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Eleni Varikas Pensar o sexo e o género TRADUGAO Paulo Sérgio de Souza Jr. EDITORA Digitalizada com CamScanner Prélogo O camaledo que somos Chi non ammirera questo nostro camaleonte? G. Pico della Mirandola, 1486 Tudo pode acontecer com 0 Zorro. Zorro, o justiceiro negro que galopa pelas paisagens noturnas em dire¢ao a outros horizontes do possivel. Zorro, 0 irreverente, o impertinente que traga 0 “Z” da desobediéncia no uniforme da ordem — esse uniforme do arbitrario que a gente to cedo aprendia a detestar na Grécia do pés-guerra. Zorro, 0 inimigo interior da sua casta, que se mistura com a escéria da terra, os pedes, os analfabetos. Nao 0 Zorro cativo da televisio, lamentavelmente travestido em auxiliar do sargento Garcia, mas do jeito que ele emergia das paginas corruptoras do Masque [Mas- cara], essa edificante leitura que os garotos do bairro esperavam com impaciéncia todas as quintas-feiras na frente da banca. Os ga- rotos e algumas garotas. Leitura altamente desaconselhada pelos adultos - “imundicie”, o avé emburrado dizia -, ela juntava a fasci- nagio do sonho as delicias da transgressio. O Zorro que desafia a nascenca, transpondo alegremente as fronteiras das condigées ¢ dos géneros; aristocrata engomado de dia, justiceiro intrépido 4 noite, cuja passividade “afeminada” e o apreco pelas sedas desesperam a bela prometida que suspira na janela pelo seu alter ego, o cavaleiro noturno. Zorro, fraco e inofensivo na aparéncia, que esconde por tras da mascara uma célera surda e apaixonada. Zorro-a-derrisio cujo riso ressoa nos ouvidos dos vildes, muito depois de ele ter de- saparecido noite afora. Zorro-a-Liberdade. Quem é que nao admiraria esse camaleao? 1 Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS Nascer na pele de uma mulher e se sentir, ser educada Para se pensar, ter a certeza de ser um “puro e simples ser humano”; aspirar avalores, a atos, a escolhas reputadamente humanos, os quais — muito cedo se compreende isso — sé podem ser reivindicados por usurpa- 40, por travestimento, a titulo de excegdo. Compartilhar as paixées, os terrores, a busca pela liberdade das personagens literdrias; “reen- cené-las” antes de dormir, em cendrios imagindrios, sem nunca desconfiar de que se est forjando, assim, uma hibridez existencial que nunca a abandonara. E claro, dizer “nunca” também é demais! H4, entretanto, essa divida que paira nos elogios ambiguos que acompanham a sua bravura de goleira, o seu jeito de bater que nem garoto, nas ruas desse bairro de ex-refugiados da Asia Menor; essa davida que desponta por detras da compaix4o inconfessa que se sente do infeliz para sempre desonrado por ter “apanhado de uma garota’; essa divida que se afoga, mal e parcamente, no orgulho do reconhecimento. “E que eles nao viram as outras’, se poderia dizer. Mas, justamente, onde esto as “outras”? Onde estao as garotas nos romances? Por que elas nunca esto onde acontecem as coisas interessantes? As vezes a gente ouve os risos delas por tras das cercas dos jardins, figuras distantes feito as prometidas do Zorro, de Ivanhoé. E, no entanto, nao se pode fazer vista grossa quanto as garotas. Agente encontra inevitavelmente um monte delas nos bancos lota- dos do colégio publico — impetuosas, déceis, rebeldes, divertidas, desmancha-prazeres, brilhantes, fingidas. Nesse universo nao misto, aunicidade dos uniformes pretos com colarinhos brancos nao chega a dar cabo da diversidade. Curiosa reviravolta de um mundo sexuado que faz vocé descobrir, na nao mistura, 0 disparate da segregacao. A professora de educagao fisica organizara cotidianamente, em va0, a caga aos signos distintivos; as alunas vio se gabar de contornarem a sua vigilancia para ostentar, com uma inventividade inesgotavel, as marcas discretas, mas infaliveis, de uma multiplicidade irredutivel. Multiplicidade que conforta aquilo de que, no fundo, vocé ja sus- peitava: que vocé nao é uma bizarrice, que seu comportamento, suas proezas ¢ suas faltas de jeito sio marcas nao de desvio, mas de sin- 12 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO gularidades que vocé nao é uma “exce¢4o”, ja que nao hd regra. Nao mais que uniforme que vocé veste, 0 seu sexo nao teria como dizer quem voc’ ¢ - vocé map é transparente! Ninguém teria como pre- julgar oque vocé maquina em siléncio enquanto, como todo mundo, se submete estoicamente 4 orac4o matinal coletiva. ‘Aqui se chega 4 questo de saber quem é “a gente” ¢ a quem poderia se enderegar a cumplicidade desse “vocé”. A experiéncia singular do mundo por um “eu” nascido mulher é comunicdvel? Ela & formuldvel em termos universais? Como aquele louco da piada que tinha, enfim, compreendido que nao era um grao de milho, mas se perguntava com anguistia se acaso os habitantes do galinheiro sabiam disso, a percep¢4o subjetiva de si e de sua singularidade permanece sempre frégil, incerta, ameacada, se ela nao se cruza no olhar do outro com essa fagulha de reconhecimento que faz de cada um(a) de nés um ser ao mesmo tempo semelhante e distinto. Con- firmagio necessdria, porque ~ Hobbes que me desculpe — nés nao brotamos como cogumelos, mas, pelo contrario, somos “postos juntos”, para o bem ou para o mal. E porque somos postos juntos, a questo do “a gente” e do “vocé” nao teria como ser evadida. Ela se coloca quando, na prova oral de latim, perguntam se vocé sabe preparar um bolo; ela se coloca quando vocé acabrunha, com 0 seu desprezo, aquela que aceitou recitar a infame receita. Talvez ela precisasse mais que vocé da licenciatura dela — vocé vai dizer pra si mesma mais tarde, bem mais tarde. Hi situagdes em que se aprende muito rapido que nao da para ignorar a “nascenca” da gente, quando se aspira ao estatuto do puro e simples ser humano. Basta pensar nos desgostos desses estudantes que, em plena ditadura, carregavam o inconveniente nome de “De- mocracia” ou de “Laocracia” (poder popular) que tinham dado e eles nos anos 1940, na antecipagao magica de amanhas melhores. Mas essa experiéncia, por sua vez, é comunicavel em termos univer- sais; ela pode, sem problemas, passar do “a gente” para o “voce” neste pais em que o numero de fichas policiais ultrapassa largamente a taxa da populacdo adulta, e no qual, ao ir retirar a carteira de iden- 13 Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS tidade, a pessoa descobre, com uma mistura de estupor e de orgulho nada merecido, que a sua ficha comega 19 anos antes do seu nas¢j- mento. Por mais absurda e injusta que seja, a intimidagao coma qual se arca por ter nascido de pais que pensam por si mesmo é imedia- tamente inteligivel como tal, formulavel na linguagem forjada por uma longa tradicao de protesto ¢ de desconfianga em relacao a au- toridade arbitrdria; ela pode se inscrever sem problemas no rico repertorio que deslegitima, por meio da derrisdo, a lendéria estupi- dez de uma ordem que faz com que os mortos votem — isso quando nao estabelece mandados de prisio péstumos contra “oriundas de Luxemburgo, com 0 nome de Rosa’. Em contrapartida, nenhuma suspeita de ilegitimidade recai sobre a afronta infligida a uma mulher pelo fato de ela nascer mulher; nenhuma gramitica politica permite formular a implicagao da au- toridade arbitraria que possibilita uma afronta como essa. Declinada conforme a estrutura do mundo as avessas, que parece mudar tio pouco desde priscas eras, a insubmissio feminina ocupanas tradigdes plebeias o lugar de uma parédia do politico que indica os limites da contesta¢ao da ordem existente — que so, ao mesmo tempo, os do politico. Longe de desestabilizar a ordem, a derrisao se torna ai uma arma a servico dela; arma tio eficaz que nao ¢ pensada como tal. Nascer mulher e reivindicar 0 estatuto do puro e simples ser humano, a dignidade do individuo singular, ¢ levar uma vida interior dupla;. énegociar existéncias ¢ pessoais, politicas, intelectuais) sepa- radas ora entre os homens, ora entre as mulheres — mensageiro in- sdlito e autoproclamado de uma universalidade que se furta. A au- séncia de uma linguagem disponivel para formular a liberdade das mulheres, 0 fato de essa auséncia ser algo politicamente impensado, introduz um anteparo entre a experiénci ujeito feminino du P experiéncia singular do sujeito femins € seu acesso ao universal. A inadequagio entre as minhas percepcées subjetivas ¢ as ferra- mentas de que disponho para comunicé-las uma parcela sig- nificativa de minha experiéncia do mundo uma experiéncia indizl- 14 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO vel - logo, clandestina — que lapida de maneira subterranea o meu relacionamento com os outros, sem poder se medir nessa relagio intersubjetiva especificamente humana que pode lhe conceder uma visada universal. Essa clandestinidade interior instala uma divida radical na conformidade das minhas percepces, uma divida que introduz, nos gestos cotidianos, uma tonalidade estridente ou per- cebida como tal. Com frequéncia, muitas feministas interpretaram mal, creio eu, a reprovacao que Virginia Woolf dirigia as mulheres autoras: se a animosidade ¢ a amargura que as vezes se deduz por tras das linhas de algumas de suas ancestrais enfraquecem, segundo ela, a forga universal de suas obras, nao é nisso que elas revelam a indignagao da mulher autora perante a sina que lhe cabe - ¢, sim, no fato de traduzirem nfo a indignagio, mas a sua impoténcia, a qual, na medida em que permanece surda € no expressa, pode se perceber apenas na forma de ressentimento. A subjetividade para- noide daqueles para quem o pleno acesso A humanidade se choca com barreiras invisiveis nao passa de pura invengio dos seus detra- tores. De igual maneira, é uma das modalidades da existéncia de ‘todos aqueles que nasceram do lado ruim do universal, num mundo que supostamente teria abolido os privilégios de nascenga. supée ao mesmo tempo levar a sério as promessas do universalismo ¢ desafid-lo. A célebre afirmagao de Simone de Beauvoir, “nao se nasce mulher, torna-se’, ganha aqui todaa sua amplitude problemé- tica, Ela permite perceber, por um lado, que cada mulher participa dessa indeterminagao prépria 4 condigao humana que faz do seu nascimento um dado primeiro que sera reencenado pela ago — a sua, a dos outros. Um dado que nao teria como prejulgar o que eu poderia ou quereria vir a ser, que nao teria como prejulgar 0 potencial do meu devir individual. Nesse sentido, tampouco se nasce homem, torna-se. Mas se para o eu masculino a aco a partir da u destino — ou rearranja os dados de sua 5 Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS