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O1NLIdVD Prolegsmenos para a compreensao dos direitos linguisticos: uma leitura a partir da Constituig¢ao da Republica Federativa do Brasil Ricardo Nascimento Abreu 8.1 INTRODUGAO' vimento dos estudos em politicas linguisticas que de forma ‘no Brasil, vem possibilitando novos olhares acerca do pluralismo rritério nacional. Em um dos seus vieses de analise, busca encontrar 105 em meio ao emaranhado de diplomas normativos que constituem © denamento juridico, com a finalidade de desenvolver uma doutrina eapaz assegurar um conjunto de direitos linguisticos para as comunidades falantes ais de duas centenas de linguas que coexistem neste pais. 164 Sociolinguistice e politica linguistica: olhares contempordneos © mito do Estado monolingue, fundado nas agdes de defesa e fomento da ingua portuguesa durante o século XIX, mas consolidado firmemente pelo trabalho dos republicanos principalmente a partir do despontar dos primeiros raios do século XX, fez com que os falantes da lingua portuguesa ignorassem a existén de falantes de outras linguas, crendo, portanto, durante um longuissimo tempo, que nao havia a necessidade de se pensar em politicas piiblicas que garantissem a cidadania linguistica plena aqueles nao falantes do portugues. © imaginario monolingue brasileiro foi deveras fomentado pela recém- criada Reptblica, como fundamento de génese do fortalecimento da identidade do povo brasileiro e da unidade nacional. Em um pais com dimensdes continentais como © Brasil, foi necessdrio encontrar elementos que fossem capazes de criar lagos identitérios entre os integrantes da populagio, do extremo Norte ao Sul do territério. Cumpriram essa fungio, de forma material, por exemplo, a Bandeira Nacional c, de forma imaterial, a tradigao inventada de uma alegada homogeneidade linguistica do povo brasileiro. Por este viés, coadunamos com a ligio do historiador José Murilo de Carvalho, para quem A claboragio de um imaginério é parte integrante da legitimagao de qualquer regime politico. E por meio do imaginario que se podem atingir nao 56 a cabega mas, de modo especial, 0 coragao, isto é, as aspiragies, os medos ¢ as esperangas de um povo. E nele que as sociedades definem suas identicades © objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente © futuro. © imaginétio social ¢ constituido e se expressa por ideologias e utopias, sem diivida, mas também por simbolos, alegorias,rituais, mitos. Simbolos e mitos podem, por seu eariter difuso, por sua leitura menos codificada, tornar-se elementos poderosos de projego de interesses, aspiragdes e medos coletivos, Na medida em que tenham éxito em atingir © imaginério, podem também plasmar visdes de mundo e modelar condutas (CARVALHO, 1990, p. 10). Somente a partir da segunda metade do século XX, principalmente com © desenvolvimento dos estudos em Sociolinguistica, é que a percepcio do plurilinguismo brasileiro comega a invadir as academias universitarias ¢, aos poucos, passa a ser difundida por alguns segmentos da sociedade. Ainda assim, contemporaneamente, nao é de causar espanto que o homem médio brasileiro, seguramente, receba com grande surpresa a noticia de que existem, para além da lingua portuguesa, outras linguas faladas por comunidades inteiras no nosso pais. neste contexto acima descrito que as primeiras iniciativas de debate acerca dos direitos linguisticos comecam a ser desenvolvidas no Brasil, no periodo de transi¢io entre os séculos XX e XI. E por se tratar de campo necessariamente interdisciplinar, exige do pesquisador 0 transito por varias éreas do conhecimento, com énfase logicamente para os estudos em Sociolinguistica ¢ Direito. Como forma de contribuir com a difusio do debate acerca dos d 108 linguisticos no Brasil, neste texto objetivamos tragar um caminho que conduza a uma compreensio da nogio da area das politicas linguisticas, inicialmente por meio da anélise do marco histérico moderno dos direitos inguisticos, que nos conduz ao final da Segunda Guerra Mundial e elaboragio da Declaragii Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948); do marco juridico-flos6fico, que se traduz na passagem de um paradigma juridico positivista para o que tem se convencionado