You are on page 1of 128
ANTONIO BARROS DE, CASTRO |‘? } ESCRAVOS E SENHORES NOS ENGENHOS DO BRASIL Um estudo sobre os trabalhos do Agucar e a politica econdmica dos Senhores. tese de doutoramento a presentada ao Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas 1976 Este trabalho é dedicado a: Mané Domingos, curvado pelo trabalho e pelos anos, Afonso Camisola, que passava ao long$e metia medo, 86 Vito, quefsabia (ude) consertar, o S63 Tito, que sempre dizia "Sim Sinhé" haurinfla, que tirava bolinhos e pastéis do seu fogdo a lenha, Benedito, Manezinho e Luiz do Vito, amigos da infancia, na Fazenda Santa Clara. Aos meus colegas de trabalho, amigos na necessidade, generosos hes sempre, er{ticos por vezes; aos alunos do mestrado de Economia, dvidos de conhecimentos, inteligentes e combativos; a Luiz Gonzaga, com seu jeito timido de ser caloroso e a Jorge Miglioli por sua sabedoria; aos velhos amigos Liana Aureliano, Ferdinando Figueiredo, Wil son Cano e Joao Manuel Cardoso de Mello; e aos demais amigos do DEPE; meus agradecimentos, pela amizade e o estfmulo intelectual. Minha gratidao, também, 4 UNICAMP, onde encontrei condigdes ideais de trabalho. Esta tese ndo poderia ter sido realizada, sem o apoio logisti co de Peter Eisemberg, Michael Hall, José Serra e Rolfnan Hernandes. Fundamentais, também, foram o apoio e boa vontade, encontrados nas bibliotecas do Instituto do Aciicar e do Alcool, do Institu to Agronémico de Campinas e sobretudo, do nosso Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. Fernando Novais, Joad Manoel Cardoso de Mello, José Sergio Leite Lopes, Carlos. Mauricio de Carvalho Ferreira e Luciano Coutinho me fizeram erfticas, algumas aceitas, outras no, todas, porém, importantes para a elaboragao destas idéias. Ana viveu comigo, os avangos e rectios, as alegrias e as angus- tias desta tese. A ela, o meu amor. "UMA MACHINA E FABRICA INCRIVEL’ "E verdadeiramente quem vir na escuridade da noite aquellas fornalhas tremendas perpetuamente arden~ tes: as labaredas que estao sahindo a borbotdes de cada uma pelas duas boccas ou ventas, por onde res piram o incendio: os ethyopes, ou cyclopes banha~ dos em suor tdo negros como robustos que subminis~ tram a grossa e dura materia ao fogo, e os forgados com que o revolvem e atigam: as caldeiras ou lagos ferventes com os cachdes sempre batidos e rebati~ dos, j& vomitando espumas, exhalando nuvens de va pores mais de calor, que de fumo, e tornando-se a chfver parva outra vez os exhalar:o ruido das rodas, das cadeias, da gente toda da cdr da mesma noite, trabalmando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tem po sem momento de treguas, nem de descanso: quem vir em fim toda a machina e apparato confuso e es- trondoso daquella Babylonia, n&o podera duvidar, ainda que tenha visto Ethnas e Vesuvios,que 4 uma similhanca de inferno". (Vieira, Serm&o pregado na Bahia 4 Irmandade dos pretos: de um Engenho, em dia de S. Jodo Evangelis. ta, no ano de 1633). 1. Apresentag&o do engenho Desde o seu aparecimento em terras brasileiras, o engenho chama a ateng&e por seu porte e complexidade: "cada um delles ¢ ume machina e fabrica incrivel", diria Cardim em sua narrativa datade de 1583“). sumariamente descrito, ora o engenho um todo compreendende a moenda, onde a cana € esmagada, o aparelhamento destinado a cozer purificar o caldo, tachos, caldeiras, escumadeiras, etc., ea ca- sa de purgar onde o agucar & embranquecido e séco; até aqui, o enge- nho propriamente dito. Além disto, canaviais, matas, animais de tiro, carros de bois, bareagas ¢ um sem niimero de apetrechos para os servi gos complementares e 0 reparo dos equipamentos. Havia engenhos movi- do a agua e por tragdo ="'mal, mas a "maior parte dos engenhos dof Brasil moem com agua" (2) © que nao € de estranhar, 34 que os movi~ dos por animais "tem maior fabrico, e gasto ainda que moem menos” (2) 0 servigo ordinario do engenho, ininterrupto de setembro a margo ou abril, exige intenso trabalho de pelo menos sessenta cs - eravos, segundo Cardim ‘"), 9 produto obtido é relativamente honor’ neo distinguindo-se basicamente os tipos brancos (fino), mascavado © panela °5), 0 volume das safras era tal, que, j4 em 1583, os quaren- ta navios anualmente enviados a Pernambuco nao davam vazio ao produ- to ali optido ‘©. a principic do séoulo XVII 4% seriam empregados 130 a 140 naus, muitas delas "de grand{ssimo porte", para o transpor te da produgéo conjunta de Pernambuco, Itamaracd e Parafba 7), Naturalmente, para montar negécio de tal vulto era preci- so dispor de grandes recursos. 