticos de P2/P5 e de P4, respectivamente, acabou provocando uma reestruturacao também no paradigma verbal, que passa de seis formas distintivas basicas (paradigma 1) para quatro, trés ou apenas duas (paradigma 2), como ilustrado no quadro a seguir. Quadro 7: Reestruturagio do paradigma verbal. ——— ee PARADIGMA 1 PARADIGMA 2 EU ANDO/ESCREVO/VOU EU ANDOIESCREVO/VOU, ‘TU ANDAS/ESCREVES/VAIS ‘TU ANDA(SYESCREVE(S)/VAI(S) ~ VOCE, ANDAVESCREVE/VAL ELE(A) ANDA/ESCREVE/VAT ELE(A) ANDA/ESCREVE/VAT ‘NOS ANDAMOS/ESCREVEMOS/V AMOS NOS ANDA(MOS)/ESCREVE(MOS)’ VAI(MOS) ~ A GENTE ANDA(MOS)’ ESCREVE(MOSYVAI(MOS) ‘VOS ANDAIS/ESCREVEIS/IDES VOCES ANDA(M)/ESCREVE(M)/VAKAO) ELES(AS) ANDAM/ESCREVEM/VAO. ELES ANDA(M)/ESCREVE(M)/VAKAO), ‘Nesse quadro, o paradigma 1 evidencia a norma padro lusitana do século XIX, correspondente ao paradigma flexional do verbo regular no “tempo presente de primeira, segunda e terceira conjugagdes. Notemos wie;/er a algumas de suas formas estejam praticamente em desuso, € ) que aparece ainda na maioria dos livros didaticos e gramati- po. espago, diferentes variantes linguisticas podem conviver mescladas, geralmente associadas a diferentes valores soci: ‘Vejamos agora como se deu a passagem do paradigma | ao paradigma 2: + Aentrada dos pronomes ‘voce’ e ‘vocés” em P2 ¢ PS, respectivamen- te, na maioria das regides brasileiras, desencadeou uma mudanga no paradigma de flexdo verbal correspondente, que comegou a contar com formas homénimas entre P2 e P3: ‘vocé anda’/‘ele(a) anda’ € entre PS ¢ P6: ‘vocés andam’/‘eles(as) andam’; = Aentrada da forma ‘a gente’ em P4 desencadeia uma competigéio prono- minal na lingua com pronome ‘nds’. O uso de ‘a gente’ aparece com frequéncia principalmente na lingua falada de pessoas mais jovens. Esse novo pronome (‘a gente’) desencadeia nova alterago no paradigma de | flexdo verbal, que conta, portanto, com mais uma forma verbal homéni- ma entre P2, P3 e PA: ‘vocé yai’/“ele(a) vai’/“a gente vai’; + Ahomonimia, observada nos itens 1 e2, instala gradativamente na lin- | gua uma tendéncia ao preenchimento do sujeito pronominal para evi- tar a ambiguidade provocada por essas formas verbais. Essa mudanga pode ser observada: (i) quando comparamos a fala de pessoas mais igurando um caso de mudanga em tempo textos escritos atuais com registros jovens ¢ mais velhas, confi aparente; ¢ (ji) quando comparamo: antigos, evidenciando uma situagdo de mudanga em tempo real. & importante, ainda, registrar que a entrada dos pronomes ‘voce’,

You might also like