chamar de pés-positivismo juridico; ¢, por fim, um marco teérico, atribuido aos estudos no campo da sociolinguistica, que tém sido responsdveis por desvendar os aspectos atinentes & diversidade intra e extralinguistica, que caracterizam a diversidade linguistica brasileira. Para além desse objetivo preliminar, intentamos ainda apresentar uma classificagio dos direitos linguisticos, de base constitucional, que possa ser aplicada ao modelo brasileiro, na qual os direitos linguisticos sio vislumbrados como género, podendo ser subdivididos em duas espécies distintas, a saber: 0 direito dos grupos linguisticos e o direito das linguas. 8.2 OS MARCOS HISTORICO, FILOSOFICO-JURIDICO E TEORICO DOS DIREITOS LINGUISTICOS. Passemos a discorrer acerca dos marcos hist6rico, juridico-filos6tico e te6rico dos direitos linguisticos, com o fito de estabelecer um caminho que nos permita 166 Sociolinguistica e politica Ingutica: chores contemporéneos compreender a organizagio desses direitos no Brasil, bem como possibilitar aos que militam no campo das politicas linguisticas a abertura de uma nova frente de ativismo que postule em juizo a turela dos direitos das linguas e dos grupos linguisticos. 8.2.1 O MARCO HISTORICO DOS DIREITOS LINGUISTICOS, Se tomarmos exclusivamente a historia do constitucionalismo no mundo, no se constituiria um desafio impossivel encontrar constituigdes que possuiram algum tipo de dispositivo normativo que teve como objetivo regular direitos ¢ obrigagdes em relagio aos direitos linguisticos no ambito dos Estados, dos grupos, ou mesmo dos individuos. Assim ocorreu, por exemplo, com os processos de constitucionalizagio de direitos linguisticos nas Constituigoes Alema de Weimar, em 1919, e da extinta Unido das Reptblicas Socialistas Soviéticas, em 1936. O mareo hist6rico da nogdo moderna de direitos linguisticos, no entanto, remonta ao aparecimento dos instrumentos de Direito Internacional de Direitos Humanos, que se potencializou apés a Segunda Guerra Mundial, a partir da elaboragao da Declaragao Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Além de serem os direitos linguisticos reconhecidos de maneira equanime por todos os Estados signatirios dos tratados e convengGes internacionais a partir daf elaborados, a diferenga mais marcante que atinge a conceituacio dos direitos linguisticos postos nas constituigdes ¢ legislagoes infraconstitucionais anteriores ou posteriores a0 surgimento da Declaragio Universal dos Direitos Humanos consiste no fato de que, a partir da Declaragao de 1948, esses dircitos linguisticos foram algados a categoria de direitos humanos e, dessa maneira, atrairam para si © conjunto de caracteristicas? que sio atribuidas aos direitos desta natureza Por ser uma resolugao da Organizacio das Nagdes Unidas, € nao um tratado internacional, a Declaragio Universal dos Direitos Humanos nao possui forga vinculante em relago 4 comunidade internacional. No entanto, a DUDH ¢ vista como matriz da génese de um conjunto de tratados, pactos ¢ convengées internacionais que se ocupam de diversas tematicas afeitas aos direitos humanos, sendo capaz também de promover diretamente a positivagao de suas normas no direito interno da maioria dos paises do globo terrestre. Prolegémenos para a compreensdo dos direitos linguistico 167 Exemplificativamente, a temitica da proibigio da discriminagao, presente na Declaragao Universal dos Direitos Humanos, foi e continua sendo pauta constante na formulacio dos instrumentos de protecao dos direitos humanos, dentre os quais podemos citar o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Politicos, de 1966 (Art. 2°), € 0 Pacto Internacional dos Direitos Econdmicos, Sociais e Culturais, de 1966 (Art. 2”), Para além desses dois importantes instrumentos normatives, podemos também elencar proibigdes a discriminagio de natureza especifica em normas internacionais, a exemplo da Convengio n° III da Organizagéo Internacional do Trabalho (OIT), sobre a Discriminagao em Matéria de Emprego e Profissio, de 1958 (Art. 1°); Convengao sobre a Eliminagao de Todas as Formas de Discriminagio Racial, de 1965 (Art. 1°); Convengio da UNESCO relativa & Luta Contra a Diseriminag30 no Campo do Ensino, de 1960 (Art, 1°); Declaragio