carrega as marcas indeléveis de uma condi¢ao coletiva de Nascenga que o atrela ao particular. Eu bem que me recusei a me “tornar my. ther”, isto é, eu resisti a sina que esta reservada a todas aquelas que, como eu, nascem mulheres; de toda forma, sou percebida como tal por causa da minha nascenga. E, vamos supor que eu 0 deseje, nig posso me desfazer do meu sexo como de uma camisa velha. Nao que eu pertenga irremediavelmente As “fémeas da espécie humana”, cuja esséncia, como lembra o Petit Robert, é “conceber e pér criancas no mundo”; é, antes, que a pertenga me impede de ter acesso 4 huma- nidade genérica, de ser percebida — logo de saida e antes de qualquer coisa — como fazendo parte da “espécie animal mais evoluida” que é 0 faov SrOMTUCScinarsiericwStre FES CASSIE Nao ha linguagem politica para pensar a liberdade ou, o que dé na mesma, a nao liberdade das mulheres; nao ha linguagem para conceber uma auséncia como essa em termos politicos. Essa lingua- gem, ser preciso inventa-la. * Zéon polirikon, do grego: animal politico. (N. da T.) 16 Digitalizada com CamScanner 2 Pertinéncias e impertinéncias do género Um género todo seu Anglo-saxa, francesa, germanica ou rominica, a procedéncia étnica ou cultural dos conceitos nao diz nada sobre a sua pertinéncia. A cultura é um leque de possibilidades tentadas, descartadas, recicla- das incessantemente — mais uma atividade do que uma estrutura estanque ou uma colegio de curiosidades nacionais.! Em vez de comparar, em bloco, abordagens cientificas nacionais, é nas praticas da pesquisa — onde quer ‘gue el se deem — que convém ; potencial e os pontos cegos do género como grad de andlise politica do antagonismo desexo. Assim como a distingao entre sexo ¢ género uma simples questao de disponibilidade desta ou daquela palavra numa lingua, 0 uso do termo por si s6 nao prejulga em nada uma abordagem critica da diferenca dos sexos. Um dos primeiros exem- plos de uma andlise do politico na perspectiva do género é fornecido pelo traba ho de George Mosse — que, mesmo sem utilizar o termo, 40 da afinidade desfraldou-lhe a problematica -, em sua demonstra¢ ionalismo a. uma eletiva que associou o desenvolvimento do nacion# configuragiohistrica da virlidade, cujs porencialidede tens mais sombrias foram ativadas pelo nazismo.” Inversamente, como notava Joan Scott ha mais de 15 anos, um bom numero de pesqui- sadores americanos emprega esse termo como sinénimo de mulhe- ele suscitou, ¢ ainda tes” ou de “sexo”? Apesar jsténcias que 55 ee Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS suscita,‘ o género adquiriu n muito nuito rapidam um direito de cida- dania nov no vocabulério cientifico americano ¢ britanico: de um lado, siza ressonancia mais neutra em inglés s choca menos diretamente as certezas da “diferenga dos sexos”; pertencendo, por outro lado, mais ao léxico cientifico do que 4 linguagem corrente,’ o termo atribui certa respeitabilidade cientifica a uma areflexao que, c ‘conduzid: zida com a “denominacao de women studies ou feminist studies, desperta a cunpeita de parcialidade e de milcaniso. Ao Ao que € preciso acres- centar a necessidade de achar uma palavra de substituicao para “sex”, uma vez que, como diz muito belamente o professor W. V. Quine, essa palavra foi mobilizada para atender as exigéncias de uma trans- formaco radical dos costumes que multiplicou “a frequéncia das oportunidades de se referir polidamente 4 copulacao”* O termo tende, assim, a.adquirir a fungao autoexplicativa que outrora ora tinha 0 “sexo” ow a “diferenga sexual’ e a virar uma mia categoria descritiva que, mais do que interroga erenga ¢ e , toma a diferenca dos sexos como certa. E verdade que aquilo que é posto a fre frente no ‘conceito de gé- e, mais geralmente, na eae entre sexo € ¢ genero -éa acaso se trata de uma ae spe naman ds (os sexos) € 0 social (construgao dos papéis sexuais)”?” De uma construcdo tao arbitraria quanto o género gramatical? O género ¢ “contetido” mu- dando de um “continente” imutavel e anistérico, ou acaso ele “pre- cede o sexo ¢ o modula”?* Se a indefinigao que cerca essa interroga- cao cria problemas, nao é porque ela ¢ do foro de uma incapacidade de trazer respostas claras ¢ definitivas a essas perguntas, mas porque édo foro de uma reticéncia, de uma dificuldade de fazé-las. Fazé-las seria abandonar o pressuposto da anterioridade do sexo em relagio ao género para adotar uma postura deliberadamente agnéstica que suspende, provisoriamente, aquilo que “j4 se sabe”: o fato evidente de que hd dois sexos.? Em lugar nenhum essa dificuldade se manifesta 56 Digitalizada com CamScanner ee eet etree tetera tac PENSAR O SEXO E 0 GENERO com tanta forga como no deslizamento pelo qual, gracas a esse truis- mo, se pass do exame do género ~ como relagdo de poder e principio de divisio — aos géneros, um ja-Id cuja dualidade se trata de observar edescrevers procedendo da “crenga ingénua que presume a existén- ciadeum ser humano original” pré-social, esse deslizamento “reduz a construgao social ao condicionamento social”"’ ¢ retira, assim, a interrogagao da conflitualidade da historicidade das praticas de diferenciagao para ressitud-la no dominio da formacio das identi- dades, dos comportamentos € dos papéis sexuais - de onde, ¢ bem verdade, a nogio havia emergido no final da década de 1960. £, com efeito, de uma releitura critica da psicologia diferencial dos sexos e da antropologia que Ann Oakley partia, em 1972, para afirmar anecessidade de distinguir entre 0 sexo, “am termo bioldgico’, co género, “um termo psicoldgico ¢ cultural”: pertencer ao mascu- cogenero, um termo pst « pertencer ao ma algo que se aprende.” tico, lino ou ao | feminino nao ¢ automatico, Porém, se 0 conceito de género proposto por Oakley contestava fortemente o cardter natural da bicategorizagao de sexo, ele insistia menos em sua dimensio politica, na assimetria ¢ na hierarquia constitutivas dessa bicategorizacao, prestando-se, por isso mesmo, a usos compativeis com 0 fancionalismo dominante nas ciéncias sociais; ele podia, por exemplo, ser utilizado numa perspectiva par- soniana!? da cultura, em que os “papéis de sexo”, ainda que adquiti- dos, constituem os elementos funcionais de wi orginico cuja prévia éa “manutengao das normas” (pattern mainte- nance). Nesse ponto, 0 novo conceito continuava curiosamente aquém de certas andlises dos anos 1940 ¢ 1950," conduzidas numa ética que fazia surgit a disfungao, 0 conflito, a mudanga — uma 6tica que levava em conta a historicidade e as questoes ideolégicas das m “sistema cultural” categorias utilizadas. Uma ética como essa havia cond eritico do conceito de “carter feminino” € que lhe era constitutiva. Frisando as relagées de diviséo hierdrquica que precedem ¢ moldam as caracte definidas como “femininas” ¢ 0 devir sujeito das mulheres, seu estudo luzido Viola Klein ao reexame da polaridade dos sexos de podereo principio risticas 57 Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS The feminine character [O carater feminino] focalizava, assim, mais os processos histéricos de diferenciagao do que a diferenca. O sub- titulo da obra, Histéria de uma ideologia, anuncia, de saida, a origi- nalidade de uma postura como essa, que, revirando a perspectiva habitual, trata as ciéncias que estudam esses processos nao sé como fontes de verdade, mas também como instrumentos de racionaliza- gio social ¢ terrenos de conflito no que concerne a formas e Tegras do viver em conjunto. Karl Mannheim, de quem Klein havia sido aluna, tinha se servido do exemplo das mulheres, como grupo social marginalizado, para criticar a postura marxista que atribuia uma superioridade cognitiva ao ponto de vista do proletariado. Klein retoma esse argumento, dessa vez para contestar a imparcialidade com que seu mestre havia dotado “o intelectual franco-flutuante” (free- floating intellectual) ¢ insistir na necessidade de proceder ao exame critico dos dispositivos cientificos que constitufam autoridade em materia de diferenga dos sexos: a biologia (Havelock Ellis), a filoso- fia (Otto Weininger), a psicandlise (S. Freud), a psicologia experi- mental e psicométrica (Helen B. Thompson, Terman e Miles), a historia (Mathias e Mathilde Vaertings), a antropologia (Margaret Mead), a sociologia (W. I. Thomas). Na construgio estereotipica do masculino e do feminino, Klein véa reificagio de uma configuracao histérica patriarcal que projetava no “cardter” feminino as relag6es nao igualitarias existentes.° A bicategorizacao de sexo opera como um mecanismo de padronizagao de dois tipos “claramente contrastados, complementares e antitéti- cos”, a0s quais todas as institui¢des sociais se empenham em atribuir 0s individuos, a expensas da diversidade efetiva das atitudes ¢ dos arroubos individuais.' A atribuicao de determinados tragos carac- teristicos a categorias bioldgicas precisas opera, decerto, como um colocar a parte de todos aqueles ¢ aquelas que “nao entram na roupa que a sociedade fabricou para eles”;}” a divisio da qual ela procede obedece a hierarquias e relagGes de fora existentes, associando 0 masculino a qualidades e valores positivos ¢ o feminino a caracte- risticas negativas ou desviantes. Assim ela assegura e perpetua a ¢S~ 58 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO. -matizacao das mulheres, que, como “ i . rigmatizag q Outros tipos de outsiders”, e julgadas nao como individuos, mas como membros tipificado’* Nao surpreende, diz Klein, Mead ow Virginia Woolf demandem deum grupo que mulheres como Mies qaeeale que sejamos julgadas pelas nossas qualidades individuais, e nao como espécimes, postas a a mesma bandeira; trata-se de uma demandacomuma todos os grupos minoritarios ou inferiorizados.!? Relacionar as mulheres com outros grupos discriminados permite deslocar a discussao sobre o carter feminino do terreno da biologia para o das relagdes de poder, “Os imigrantes, os judeus, os conver- tidos, os povos conquistados, os negros americanos, os indigenas ocidentalizados’, que, embora sé tenham em comum com as mulheres ainferioridade de uma posico social, apresentam “comportamentos” ou “caracteristicas mentais” similares. Isso mostra que aquilo que, em grande parte dos discursos cientificos, é associado 4 anatomia ou a biologia, est, na realidade, ligado a inferiorizacao ¢& discriminagio. Lugares de expressao dos antagonismos sociais, os discursos cientificos constroem a polaridade dos sexos ao menos tanto quanto . Um dos exemplos mais convincentes fornecido por Klein €0 da psicandlise freudiana e da sua tendéncia de fazer do “tipo masculino” a norma universal em relacao 4 qual o feminino se inscreve como um desvio ou uma falta.”