0 problema nado seriam as terras, ja que para obté-la bastava mostrar que se "he home de vosse assim de gente como de criagées ..." 8), as aificuldades proviam, sim dos enor mes gastos iniciais na aquisigio de escravos, na construgao dos edi- ficios, na derru:ada:das matas, na canalizagao das aguas, abertura de caminhos e, enfim,na semeadura das canas. Agregue-se a isto o fa~ to de que a primeira e, possivelmente, a segunda safra obtidas de so lo virgem nao permitem a obtengdo de acucar de boa qualidade (9), custeio do empreendimento, exige, pois, sobretudo na etapa inicial , o grande “cabedal" e requer, em regra, o apoio financeiro de poderosos mercadores (19) » , prépria Coroa, conhecendo as dificuldades a enfren tar na fase de implantagdo e interessada na expansdo da produgio agu careira, desde cedo ofereceria est{mulos sob a forma de isengdes fis cais durante os primeiros anos de atividade (1), No apenas a implantagao mas também o custeio corrente des engenhos acarretava grandes despesas. Segundo queixas referidas por diferentes autores, era grande a mortandade de escravos, 12) 4 que implicava em elevadas perdas e mantinha os senhores endividados. Ha- 2. via além disto de pagar os ordenados de mestres e feitores, de ad- quirir pegas de ferro e cobre, breu, velame, animais de trabalho, madeira de lei e possivelmente Jenha. Todo estes desembolsos teriam de ser cobertos pela receita proveniente da venda do agucar. Segun do um autor anGnimo da primeira metade do século XVII, "He phatica comum no Brasil e se tem por averiguado, que quando o prego do agi n&o pode qualquer senhor de enge nho alevantar a cabega, sd com o rendimento de seu engenho" poden- dotBoStir “os gastos do dito engenho daquela safrae sustentar a casa precariamente" 13), car branco he a dous cruzados . Normalmente, 0 engenho planta e colhe uma parcela ape - nas da cana que moe. 0 resto é fornecido por "lavradores" que rece bem em troca uma fragado (por vezes 50%) do agucar extraido de suas canas. 0 lavrador necessita dispor apenas de escravos, foices ¢ enxadas. Aqui, nado h& limites de tamanho: ha lavradores de 50 ou 60 bem como de 4 e 6 tarefas - sendo esta Ultima medida o equiva - lente 4 quantidade de cana capaz de alimentar o engenho durante 24 horas (14), 0 custo de produg&o dos engenhos nao ¢ certamente algo de imutavel. 0s processos produtivos devem ser vigiados e muito de pende do zelo dos "oficiais", bem como dos cativos, como veremos . Certos cuidados com a salide dos escravos podem propiciar boas eco- nomias. 0 "Regimento de Feitor-Mor de Engenho", de 1663, reflete esta preocupagéo, dispondo mesmo que a morte de cada escravo - ou boi, acrescenta o regimento - devera ser "justificada" ‘15?, por outro lado, determinados custos podem ser reduzidos através de me- lhorias introduzidas nos métodos produtivos. Neste plano, um episd dio merece, sem divida, ser destacado, Dada a insuficiente extra - gio de calde pelas moendas tradicionais (de dois eixos) o bagacgo era ainda mais uma vez prensado "debaixo de uns grandes paos que chamam gangorsas" ‘25). pis, porem, que surge um novo método de moa gem permitindo o duplo esmagamento da cana e uma me}hor extragZo do caldo. Comentando-o, afirma Brandénio: "Tenho esta@Avengio por tao boa que tenho para mim que se extinguirio e se acabardo todos os engenhos antigos". Seu interlocutor, normalmente cético, nao hesita em concordar, j4 que “toda coisa que se faga com menos despesa e tempo deve-ec estimar muito” 17), a previsdo de Brandonio se mos ~ traria correta e j4 Frei Vicente do Salvador diria: "Por serem