da UNESCO sobre a Raga € 05 Preconceitos Raciais, de 1978 (Arts. 1°, 2° © 3°); Declaragao sobre a Eliminagio de Todas as Formas de Intolerdncia e Discriminagio Baseadas na Religiio ou Conviegio, de 1981 (Art. 2°) e Convengao sobre os Direitos da Crianga, de 1989 (Art. 2"). Dentre 0 conjunto de instrumentos legais de direitos humanos que visam salvaguardar os direitos dos grupos minoritirios dos Estados nacionais, destacamos a Convengio Internacional sobre a Eliminagio de Todas as Formas de Discriminagéo Racial (Art. 2° ¢ 4°); 0 Pacto Internacional sobre os Direitos Econémicos, Sociais ¢ Culturais (Art. 13°; 0 Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Politicos (Art. 27°) e, especificamente, a Declaragio sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Etnicas, Religiosas ¢ Linguisticas. © reconhecimento da existéncia das minorias linguisticas contido no Art. 27 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Politicos representou um significativo avango no campo dos direitos humanos linguisticos ¢ trouxe para 05 Estados o Gnus de zelar pelo cumprimento da norma, independentemente de quaisquer reconhecimentos prévios acerca da existéncia de minorias linguisticas, em seus territérios. A partir deste momento, os Estados signatérios do Pacto passaram a possuir a obrigacao juridica de zelar para que os direitos das minorias linguisticas sejam salvaguardados, podendo, eles mesmos, virem a ser fiscalizados acerca do cumprimento da norma ternacional. A Declaraco sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes 2 Minorias Nacionais ou Etnicas, Religiosas e Linguisticas, adotada pela Assembleia Geral das Nagoes Unidas na sua resolugao 47/135, de 18 de dezembro de 1992, traz consigo 0 mérito de ser um documento que verticaliza as discussdes acerca dos direitos das minorias, estimulando os Estados a reconhecerem e protegerem suas minorias de qualquer espécie. Ar 1.0 Estados adotario as medidas necessérias a fim de garantir que as pessoas pertencentes a minorias possam exercer plena e eficazmente todos os seus direitos humanos ¢ liberdades fundamentais sem discriminacao alguma em plena igualdade perante a Lei. 2. Os Estados adotario medidas para criar condigées favordveis a fim de que 8 pessoas pertencentes a minorias possam expressar suas caracteristicas € desenvolver a sua cultura, idioma, religido, tradigbes e costumes, salvo em casos em que determinadas priticas violem a legislagio nacional ¢ sejam contririas 4s normas internacionais. 3. Os Estados deverio adorar as medidas apropriadas de modo que, sempre que possivel, as pessoas pertencentes a minorias possam ter oportunidades adequadas para aprender seu idioma materno ou para receber instrugdes em seu idioma materno, 4. Os Estados deverdo adotar, quando apropriado, medidas na esfera da educacdo, a fim de promover o conhecimento da histéria, das tradigdes, do idioma e da cultura das minorias em seu territério. As pessoas pertencentes a minorias deverdo ter oportunidades adequadas de adquirir conhecimentos sobre a sociedade em seu conjunto (ONU, 2008, p.29). © caso brasileiro é deveras protoripico quando se pensa em defesa das minorias, pois varios grupos que historicamente tiveram acesso restrito condigao cidada passaram a usufruir de dircitos e, principalmente, do reconhecimento da sua existéncia e sua importncia junto ao tecido social. Temos testemunhado, por Prolegémenos para a compreensdo dos direitos linguisico 169 exemplo, o exponencial aumento dos debates em torno da questio das minorias ea adocdo de acées afirmativas que visam a intervencao do Estado nas relacdes sociais com 0 fito de fomentar 0 desenvolvimento da igualdade material entre as minorias étnicas ¢ o restante da populagao. Ponto que ainda merece ser desenvolvido pelo Estado brasileiro, posto que se encontra ¢ estégio embriondrio, € 0 reconhecimento das suas minorias linguisticas e as ages de garantia aos grupos linguisticos minoritarios do usufruto do direito fundamental de utilizar suas proprias linguas nas mais diversas situagées sociais. 