° Os debates que dividiram a comu- nidade psicanalitica — “desde que as mulheres exigiram ser conside- radas individuos plenos e ter acesso aos direitos do homem” - sao testemunhas da dificuldade em atingir a impatcialidade cientifica que a psicandlise almeja. O diferendo que opés Karen Horney a Freud sobre o tema da inveja do pénis aparece como uma competi- 40 pela superioridade de um sexo sobre 0 outro entre dois concor- tentes altamente empenhados. Dai as questoes epistemoldgicas— ou, mais modestamente, de sociologia do conhecimento — gue esses estudos inevitavelmente fazem surgir: em particular, a questdo de saber quem fala, em qual contexto, de que ponto devista;ada avalide Geral ou absoluta de categorias cientificas desenvolvidas num undo = a Fiera inici éculo androcéntrico que, como Simmel havia frisado no inicio do sécu wndrocéntrico que, dono Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS experiéncia das mulheres para 0 lado do particular ed edo > subjetivo, Paraa refugiada dajudia da Tehecoslovaquia que era Klein, aq ques- tio do ponto de vista, assim como a da experiéncia e dos valores, nag pode mais ser formulada da mesma maneira antes ¢ depois dessa guerra que aclarou com uma luz sinistra os efeitos do cientismo racista e sexista e de uma “engenharia social” (social engineering) fundada na tipagem binaria e na oposigao hierarquica dos “caracte- res” e dos “valores”?! Se determinados valores ditos femininos - mas, na realidade, historicamente desenvolvidos — deviam ser salvaguar- dados, isso nao teria como ser feito A custa de “distingGes artificiais, dentre as quais as mais pregnantes sao as de sexo”. “E fatal ser um homem ou mulher, pura e simplesmente’, havia escrito Virginia Woolf: agir, pensar, criar exclusivamente como mulher ¢ interditar- -se“[comunicar] sua experiéncia com perfeita integridade”* Citando aromancista cujo suicidio, alguns anos antes, ainda estava presente nos espiritos, Klein apelava para a concretude da experiéncia, a fim de contestar a légica dicotémica das categorizagées de sexo. A solu- 40 do problema do monopdlio masculino do universal nao podia vir da oposi¢ao ou da justaposigao de um principio feminino — pre- tensamente superior porque ligado a fungao materna. Opor “a inveja” masculina “da maternidade” & “inveja do pénis” é continuar na ldgica dominante que faz da diferenga anatémica o ponto cardinal da concepgao analitica ortodoxa. Tal como 0 dilema diante do qual Georg Simmel havia situado as mulheres que vivem num mundo patriarcal ~ assimilar-se aos valores masculinos ou se fechar numa identidade feminina desvalorizada? —, a inversao da hierarquia dos valores em prol do feminino, que Klein detectava em determinadas hipdteses de Karen Horney,” continuava na légica bindria que se tratava de fazer deflagrar, Posto A prova da pluralidade das experién- cias humanas, que testemunham a impossibilidade de tragar uma fronteira que separe distinga os seres conforme a divisio masculino/ feminino, 0 conceito de bissexualidade estava sendo reformulado de modo que permitisse situar cada um(a) — ¢ a cada um(a) de se XX, toma o homem como a norma universal objetiva e enxota a ohhomemtcono a 60 Digitalizada com CamScanner > PENSAR O SEXO E 0 GENERO situar - em “toda a gama de potencialidades humanas; de formar, como escrevia Margaret Mead, um tecido social [...] no qual eal qualidade humana diferente encontre seu lugar”. f~uma problematica dessas que prolonga e renova, nos seus melhores momentos, a conceitualidade do género nao apenas nas suas abordagens, mas também nas suas interrogacées e seus dilemas. Com efeito, é sintomatico que um dos primeirissimos grandes de- bates ligados as questoes de género tenha incidid ginia” definida como “um movimento que leva para longe da pola- tidade sexual e da prisio do género, em direcdo a um mundo em que os papéis individuais e os modos de comportamento pessoais pode- rao ser livremente escolhidos””> O que se passava na reivindicagao do andrégino era por em questao nao apenas 0 wm — a unicidade, a norma, a fusao —, mas também o dois — a diferenga como desvio -, oque sem divida explica as paixoes que ele despertou.” Alimentado pela convic¢ao de que se podia ir mais longe do que aquilo que a historia fez de nds ¢ das palavras que dizem quem somos,” esse ria ao espaco possivel, mas incerto, do miiltiplo; simbélica deste ultimo estava — € ainda se tinha o mérito de deslocar a reflexao para o da intersubjetividade, da utode- lo sobre a “andro- questionamento se abi se a cartografia politica est4 — por inventar, essa anli do terreno da “diferenga” terminagao, da autonomia. E esse deslizamento que nos interessa aqui, pois ele permite pensar 0 antagonismo “de sexo como uma « configuracio de poder, 10 mes mpardvel a outras,. cuja andlise visa a/a— no sentido de dirigir o olhar e de ter por objetivo — subordi- nagio social e politica das mulheres e, através dela, os axiomas, as categorias eas distingdes pelos quais pensamos 0 politicoe -a politica. Se essa dupla perspectiva consticui o aspecto do género mais dificil de colocar em agio, ela abre a possibilidade de ir além dos seus usos como o género constitui © é fo, confrontar-se coma ao mesmo tempo sui generis € descritivos para procurar compreender constituido pelo politico Permite, sobretidos invisibilidade politica de uma: relagdo que, tendo sido pensada, durane os, em termos de hierarquiae de - dominagao foi paradoxalmente 61 il Digitalizada com CamScanner ago ELENI VARIKAS repelida para fora do politieo, no momento sm que a critic da au re je abieria decretava hierargus ilegiima em nome d {niversalidade do direito natural. A eficacia de um apagamento ~ co ge manifesta na posigao infima que as relacoes de sexo = 4 teoria politica em relacao ao desen- ista na sociolo; ia, na literatura, na como esse S! es ocupam na ciéncla, politica en volvimento da pesquisa feminista na 0 histéria. Ora, éuma estupefacao de natureza principalmente politica, a fandadora da problematica do género, tal como ela se encontra enunciada na introdugio do Segundo sexo: se “todo ser humano do sexo feminino nao é [...] necessariamente mulher” como é que alguém se torna mulher? Na medida em que esse como visa prioritariamente a processos de diferenciagao hierarquica, na medida em que ele conforta a suspeita woolfiana segundo a qual sio. “as roupas que nos usam, € Nao o contrario”, a interrogacao se ins- tala no cerne dos principios politicos especificamente modernos, no sentido de um entendimento politico que substitui o principio da diferenca pelo de uma lei geral para todos. Com efeito, é sé num mundo que almeja ter ‘abolido as distingdes de nascenga que a afir- magao “nao se nasce mulher: torna-se” adquire toda a sua acuidade polémica. E sé nesse mundo em que, antes de examinar 0 ato pelo qual “um povo pode entregar-sea um rei”, acha-se por bem examinar “o ato pelo qual um povo é um povo™! quea ética politica do género se torna pertinente. Ela pode, por sua vez, enunciar: a que nem aquel (a) que, antes de examinar 0 ato pelo qual uma mulher pode ser cidada, ter um acesso igual (desigual ou “diferente”) ao poder (ao emprego, ao saber, aos recursos), convém primeiro interto- gar aquilo que faz de uma mulher uma mulher e (o que da na mesma) faz de um homem um home da perspectiva politicas (b) que esse exame é, ao mesmo tempo, exame da natureza politica das nossas sociedades — em particular, da democracia histérica. Esse exame nao é busca de uma origem ou de uma “causa primeira” (do patriarcado, da hierarquia dos sexos, da misoginia). A espeCU- 62 le — Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO lac sobre as longer © as causas primeiras s6 pertence ao domini olitico como metalinguagem, e € preciso traté-la como tal Ali _ gs historias de homens naturais que brotam, numa 56 tacada, ct ids, cogumelos — fora de todo e qualquer lago social - ou - ims = deliberdade e de igualdade selvagens, j4 dispoem de 7 etiadog . Jhes corte @ lenhae de uma mulher para alimentar; as de saat ras e de cagadores, de matriarcas e da sua derrota histérica, Seay duzem infalivelmente a questao do poder para o terreno incempota e pré-politico da antiguidade e da /ei natural — terreno que é mais o datirania do que o da liberdade. A antiguidade nao dé o direito de “malfazer” - como La Boétie bem tinha visto -, ela sé faz aumentar a injuria.* A referéncia as origens permite fazer da desigualdade um dado antropolégico. Ora, a pergunta que se faz 4 desigualdade — Rousseau havia tentado, por conta propria, explicar 4 Academia de Dijon - nao éade saber sea lei natural a autoriza ou a explica, mas oqueafundamenta, “com que direito” > Nao: “a diferenca dos sexos est4 na origem da sua desigualdade?”, mas: “Homem, vocé é capaz de ser justo? [...] Quem te deu o soberano império de oprimir 0 meu sexo?”. “Escovar a historia a contrapelo” Inscrever a questao do género na “mA tradigao” que havia atraido a ira da Academia de Dijon consiste nao s6 em buscar novas respostas para velhas perguntas, mas, sobretudo, em reformular algumas j ia enun- dessas perguntas com a ajuda dessa regra que Rousseau havia aplicasse até o fim, como ciado com soberba, sem que ele mesmo a \s fatos. 1 ' sesabe: comecemos por descartar tod as fatos! Dew oa blero 660° comecen ee 5 dril mas a forca de evidéncia que eles exercemn er det crioue tilégio do existente que hipostasia aquilo que a num humana oe ee Finis de-se aconsciéncia vw que, tendo se tornado um. 1 fato positives » P sad ndentemente.de como algo evidente: uma coisa que existe In lependentems nés, de nossas praticas, nossas agoe 63 Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS Se toda reificagdo ¢ um esquecimento,” apartar-se dos fatos ¢ um primeiro movimento necessdrio para se aproximar de outro modo lembrando-se de que eles nao encerram nenhuma verdade primeira, nenhuma légica predestinada, nenhuma outra autoridade moral ou histérica além daquela que a razao instituida®* \hes concede. Esse trabalho de anamnese consiste em repensar e desnudar o que estd escondido sob a evidéncia de um processo, de uma teoria, de um con- ceito — escondido nao no sentido do comps, mais no sentido do que est reprimido ou recalcado,” porque nao faz mais sentido € nao entra na ldgica do fato consumado. E na rememoracio daquilo que, na légica dos fatos consumados, esta esquecido ou supostamente — ———— = = resolvido que 0 trabalho da historicidade do género se enraiza.