es ~ tes engenhos de tres paos, a que chamam entrosas, de menos fabrico e custo se desfizeram as outras maquinas e se fizeram todas desta invengao" 8) | #pepoca em que escrevia Frei Vicente, as vantagens obtidas com a inovagdo chamavam jd a ateéngao do fisco, qe baixaria um alvaraé (1614) restringindo os favores e privilégios dos engenhos, dada a redugao de custos obtida com o "novo estado de moer ague cares "(19) . Os engenhos em vigorosa expansao N&o obstante as grandes despesas e os demais obstaculos (20 a : : ¢ >, 08 engenhos brasileiros irrompiam com grande impe enfrentados to, ccnquistando mais e mais espago no mercado internacional. — Ao findar o século XVI, as ilhas atlanti¢as que revolucionaram o merca do agucareiro um século antes (21), comegavam a enfrentar grandes di ficuldades e "o governo portugues, que via nessa época a cultura da cana na Sicilia asfixiada pela concorrencia brasileira, comegou tomar-se de cwidados com a produgao de Madeira e impds 20% sobre o aguear do Brasi1" (22), H& indfcios de que nesta fase pioneira, a propria escala de operag&ao dos engenhos estivesse se ampliando, dado o que, surgi- riam na colénia portuguesa da América verdadeiros gigantes sem para lele, quer nas ilhas atlanticas, quer, ulteriormente, nas explora - (23) | assim, se Gandavo (antes de 173) estimava em gées antilhas ‘) | para Cardim 3 mil arrobas anuais a produgao média dos engenhos ‘” - cércade 10 anos depois - sua produgdo atinge de 4 a § mil arro - pas (25), Mais adiante, por volta de 1618, diria Brandonio que um bom engenho produz "seis, sete, oito, nove, (a) dez mil arrépas de acuear", e mais, que os engenhos de menor porte que produzem até § mil arrobas de aguear, s4o de "pouco proveite para seu dono" lei, datada de 1609 (!), sobre a protegSo de bosques e matas (38 | Da mesma forma intensificava-se a busca e, possivelmente, a disputa de locais adequados 4 instalag&o de rodas d'agua -sobretudo se se tem em conta que o maior rendimento deste dispositivo € conseguido,quan do a roda & ferida pela agua em seu extremo superior (36), ariac,j4 na descrigéo do recéncavo baiano feita por Gabriel Soares percebe- se a preocupagao do autor (que estaria 4 época construindo o seu se gundo engenho) com o levantamento dos sitios vantajosos para a instalag&o de novas rodas hidrdulicas (37), Os engenhos eram - e permangeiam na expansao - pratica - mente independentes uns dos outros. Cada um tratava de solucionar os seus préprios problemas, encomendando no exterior ou improvisan- do localmente tudo aquilo de que necessitavam. 0 emprego de meios de transportes fluviais e maritimos, permitindo a cada um enfrentar por conta prépria a diffcil questo do escoamento das safras até o porto de embarque, reforgava esta tendéncia. Segundo Frei Vicente , a tal ponto se adotara a prdtica do auto-abastecimento que se torna va dificil adquirir os mais simples alimentos - de que dispunham em abundancia as casas particulares. Reflexo disto, era calamitoso o estado das "cousas publicas" - fontes, pontes e caminhos - jis "nem um homem nesta terra é repiblico, nem zela ou trata do bem comum , sendo cada um do bem particular" (38), A suficiéneia dos engenhos tinha por contra partida a insignificdncia da vida urbana. "Uma cidade representava fator some mos na organizagdo ecoeva. Habitavam-na governador e bispo com seus famulos, militares jofficiais de fazenda, justiga, mecanicos, merca~ dores. Casas fechadas a maior parte do ano possuiam os abastados , para maior commédidadeiinas festas eclesiasticas ¢ outras occasiées" 32) 3. Eseravo de engenho Muitas das caracterfsticas anteriormente assinaladas apro ximam o engenho de uma empresa capitalista. N&o obstante todas as cdmilitudes hd uma discrepancia fundamental: o engenho opera 4 base do trabalho escravo. Como se processa e como se organiza o trabalho com que mestres e escravos poem em operagao a complexa engrenagem do engenho? Comecemos pelo campo, onde o trabalho & distribuido numas poucas tarefas claramente diferenciadas. Durante © perfodo da safra os cortadores munidos de foice