8.2.2.0 MARCO JURIDICO-FILOSOFICO DOS DIREITTOS UNGUISTICOS A natureza interdisciplinar dos direitos linguisticos impde-nos uma ligagao muito forte com as mudangas de paradigmas que ocorrem nao somente no interior da cigncia da linguagem, mas também, principalmente, no bojo das ciéncias juridicas. O marco juridico-filoséfico do direito que afeta diretamente as questes que se referem aos direitos linguisticos diz respeito ao processo de transigao do positivismo juridieo para 0 pés-positivismo juridico. Em curtas linhas, podemos afirmar, de acordo com a ligdo de Barroso (2014), que o positivismo juridico buscou tratar o direito, uma ciéncia social, com extrema objetividade cientifica, afastando-o para tal fim da filosofia ¢ da moral. Para os positivistas, o direito estava equiparado exclusivamente & letra da lei, Cabia ao operador do direito aplicar a lei ao caso concreto, ndo havendo margens para debates que extrapolassem o contetido da norma e que buscassem se socorrer no campo da moral e da ética. Em uma releitura do préprio direito, 0 pés-positivismo se coloca como uma via de aproximagao entre 0 direito, a moral e a ética, permitindo uma oxigenagio do campo juridico como ciéncia, na medida em que permite que © enunciado das normas juridicas possa ter uma interpretagio adaptavel aos principios morais que estio sendo cultivados pela sociedade em um determinado momento histérico. © fortalecimento do pés-positivismo no direito brasileiro vai ocorrer no percurso da década de 1990, apés a promulgagio da Constituigdo em vigor, em 5 de outubro de 1988. O novo texto constitucional brasileiro, fundado sob o valor da dignidade da pessoa humana, além de outros principio, vem permitindo que a sociedade brasileira tenha instrumentos para discutir os chamados casos dificeis (hard cases), a exemplo da questo da legalizagio das unides homoafetivas, a constitucionalidade das pesquisas com células tronco- embriondrias ¢ a possibilidade de antecipagao terapéutica de parto em caso de feto anencefalico. Nao cremos que as questées atinentes aos direitos linguisticos venham a se constituir como yerdadeiros hard cases do direito brasileiro pois, diferentemente da andlise destes, aquelas podem ser resolvidas a partir de interpretagdes bem menos complexas do texto constitucional patrio. Entretanto, uma anise, ainda que superficial, da Constituigo mostra-se reveladora de uma série de lacunas ou questdes controversas em relagio ao tratamento da realidade plurilingue nacional deixadas pelo constituinte originério e que a contemporaneidade deverd enfrentar, dentre as quais pocemos citar: a) Auséncia de normas constitucionais explicitas que garantam direitos linguisticos para as comunidades nacionais falantes de linguas de imigragio; b) Possivel interpretacao de norma constitucional que veda o uso de linguas de imigragio no processo de escolarizacao fundamental ) Nao reconhecimento explicito de toda situagio plurilingue da populagio brasileira e, portanto, crenga na auséncia de conflitos linguisticos no ambito do territério nacional. No que diz respeito a auséncia de normas explicitas que garantam direitos linguisticos para as comunidades nacionais falantes de linguas de imigracao, poderfamos inicialmente alegar, em defesa do constituinte origindrio, que 0 mito do Estado monolingue possa ter sido 0 motivo pelo qual néo houve regulamentacao constitucional a este respeito. Este viés de anilise, entretanto, no se sustenta diante de um olhar mais apurado, pois 0 mesmo legislador constituinte origindrio, ao insculpir no § 2° do Art. 210 da CF/88 norma que obriga 0 uso do idioma oficial no Ensino Fundamental, assegurou explicitamente, apenas aos indigenas, 0 uso das suas linguas nesta etapa da Educagao Basica, gerando uma interpretagao que vige majoritariamente entre 0s operadores do dircito de que implicitamente foi vedado aos falantes de Prolegémenos pare o compreensao dos direitos linguistico Ww lingua de imigragao o direito de utilizar as suas linguas maternas no Ambito escolar’. © nao reconhecimento de toda situagio plurilingue nacional e a crenga na auséncia de conflitos linguisticos no territério brasileiro é outro que fica bastante marcado nas intengdes do legislador constituinte principalmente quando comparamos os trechos de alguns instrumentos internacionais de direitos humanos que inspiraram a Constituigdo brasileira, nos quais a vedagio A discriminagao inclui