** Ele esolusaokqucionrabane Tread he OO BENS ena tem como tarefa recordar e evidenciar constantemente que os “fatos’, mesmo os mais brutos “sé sao significativos em relagao a uma situa- 40 histérica”;? que ser (mulher, homem) € “ter-se tornado, é tex sido feito” o que remete simultaneamente 4s modalidades do assujei- tamento e as do devir sujeito, 4s coergées do poder e a autocriacao, a possibilidade de comegar de novo. Ora, nada nos automatismos da pesquisa nos prepara para uma re meee i Sta tarefa como essa, que supe se. desfazer da légica das coisas. Teste- munha disso € 4 tensao interna 4 postura do pesquisador que, no momento em que se esforga para descobrir o que nao conhece — por exemplo, o sentido que 0 acontecimento, o fendmeno, 0 texto estu- dado tinha no momento em que se produziu —, procura, ao mesmo tempo, verificar, até mesmo confirmar, aquilo.que ele j4 conhece, o sentido atribuido ao acontecimento pelo que o sucedeu. Afastando do nosso horizonte 0 inesperado, 0 insdlito, tudo o que, como diria Montaigne, advém contra o costume, essa postura nos faz olhar 0 passado da perspectiva do que ¢ familiar — que é, a0 mesmo tempo, a perspectiva da evidéncia. Em busca de regularidades, de compor- tamentos tipicos, de mentalidades quantificaveis, acabamos ficando tao surpresos quanto o guarda prussiano perante Moses Mendelssohn, convidado de sua ilustrissima majestade Frederico II: 64 rr Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO. — Qual é 0 seu negécio, Judeu? — O meu negicio é a razao! Nos procuramos os agentes no lugar deles, no lugar em que um: visio pré-fabricada e normativa do “social” os situa - 0 operdrio, a usina e no sindicato; a dona de casa, no lar; a : o cigano, na sua carroga; o negro, na nea a eueadory : 5 inorias, no seu gueto-€ perdemos de vista o moleiro solitario que inventa cosmo- gonias materialistas, com o olhar vidrado nos seus queijos,"! a cos- tureirazinha herética que, desafiando o Protetor* recém-empossado, publica utopias igualitarias e cosmopoliticas;* a cortesa parisiense que, na véspera da Revolugao, prepara pecas de teatro antiescrava- gistas;® a donzela enclausurada pelo governante grego de Zaquintos que inventa uma nova lingua literaria com uma Aufklarung sob medida — com a liberdade das mulheres a mais -;“ por fim, a ex- -escrava analfabeta que faz direito natural sem saber: “quanto a isto, o intelecto, se dele uma mulher tem uma caneca ¢ o homem, uma jarra [...], por que titubear em nos dar os nossos direitos com receio de que tenhamos demais? Nao podemos pegar mais que a nossa caneca”’ Procuramos mensurar a célera das classes perigosas son- dando as declaragées oficiais ¢ as reivindicagoes sindicais. Mas nos esquecemos de acompanhé-las quando, de repente, sem avisat, elas 0 ao som da primeira palavra humilhante ¢ vo a voltar um ou dois dias depois com reivin- 46 Nés perscrutamos as causas possiveis ais previsiveis sem suspeitar das que se que passam ins{pidas ¢ frias [...] na ‘9 lembra Claire Démar em 1833, peranca do fraco de chegar, “como je alegria que todo ser social tem jonantes, deixam o trabalh botar para quebrar, pa dicages redigidas a posterio das revoltas nos espagos soci preparam “nas longas noites alcova marital”, nutridas, com saint-simoniana herética, pela es o forte”, a “reclamar [...] a soma d diteito de demandar & sociedade”.” Com essas marcas diss ia, entre os anos de 1653 Lord Protector, ou simplesmente Protector, ¢r80 efrulo que se’ aig a ie € 1659 ~ quando os Cromwell comandavam, porns 20 che terra, Escécia ¢ Irlanda, (N. da T) . ma Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS © que escapa 4 nossa atengao absorvida pelo que é familiar ¢ tudo aquilo “que aponta para uma potencialidade nas coisas que se negli- genciou’,** indicios frageis de outras ldgicas que poderiam nos ajudar a reformular as nossas perguntas. Essa dificuldade de integrar a di: singularidade n nas interrogacées € esquemas interpretativos, nds areencontramos na historia intelectual ena teoria p ica a sejam quais forem, alids, as suas diferengas no trato da historicidade. No ensino da teoria do Estado, Os seis livros da Republica (1576), de Bodin, e 0 Discurso sobre a servidao voluntaria (1574), de La Boétie,” raramente sao estudados em conjunto, o que permitiria compreender que 0 que soa dbvio do fim do século XVII até os dias de hoje - pensar 0 Estado com base nas condicées de possibilidade da liberdade na vida social — nao era evidente naquele momento do século XVI, em que o poder do Um podia igualmente ser pensado com base em uma estupefaco inversa pela possibilidade da tirania, estupefagao perante esse “vicio monstruoso” que leva uma multidao a obedecer voluntariamente a “7 sé; estupefacao que sé é integravel como uma “antecipacao genial’, mais do que como uma “compreensio realista” disso que forma a questao da reflexAo politica do sew tempo. A mesma ldgica rege o destino dos debates revolucionarios de Putney € 0 pensamento politico dos Diggers sobre o sentido da liberdade, que raramente se encontra ao lado do Leviata de Hobbes ou do Segundo tratado de Locke; sem falar dos debates de Whitehall, que formulam, talvez pela primeira vez depois de Guilherme de Ockham, atolerancia como direito universal. Nesses debates de 1648 os Nive- ladores tinham, com efeito, apresentado o Second agreement of the people [Segundo acordo do povo], fundamentado no principio da tolerancia religiosa universal, um texto que se buscar4 em vao nas reedic6es mais recentes dos textos filosdficos fundadores do prin- cipio da tolerAncia.* Sucessivas geragdes de estudantes procuraram em vo, nas biblio- tecas, o famoso Primeiro tratado sobre o governo civil de Locke para confirmar, pessoalmente, o rumor segundo o qual o filésofo britanico 66 Digitalizada com CamScanner Pas PENSAR O SEXO E 0 GENERO ceria aniquilado, com os fundamentos patriarcalistas da monarquia, osda desigualdade dos sexos ¢ da incapacidade politica das mulheres, Ler em conjunto os dois tratados, os quais, como mostrou Peter Last lert® ha 40 anos, fazem parte de um mesmo projeto, teria permi- tido, no entanto, ver que 0 que opde Locke a Filmer - 0 autor de Patriarcha® (outro que desapareceu de circulagéo por alguns sécu- Jos) — nao éa ilegitimidade do poder do homem sobre a mulher, mas sua nova legitimagao, que ele retira da esfera politica, paraareformu- Jar em termos compativeis com a limitagao do poder real.5 O que explica a duradoura indisponibilidade dos textos necessdrios 4 compreensao da genealogia do liberalismo classico é.a forga imperiosa doaclaramento retrospectivo que as forcas de suas significagées pro- jetam sobre o passado, as quais, tendo-o extinguido, viraram a tra- digio digna de ser transmitida e estudada. Com esse aclaramento, nao hd necessidade de ler Patriarcha para considera-lo uma pea de museu que nao tem outra utilidade além de ilustrar a confrontagao entre o obscurantismo de direito divino e 0 racionalismo contra- tualista que esto na origem da democracia moderna. Inversamente, tudo o que relativiza ou complica essa légica torna-se secunditio, supérfluo, fora de propésito; arriscando cortd-lo em dois, é mais cémodo ler 0 Tratado sobre o governo civil como uma resposta ao absolutismo hobbesiano do que se debrugar, por exemplo, sobre a contingéncia que constitui sua historicidade: 0 conflito dinastico e religioso da Exclusdo que, reativando os antagonismos explosivos da guerra civil, faz da naturalizagéo do direito conjugal e da proprie- dade ilimitada questées tio importantes quanto a limitagao do poder real.°° Compreender to, por que as leituras de C. B. Macpherson” ou dé Carole Pateman}* nao terao lugar no ensino da teoria do Estado e irao § igiar, na’melhor das hipoteses, respect vamente, nos dominios da sociologia critica ou da teoria feminista. A dificuldade que a histéria intelectual encontra em restituir a historicidade das tradig6es politicas é, 20 mesmo tempo. dificuldade es interpretagdes de pensar os processos conflicuosos nos quais as ee £ Po 4 Ean vei histéricas e a polissemia de idei em € se tornam Poss!y< ft __— _ 67 Digitalizada com CamScanner SS ELENI VARIKAS 0 que ja se conhece, as i interpretagdes dominantes de um momento crucial do pensamento politico, qué decide pela legibilidade ou, ao contrario, pela opacidade dos textos que vem em seguida. Testemu- sha dis €a rans da Defi do dts dos bomen 130), de Mary Wollstonecraft, cuja influéncia sobre a formagio do radi- calismo inglés foi inversamente proporcional ao siléncio quase completo de que fora alvo na histéria intelectual e politica. Inaugu- rando a verdadeira guerra de panfletos que, na Inglaterra, a critica de Burke & nogao de “direitos do homem” havia provocado, esse texto nao apenas exerceu uma duradoura influéncia no amplo mo- vimento plebeu para a extensio dos direitos civis ¢ politicos que agitou 0 espa¢o publico na Inglaterra na década de 1790; ele cons- titui, igualmente, uma das grandes fontes do radicalismo britanico no século XIX, do owenismo ao cartismo. Impacto dificil de com- preender sem ressaltar o que distingue o panfleto de Wollstonecraft do restante das respostas a Burke: a sua defesa dos direitos universais dos homens (no plural) nao visa unicamente ao absolutismo ¢ aos privilégios do Antigo Regime francés, mas também ao despotismo do actmulo ilimitado e da perpetuagio da propriedade ptivada que implica a servidao ¢ o assujeitamento da grande maioria na Ingla- terra.! Definindo a autonomia de cada individuo particular como imperativo ¢ critério fundamental da legitimidade de qualquer outra instituigao (em particular da propriedadee da familia), Wollsto- necraft sublinha a incompatibilidade da liberdade individual com aquilo que, dois séculos mais tarde, Macpherson chamaré de “indi- vidualismo possessivo”. Ora, € essa abordagem polftica das desigualdades sociais produ- zidas na esfera privada da familia e do mercado — abordagem que se tornard cada vez menos possivel nas décadas por vir — que torna esse texto ininteligivel. Ininteligivel aos olhos da tradico canénica do liberalismo contratualista, na medida em que ela nos lembra que, tirantea liberdade contratual, o “constitucionalismo” podia dispen- sar todos os direitos que se associam 4 democracia — liberdade de opiniao, de imprensa, de reuniao, de associacao; 0 habeas corpus; a 68 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO id yiolabilidade da correspondéncia; a liberdade religiosa etc. - ye, uma vez 0 Bill of Rights [Declaracao dos direitos] estivesse desatrelado de toda referéncia ao contrato de origem (em nome do ual havia sido justificada a destituigao de Jaime II), 0 tinico “con- trato” 20 qual os “ingleses nascidos livres” tiveram direito foi... 0 ju- ramento de obediéncia ao “Salvador” da Igreja da glen Cs Ininteligivel também por causa de sua critica da propriedade cémo fonte fandamental de dominagao em relagao a uma historiografia que trata 0 politico como simples epifenémeno da exploracao eco- nomica. Relegadas.aos dominios “privado” ou “social” que obedecem aleis proprias, as desigualdades sociais — que Wollstonecraft consi- va entraves & liberdade individual — parecerao sem pertinéncia dera politica. Sem pertinéncia, enfim, sua Defésa dos direitos dos homens, parauma a tradica sta cuja aten¢ao, absorvida pela Defesa dos direitos da mulher, negligenciara a logica politica ¢ as tens6es que condazem de uma a outra: 0 principio de universalidade dos direi- tos, que, associa 20 imperativo de sua aplicagao concreta, engloba nactitica da autoridade arbitraria relagdes sociais tao diversas quanto le dependéncia e de servidao humana. Purgada litica, aDg ada para fazer as formas concretas di deseualcance universal, extraida de sua genealogia dos direitos da maulber ser mais facilmente dom carreira como tratado de educagio feminina.