devem abater e limpar, diariamente 5 uma enorme quantidade de canas -350 feixes de doze canas,cada um.Ao lado do cortador trabalha um auxiliar ~ em regra uma escrava ~ in - cumbido de amarrar os feixes de cana‘#0)¢-o5 dois trabalhadores 2 tal ponto se completam que se tornou costume referir-se ao par como una "foices (4) Os. feixes s%0 empilhados no carro ou barco e “evados pa ra o engenho, onde a cana deverd sem mais tardar, ser passada pela moenda. Simultaneamente um grupo de escravos ~ somente homens - cs~ tard abatendo a lenha que ira alimentar as fornalhas. Para estes tra balhos, bem como para outros no interior do engenho, sao estabeleci das tarefas diarias e, "se lhes sobrarem tempo, sera para o gasta ~ vem livremente no que quiserem". Contrariamente, na capina da cana. que se concentra nos meses de inverno (vale dizer no perfodo das chu vas) e em alguifs outras ocupagdes, nado ha tarefa definida, havendo que trabalhar "desde o sol nascer até o sol posto” (uz) a A roda d!4gua, que move os engenhos "reais" do Brasil} via sido de hd muito, introduzida no funcionamento dos moinhoss¥egun do o dito de Antipatro (15 A.C.) com isto poderiam os moleiros repou sar, "pois agora as ninfas do vio se encarregam de seu trabaiho 3 Nos engenhos de agiicar, contudo, a roda d'agua vinha a permitir um 16. regime ininterrupto de trabalho: no extenso perfodo da safra, "no tempo da noite ... se moi igualmente como dé dia (4!) :Emais, a semana € "solteira", ndo havendo interrupgSo siquer aos domingos para limpeza. A importancia do trabalho sem interrupgao € mesmo tal que, observa Antonil, o dispositivo que permite o desvio de Agua e a parada do engenho chama-se pejador, "porventura, por se pejar um engenho real de ser retardado ou impedido, ainda por um instante e de no ser sempre como é azo, moente e corrente" (45) panhar este ritmo incessante de trabalho, grupos de escravos reve~ . Para acom zam-se dia e noite. £ tal a carga de trabalho, que os escravos vi- vem caindo de sono, do que resultam, ndo raro, sérios acidentes ‘"®), “dorminhoco como um negro de engenho" seria uma expressao daf nas. cida on) . Em torno & moenda, opera uma equipe cujas tarefes estado assim divididas: "Num dos lados, assistem dois negros, que continua mente introduzem a cana nos eixos, os quais a arrebatam, comprimin do num estreito espago, sendo necessario 0 servigo de um negro para tirar a cana prensada chamada bagago. Este bagagc € carregado por dois outros negros para um certo lugar, onde é acumulado ..." (#8) 0 ealdo extrafdo da cana serd fervido, clarificado, coa~ do, "melado", temperado e purgado - quando finalmente se obtém 9 agiicar. Asztransformagées se dao 4 medida que a matévia-prima avan- ga de recipiente.a recipiente. 0s escravos, dispostos ao longo da cadeia serao conhecidos ora pela fungao que exercem - por exemplo quidandeiro ~ ora pelo "equipamento" com que operam - caldereiros , tacheiros, etc. As etapas do processo de produgao se relacionam tecnica~ mente, 0 que regula em certa medida o ritmo de trabalho. Assim, o feitor da moenda, devera saber "quanto caldo ha mister nas caldei - ras, para que saiba com este aviso se had de moer mais cana ou parar até que se dé vazdo, para que nao azede o que 34 esta no paro1" (49), Da mesma forma, na fornalha, "o metedor ha de estar atento ao que Ihe mandam os caldereiros, botando precisamente a lenha, que os de cima conhecem e avisam ser necessario, assim para que ndo transbor- de © caldo ou melado dos cobres, como para que nao falte o ferver‘°°) (ser pela sua interdependéncia, quer pela propria nature za das transformagées que levam 4 obtengao do agicar, 2 maioria das operagdes tem seu tempo de duracao pré-estabelecido: "pzixa-se alim par o caldo na caldeira do meio, comumente pelo espago de meia hora; e, ja meio purgado, passa a cair na caldeira de melar por uma hora, GD | através de expedien ou cinco quartos, até acabar de se escumar" tes varios o engenho em seu conjunto consegue o pleio aproveitamento das matérias-primas. Assim, o refugo de certas operagSes - como por exemplo