necessaria e explicitamente a discriminagao linguistica, termo este que foi deliberadamente suprimido do texto constitucional do Brasil. Sendo, vejamos: Art, 2° da Declaragio Universal dos Direitos Humanos: ‘Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaragio, sem distingio alguma, nomeadamente de raga, de cor, de sexo, de lingua, de religiio, de opinio politica ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra io. Além disso, no sera feita nenhuma distingio fundada no estatuto politico, juridico ou internacional do pais ou do territério da naturalidade da pessoa, seja esse pais ou territério independente, sob tutela, auténomo ou sujeico a alguma limicagao de soberania (ONU, 1948, grifo nosso). Art. 2° do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Politicos: Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar ¢ garantir a todos os individuos que se achem em seu territério € que estejam sujcitos a sua jurisdigZ0 os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem diseriminagio alguma por motivo de raga, cor, sexo, lingua, religiio, opiniao politica ou de ‘outra natureza, origem nacional ou social, situacao econdmica, nascimento ‘ou qualquer condigio (ONU, 1966a, grifo nosso). Vejamos ainda o §2° do Art. 2° do Pacto Internacional dos Direitos Econémicos, Sociais ¢ Culturais: §2. Os Estados Membros no presente Pacto comprometem-se a garantir gue os direitos nele enunciados se exercerdo sem discriminagdo alguma por motivo de raga, cor, sexo, lingua, religiéo, opiniao politica ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situagdo econdmica, nascimento ou qualquer outra situagio (ONU, 1966b, grifo nosso). > sea diseussio ser retomada mais adiante, quando a temética dos direitos dos grupos linguisticos for abordada. 172 Sociolinguisiica e politica linguistica: ohares coniempordineos Comparemos agora a redagio dada a um dos principais dispositives da Constituigdo brasileira que versa sobre a tematica da vedagio a discriminagioz Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da Reptiblica Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raga, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminacao (BRASIL, 1988, grifo nosso). Embora seja deveras clara a supressio da discriminagio linguistica realizada pelo constituinte origindrio, o que revela que & época na qual foi promulgado © texto constitucional nao havia o reconhecimento formal da existéncia de minorias linguisticas no territério brasileiro, a propria lei maior, inspirada na caracteristica do carater nao exaustivo das listas de fatores de discriminagao dos direitos humanos, compromete-se a “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raga, sexo, cor, idade ¢ quaisquer outras formas de discriminagao”. Nao restam diividas que & época da promulgagio do texto constitucional, ao menos no bojo da Assembleia Nacional Constituinte, pouco se conhecia acerca da existéneia de conflitos de natureza linguistica no Brasil. Houvesse 0 constituinte originario inserido textualmente a discriminagio linguistica no corpo do texto do inciso IV do Art. 3” da Constituicio Federal, nos pouparia de um esforgo hermenéutico mais elaborado, além de facilitar a propositura legislativa de leis infraconstitucionais que servissem a defesa dos direitos linguisticos no Brasil. Como assim nao o fez, cumpre entéo aos que se dedicam ao ativismo politico-linguistico utilizar as possibilidades interpretativas do texto constitucional ¢ fomentar a produgio de normas que atendam simultaneamente aos principios insculpidos na Constituigao ea defesa dos direitos linguisticos no pais, conforme debatemos adiante. 