* A primeira Defesa “de Wollstonecraft decerto nao € tipica da tradicao dos direitos do homem; mas a sua auséncia na histéria das ideias politicas ¢ exemplar do encadeamento de ¢ esquecimentos su- cessivos do qual as tradig6 se alimentam. Pois com ela é “esquecida” uma genealogia do radicalismo b Anico que é dificil reduzir a uma das “duas tendéncias fundamentais, conservadora€ progressista, do liberalismo moderno”, cristalizadas pela Revolucio Francesa, haja I’ nao é “o equilibrio entre oder € erdade de cada tica de quatro testemunha vista que seu “problema centra liberdade’*" mas.as condig6es de possibilided individuo particular.° Mistura estupenda € nce revolucoes, essa tradicao minoritdria do universalismo - a pluralidade de interpretagdes 4 qual se abriu o direito natur 69 = _ Digitalizada com CamScanner eS ELENI VARIKAS classico e desafia a presumida homogeneidade de uma cultura poli- tica “anglo-saxa’, por oposi¢ao a qual se tem a tendéncia de definir a particularidade do universalismo francés. Na tradicao produzida e transmitida pelo descarte das asperezas e das descontinuidades do passado, fatos ¢ ideias se sucedem no sentido do “pelo muito luzidio da histéria”® e convergem numa evolucdo progressiva rumo 4 modernidade, associada — conforme 0s gostos e os momentos histéricos — ao desenvolvimento, 2 liberdade, 4 democracia, ao socialismo. Uma marcha que sem duvida causou alguns danos, mas todos sabemos que “nao se faz omelete sem que- vos’, como diz o ditado. E é em fungao dessa marcha da lade que conduza humanidade da teocracia & secularizacio, antismo a raz4o, do absolutismo ¢ dos privilégios ao uni- ersalismo ¢& democracia, que sao selecionados, classificados, inter. pretados e avaliados os acontecimentos, as aces, as ideias do passado. Tudo o que excede ou que nao facilita a demonstracao dessa marcha, para nao dizer a sua inexorabilidade, é descartado como algo menor. Os atos, os acontecimentos, os pensamentos que 0 veredito da His- toria condenou sao retrospectivamente condenados como insigni- ficantes por uma postura que adota, assim, a Perspectiva da vitéria. Quando nfo sao silenciados, apresentam-se como atipicos ou sim- plesmente a frente de seu tempo. Como explicar de outro modo que 0 exemplar da Biblioteca Nacional da Declaragao dos direitos da muther e da cidada, de Olympe de Gouges, ainda tivesse, nos anos 1970, as paginas nao cortadas;* que tenha sido preciso esperar quase um século ¢ meio para ler a dissidente saint-simoniana Claire Démar; um século para ter uma reedigao completa do Fummier de Job [O pao que o diabo amassou] de Bernard Lazare?” Esse género de textos inconvenientes, que nao se pode chamar em testemunho publicamente sem se encontrar diante da embaracosa * Referéncia a0 fato de que os livros, antigamente, vinham com as folhas fechadas numa das. bordas devido ao seu modo de fabricagao. Para rem lidos, portanto, havia a necessidade de corrar as emendas das folhas,liberando as pginas que os compunham. (N. da T) 70 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO “quanto eles eram representativos?”, abre outra perspectiva “do. Que imagem apresentaria a ventura da modernidade ara retomar 0 titulo do texto célebre de H. Arendt, “os ma palavra’?® O que se pode aprender com as “exce- oes propésito da natureza politica dos sistemas universalistas modernos ¢, ¢m particular, a propésito da democracia histérica? Blas confirmam a regra ou, ent4o, nos convocam a reconsiderd-la? O que nos ensinam os fracassos: 0s fatos, as aces, as ideias, os movi- mentos, as esperangas que nao vingaram? Privilegiando a perspectiva do fracasso em Ve da do éxito, e os pontos de vista dos vencidos em detrimento daqueles dos vencedores, essa postura nao é unicamente deordem ética. Nao que haja por onde se abster de um posicionamento ético em prol das vitimas da dominacao. Como frisava Hannah Arendt em sua espléndida Resposta a Eric Voegelin, nao é possivel ar acontecimentos tais como a extrema mis¢ria das classes pe relat pulares na época da Revolugao Industrial como se eles tivess acontecido na Lua. el nti olitica Se P' vos comasse Se descrevo essas condig6es sem deixar minha indignacao se imiscuir em minha descrigio, terei extraido esse fenémeno particular do seu en- raizamento na sociedade humana e, por isso mesmo, O terei desprovido de uma parte da sua especificidade [...]. Provocar a indignagao é, com efeito, uma das caracteristicas proprias 4 extrema pobreza, visto que ela ocorre entre seres humanos.” Longe de tirar sua pertinéncia de uma “autoridade especifica, conferida por um mundo intelectual auténomo” ¢ desatrelada de todo e qualquer residuo extracientifico, com o qual tanto sonharam nossos grandes socidlogos,” aanilise do olitico 0 i indissociavel de uma atividade de julgamento ancorada na experiéncia viva | do pesquisador se ee Mas a perspectiva do fracasso, ou a da derrota, interessa-me aqut também, principalmente, pelo seu potencial heuristico, pela con- alho 4rduo da anamnese. tribuigao preciosa que pode trazer a0 trab: : Potencial heuristico na medida em que 0s “ganhos de experiencia 7m Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS singulares impostos 20s vencidos” podem dar lugar a ae a explicativa maior’ possibilidade & qual a aie se a a historia politica - caso se pense neste cflebre d cain lo, uel ides, ao qual se atribui a invengio dessa disciplina. Con! ontada a indi- “Waicia das provas que abate preferencialmente as exp eriéncias Ys otic queira ou nao ~ a nos 7) otica do fracasso nos impele — fastarmos dos caminhos batidos da transmissao, a “escovar a histé- riaa contrapelo””* : ; Certos estudos sobre a Cidade antiga sao, aqui, de grande ajuda, porque eles indicam vias ou, segundo a expresso de Pierre Vidal- -Naquet, desvios que permitem abordar as perguntas j formuladas “de um angulo inesperado””* Estudar a “minoria” ea “marginalidade” (as mulheres, os escravos, os metecos, as criangas, 0s estrangeiros) para “chegar ao centro” da Cidade”* é um desses “desvios” que escla- recem, além das préprias minorizagao ¢ marginalizagdo, as tenses € as contradicoes da Cidade ocultadas pela dtica da vitéria e do sucesso. Pois certamente hd na vitéria como que uma propensao ao esquecimento; como se os vencedores (tanto os “bons” quanto os “maus”) fossem espontaneamente levados a crer que eles tém os deuses, a Providéncia ou, o que dé na mesma, a Histéria do lado deles Esse esquecimento é, antes de qualquer coisa, 0 esquecimento da injustiza que garantiu a vitiria, ¢ que nao chega até nds antes de se consolidar em fatos positives, em dados ou fungdes do tempo pre- sente; mas, como Nicole Loraux mostra com grande refinamento, também paradoxalmente o esquecimento da injustiga contra a qual 4 vitéria foi obtida, e que os vencedores devem fazer esquecer em troca de uma legitimidade fundamentada no recalcamento da divi- sdo ¢ do conflito internos. Esquecimento das “mazelas internas” que 0s gregos haviam institucionalizado, sacrificando a conflitualidade democrética a uma harmonia mitica da Cidade; mas também - 0 que nos interessa aqui — purgando o passado de todo e qualquer vestigio de discérdia e “de todo e qualquer valor virtualmente sub- versivo’,”” operagao que acomete até o uso das palavras, como mos- tra o deslizamento que se opera, no século IV, do enunciado demo- 72 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO jos ou poder do povo) para o, mais neutro e descritivo, 2 (0 kra! OF” eit (O regime)- ae os feitos pot especialistas da Antiguidade — que sabem jor onde reconstituir © menor acontecimento tal como ele nfo 7 degrande serventia para quem, trabalhando com passados a proximos: pensa poder fazé-lo. Eles nos ensinam a ficar no encalgo dos process ; : legitimidade, mas os termos nos quais ela se deixa pensar. Ficar no encalgo dos processos pelos quais a Cidade construiu sua legitimi- litico do ponto de vista daquilo que é marginal ‘os pelos quais a Cidade construiu nao sé sua dade, interrogat © po eminoritario éum exercicio preciso. Ele obriga a pensar as relacdes deforca gracas as quais chegaram até nés as categorias, as definigoes eos conceitos por meio dos quais se pensa 0 politico, a divisao do mundo em coisas importantes ou acessérias que lhes é subjacente — eque serviu para neutralizar as manifestagdes mais flagrantes da injustiga, apresentando-as como simples excegdes. Tal como 0 cro- nista benjaminiano — “que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes ¢ os pequenos”” -, aquele que se atém, com a precocidade dos costumes parlamentares britanicos, 4 espessura regulamentar da vara com a qual a esposa britanica podia ser corri- gida, desde o final do século XVII, para garantir a “paz em familia’? écético quanto ao uso de categorias, de preconizagées ¢ de tempo- ralidades politicas tais como elas lhe foram transmitidas. Introduzir na paisagem politica experiéncias que receberam o selo do particu- larismo, da trivialidade, da excegéo como experiéncias humanas significativas tem, para retomar a metdfora poética de Ursula Le Guin, um efeito vulcAnico: os mapas mudam. Hé montanhas jovens.” Universalidade, Republica, exclusdo Acxploracio ea andlise de uma cartografia politica da modernidade Pela grade do género requerem um esforco de compreenséo do feacasso das sociedaces imadernas em aplicar a metade