a "segunda escuma" - retrocede, voltando a alimentar o pro - cesso em etapas anteriores; a "cinza das fornalhas serve para fazer decoada" 52); 5 pagaco sera, em parte pelo menos, queimado e levado ao campo como abo 683), 05 animais também sGo contemplados no pro- cesso: a primeira escuma, "imundissima", "vai caindo pelo dito cano em um grande eccho de pau e serve para as béstas, cabras, ovelhas ¢ porcos". Por fim, os préprios escravos sao integrados no circuito,to mando de uma escuma mais limpa "para fazerem sua garapa, que & a be~ bida de qu* mais gostame com que resgatam de outros seus parceiros Beg (54) des’ , ey 7 7 A primeira vista, o que chama a atengdo na condigao do es. eravo, € o chicote do feitor e a brutalidade geral do trato destes "fSlegos vivos": houve casos de escravos langados vivos 4 fornalha farinha, banana, afpins e fe: Mas, nos engenhos, sobretudo, por tras das relagdes de dominio, «=: tem e imperam condigdes de produgdo (58) - ¢ foi isto, justamente que procurei ressaltar nas paginas que precedem. Recapitulando, o trabalho eseravo nos engenhos pode ser assim caracterizado: - a jornada de trabalho é tao extensa quanto fisicamente possfvel, durante o longo perfodo de safra (57), = a elaborag&o do agiicar & um processo miltiplo e comple x0, mas @ divis&o do trabalho encontra-se suficientemente avangada, para que a tarefa de cada um seja simples e repetitiva. Cont-astan- do com o trabalho artesanal, o servigo do escravo nao tem "poros” - momentos de folga em que o trabalho é interrompido para mudangas de local ou de ferramenta 5*, - amatéria prima percorre diferentes estagios e os escra vos em equipes -esquipagdes na linguagem de Antonily‘>9)¢ = revesadamente ocupam os seus postos de trabalho. Os es- eravos num certo sentido ndo "produzem", sendo o agucar produto do engenho, uma colossal estrutura técnica que incessantemente traga ca na, lenha .-. e escravos. 4. Digresso histérica: o longo e tormentoso caminho da fabrica "Mestres, aprendizes e jornaleiros eram, nos primordios das corporagées, praticamente uma 86 classe", sendo que a maioria dos ‘fornaleiros, ma‘s cedo ou mais tarde tornavamsse pequenos mestres' ‘0? 8. Aos poucos, porém, foram sendo criadas dificuldades para a ascensis a mestre o que da nascimento a uma classe de jornaleiros permanen - tes e, altera progressivamente o cardter das corporagdes remanescen tes. De um lado consolidavam-se as velhas organizagées, agora como "corporagées fechadas", de outro comegam a desenvolver-se associa - gdes de jornaleiros. . A ampliagSo dos mereados e a expans20 ds negdcios ao longo dos séculos XIV e XV, favorecia o crescimento das fungdes co- merciais dos "mestres", que cada vez mais se distanciavam dos artfi- fices - jornaleiros. Estes, por sua vez, percebendo o crescente di-~ voreio de interesses, nao hesitariam em chocar-se com seus "patroes”, em torno a forma e niveis de remuneragdo, processos produtivos e mesmo qualidade de produtos. As lutas daf nascidas seriam particular mente violentas nas grandes cidades alemas e no norte da Itdlia,mas n3o deixariam de surgir também na Inglaterra e na Franga ‘°1), As corporagées de artifices se mostrariam especialmente combativas frente aos .jrandes comerciantes menufatureiros que empre a + Sua capacidade de controle, enorme em certos casos , gavam em ampla escala ¢ colocavam seus produtos no mercado "inte: (62) cional" pode ser ilustrada relo seguinte episddio. Em "1570% Paolo de Siio~ ne, fiador em séda, pediu permissdo para ter um tingidor em sue pré a a controlar com seus proprios olhes o tingimen- pria loja, de fox to do tecido. A corporagao dos tingidores se opés ao pedido temendo abrir com isto um precedente no sentido de que outros produtores pu dessem ter tingidores em suas lojas sob sua supervisSo "mantendo-cs como escravos e fazendo-os trabalhar pelos salarios que quisessem"‘®?) Dentre as normas que pautavam a organizag&o do trabalho a époea, destacavam-se a rigorosa diferenciagao das “artes e a re~ produgdo, em quaisquer circunst&ncias, da hierarquia tradicional , distinguindo, fundamentalmente, entre mestres e aprendizes. Isto se estendia mesmo is indiistrias recém-surgidas e vo=tadas para as ex~ portagdes. Assim, numa fundigZo de objetos de bronze, que produz em massa para o mercado "externo", e onde ja se observa uma incipiente divisdo do trabalho, distinguem-se, ainda, como de praxe, mestres e aprendizes ‘®") po outro lado, quando inequivocamente parcelado o trabalho, as diferentes tarefas tendem a ser tomadas como “artes” . Assim, na produg3o siciliana de agicar, "0s trabalnadores ficam isen tos dos deveres c{vicos curante o tempo de seus contratos, e dividen “se em categorias ..." "... hd "tagliatores" que cortam a cana, "in- fantes planae", jovens que a recortam em mesas especiais, “insaccatg 8. res", que poem os roletes em sacos, “lavatores saccarum", que lavam os sacos, "infantes ignis", mogos que trazem o combustivel, e "fuca tores", que alimentam a fornalna" (65), A combatividade de artifices e jornaleiros urbanos foi em boa medida contornada através do ulterior desenvolvimento de in~ dustrias rurais,que distribuiam trabalho "a domicilio" e aproveita~ vam-se das correntes de 4gua para a realizagao de umas poucas opera goes centralizadas. Para o camponés, a fiagSo, por encomenda nao t: zia uma transformagao profunda de seu regime de trabalho. Era, afi- nal, uma atividade de carater complementar: "Durante o tempo da co~ lheita . tinham que parar por falta de fio" as rodas de fiar ficavam paralisadas e os préprios teares (6) . Crescia, no entanto, sua distancia do consumidor, e concomitantemente, sua dependéncia do comerciante~fornecedor. KR medida que, por diferentes processos histdéricos, que ndo nos cabe discutir, ia se concentrando a propriedade da terr desapareciam os campos e bosques de uso comum, crescia a massa de individuos desligados da terra e potencialmente empregdveis pelas "easas de trabalho". 0s indivfduos que se sujeitavam a ingressar nes tas grandes oficinas, "homens sem propriedade e sem domicilio : xos ...' eram "fundamentalmente, deslocados sociais". Na Alemanha em particular, ainda a meados do século XVII, as chamadas “manufatu vas centralizadas" se assemelhavam a instituigdes penais - donde a expressio corrente "casa penitenciéria e de fiagao" (67), A relut&ncia generalizada ao trabalho nas oficinas manu, fatureiras é assim descrita por um autor citado por Mantoux:"£ um fato bem conhecido para os enfronhados no assunto ... que o trabalha dor manufatureiro que pode subsistir com trés dias de trabalho fica ré ocioso e bébado o resto da semana ... Os pobres nos paises manu~ fatureiros nunca trabalham mais tempo que o necessdrio apenas para : 8 ras viver ..." (88) marx, que desereveu com as mais vivas cores, o pro cesso de subordinacao e enquadramento dos homens expelides do campo dizia que a massa liberada, "para viver, sé poderia escolher entre a venda de sua forga de trabalho ou a mendicidade, a vagabundagem avapina. A historia r@§ ensina, que esta massa tentou primein te tomar este O1ltimo caminho, mas foi desviada do mesmo pelo poder, © pelourinho e o chicote e empurrada pela estreita via que ecnduz mercado de trabatho" ‘69, i Por que se resistia, obstinadamente, ao trabalho nas sas de trabalho" e ulteriormente nas fabricas? Porque nelas era -10. sa - e cresceria on o tempo, até as primeiras décadas do século XIX - a jornada de trabalho; porque as condigdes ambientais ali encontrades eran péssimas; porque o servico eva rotineiro, nada sendo decidido pelo trsbalaador; e, por ditimo, mas decisive, por- minimo o saldrio dos t que os patrées tudo fazian pare vedui balhadores. on, as manufatures fariam dos Be acdrdo oor. ngle ses "uma nago de ilovas , Seu disefpulo f- Smith, acrescente ria: "0 homem cuja vide repetinds umes simples operagses «++ a geralmente torna~se Ao s ignovante como é possivel a um ser humano toraar-s 5 en suma, a isto tudo que ce resis~ tin; o homem do povo ato rnay-se "mao-de-obra". Para ele 5 a "fSbviea ena vma nova fF 540; 0 relégio um novo tipo de 7 carsereiro" $7), as press6es da legislagao cont ornativas sanbin a pregagio de doutrinas ¢ valores a "vadiagen séculos, terminariam no entanto por "nodernos® , vencer (73) + A dos pigores do regime fabril, (74) a padvées de censumo cos trabalhadores > fa aliada @ nelhevi cilitariam enernd eoit.gaéo das novas condigées de trabalho ~ eo neio ambiente s=bril no tardaria a converter-se numa “segunda natureza" pava a recem surgide classe operéria. 