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A - ment — 1s A Cidade das Letras — Ange! ame ‘Freud, Ponsador de Cultura — Renato Mezen 1 Fr Netionale 0 Popular ne Culture Brosiere ~ Seminésios — Marilena Chou « Gregos e Baianos ~Jasé Paulo Paes 1 pontectivas do Madero Teatro Alamo — Henny Troe spore ative — As luedes da Consciénca: de Pato Froud — Sergio Pouio Rouanet 1 A'Sorlugdo de Barbérie — 0 Mansismo na Modemidade — ‘Nelson Brisac Peixoto Colegio Tudo & Hietoria, Colerte updo Alem — Nitos & VersBes — Danial A, Reis Filho Coleco Encanto Radical cole am =» A Transparencia do Sonho — José Gerido Couto ete catka — 0 Profeta do Espanto — Flavio Moreira de Costa 2 ust — AS Intermittncias do Corarso — José Mt. nee anjain — Os Cacos da Historia — Vaanne-Marie Gagnebin Colesio Primelros Vb0s cole gs Espoculat — Inirodupo 8 Fotograia ~ Avindo ‘Mechedo « Intvodugde a Oramaturgia — Renata Palfottini 16 inventétio des Diferengas ~ Poul Veyne Colegio Elogio da Filosofia Ofgem do Drama Sartoco Alemo — Welter Benjamin Colagdo Circo de Lotras, Stim arista da Fore — Franz Kafka 1 Haxixe — Welter Benjamin ANtamortose — Franz Kofta 20 Supermacho — Aled Jarry Waiter aexiaain Magia e técnica, arte e politica Ensaios sobre literatura e historia da cultura OBRAS ESCOLHIDAS volume 1 Traduca: Sergio Paulo Rovanet Preféicio: Jeanne Marie Gagnebin 1? edigao 1985 23 eligi care SP UOTECA DE FLosory a 1 Os sere volumes de A ta recherche Marcel Proust, slo o resultado de ua sintese imperchet a qual a absorsao do mistico, a arte do prosador, a verve do autor satirico, 0 saber do erudito ¢ a concentracso do mono. manfaco se condensam numa obra autobiografica. Td se dine, com razio, que todas as grandes obras literéias ou inaugu. ram um género ou o ultrapassam, isto 6, constituem casos cepsonais: Mas esta 6 uma das menos clesiicdrels. A co. e » que conjuga a poesi ialisti 0 comentirio, até a sinaxe, com suas hanes tomer tone Nilo da lingvagem, que transborda nas plancis da verdade, |, fudo aqui excede a norma. Que e c sneer Goreme alizag2o literdria das tltimas décadas é a primes Seamed ee pe ligdes que serviram de fundamento a essa obra sio extrema, mente malsis. Uma doenea insdlite, uma riqueza ineomim uma disposigao anormal. Nem tudo.nessa vida é modclar, ‘as tudo € exemplar, Ela atribui & obra lteréria mals emi Ronte dos nossos dias Seu lugar no coragzo do impossivel, no rntro e ao mesmo tempo no ponto de indiferenca de todcs os erigos, ¢ earacteriza essa grande “obra de toda uma vida" como a iltima, por muito tempo. A imagem de Proust é a ‘mais alta expresslo fisionémica que a erescente discrepincis MAGIA E TECNICA, ARIE E POLITICA a entre poesia e vida poderia assumir. Eis a moral que justifica nossa tentativa de evocar essa imagem. ‘Sabemos que Proust nao descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém esse \tério ainda é difuso, e demasiada- mente grosseiro. Pois o importante, para o autor que reme- mora, no é 0 que ele viveu,-mas o tecido de sua rememora- do, 0 trabalho de Penélope da reminiscéncia. Ou seria prefe- rivel falar do trabalho de Penélope do esquecimento? A me- moria involuntaria, de Proust, nao esta mais proxima do es- quecimento que daquilo que em geral chamamos de reminis- céncia? Nao seria esse trabalho de rememora¢&o espontanea, em que a recordagao é a trama ¢ 0 esquecimento a urdidur: ‘oposto do trabalho de Penélope, mais que sua cépia? aqui € 0 dia que desfaz o trabalho da noite. Cada manha, acordarmos, em geral fracos e apenas semiconscientes, segu- ramos em nossas mos apenas algumas franjas da tape¢aria da existéncia vivida, tal como o esquecimento a teceu para nds. Cada dia, com suas agdes intencionais e, mais