8.3.1 DIREITO DAS LINGUAS © direito das linguas constitui-se como uma espécie do género “direitos linguisticos” ¢ rem como objeto juridico a ser tutelado pelo Estado as préprias linguas que estiio sob a sua jurisdigao. Claro que as decisdes tomadas no ambito do direito das linguas acabaro secundariamente por nortear a formulacio de novas politicas de garantia de direitos linguisticos para os individuos e os grupos no que tange ao usufruto das suas proprias linguas. Entretanto, quando se pensa em direito das linguas, este carter individual ¢ coletivo é transcendido, dando espaco para um tratamento transindividual e de natureza difusa. Os bens de natureza difusa so aqueles que possuem um espectro transindividual. Sao indivistveis e a titularidade pertence a pessoas indeterminadas ¢ ligadas por circunstdncias de fato. Um exemplo prototipico de hem de natureza difusa e que interessa a este estudo de forma direta € a nogao de patriménio cultural, conceituado a partir do Art. 216 da CF/88, como os bens de “natureza material ¢ imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia & identidade, a ago, 4 meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Assim, 0 patriménio cultural material ¢ imaterial brasileiro nfo pertence a uma pessoa ou a um grupo de pessoas determinado, mas sim pertence a todos os brasileiros indistintamente, ou seja, difusamente. Aproveitando-nos da noco de patriménio cultural como bem difuso e se, de forma silogistica, tomarmos a diversidade linguistica brasileira como parte integrante do patrimOnio cultural imaterial da nagio, teremos, por analogia, que considerd-la também como um bem de natureza difusa, 176 Sobre essa possibilidade, assim se posiciona © Ministério da Cultura, por meio do IPHAN: Entende-se por “pattiménio cultural imacerial” as priticas, representagoes, expressdes, conhecimentos ¢ téenicas ~ junto com os instrumentos, objeros, artefatos ¢ lugares culturais que thes sto associados ~ que as comunidades, 05 grupos e, em alguns casos, os luos reconhecem como parte integrante de seu patriménio cultural, Este patriménio cultural imacerial, que se transmite de geragio em geracio, & constantemente reeriado pelas comunidades e grupos em fungio de seu ambiente, de sua interagio com a natureza ede sua historia, gerando um sentimento de identidade continuidade e contribuindo assim para promover o respeito a diversidade cultural ¢ d criatividade humana, ‘A definigao apresentada pela Convengdo [para a salvaguarda do pattiménio imaterial - UNESCO 2003) aponta para os clementos estruturantes do campo do patriménio imaterial, no qual também se inclui a diversidade linguistica. A lingua, entretanto, difere dos demais bens culturais por sua natureza transversal, por seu papel de articulagio e transmis ‘Nenhuma pritica, nenhuma representago, nem conhecimentos ou técnicas ssio passiveis de serem transmixidos entre as diferentes geragdes sendo através da mediagio exercida pela lingua (BRASIL, 2014, p. 17-18, grifo do autor). da cultura, Outra prova inequivoca da natureza jurfdica difusa da diversidade linguistica pode ser encontrada no edital de chamamento pablico do Ministério da Justiga, n’ 01/2015, no qual o Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (CFDD) elenca, dentre as possibilidades de participagio no certame, estudos acerca do patriménio cultural brasileiro que envolvam propostas que contemplem: Diversidade linguistica: projetos que promovam a produc3o de conhecimento sobre as linguas minoritérias faladas no Brasil, por meio de inventirios, documentagio audiovisual, interfaces digitais e publicagdes, em especial izando-se como suporte 0 Guia do Inventirio Nacional da Diversidade Linguistica, a partir das seguintes eategorias: linguas indigenas, linguas de imigracao, linguas crioulas e linguas afro-brasilciras (BRASIL, 2015a, grifo nosso). A politica linguistica de salvaguarda da diversidade linguistica nacional tem sua origem no Art. 216 da Constituicao Federal, que trata de definir quais sao 6s bens materiais ¢ imateriais que compdem o patrimonio cultural brasileiro e, dentre eles, elenca as formas de expressao: ProlegSmenos para © compreenséo dos direios linguistico W7 Art. 216, Constituem patriménio cultural brasileiro os bens de natureza material ¢ imaterial, tomados individual mente ou em conjunto, portadores de referencia a identidade, & ag20, meméria dos diferences grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I -as formas de expresso; I1- 08 modos de criag, fazer e viver; IIL - as criagde tificas, artisticas ¢ tecnolégicas; 1V - as obras, objetos, documentos, edificagdes ¢ demais espacos destinados as manifestagbes artistico-culturais; V - 08 conjuntos urbanos ¢ sitios de valor histérico, paisagistico, artistico, arqueol6gico, paleontolégico, ecolégico ¢ cientifico (BRASIL, 1988). © pariigrafo 