5. A questdo do ir7balho escravo A adogio do trabalho eseravo, desde os primérdios do regi me colonial nas Matrices ven sendo tradicionalmente explicada de duas maneiras. Tomewos estas ex? s, como elas surgem em Capitalism e Escravico de ric Williams. A mais simples delas ~ simplista mes- zac cos, ou melhor, quantitativo 35a em mo s@ expre! pa no século XVI, os trabalhadores car, do tabaco e do,algo adequada para permitir ¢ nfo pode larga es "2. sunpreende pele infelicidade nu A ma cbra, Ge peoposiigho do ante estinulante. Antes de mais +o, extmondinant a afipmativa carece de senti~ da, porque formulaca em tors globa do: uma pequens par os suropeus vindos para o Nove Mundo, seria no-intistria de Barbados; ac invés disto, o bastante para opex om boa medida, expelidos, com o adven- os que ali j4 es to do agicar. Yor outers aco, LA que ver, que do infeio do séeule XV sll. ameados do século XVII, a Inglaterra atravessou um perfodo de exir ordinéria expanso demografica - passando sua populagao de menos 3 para mais de 5 milhdes de habitantes (78) - © que, aliado & diss-- lugao dos mosteiros e ao primeipo SEmeg Se surto de "fechamentos via margem 4 proliferac%o dos etpaupers"), andarilnos =, "yagabundos" e salteadores,que tantos problemas trouxeram aos Tudor. 0 mesmo argumento, no 4mbito das relagdes Portugal~Bra - come em Furtado ‘77) - tem maior validade, pelo menos numa perspec tiva estritamente quantitativa. Ainda aqui, no entanto, ha de ter-se em conta, que a to referida pobreza demogrdfica de Portugal € em par te iluséria, pois refere-se ao pafs como um todo, ignorando os con - trastes entre o Minho onde "pequenas propriedades e grandes familias eram a regra geral e 0 Alentejo e o Algarve, Sreas de domf{nio lati- (78) | de qualquer maneira, lembr fundiario e escassamente povoadas mo=nos que os portugueses partiam para a India em quantidade: oiten~ ta mil homens de 1497 a 1527 ‘7, 4 itha de S20 Tom’, no entanto , que 4 mesma época conhecia um vigoroso surto agucareiro, devia con tar, fundamentalmente, com deportados, para obter reindis, e os 3 ou 6000 trabalhadores de seus engenhos em 1540 (°°), cram escravos africanos ... A segunda explicagao, ainda como a formula E. Williams , invoca o fato de que dada a abundancia de terras desocupadas, torna -se necessdria a compulsao para que se obtenham trabalhadores nas grandes exploragdes coloniais. "Sem esta compulsao, o trabalhador iria exercitar sua inclinagao natural para trabalhar sua propria ter rae labutar por sua propria conta" ‘81), Esta é uma velha tese para sempre associada aos nomes de Wakefield e Marx ~ conquanto, en tre nds, tenha sido inequivocadamente formulada (ainda que em defe~- sa da eseravidao) por Azeredo Coutinho: “entre as nagdes em que had muitas terras devolutas e poucos habitantes velativamente, onde ca~ da um pode ser proprietario de terras, se acha estabelecida, como justa a escravidio" (92) | £ justamente diante desta tese - indevidamente retirada- da de seu contexto cldssico, a "moderna colonizagao" do s&culo XVIIT ~ que a digressZo anteriormente feita torna-se particularmente im ~ portante. Para o europeu dos séculos XVI e XVII, 0 trabalho corren- te na grande lavoura e nos engenhos coloniais & simplesmente inacea tavel. Ou, visto por outro Angulo, e nas palavras do governador Go mes Fre*re de Andrade em 1665: "Sabida coisa é que os trabalhos das suas fabricas sé escravos podem suportan" (89), na mente da época a idéia de que um homem livre fosse reduzido a A vigor, nao cabie 12. “prago" de outrem. Ainda em 1700, buscando retratar a situagdo do es cravo diria o jesuita Jorge Benci: "Trabalha o livre e colhe o fruto de seu trabalho: trabalha o servo e o fruto