ainda, com itencionais, desfaz os fios, os ornamen- tos do olvido. Por isso, no final Proust transformou seus dias em/noites para dedicar todas as suas horas ao trabalho, sem set perturbado, no quarto escuro, sob uma luz artificial, no afa de nao deixar escapar nenhum dos arabescos entrela- gados. Se texto significava, para os romanos, aquilo que se tece, nenhum texto é mais “tecido” que o de Proust, ¢ de forma mais densa. Para ele, nada era suficientemente denso e dura- douro, Seu editor, Gallimard, narrou como os habitos de re- visdo de Proust levavam os tipdgrafos ao desespero. As provas eram devolvidas com as margens completamente escritas. Os cerros de imprensa nfo eram corrigidos; todo espago dispontvel era preenchido com material novo. Assim, a lei do esqueci- mento se exercia também no interior da obra. Pois um acon- tecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem li- mites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes is. Num outro sentido, é a reminiscéncia que prescreve, com rigor, o mode de textura. Ou seja, a unidade do texto esta apenas no actus purus da propria recordagdo, e no na pessoa do autor, ¢ muito menos.na agdo. Podemos mesmo dizer que 38 WALTER BENIAMIN| as intermit@ncias da ago so 0 mero teverso do continuum da recordago, o padrio invertido da tapecaria. Assim o queria Proust, ¢ assim devemos interpreté-lo, quando afirmava pre- ferir que toda a sua obra fosse impressa em um tinico volume; ‘em coluna dupla, sem um tinico paragrafo. © que procurava ele tao freneticamente? O que estava na base desse esforco interminavel? Seria licito dizer que todas as. Vidas, obras e aces importantes nada mais so que o desdo- bramento imperturbavel da hora mais banal e mais efémera, mais sentimental e mais frégil, da vida do seu autor? Quando Proust descreve, numa passagem célebre, essa hora suprema- mente significative, em sua propria vida, ele o faz de tal ma- neira que cada um de nés reencontra essa hora em sua prépria existéncia. Por pouco, poderfamos chamé-la uma hora que se repete todos os dias. Ela vem com a noite, com um arrulho perdido, ou com a respiracZo na balaustrada de uma janela aberta. Nao podemos prever os encontros que nos estariam destinados se nos submetéssemos menos 20 sono. Proust nao se submetia ao sono. E, no entanto,.ou por isso mesmo, Jean. Cocteau péde dizer, num belo ensaio, que a cadéncia de sua vor obedecia as leis da noite e do mel. Submetendo-se & noite, Proust vencia a tristeza sem consolo de sua vida interior (que ele uma vez descreveu como “I'imperfection incurable dans essence méme du présent”), e construiu, com as colméias da ‘meméria, uma casa para o enxame dos seus pens: Cocteau percebeu aquilo que deveria preocupar, em grau, todo leitor de Proust: ele viu o desejo de fe ‘ccgo, insensato e frenético — que habitava esse homem. Esse desejo brilhava em seus othos. Nao eram olhos felizes. Mas a felicidade estava presente neles, no sentido que a palavra tem no jogo ou no amor. Nzo é dificil compreender por que esse dilacerante ¢ explosivo impulso de felicidade que atravessa toda a obra de Proust passou em geral despercebido a seus leitores. O préprio Proust estimulou-os, em muitas passagens, a considerar sua obra na velha e cOmoda perspectiva da pri- vaso, do herofsmo, do ascetismo. Nada é mais evidente para 0s alunos-modelo da vida que uma grande realizagdo € 0 fruto exclusive do esforgo, do softimento e da decepeao. Que a feli- cidade também pudesse participar do Belo seria uma béncao excessiva, ¢ 0 ressentimento dessas pessoas jamais teria con- solo. | MAGIA £ TECNICA, ARTE E POLITICA » Mas existe um duplo impulso de feticidade, uma dialética da felicidade. Uma forma