1° do Art.216 atribui as responsa ilidades pelo desenvolvimento de politicas de promogao e protegao do patriménio cultural brasileiro, enquanto © paragrafo 4° prevé a possibilidade de punigio para aqueles que ameagarem ou provocarem dano ao patriménio cultural.! A partir da imterpretagao constitucional de que a diversidade linguistica poderia ser reconhecida como patrim6nio cultural brasileiro, fez-se entrar em vigor o Decreto 7.387 de 9 de dezembro de 2010, que institui o Inventirio Nacional da Diversidade Linguistica e di outras providéncias. E possivel verificar,com base na anilise dos dispositivos do Decreto 7.387/10, que sua area de atuagio se circunscreve 4s linguas brasileiras como seu objeto prototipico, conforme podemos depreender ja nos seus artigos iniciais: Art. 1° Fica insticuido 0 Tnventério Nacional da Diversidade Linguistica, sob gestio do Ministério da Cultura, como instrumento de identificagio, documentagio, reconhecimento € valorizagio das linguas portadoras de referéncia 3 ide! dade, & ago eA meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileica Art. 2° As linguas inventariadas deverio ter relevineia para a meméria, a historia e a identidade dos grupos que compdem a sociedade brasileira Art. 3° A Kingua incluida no Inventério Nacional da Diversidade Linguistica receberi 0 titulo de “Referéncia Cultural Brasileira”, expedido pelo Ministério da Cultura. 8.3.2 DIREITO DOS GRUPOS LINGUISTICOS Conforme ja explicitamos anteriormente, o que se esta convencionando de chamar de direito dos grupos linguisticos diz. respeito a uma espécie dos direitos linguisticos que possui como objeto juridicamente tutelado pelo Estado, 0 direito dos individuos ¢ dos grupos de utilizarem suas proprias linguas em suas comunidades e fora delas, em situagées sociais formais ou informais, ¢ de viver de acordo com a cultura linguistica da sua comunidade Diferentemente do direito das linguas, que possui natureza juridica de bem difuso, 0 direito dos grupos linguisticos ora possui natureza juridica de direito individual, ora possui natureza juridica de direito coletivo. Por direitos individuais entende-se as limitagées impostas ao Estado para que 0 individuo possa usufruir de um conjunto de direitos indispensaveis @ pessoa humana e ao exereicio pleno da cidadania, Por outro lado, os direitos coletivos sio aqueles que possuem como caracteristica a transindividualidade, sendo, no entanto, possivel determinar o grupo, categoria ou classe de pessoas titulares do direito e, para além disso, esto estas pessoas unidas por uma relago juridica- base, como por exemplo, o fato de falar a mesma lingua. Usualmente, o direito dos grupos linguisticos ocupa-se de encontrar solugdes jurfdicas para garantir que as minorias linguistics possam usufruir dos direitos linguisticos da mesma forma como os usufruem os falantes das linguas que gozam de maior prestigio social. Assim, direito das minorias linguisticas acaba sendo 0 objeto stricto-sensu deste campo que, por suas caracteristicas, tem como uma das mais ricas fontes juridicas os direitos humanos ou, conforme nos ensina Skutnabb- Kangas e Phillipson (1995), os Direitos Humanos Linguisticos (Linguistic Human Rights - LHRs). Sobre esta dupla natureza juridica dos direitos dos grupos linguisticos, os autores afirmam que: Observar os DHLs implica, em um nivel individual, que todos podem se identificar positivamente com a sua lingua materna e ter a identificagao respeitada pelos outros, independentemente de sua lingua materna ser uma lingua minoritéria ou uma lingua majoritéria. Isso significa o direito deaprender a lingua materna, incluindo pelo menos o ensino hasico por meio desta lingua, ‘bem como 0 direito de usi-la em muitos dos contextos (oficiais) exemplificados abaixo. Isso significa ter o direito de aprender pelo menos uma das linguas Prolegdmenos pare © compreenséio dos direitos linguisico oficiais de seu pais de residéncia, Deve, portanto, ser normal que os professores sejam bilingues. Restrigdes a esses direitos podem ser consideradas violagBes dos DHLs fundamentais (SKUTNABB-KANGAS; PHILLIPSON, 1995, p. 2). Por ocupar-se de forma mais incisiva dos direitos das minorias linguisticas, um aspecto de suma importincia