do que trabalha colhe-o seu senhor" ... "pode haver sorte e estado mais lamentével?" "ver eu que outrem come, as maos lavadas, o que eu trabalhei e me custou o meu suor" Se ao pobre europeu do século XVI era estranha a moderna condig&o de "trabalhador" - com mais razdo era ela alheia 4 experién cia portuguesa. A propésito, convém relembrar o regime de remunera - g&0 dos marinheiros lusitanos. Além dos proventos normais, tinham eles participago no préprio coméreio, concebidd’ como empresa conjun ta de toda a tripulagdo. Nas expedigSes 4 India cada homem do mar , de acordo com o seu posto, era autorizado a adquirir certa quantida~ de de pimenta: "£ disso causa os muitos lugares que Sua Majestade ne, las (naus) da, porque o capitao tem sua camara, despensa e outros lu gares da mesma maneira o piloto, mestre, contra-mestre, guardiac, marinheiro, que todos tém lugares assinalados, de modo que até o me- nino grumete e pajen ndo carecem dele ..." 8°) 9 gineito & partici pag&o no trdfico, denominado "liberdades da India" ou ‘dos homens do max" foi mantido até 1648, "quando D. Jodo IV, suprimindo~os, orde - nou que a remuneragZo se restringisse 3s soldadas” (85), Diante do que precede, parece~me claro, nao faz sentido falar em "escassez de oferta de mao~-de-obra" C87 om Portugal, e is~ to, independentemente de haver ou nao uma grande quantidade de pobres sem terra e mesmo sem paradeiro no Reino. Por razées semelhantes ,nao é possivel “explicar” a escravid&o nas colonias pela tese fronteira aberta-trabalho compulsério, j4 que para isto,é necessdrio transpor para o meio colonial quinhentista o seguinte tipo de raciocinio:"se se imaginasse uma produgao exportadora organizada por empresa4rios que assalariassem trabalho, os custos de produgdo seriam tais que ip , isto porque, "os salarios dos pediriam a explorag3o colonial ... produtores -diretos tinham de ser de tal nfvel que compensassem a al- ternativa de eles se tornassem produtores aut6nomos de sua subsistén cia evadindo-se do salariato ..." 8), ona, assim como, nao existiu sempre "m&o-de-obra", tampouco cabe supor que o europeu, 4 época em que tinha inicio os trabalhos nas col@nias, pensasse em termos de “alternativas", mormente sendo elas a propriedade de terras ou 0 trabalho no engenho ~ seja no eito, seja na elaboraga: do acifear . Lembremo-nos que para A. Vieira, os trabalhos do agiicar evocam a paixdo de Cristo, que "parte foi de noite sem dormir, parte do dia sem descansar, e taes sdo as vossas noites ¢ os vossos dias" ... "e no é isto mesmo o que passa com os servos?" (84 18, abalho, nem genero de vida no mundo mais parecido 4 Cruz "N&o had e Paix&o de Christo, que o vosso em um destes engenhos" (89). N&o obstante o anterior, advirta~se que um niimero conside rdvel de portugueses trabalhou no agiicar. Os grandes engenhos empre- (90) gavam de 15 a 20 reindis » genericamente chamados “oficiais" e "mestres". Os termos dispensam comentarios, sao fungdes de comando , com denominagSes nitidamente procedente do regime artesanal de traba lho. Trata-se de indivfauos muito bem pagos ‘°), @ a eles, sim, tal vez ocorresse estabelecer-se na lavra de mantimentos - desde que lo- os escravos de que dependem to- grassem comprar, "por subido prego (92) dos aqueles que “fazem suas lavouras" no Brasil A Gltima ponderagao merece ainda um reparo. Estabelecer sitio ou granja no Brasil, nio era o mesmo que em outras partes. So~ bretudo nos primeiros tempos, seria, alias, uma temeridade afastar~ -se dos engenhos para instalar-se em matas e campos despovoados. A proteg&o dos senhores. era, entdo,praticamente indispensdvel aos mo- padores: os engenhos, "aldm de fabricas de aguear, eram baluartes ar mados e sempre alerta a ataques do gentio, de corsdrios, piratas ou inimigos" ©82), Fora o que, da. {gnulidade da vida urbana, e 2 tendén cia & auto-suficiéncia dos engenhos (no que toca a mantimentos) 0 pequeno produtor arriscava-se a ser um elo perdido de uma cadeia ine xistente. Passados os primeiros tempos e consolidada a economia mo- nolftica dos engenhos o

You might also like