da felicidade hino, outra é elegia. AA felicidade como hino 6 0 que nao tem precedentes, o que munca foi, o auge da beatitude. A felicidade como elegia € 0 eterno mais uma yez, a eterna restauragao da felicidade pri- meira c original. E essa idéia elegiaca da felicidade, que tam- ‘bém podemos chamar de eledtica, que para Proust transforma rncia na floresta encantada da recordacdo. Sacrificou a essa idéia, em sua vida, amigos e sociedade, e em sua obra, a agio, a unidade da pessoa, o fiuxo da narrativa, 0 jogo da imaginagio. Max Unold, que nao foi o pior dos seus leitores, referindo-se ao “tédio” resultante desse procedimento, cor parou as narrativas de Proust com “historias de coché “ele conseguiu tornar interessantes as historias de cocheiro. Ele diz: imagine, caro leitor, ontem eu mergulhei um bolinko numa xicara de ché, e entio me lembrei que tinha morado no campo, quando crianca. Para dizer isso, Proust usa oitenta éginas, e 0 faz de modo tio fascinante que deixamos de ser ouvintes, ¢ nos identificamos com o proprio narrador desse sonho acordado”, Nessas histérias de cocheiro — ‘'todos os sonhos habituais se converte em histérias de cocheiro, no ‘memento em que sfio narrados” —, Unold eneontrou a ponte para o sonho. Toda interpretaclo sintética de Proust deve partir necessariamente do sonho. Portas imperceptiveis a ele conduzem. E nele que se enraiza 0 esforgo frenético de Proust, seu culto apaixonado da semelhanca. Os verdadeiros signos em que se descobre o dominio da semethanea nao esto onde ele os descobre, de modo sempre desconcertante ¢ inesperado, nas obras, nas fisionomias ov nas maneiras de falar. A seme- Thanga entre dois seres, a que estamos habituados e com que nos confrontamos em estado de vigilia, ¢ apenas um reilexo impreciso da semelhanga mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos nfo sio munca idé cos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes ent si. As criangas conhecem um indicio desse mundo, a mei que tem a estrutura do mundo dos sonhos, quando esté e Tada, na gaveta de roupas, e € ao mesmo tempo “bolsa” © “contetido”. E, assim como as ctiangas nao se cansam de transformar, com um s6 gesto, a bolsa e o que esta dentro dela, numa terceira coisa — 2 meia —, assim também Proust no se cansava de esvaziar com um s6 gesto o manequim, 0 Eu, 0 WALTER BENTAMIN imagem, 1e saciava sua curiosidade, ou sua nostalgia. Proust ficava no 10 qual irrompe A luz do dia.o verdadeiro rosto da existéncia, o surrealista. Pertence a esse mundo tudo 0 que acontece em Proust, e com que cautela, com que graca aristocrética esses acontecimentos se ! Ou seja, eles nfo aparecem de modo isolado, pat teios, e carregam consigo uma realidade fragil imagem. Ela surge da estrutura das frases proustianas c surge em Balbec, das maos de Fran de tule, 0 dia de verao, velho, imemor mumificado, 2 Nem sempre proclamamos em voz. alta o que temos de mais importante a dizer. E, mesmo em voz baixa, nfo 0 con- fiamos sempre & pessoa mais familiar, mais proxima e mais disposta a ouvir a confidéncia. Nao somente as pessoas, mas também as épocas, tém essa mai timo ao pri- meiro desconhecido. No que diz respeito ao século XIX, nao foram nem Zola nem Anatole France, mas 0 jove Proust, 0 esnobe sem importancia, o tréfego freqiientador de salves, quem ouviu, de passagem, do século envelhecid outro Swann, quase agonizante, as mais extraordi Somente Proust fez do século XIX um século para memorialistas. O que era antes dele uma simples época, des- provida de tensdes, converteu-se num campo de forgas, no qual surgiram as mais variadas correntes, representadas por autores subseqitentes. Nao é por acaso que @ obra mais interes- sante desse