da populasa asso das sociedades modernas em aplicar 4metade da populasao “asso das sociedades modemnas em aplicar s metad SPP 73 Digitalizada com CamScanner SO Se ELENI VARIKAS o imperativo da nova ordem politica inaugurada pelas revolucdes de direito natural: uma todos, conhecida de todos ¢ lei geral p elaborada por todos. Na Franca, a interrogacao sobre a exclusao ou a inclusao' especifica ¢ das mulheres nas origens da democracia histérica est4 no cerne dos debates desenvolvidos no decorrer das duas tltimas décadas sobre a dinamica emancipatéria do Iluminismo, da Revo- lucao Francesa, do modelo republicano; sobre as continuidades eas rupturas que moldaram o universalismo — como projeto, como conjunto de praticas politicas e como sistema de legitimacao politica. Por muito tempo descartada, em particular na Franca, por conta de seu “anacronismo’, essa questo tornou-se mais central e alimenta confrontos tao apaixonados que tém implicacdes a0 mesmo tempo académicas e politicas. ImplicagGes académicas ligadas 4 existéncia de uma imponente bibliografia feminista, em grande parte anglofona — que nao é, como vimos, tao facil de ignorar no cenario académico internacional quanto dentro da Franga. Implicagées politicas ligadas a uma conjuntura em que a associacao do crescente questionamento da presumida neutralidade da Republica® (mobilizagdes para o reconhecimento da responsabilidade de crimes coloniais ¢ racistas do passado; com- bates contra a xenofobia ¢ a homofobia,® campanhas em prol do PaCS* e, depois, da igualdade das sexualidades na adogao € no casa- mento) ¢ do sistema representativo (debates a respeito da paridade), somada A crise da identidade nacional e do modelo de soberania na escala internacional, situa a questao do género no cerne de um debate alimentado pelo que Henri Meschonnic chama de “mercado atual do declinio”.™* Esse mercado, cujos frémitos € tonalidades podemos acompanhar no dia a dia, sempre prosperou com as inquietudes do género: in- quietar-se com a desordem sexual, transferir o medo do borramento Em francés, Pacte Civil de Solidarité [Pacto Civil de Solidariedade]. Trata-se de uma forma de unio civil; uma parceria contratual, reconhecida pelo Estado, entre duas pessoas maiores de idade ~ c independentemente do sexo - que tém como objetivo o empreendimento de ‘uma vida comum. (N. da T.) 74 Digitalizada com CamScanner ; PENSAR O SEXO E 0 GENERO. das fronteiras sociais, territoriais, simbélicas para aqueles que a sua cast define como inferiores — 0s quais exercem, como as mulheres, fangoes sociais indispensaveis — sao velhos reflexos sociais notavel- mente bem estudados.* Que eles sejam reconhecidos mais habi- qualmente quando encontrados em sociedades “arcaicas”, “tradicio- nais”€ “autoritarias” — ou, a0 menos, mais arcaicas ¢ tradicionais -, jsso 86 faz ilustrar 0 quanto as nossas ilusdes progressistas sio duras na queda. “omens sao de Marte e mulheres sao de Vénus. Exceto na Franga! La, pelo menos aos olhos dos americanos, a guerra entre os sexos nem comegou. Na Franga ha apenas entendimento reciproco eamor desvairado”®* E tal visao das relagées de sexo — aforaairénica distancia — que marca a retdrica do declinio. Desenvolvida a partir de 1989,” no seio dos meios académicos, ¢ difundida pela imprensa, ela é deflagrada com base em uma reconstitui¢ao harmoniosa d“A’ tradicao politica francesa, que nao tira mais sua singularidade da ruptura revolucionaria jacobina, mas — como num sonho bur- kiano — de uma feliz mescla “de instituigdes ¢ de costumes” que teria produzido “o desenvolvimento paradoxal da democracia na Franca” do absolutismo até nossos dias.** Essa verséo neotocque- villiana da singularidade francesa, se inspirando na anilise de Fran- cois Furet, vira 0 seu Penser Ia révolution (Pensar a revolugao] de cabega para baixo. Ela inverte a oposicao topica Franca-América mediante um culturalismo metodolégico que leva ao absurdo a tradigao dominante do comparatismo politico francés” para despa- char (¢ esconjurar) a divisao interna — encarnada pelo antagonismo dos sexos — paraa América € “seu” feminismo rabugento. O que nos ; i ademora interessa nessa retdrica é a resposta que ela pretende trazer a de direito de cidadania: !onge da admissao das mulheres francesas no z I ‘niversalismo “a francesa , ¢ss¢ delangar uma sombra no quadro do w mo | 7 atraso seria o indicio, até mesmo a... PTOva do radicalismo = a ; republicano cuja exigéncia de universalidade dos direitos in ie : sas se oporia a0 utilitarismo ¢ 20 gradualismo ee z a gram as mulheres em sua especificidade de grupo- Pp’ 75 —_—_— Digitalizada com CamScanner SS ELENI VARIKAS sabedoria “do” feminismo francés de ontem e de hoje, moderado por essa heranga tinica de civilidade que, submetendo o antagonismo de sexos a “certa economia passional [!], se traduz pelo investimento meio sério, meio irénico de papéis reputadamente tradicionais”?! Nessa mistura de humores, de quimeras e de aproximagées — que, na pena do autor de Max Weber et les dilemmes de la raison moderne [Max Weber ¢ os dilemas da razao moderna], espantam -, a evoca- ao retrospectiva dos costumes, dos valores, das sensibilidades con- trasta brutalmente com a auséncia total de referéncia As prdticas politicas. As relagdes de sexo pertencem ao dominio da sociedade, da sociabilidade e do amor. As feministas francesas sao, desse ponto de vista, verdadeiras “damas” — no sentido comum e no sentido weberiano do termo. Elas pertencem ao dominio do amor (hete- ros)sexual,” a esfera da expressividade e da experiéncia subjetiva que se comunica, talvez, com a esfera estética, mas que se opée ao racionalismo ético ¢ A conduta metédica da esfera politica. Na medida em que é questao de politica, trata-se de uma a¢io sem sujeitos outros que ndo as forgas impessoais da histéria, da cultura, da sociedade: o “desenvolvimento paradoxal” da democra- cia, a Revolugdo que “sonha com unidade’, a “Republica’, a “demo- cracia em andamento’, o “génio nacional” agem oportunamente no lugar dos homens e, sobretudo, das mulheres. Esse providencialismo atinge seu ponto culminante na articula- ¢4o singular da mistica do progresso com a do Estado - da um dos exemplos mais bem-sucedidos ¢ 0 Essai sur Sfrangaise [Ensaio sobre a singularidade francesa], de Cada etapa da histéria politica francesa (o Antigo Regi lugao, a Terceira Republica) assegura, providencialmente, 0 enca- minhamento da “nacio” rumo 4 democracia. Longe de fornecer critérios para avaliar a natureza politica do universalismo histérico, as promessas inacabadas da Revolugao ou da Repiblica sao inter- pretadas como sinais de uma “dindmica democratica em andamento?™ que — fazendo ouvir “a toada do progresso’, “chegard o dia” — inter- diz toda e qualquer avaliacao critica como “anacrénica’.* A autora 76 Digitalizada com CamScanner - PENSAR O SEXO E 0 GENERO de Mots des ; femmes [Palavras de mulheres] nao nega i . opostas ¢ as objegées emitidas xo momento do as resisténcias estas sO fazem sublinhar melhor 0 carater irresistivel do ae mas O que adveio um século mais tarde - a miscigenacio ses blica, o sufragio universal — justifica ulteriormente a saint a pu- passado — a segregacao, a exclusao do direito de voto -, aoe : i: sua finalidade escondida no advento da democracia: és dif elar ciacdo “sé nos parece tao intolerdvel porque adentramos o ara do mesmo” gracas a escola republicana.”* Aqui as relagdes de forga nao tém lugar algum na compreensio ou na explicagao do fendmeno politico estudado. Trata-se de uma “doce e agradavel histéria” “sem confrontos, quase que sem agentes”.” As mulheres nao tiveram necessidade de agir para conquistar 0 estatuto unico de que gozam na Franga; encarnado na] Republica, ocurso irresistivel do progresso encarregou-se disso no lugar delas.®* Talvez tenha levado algum tempo, mas 0 atraso € imputavel a “vida real das mulheres” colocada auma “distancia vertiginosa” do credo igualitarista.” Os desdéns, as aproximagées historicas e cronoldgicas que Joan Scott colocou perfeitamente em evidéncia!™ decerto nao sao repre- sentativos da qualidade dos trabalhos histéricos de Mona Ozouf; sua filosofia da histéria, marcada pela colusao do, parece tipica de uma te francesa,!”! aclara as na Franca, entre li- em contrapartida, entre a mistica do progresso ¢ a do Esta: tradicao politica que, sem ser exclusivamen surpreendentes conivéncias que se encontram, berais e republicanos. Enquanto unificador das massa. retiradas da selvageria dos vor tades particulares, ° Estado moderno ene 2 freqa ne maneira paradigmatica, a dinamica progressista que faz 0 passe - ancia de elementos que con luzem a seu triun! a .do ou negando a pertinéncia poles de ee 2 i inscreve em “ontradi¢ao com esscadvent0 sal i Nowe ES sie aa eee ra ae sok aa a Revolugaoe para celebrar acontinuidade entre 0 ae scale teats a Terceira Republica - 2 doutrina que 1% 77 Digitalizada com CamScanner ro ii ELENI VARIKAS direitos do homem e a democracia remontarem ao absolutismo ¢ 4 teocracia crista'”* pode, sem cair no ridiculo, adquirir dircito de cidadania na teoria politica atual; ¢, por fim, de um angulo como esse que se pode compreender 0 uso, desta vez, singularmente e fran- cés, desse conceito de Repiiblica que mescla, frequentemente de maneira indiferenciada, conceitualidades no minimo contraditétias, ada res publica (cumulando os sentidos de cidade ou “coisa publica” ¢ da sua forma histérica moderna de Estado soberano); ado regime antimondrquico ¢ a de um conjunto de praticas, instituicdes ¢ valo- res politicos préprios a histéria politica da Franca.!3 O lugar geo- métrico de todos esses usos ¢ o Estado — salus populi, fiador provi- dencial da unidade da naco —, nao perante o egoismo dos interesses particulares que ameacariam o universalismo francés, mas perante os excessos da democracia imoderada.™ Oposi¢ao entre a radicalidade do universalismo republicano e lo da condigao dependente das mulheres que subjaz a tese da do francesa” ¢ tipica do que Marx chamava de “sofistica do [..] Estado politico,’ ela propria constitutiva da retérica da soberania popular. Tratando o principio fundador da democracia nao como | um imperativo politico, mas como um fato positivo, o universalismo : do Estado age como se todos fossem efetivamente livres ¢ iguais. 