necessita ser esclarecido: 0 que pode ser considerado como uma minoria? A propria Organizagio das Nagées Unidas, visando dar conta de uma conceituagio de minorias que pudesse amparar os objetivos das suas aces, nomeou uma subcomissto com a incumbéncia de, na impossibilidade de definir niversalmente o que so as minorias, a0 menos elencar uma série de caracter{sticas que pudessem ser capazes de identificar seus atributos: A dificuldade em acordar numa definigéo aceitavel reside na diversidade de situagdes em que as minorias se encontram. Algumas vivem em conjunto em reas bem definidas, separadas da parte dominante da populagio, que outras se encontram dispersas pela comunidade nacional. Algumas minorias tém um forte sentido de identidade coletiva, baseada numa hist6ria cuja lembranga se encontra bem viva ou esta registrada, ao passo que outras conservam apenas uma nogio fragmentada de sua heranga comum, Em certos casos, as minorias gozam ~ ou gozaram ~ de um consideravel grau de autonomia, Noutros, nao existe um passado de autonomia ou governo proprio. Alguns grupos minoritérios podem exigit mais protegio do que fourros, por que residem h4 mais tempo num pais ou porque tém mais vontade de manter e desenvolver as suas proprias caracteristicas. Apesar da dificuldade em chegar a uma definigio de aceitagio universal, foram identificadas caracteristicas das minorias, as quais, se consideradas em conjunto, abrangem 2 maioria das situagdes que envolvem estes grupos. A descrigao mais habitualmente utlizada de uma minoria num dado Estado pode ser resumida como um grupo nie dominance de individuos que partilham certas caracteristicas nacionais, étnicas, rligiosas ou linguisticas, diferentes das caracteristicas da maioria da populacio. Para além disso, tem sido defendida a utilizagio de uma autodefinigio, identificada como “a vontade dos membros dos grupos em qu 0 de preserva as suas proprias 182 Sociolinguivicae polticanguitca:olhares cntemporsneos caracteristicas” € de serem aceitos como parte destes grupos pelos outros membros (ONU, 2008, p. 18, grifo nosso). Na diregio desse movimento, de cada vez mais proteger os direitos das minorias, a ONU estabelece 0 conceito de direitos especiais das minorias ¢ passa a claborar, de forma sistematica, instrumentos especificos para a defesa destes direitos especiais no ambito dos Estados, conforme vimos anteriormente quando discutimos o marco hist6rico dos direitos linguisticos. Os direitos especiais das minorias nao sio privilégios, sendo antes concedidos para tornar possivel a preservagdo da identidade, das caracteristicas ¢ das tradigdes das minorias, Os direitos especiais sito elo importantes quanto a proibigio da discriminagio para alcangar a igualdade de tratamenco. quando as minorias conseguem utilizar as suas proprias linguas, benefici se de servigas por elas proprias organizados, assim como participar da vida politica e econdmica dos Estados, podem comegar a alcangar o estatuto que as maiorias tomam como dado adquirido. Justificam-se as diferengas no tratamento de tais grupos, ou dos individuos a eles pertencentes, se aplicadas a fim de promover uma efetiva igualdade © 0 bem-estar do conjunto da comunidade, Esta forma de agio afirmativa pode rer de ser sustentada durante um periodo prolongado a fim de que os grupos minoricérios possam se beneficiar das vantagens da sociedade em igualdade de condigies com a maioria (ONU, 2008, p. 7). Apés resgatarmos dois aspectos que discutimos anteriormente, podemos elaborar a pergunta mais importante no que diz respeito aos direitos dos grupos linguisticos no Brasil. Assim, sabendo-se que: a) O direito dos grupos linguisticos depende de construgées hermenéuticas e legislativas um pouco mais complexas, uma vez que nao ha previsdo explicita de garantia a estes direitos no nosso texto constitucional; b) Houvesse o constituinte originario inserido textualmente a discriminagao linguistica no corpo do texto do inciso IV, do Art. 3° da Constituigao Federal, nos pouparia de um esforgo hermenéutico mais elaborado, além de facilitar a propositura legislativa de leis infraconstitucionais que servissem a defesa dos direitos linguisticos no Brasil.

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