género seja a de uma escritora pessoalmente pro- xima de Proust, como admiradora e como amiga. O préprio ilo do primeiro volume das memérias da princesa de Cler- mont-Tonnerre — Au temps des équipages — no teria sido concebivel antes de Proust. A obra é 0 eco fragil que responde, do Faubourg Sia oe in, ao apelo de Pronst, ambiguo, amoroso ¢ desafiador. Além disso, esse texto melddico est cheio de alusdes diretas e indiretas 2 Proust, tanto em sua abrindo as cortinas” a MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA 1 estrutura como em seus personagens, entre os quais 0 pré -romancista e muitas das figuras por ele observadas no Ri ‘Nio se pode negar que estamos aqui num meio muito feu fe mesmo muito peculiar, com personagens como Robert de Montesquiou, que a princesa de Clermont-Tonnerre descreve magistralmente. Mas também com Proust estamos nesse meio, como se sabe havia nele um lado que 0 aproximava de Mon- tesquiou. Nada disso valeria a pena discutir, sobretudo.s ques- ‘iio dos modelos, secundaria e sem interesse para a Alemanha, se nao fosse a displicéncia da critica alema. Essa critica nao podia perder a ocasiao de acanalhar-se, aliando-se 20s vulea~ res freqtientadores de bibliotecas circulantes, e seus veteranos representantes apressaram-se a atribuir ao proprio Proust 0 esnobismo do meio por ele descrito e a caracterizar sua obra como uma questo interna francesa, como um apéndice frf- anaque de Gotha. E evidente que os problemas da alta sociedade sob a forma ice. Seu perigoso génio cOmico destr prete de Proust, Léon Pierre-Quint, foi também o primeiro a perceber isso, e este no é 0 menor dos seus méritos. “Quando se fala de obras humoristicas”, esereve Quint, “pensa-se habi- tualmente em livros curtos e divertidos, com capas ilustrad: Esquecem-se de Dom Quixote, Pantagruel e Gil Blas, grossos volumes, informes, impressos em pequenos caracteres”. O lado subversivo da obra de Proust aparece aqui com toda déncia. Mas ndo é tanto o humor, quanto a comédia, 0 verda- deiro centro da sua forca; pelo riso, ele nao suprime o mundi mas 0 derruba no chlo, correndo o risco de quebra-lo em pe- dacos, diante dos quais ele é 0 primeiro a chorar. E 0 mundo se parte efetivamente em estithacos: a unidade da familia e da personalidade, a ética sexual e a honra estamental. As preten- soes da burguesia sto despedacadas pelo riso. Sua fuga, em diregdo ao pasado, sua reassimilaco pela nobreza, é 0 tema sociolégico do livro. Proust era incansavel no adestramento necessério para circular nos efreulos feudais. Constantemente, ¢ sem grande 2 WALTER BENIAMIN esforgo, ele modelava a sua natureza para que Tange ng eat a al trae essa tarefa 0 exigia. Mais tarde, a mistificacao e o formalisms ‘Se incorporaram de tal maneira 4 sua natureza, que suas car- tas se tomaram verdadeiros sistemas de parénteses —~ e nao apenas no sentido gram: ssas cartas, apesar de sua re- dagao infinitamente espirituosa e versatil, lembram as yezes aquele esquema lendéri inha Senhora, acabei de notar ’o: o nimero. Quem de . obter 0 enderego de um bor- e informacées mais pormenorizadas, menos a reo mimero, compreenderd o sentido dessa anedota e sua relagdo com o amor de Proust pelo cerimonial, sua admiragao por Saint-Simon e, nao menos important francesismo, A quintesséncia da experiéncia nao é aprender a ouvir explicages prolixas que & primeira vista poderiam ser [Reumidas em poucas palavras, e sim aprender que esses pa- lavras fazem parte de um jargio regulamentado por critérios 0 , ele ja havia ido, no convivio com os Bibs provi linguagem cifrada, na qual ele também hos inion Nos tiltimos anos de sua vida de saléo, nlio desenvolveu apenas 0 vicio da lisonja, em grau eminente e quase ditiamos tt » mas também o da curiosidade. Nos seus lébios ha. via um reflexo do sorriso que perpassa, como u1 alastra, nos labios das virgens insensatas, esculpidas no por, tico das catedrais que ele tanto amava. E o sorriso da curio. sidade, Teria sido a curiosidade que fez dele um tio grande Rarodista? Mas o que significa, nesse caso, “‘parodist ‘ouco. Pois, se a palavra pode fazer justiga & sua malicia abis. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 8 sal, nfo faz justiga ao que existe de.amargo, selvagem ¢ mor- daz.em suas magnificas reportagens, escritas no estilo de Bal- zac, Flaubert, ‘Sainte-Beuve, Henri de Régni nan, dos Goncourt e, enfim, do seu querido reunidas no volume Pastiches et mélanges. O arti que permitin 2 composicto dessa série, e constitui um m« mento fundamental de sua obra como um todo, 6 0 mi tismo da curiosidade, no qual a paixao pela vida vegetativa, desempenha um papel decisivo. Ortega ¥ Gasset foi o primeiro a chamar a atengdo para a existéncia vegetativa dos persona- gens proustianos, aderindo tenazmente ao seu torrdo social, influenciados pelo sol do feudalismo, movidos pelo vento que sopra de Guermantes ou Méséglise ¢ inseparavelmente entre- Iagados na floresta do seu destino. E desse circulo social que deriva o mimetismo, como procedimento do romancista. Suas intuigdes mais exatas e mais evidentes pousam sobre seus ob- jetos como pousam, sobre folhas, flores ¢ galhos, insetos que nao traem sua presenga até que um salto, uma batida de asas, um pulo, mostram ao observador assustado que uma vida pré- pria se havia insinuado num mundo estranho, de forma incal- metéfora, por mais inesperada verdadeiro leitor de Proust 6 constantemente sacudido por pequenos sobressaltos. Nessas metiforas, ele encontra a ima €-fecunda com que os dois vicios, a curiosi- nija, se interpenetraram. Numa passagem instru- diz,a princesa de Clermont-Tonnerre: “Fi- preciso dizer que Proust estudava com paixto 0 mundo dos empregados domésticos. Seria porque um ele- mento que ele no encontrava ém outros meios excitava 0 seu faro, ou porque Ihe invejava sua maior facilidade em observar intimos das coisas pelas quais ele proprio se inte- ? Seja como for, os servicais em suas varias figuras ¢ tipos eram a sue paixio”. Nos esbocos disparatados de um Jupien, de um Monsieur Aimé, de uma Céleste Albaret, a sé- rie se estende desde 0 personagem de Francoise, que com seus tragos grosscitos ¢ angulosos de Santa Marta parece ter saido “4 WALTER BENIAMIN diretamente de um livro de horas, até aqueles grooms e chas- Seurs, aos quais se remunera ndo 0 seu trabalho, mas o seu lazer. E sobretudo quando o espeticulo se representa nos mais baixos escaldes da sociedade que cla desperta o interesse dese conhecedor de ceriménias. Quem poder dizer quanta curio, sidade servil havia na lisonja de Proust, quanta lisonja servil em sua curiosidade, e onde estavam os limites dessa copia” exagerada do papel servil, no vértice da piramide soci Proust efetuou essa cépia, © no poderia ter agido de ot modo. Como ele mesmo confidenciou uma vez: voir e désirer imiter etam para ele a mesma coisa. Maurice Barrés definiy essa atitude, ao mesmo tempo soberana e subalterna, auma Gas frases mais expressivas jamais formuladas acerca de Proust: “Un poste persan dans une loge de concierge”. Havia um elemento detetivesco na curiosidade de Proust. As dez mil pessoas da classe alta eram para ele um cl de criminosos, uma quadrilha de conspiradores, com a qual ne. nhuma outra pode comparar-se: a camorra dos consumidores, Els exclui do seu mundo todos os que participam da produ. $40, ou pelo menos exige que eles se dissimulem, graciosa pudicamente, atrés de