1 pelos antagonismos sociais — que impedem o exercicio efetivo da i universalidade de direitos ~ sio desprovidas de contetido politica providas de contetido politico; i, Politicamente invisiveis, elas sao relegadas ao “social”, que & desse | modo, dissociado do “politico” Tomando como certa a sociedade | como ela é, com suas desigualdades, suas distingdes, suas sujeices, j suas “necessidades”, essa dissociacio reduz o politico 2 politica, & | ciéncia do governo, ao funcionamento do Estado ¢ de suas institul- ges. Ela atribui a “sociedade” uma \ dinamica prépria que determina, de aida, os compor portamentos, as necessidades ¢ os interesses dos individuos — produtos passivos de forcas histéricas, econémicas ou naturais que podem ser estudadas, quantificadas, classificadas ¢ explicadas pelo conhecimento cientifico, mas nao podem ser mu- 78 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO dadas. Eliminando a indeterminacao que havia introduzido no horizonte da modernidade politica a ideia de que a sociedade é 0 produto da acio humana, essa visdo do conhecimento cientifico promete livrar a politica do grande quebra-cabeca ao qual ela estava confrontada desde que a providéncia divina havia parado de se ocupar das coisas deste mundo: a busca de Principios equitativos que possam fundar a vidaem comum. A definicao de tais principios éalgo importante demais para ser confiado as vontades caprichosas einconstantes do comum. Ela deve ser fundamentada nas bases mais duradouras e sdlidas do conhecimento cientifico das leis da evolugao histérica. Marca indiscutivel dessa evolucao, o fato “vencedor” nao fornece somente um ponto de vista privilegiado para decifrar o sentido profundo das leis histéricas, mas constitui uma norma qual é preciso se conformar: sua vitéria desvela nao sé sua inelutabilidade, mas também seu alcance civilizatério. Michéle Riot-Sarcey mostrou o papel catalisador da ideologia do progresso nessa configuracao istérica em que processos de legi- timagao da domina¢ao, ciéntismo positivista e praticas politicas convergem, desde a primeira metade do século XIX, para transfor- mar o fato vencedor em légica da histéri: taneam 106 Configuracao simul- politica e epistemoldgica que nos lembra da afinidade eletiva que, de Guizot a Cousin, associa o liberalismo francés a uma ama sae a” hist6ria teleolégica, que, atualmente, se tem tendénciaa pér na conta exclusiva do milenarismo socialista. Este, como as outras correntes contestatérias dos dois tiltimos séculos, inclusive o feminismo, la- mentavelmente ndo inventaram nada nessa matéria. Seu maior fracasso foi o de se deixarem cair na armadilha da sofistica do Estado, 0 de terem trocado a promessa de um progresso humano possivel — trazida pela componente utdpica do Iluminismo — por uma confianga cega num progresso inelutavel, o de deixar “as concepgées [...] secu- larmente veneradas””” do velho mundo encantado apenas para su- cumbir As concepgdes modernas do cientismo. J Em parte alguma esse sortilégio se mostrou ta | d douro quanto na doxa que associa, ainda hoje, 0 racismo» osexismo, eons —— potente € dura- 79 Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS o antissemitismo, a xenofobia ou a homofobia ao retardo das men. talidades, aos preconceitos obscurantistas, 4 modernizaco incom. pleta- associagao que presume que essas formas de dominagao esto destinadas a desaparecer. Nutrindo a fatal e infrapolitica certeza de ; nadar no sentido da histéria, a “toada do progresso” — “chegard o dia” — opera como um anestésico politico e moral. Ela nao sé torna a aco humana supérflua, como também oblitera toda e qualquer possibilidade de juizo. Remetendo a um futuro sempre prorrogado, ela suspende indefinidamente 0 julgamento da posteridade. Quer se trate de sua versao hegeliana (que remete oJulgamento derradeiro a “autoridade do sucesso”) ou da histéria kantiana (que, prosseguindo indefinidamente, nao oferece “nenhum ponto em que se pode parar para olhar pra trés”), ela interdita toda e qualquer autonomia de julgamento relativa as “coisas tais como sao ou como vieram a ser’,1°8 ¢ reduz a avaliacao do passado a uma tautologia — se houve domi- * naco ou desigualdade, é porque “o dia” da emancipacao ainda no havia chegado. Seguindo essa Iégica, mal se vé 0 que nos impediria de dizer o mesmo da escravidao, da colonizagao, da caderneta an- tropométrica dos ciganos.* Se um raciocinio como esse denuncia a incompatibilidade entre © progtesso ¢ “a dignidade humana” ~ cujo imperativo nao est su- bordinado a nenhuma comparacao ou temporalidade -,' ele revela, na sua falta de jeito, a implicacdo politica do cientismo, que nao éa de livrar o conhecimento cientifico da impureza idiossincratica do juizo de valor, mas de descreditar determinados juizos em beneficio de outros aos quais ele atribui a autoridade de proposicées cientifi- cas. Apresentado como uma\ critica cientifica que censuraa tentagio Em 1912, em decorréncia de uma lei que tinha como objetivo o controle do comércio am- bulante no pais, o Estado francés declarou obrigatério, para uma categoria administrativa entio intitulada como “némades’, 0 porte de um documento de identidade chamado de carnet anthropométrique (caderneta antropométrica]. Essa imposigao vai se manter até 1969, quando sera substituida por titulos de circulagio ~ destinados Aqueles que, dali em diante, Passariam a ser administrativamente chamados de “viajantes”. Cfo documentario. de Raphaél Pillosio, Histoires du carnet anthropométrique. Bordeaux, L'atelier Documentaire, 2012 [69 min]. (N.daT.) 80 Digitalizada com CamScanner PENSAR 0 SEXO E 0 GENERO. ~ ibui a época o que 110 js ‘de acribuir 2 uma €poca 0 q e petence a outra’," 9 anacronismo ¢mobilizado para negar a pertinéncia das Pperguntas que a exclusio\. iversalismo republicano formul ae Sner nao mado de ra exe do o carater nao consumado de um universalis andamento, ela nao teria como matizar — aos olhos dessa visio sitiva” da historia — a natureza universalista do projeto republicano; reivindici-lo equivaleria a aplicar, ao século XVIII ou ao XIX, crité- rios e exigéncias que pertencem ao nosso tempo. ‘A insisténcia com a qual se continua qualificando como univer- salo sufragio masculino generalizado de 1793, depois 0 de 1848," traduz essa ideia preconcebida — partilhada tanto pelo bedcio quanto pelo especialista — segundo a qual se trataria, af, da wnica forma de universalismo de que os periodos em questao eram capazes. Mas, contrariamente ao bedcio, o especialista nao ignora, nao pode mais ignorar, que esses critérios, essas exigéncias, essas questoes foram expressas 20 proprio momento do acontecimento. Se cle persiste em falar de anacronismo, ¢ porque a questo nao é puramente cientifica. O que 0 aflige nao ¢ a supressao da distancia que separa as nossas exigéncias daquelas vencidas de 1789 ou de 1848, mas, pelo contra- rio, a proximidade criada por sua nao realizacao, pelo seu reapare- cimento recorrente. Adorno bem viu: 0 que parece anacronico no se explica somente peladefasagem temporal, mas, antes, peloveredito da historia. Refratario a este ultimo, cuja autoridade tende a se impor universalmente, o feminismo rabugento das “,mericanas’, tal como o da “histérica” ou o da “neurdtica’” de Ibsen, de que falava Adorno,” obstinam-se 2 formular a questao “nunca solucionada” da liberdade - 0 que poderia explicar, talvez, por que “0 caldeirao” da democracia “efervesce sempre perigosamente”!!? Desordem doméstica, desordem politica do estilo alusivo, vé-se, enfim, perfilar- Por tras dos enlevos liricos e » pet os “maus internos » exilados -se 0 espectro dos antagonismos sociais, 7 al Digitalizada com CamScanner SS ELENI VARIKAS do outro lado do oceano. Comeca-se, assim, a suspeitar que, se a Republica age para impedir que “a mestigagem dos sexos” Prossiga “aré a indiferenciacao” € porque, tanto na Fran¢a quanto fora dela, nao obstante a “moderacao” providencial do génio nacional, a .::- géncia da universalidade de direitos conserva sempre viva a utopia secreta da igualdade e da autoinstitui¢ao, fazendo a diferenciacio hierarquica dos sexos despontar como aquilo que ela é: um produto da dominagao. Nao ¢ porque, “na trama nacional, nao € facil fazer correr o fio da violéncia masculina’,"* mas porque — para retomar uma outra metafora feminina — a batata esta assando, aqui também, entre homens e mulheres, como bem lembra o titulo da notéria publicacao do MLM francés.” Por fim, se na Franga “a gente” tem ojeriza da supressao radical da diferenciagao dos sexos, nao ¢ que aqui seja dificil “conceber a relacao de homens com mulheres como simbolo, modelo ¢ medida de toda e qualquer outra forma de opres- sao’, mas porque, neste pais, essas relacdes de dominacao, desdea aurora da modernidade, foram concebidas como “a verdadeira fonte eorigem de toda Republica™"* Para confirma-lo nao ha necessidade alguma de recorrer 4 prosa desmoralizadora das feministas estran- geiras.'” Basta que se remeta 4 imponente tradicao nacional da so- berania — nao apenas Bodin, grande inspirador de Filmer, mas também toda a coorte dos juristas-fildsofos que, do século XVI ao XVII, elaboraram a versio francesa do patriarcalismo moderno, inscrevendo o assujeitamento civil € politico das mulheres na legi- timacio da soberania, do direito civil, dos procedimentos e das instituigdes, assim como nas praticas sociais das elites do poder."