uma gesticulagdo semelhante a osten- ida pelos perfeitos profi is doconsumo. A anilise prous- tiana do esnobismo, mais importante que sua apoteose da arte, € 0 ponto alto da sua critica social. Pois a atitude do esnobe nao € outra coisa que a contemplagao da vida, coe. rente, organizada ¢ militante, do ponto de vista, quimica- mente puro, do consumidor, E como qualquer recordaco alu. siva as forgas produtivas da natureza, por mais remota ou pri- mitiva que fosse, precisava ser afastada dessa feérie satanica, © comportamento invertido, no amor, era para Proust mais Stil que 0 normal. Mas 0 consumidor puro & 0 explorador. Duro. Ele o € légica e teoricamente, ¢ assim ele aparece em te concreto, em toda a verdade da ica contemporanea. Concreto, porque im- il de situar. Proust descreveu' uma classe obrigada a dissimular integralmente sua base material, e que em conseqiiéncia precisa imitar um feudalismo sem so cconémica, € por isso mesmo eminentemente ut como méscara da grande burguesia. Esse de: cave! desmi MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 6 ir 0 mistério ini vo de sua classe: 0 nado a encobrir o mistério tinico e decisi econbmico, Com isso, ele nfo se pos a servio dessa classe, Ele esti sua frente, O que ela vive comeca a tornar-se compreen- sivl gragas a ele, Grande parte do que fez a grandeza dess obra permaneceré oculta ou inexplorada até que essa classe, na luta final, revele seus tracos fisiondmicos mais fortes. No sé i noble — nfo sei se cla ain- No sfculo XIX, havia em Grenobi in da nist — uma hospedariachamads Au temps per, Como Proust, também nés somos héspedes que, sob uma. nsan vacilante, cruzaios uma soleira além da qual a ctemidade ea enmbriaguer esto & nossa espera, Com rerio, Ferander dis finguo, em Proust, um heme de I'terié de um thie temps. Mas essa eternidade no € de modo algum platonica oi spa: la pertence ao resto da embriaguer. Se € certo, used “ ja uma nova e a mseqtientemente, que “o tempo revela uma Sesconhecida forma de eternidade a quem se aprofunda em sew flo", iso no significa que com iss individ s apro- sma “as regis superiores, que aleangaram, rum tneo a ter de asas, um Plato ov um Spinoza”. E verdade que sobre vivem em Proust alguns tragos de idealismo, Porém nao sio eles que determina 2 signfcacio dessa obra. A Je Proust nos fazvsiumbrar nfo € ado tempo infinite, e sin fo tempo entrecruzado, Seu verdadeio interesse € consi rado a fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por iss0 mesmo mais entrecruzada, que se manifesta com clareza na reminscénia Gntemamente) ¢ no envelhesimento (extern mente). Compreender a interagao do envelhecimento e da re fica penetrar no coragao do mundo prous- Mano, o univers ds enteeruzamentos, Eo mundo en estado hanga, ¢ nela reinam as “correspondéncias”, eapta- Baudelaire, mas que Proust foi o Gni existnciavvida, E @abra da mémoire juvenescedora capaz. de enfrenttar 0 ; mento. Quando o passado se rellete no instante, timido de o. “ WALTER BENIAMIN {atho, © choque doloroso do rejuvenescimento 0 condensa to itresistivelmente como o lado de Guermantes se entrecrene com o lado de Swann, quando Proust, no 13° volume, pen {ure uma tiltima vez a regio de Combray, e percebe o entre. Iacamento dos caminhos. No instante, a paisagem se agita como um vento. “Ah! Que le monde est grand rté des lampes! Aux yeux du souvenir que le monde est petit!” Provat fonseguie essa coisa gigantesca: deixar no instante o mundo inter envelhecer, em tomo de uma vida humana inteira Mico {ine chamamos rejuvenescimento é justamente essa concen, Gagto na qual se consome com a velocidade do relampage 6 que de outra forma murcharia e se extinguiria gradualmente, A kn recherche du temps perdu 6 a tentativa intermindvel ge galvanizar toda uma vida humana com o maximo de coneiés ia. O procedimento de Proust nfo & a reflex3o, ¢ sim o sean ciéncia. Ele est convencido da verdade de que nao tense denne, de viver os verdadeiros dramas da existéncia que nos & destinada. E isso que nos faz ‘envelhecer, ¢ nada mais. As ru- Bas ¢ dobras do rosto sto as inscrigbes deixadas pelas grandes Paixdes, pelos vcios, pelas intuigdes que nos falaram, son que nada pereebéssemos, porque nés, os proprietitios, hae ete vamos em casa. literatura ocidental uma ten- edo, desde os exercicios espi- la. Também ela tem em seu do maeistrom arrasta 0 ice incomensuravelmente ruidosa e vazia que ecoa tos romances de Proust é rugido Som due a sociedade se precipita no abismo dessa solidao, Dai 8s invectivas de Proust contra a amizade. O silencio que sea zo fundo dessa cratera — seus othos sao os mais silencoe srimals absorventes — quer ser preservado, O que parece to « icritante e caprichoso em muitas anedotas é que nelas ¢ inter. Sidade tiniea da conversa se combina com um distanciamency Sim Precedentes com relagio ao interlocutor. Nunca houve Tinguém que soubesse como ele mostrar-nos as coisas, Sou ecio indicador nao tem igual. Mas no convivio entre atmigeee 20 didlogo existe outro gesto: o contato, Nenhum gesto ¢ neta jitsto a Proust. Por nada deste mundo ele poderia tocar owas leitor. Se quiséssemos ordenar a literatura em tome gece Polaridade — a que mostra, ea que toca —, Proust estarin ng MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 4 imeira, e Pé da segunda. No fundo, é 0 entro da primeira, e Péguy, no . No ° que Fernandez eompreendeu perfetamente prong dado antes, a penetra, est sempre do sea lado, nunca do ido do interlocutor” Essa caracteristica aparece em sua obra erties com um toque decnismoe com omésimo $e v sumento dessa critica é o en- sismo. O mais importante documento Sai, esrito no ponte mais allo de sua gléra © 3p ponto mals : it : a . a vida, o eto de morte: A propos de Baudelaire. fom toxin foifice no onsentimento's ses propio “ts mentos, desmedido na tagarelice de quem repousa, assusta dor na indiferenga do condenado & morte, que ‘uma vez, nfo importa sobre que tema. © que 0 i ‘em face da morie determinou também o seu convivio com o: contemporinens: uma altel to dura ecortante entre 0 sarcasmoe a termura, que seu objeto, exausto, corre 0 risco ser aniquilado. As caracterst descrevendo ur so, exiustiva © angustons dos incontd iam t6-la de- wente, & luz. dos incontéveis motivos que poderi ae termed. Eso entanto nea fuga paral ca, vem toma 1m ponto em que se condensam numa 3 clea a fragvers de - me : Proust ¢ seu génio: a rentincia intelectual, 0 Fente que cle opunhas cosas. le velo depois das arogantes interioridades romanticas, ¢ estava decidido, como dis Ges ivi, neger sus fe is srOnen interieures “Provst ida sem o menor interesse metafisico, sem 2 menor ‘a menor inclinag&o consola- “dora.” Nada mais vrdadeio, Por isso, aestratura fundamen- - rou tal dessa obra, cujo cardter planeja a i ido. E, no entanto, ela o! de realcar, nada tinha de construt ie as linhas de nossas mi dece a um plano, como 0 desenho han Alice de uma flor. Proust, ou 0 ordenamento dos-estames no c for. Proust, i te fatigado, deixou-se cair essa velha crianga, profundamente fatiga ir ii leite, mas para sonhar, seio da natureza no para sugar seu leite, mas ae i “Go. E assim, em sua fra- lado com as batidas do seu corac ua fra oe a Preisamos veo, para compreender a mancira fe liz com que Jacques Riviére procurou interpret 2 Paris Sa fraqueza: “Marcel Proust morreu eriéncia, meme que ihe permidu eserever sua obre. Morred Por ser estranho