® Se, nesse patriarcalismo francés, o soberano se representa como 0 consorte do reino, com os equivocos escabrosos que sublinham a complicacao simbélica do género como principio de ordem, tanto 0 direita conjugal (francés) quanto o direito paternal (inglés) conju- * © Movimento de Libercagio das Mulheres publicou, na Franca, entre 1970 ¢ 1973, sete ni meros do periddico intimulado Le terchon brite [literalmente: “o pano de praro esté quei- mando" }. Os fac-similes foram reunidos ¢, posceriormente, publicados na seguinte edi¢io: Marie Dedien (org,). Le torchon bile. Paris. Editions des Femmes, 1982. (N.daT.) 82 Digitalizada com CamScanner PENSAR O SEXO E 0 GENERO ram “o desprezo pela majestade, da qual dependea conservacio das 2119 & Ses” Icis e do Estado’.'”” “Muro sem fundagses’, corpo desprovido “de cabeca eminente que se eleve sobre 0 resto”, o império das mulheres : esmos term: idao dey épensado nos mesmos termos que 0 da multidio de varias cabecas: quer sc exerga na familia ou na cidade, ele evoca a anarquia contraa qual se dirige o principio moderno do Estado, seja na Franca ou na Inglaterra. A desordem a qual est4 associada a desigualdade dos sexos na tradigao politica que as doutrinas patriarcalistas do Estado moderno inauguram nao éa de um “mundo sem qualidades”, a menos que se trate da qualidade de categoria que ordena hierarquicamente o mundo segundo aestrutura soberano/sujeitos. Certamente nao éa protecao da “pequena diferenca’, nao mais do que o amor, que preocupa os Knox, os Bodin, os Filmer, mas a obediéncia e o mando, dos quais aautoridade milenar e inconteste do chefe de familia pode fornecer o protétipo e a prova da divisao natural do mundo entre governantes e governados. Se a obediéncia (nao somente das mulheres e das criancas, mas igualmente das domésticas, dos escravos, dos aprendi- zes) devida ao chefe de familia serve para estabelecer o poder “na- tural” do soberano, a natureza a que ele se refere nao é mais a natu- reza feminina dos higienistas e dos médicos filésofos do fim do século XVIII! — e, menos ainda, a bioldgica do século XIX” -, mas sim a natureza das coisas, tal como ela se revela 4 “luz natural” e como pode ser deduzida da observacao racional das questGes po- liticas, do estudo dos textos sagrados, das instituigdes € das leis hu- manas. O que o poder natural do pai ou do esposo revela é que a democracia - essa igualdade “de bens, de poder, de honrae de mando, que se quer fazer no Estado popular” — € impossivel, haja vista que “éincompativel coma familia”.! Aos que nao estavam conyencidos pela luz natural da razao, Bodin havia lancado um desafio que ainda nao fora aceito: faga isso na sua casa mee E em reacao a essa associagao perene entre desordem doméstica edesordem politica que emerge a diferenciagao de sexona Republica. O que ela conjurava, tanto ontem como hoje, nao € 0 pesadelo da uniformidade, mas a liberdade da multidao, imoderada e imprevi- 83 Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS sivel por definicao, como a democracia. E 0 contrario também é verdadeiro: é de encontro a essa tradi¢ao que os defensores da igualdade dos sexos — de Charles Fourrier as sufragistas francesas, passando pelas mulheres de 1848, para citar apenas alguns exemplos ranceses — aceitarao 0 desafio bodiniano, fazendo da liberdade das mulheres a medida da liberdade de uma sociedade — um tema dificil de ignorar quando se é especialista em século XIX. E, enfim, o que explica que a reforma da familia se torne o fio condutor de projetos politicos igualitarios que, da revolucao inglesa’* a Olympe de Gou- ges!” ¢ Claire Démar’” — passando por Mary Wollstonecraft, William Godwin eos dissidentes owenistas,”* na Inglaterra; Frances Wright, Margaret Fuller, Sojourner Truth, Emma Goldman e tantos outros, nos Estados Unidos —, desafiam as pretensées do poder moderno de reduzir as vontades multiplas a uma s6 vontade e mantém viva a promessa subterranea da igualdade. (Ora, isto que no patriarcalismo absolutista era um imperativo politico, a diferenciagao hierarquica dos sexos, torma-se, no “Estado democratico”, uma explicagao sociolégica: a diferenga dos sexos - um fato positivo cuja utilizagao como argumento de exclusao ou de desigualdade nao precisa ser explicada; pelo contririo, ele proprio presta contas das dificuldades que a aplicacao, as mulheres, do prin- cipio politico da universalidade de direitos teria encontrado. Em relagao ao passado, o sentido atual da diferenca dos sexos — tal como ela se cristalizou no século XIX - recobre com suas significagdes a construgao absolutista do género que se reduz, assim, aos costumes polidos da corte ¢ a seus efeitos moderadores sobre 0 antagonismo dos sexos. Apesar do olhar que lancam a continuidade, os partidarios da “singularidade francesa” nao parecem se interessar pelas priticas politicas e juridicas do absolutismo que antecipam e preparam a configuragao politica do género nos regimes pés-revolucionarios: as leis que investem o pater familias de uma poténcia absoluta sobre asua.casae privam a mulher de sua ulterior capacidade contratual;”” a publicidade dada aos processos de divércio ¢ de adultério, que fazem da virtude feminina uma questao publica; os poderes dis- 84 Digitalizada com CamScanner PENSAR 0 SEXO E 0 GENERO agistrados nas questées de feiticaria ea argumen- onarios dos m: urisconsultos, denunciados por Montaigne e misogina dos j tros contemporane 40 da virgindade e das gravidezes ilegitimas, os expedientes de ex- cegiona instrugao das questoes de aborto e de infantictdio descritos no diciondrio de Pierre Bayle — que, compreende-se, nao partilha o entusiasmo retrospectivo de Blandine Kriegel com a “seologia do mais do que o de Philippe Raynaud com as qualidades crici ragao or oul 131 Repasitl .os;!3! por fim, os dispositivos de fiscaliza- reino’, nao pacificadoras da honra."” Curiosamente, essas praticas tampouco chamam a atengio do grande mamero de andlises feministas que dao énfase a ruptura€ ao cardter especificamente moderno da exclusao das mulheres que a Revolugio Francesa inaugura. Aafirmagio do cardter historicamente inédito desse modelo de exclusao faz-se ai, muito frequentemente, a custa de uma idealizacao do espaco puiblico aristocratico no qual o modelo republicano finca suas raizes, ao mesmo tempo em que se afirma em ruptura com ele. Essa idealizagio opée a cultura politica aristocratica, supostamente mais aberta a participag4o das mulheres, cultura politica republicana, fundada na diferenciag4o rigida dos sexos € dando lugar a um espago publico “masculinista”. Partindo de uma critica justificada da teoria habermasiana, que havia descar- tado a dimensao sexuada constitutiva da arqueologia do espaco publico burgués, Joan Landes sustentou, por exemplo, que nao sé os modos de sociabilidade ¢ de etiqueta aristocrdticos eram ampla- mente moldados por mulheres, mas que também a teatralidade ea oralidade da representacao simbélica real favoreciam a presens® ca tomada de palavra femininas. Em contrapartida, o espirito do espaco 9 — com sua énfase na imparcialidade ¢ na universalismo abstrato oposto as dife- ficio, enfim, superioridade do escrito bre o oral — era, de saida, incom- ida diferenciagao que 0 fechamento das dalei, nao foi, publico revolucionari generalidade da lei, com seu rencas, sua hostilidade ao artil edo impresso que ele estabelece so! patfvel com a participaga0 das mulheres. A rigi esse espirito introduz entre privado e publico, is mulheres naesfera privada doméstica, soba proteg#° 85 ll Digitalizada com CamScanner ELENI VARIKAS perversao do principio universalista nem um ine mas a expressao da sua esséncia “masculinista” 33 amedida,aum “projeto oculto” (hidden agen da) assim, nem uma dente de percurso, concernindo, em cert do Iuminismo. ‘Acsséncia masculina do espaco publico, de seus princfpios e de suas pretensoes ‘Gniversalistas constitui igualmente objeto de uma série de trabalhos de filosofia politica e moral que, num outro regis- tro, contestam nao somente a dinamica historic da oposicao privado/ publico, mas também a propria pertinéncia do universalismo como projeto politico. Se a distingao sexuada entre privado e publico é questionada, nao é por ela assegurar a diferenciacao politica de homens e mulheres, mas porque deprecia as experiéncias diferentes ¢ os valores femininos da esfera privada. Os j principios politicos da maodernidade ¢ os valores publicos sobre os quais repousam (o con- trato, a autonomia, a impessoalidade da justica) sao julgados incom- pativeis com uma real participacao das mulheres na vida da Cidade.’ Criticas conservadoras dos ditos principios — desenvolvidas numa relago complexa de reagao/fascinagao com a ascensio da New Right americana — recaem igualmente numa tradicao republicana que define o homem como um animal da réhis [pélis] a expensas da dignidade do olxog [lar] e da atividade humana que ai se realiza. Invertendo a superioridade da primeira sobre o segundo — que é, a0 mesmo tempo, a do homem sobre a mulher -, essas criticas se con- sagram a “salvaguardar” o que consideram como o potencial politi- camente precioso da familia, da difamacao involuntaria que esta sofre no discurso da New Right; mas também dos ataques de um feminismo que, com o desabono da familia, desaprovou igualmente “a ética da responsabilidade”."> Lugar de desenvolvimento de lagos duradouros com “outros concretos”, da “necessidade de raizes’, “do parentesco, da intimidade, do amor e da resisténcia’,™ a familia é apresentada como a matriz universal da cultura humana, cujo fun- damento antropoldgico ¢ existencial e ético: como unidade “tran- sistérica’, ela ¢ constitutiva da “humanidade comum” de todos os humanos que, antes de serem “seres politicos ou econémicos’, s40 86 Digitalizada com CamScanner a PENSAR O SEXO E 0 GENERO i} |... PENSAR O SEXO E 0 GENERO adotar criangas podem elas ser construfdas abstratamente, sem 2 em consideragao “as determinagées reais”? Desde o inicio da década de 1990, dois is tipos destiname tes plicagoes i igualmente probleméticos, se prop. jugar F ~~ reservado as mulheres nos sistemas politicos de ¢ legitima agao universalista rimeiro desenvolve uma critica da modernidade quete wae tende aconft indir os principios do universalismo com as prati- cas cas politicas queo transformaram em instrumento de dominacio e de de exclusio; ‘o segundo considera a exclusao, a opressio, a discrimi- naco das mulheres como uma excegao ou um atraso na marcha ada democracia. Para além da avaliagao positiva ou negativa do fato revolucionario da era politica que ele inaugura, sua ten- déncia comum é a de considera-los do ponto de vista, ou na légica, do que vem depois. Everdade que as as plenas consequéncias dos acontecimentos e das aces passadas se ¢ revelam s6 depois, ¢ sio essas consequéncias que orientam a nossa a reflexio ¢ em diregaoa Rovas interrogagoes ¢ ofere- Mas as sig- nificagdes € a Se de um momento histérico nao teriam ta do cem, a ca como se reduzir a suas cristalizaces v ulteriores, aos sentidos que ele adquiriu a seguir = a . menos que se considere oque aconteceu aseguir como o tinico possivel. Se importa ver 0 que, no passado, possibilitou o futuro que se conhece, essa interrogacao permaneceria sem n objeto caso ela nao partisse da hipdtese de que ha uma poste lade al fade aberta c inesgotavel para c cada a acontecimento do passado. A ‘possibilidade de uma postura como essa esta enraizada na incerteza do nosso proprio presente. O porvir “é inevitavel, preciso, mas p de nao ocorrer”, escrevia Borges em sn Ofras inguisiciones. “Deus espreita nos intervalos”*E p porque nos é é impossivel d determinar os prolongamen- tos dos acontecimentos a0s q quais se Vassiste, 08 os resultados de nossas ; conceber escolhas, de nossas acées € das dos outros, jue podemos conce Bie atch ae a t, 1974, * CE Jonge Luis Borges. “Otras inquisiciones’. Obras completas. Buenos Aires, Emecé Pp. 650-651. (N. da T.) 89 Digitalizada com CamScanner

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