ao mundo, e por nao ter sabido alterar as condicdt a WALTER BENTAMIN de vida que para ele se tinham tornado destruidoras, Morreu porgus nao sabia como se,acende um fogo, como se abre uma Janela”. E morreu, naturalmente, de sua ssma norroce Os médicos ficaram impotentes diante dessa doenga, O iishmo ndo ocorreu com o romaneista, que a colocou delibe, radamente a seu servigo. Para comesarmos com os aspectos Hartiores, ele foi um regente magistral de sua enfermidade. Durante meses, com uma ironia devastadora, ele asneine imagem de um admirador, que the enviava flores, com sea Homiw Para cle insuportivel. Alarmava seus amigos com os Samos ¢ alfernancias de sua doenga, que temiam e esperavare Paeke mento em que 0 escritor aparecia no saldo, depois da como anit: brisé de fatigue © somente por cinco minutos, a ie anunciava, embora acabasse ficando até-o romper de dia, cansado demais para levantar-se, cansado dematc para inesperados. “O. fuldo de minha respiragto abafa o da minha pena, ¢6 de wm banho, no andar de baixo.” Mas isso nao € tude. © impor- ante ndo € tampouco, que sua doenga o privasse da de Mundana. A asma entrou om sua arte, se é que ela nao Fesponsivel por essa arte. Sua sintaxe imita o rises de asfixia. Sua reflexto irénica, flosGfica, didatice dag suaneira de recobrar o félego quando se liberia do peso Gis suas reminiscéncias, Mais importante foi a morte, que cle Enka constantemente presente, sobretudo quande escrevie, crise ameacadora, sufocante. E sob essa forma que a morte Sonfrontava, muito antes que sua enfermidade assurainee ame SSPecto critico. Mas nao como fantasia hipocondriaca, e sim Sree ume réalité nouvelle, aquela nova realidade da qual os sinais do envethecimento con: € sobre os homens. Uma estilistica fis Gintro, de sua criagto. Em vista da tenacidade especial com Ge as reminiscéncias s8o preservadas no olfato (0 que née ¢ ntico & preservaco dos odores na re niscéneia), ndo podemos considerar acidental a de Proust aos odores. Sem dkivida, a m. que buscamos aparecem & nossa frente gens visuais, Mes das, apesar do ca: (MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA * isso mesmo, se quisermos captar com pleno conhecimento de causa a vibragio mais intima dessa literatura, temos que mer- sma camada especial, a mais profunda, dessa memé- téria, na qual os momentos da reminiscéncia, no \damente, com imagens, mas informes, nio-visuais, indefinidos e densos, anunciam-os um todo, como 0 peso da rede anuncia sua presa 20 peseador. O odor & 0 sentido do eso, Para quem Ianca sua rede no oceano do temps perdu E suas frases sio o jogo muscular do corpo inteligivel, contém todo esforgo, indizivel, para erguer o que foi capturado. A cireunstancia de que jamais haja irrompido em Proust aquele herdico “apesar de tudo”, com o qual os homens cria dores se levantam contra seu sofrimento, mostra com clareza como foi intima a simbiose entre essa criago determinada e esse sofrimento determinado. Por outro lado, podemos dizer que uma ‘dade t2o funda com 0 curso do mundo e com a existéncia, como foi o caso de Proust, teria fatalmente conduzido @ uma autocomplacéncia banal ¢ indotente se sua base fosse outra que esse sofrimento intenso e incessante. Mas esse sofrimento estava destinado a encontrar seu lugar no grande processo da obra, gragas a um furor sem desejos € pe \remorsos, Pela segunda ver, ergueu-se um andaime como o iguel Angelo, sobre o qual o artista, com a cabeca inclinada, pintava a erlagto do mundo no teto de eapea Sistina: 0 leito de enfermo, no qual Marcel Proust cobriu com sua letra as incontaveis paginas que ele dedicou A criagZo do seu micro- cosmos. 1929

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