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M@ PESQUISA como que preparados para a batalha no (katana) ¢ alabardas (Naginata), Aspectos mistico-filosdficos das Artes Marciais Japonesas Por WALLACE ROCHA ASSUNGAO, FRC* # proposta deste artigo é trazer uma reflexao sobre os aspectos mistico-filos6ficos intrinsecos 4s irtes marciais japonesas. Desen- volvidas para preparar os soldados para as guerras, esses sistemas de luta perderam sua fungao nas batalhas, agora vencidas quase que totalmente no combate & distancia, de- vido ao uso de armas de fogo, passando a ser utilizadas como meio de vencer a si mesmo, o mais terrivel adversario. Brevissima historia das artes marciais japonesas Desde os primérdios das civilizacdes, para se defender dos animais selvagens e pos- teriormente dos invasores territoriais, 0 homem desenvolveu sistemas de combate simples que ao longo do tempo se tornaram. complexos, chegando ao ponto de seus trei- namentos extrapolarem as técnicas de com- bate em sie envolverem também o preparo psicoldgico e espiritual, No Japio, foram desenvolvidos alguns sis- temas de luta tanto para a protegao de cada um dos feudos que se formaram quanto para conter as invasOes estrangeiras. Durante os periodos Kamakura (1192 d.C) e Edo (18684. CC.) nas quais os samurais desenvolveram técnicas de lutas tanto armadas quanto de- sarmadas, foi também desenvolvida, apoiada no Xintoismo, religiao natural do Japao, e no Budismo, religido oriunda da india e intro- duzida no arquipélago niponico em 538 4.C., uma disciplina mental com aspectos misticos 4 qual denominaram Bushidé. Escrito com trés kanji (ideogramas), TRASH okanji + (hi) e ili (dd) nao so- frem nenhum equivoco em sua tradugao, sendo + traduzido como “cavaleiro” ou mais especificamente como “samurai” e iff como “via”, “caminho” ou “senda”, Jé 0 kanj BE sofre um equivoco de traducao quando é interpretado como “guerra”. Podemos notar que é constituido por dois outros que o for- mam; o primeiro deles, 2¢ significa “duas alabardas” e 0 segundo, 1k “parar”, Por- tanto, a interpretacao correta para este kanji seria “parar as armas” e, por isso, Bushid6 deveria ser traduzido como “o caminho do cavaleiro que faz parar as armas”, © Bushid6 é uma sintese de conceitos do Budismo, do Xintoismo e do Confucionismo. Em funcio das influéncias do Budismo, os samurais nao temiam a morte, pois acredi- tavam na continuidade da vida, nascendo como guerreiros novamente, O Zen, forma japonesa do Budismo, proporcionava ao samurai a consciéncia do todo, do aqui, do agora e das consequéncias de seus atos, bem como a perda gradual do medo. O desapego a todas as coisas materiais e imateriais ensi- nadas pelo Zen era a caracteristica esperada de um verdadeiro samurai. A vigilancia cons- tante que essa filosofia proporcionava sobre seus pensamentos pode ser entendida no trecho de A Mente Liberta, do monge Takuan Soho: “Ea prépria mente que leva a mente a0 extravio, Da mente, jamais te descuide” O Bushidé foi fortemente influenciado pe- los preceitos do Xintofsmo como a lealdade, © patriotismo ea reveréncia aos antepassa- dos. Com tal lealdade para com a meméria de seus ancestrais, os samurais empenhavam essa mesma reveréncia ao imperador e ao seu daimyé, o senhor feudal. Jé. 0 Confucionismo ofereceu ao Bushidé os preceitos que regu- lam as relagdes em sociedade. © Bushido também prega justica, bene- voléncia, amor, sinceridade, honestidade, e autocontrole. Justica é um dos principais pontos no cédigo dos samurais, assim como 0 amor ea benevoléncia, que sao sun- tuosas virtudes. vintomu orosicwz DQ ao ir @ PESQUISA Em sintese, as sete virtudes do Bushid6 sao: 2 GI - Retidao e justica segundo a sua consciéncia; B YU - Coragem, bravura e destemor perante as muitas dificuldades; (= JIN - Benevoléncia e compaixao; 4L REI - Respeito, polidez, cortesia, amabilidade e reveréncias ak MAKOTO - Honestidade, sinceridade e veracidade; 47 wenvo - sonra, nobiera dealma, cumprimento dos deveres e da palavra empenhada; FA 2 JL) CHUUGI - Lealdade e sentimento de dever e gratidio. Os processos que levaram a abertura dos portos japoneses ao ocidente em 1864 trouxeram 0 imperador de volta ao poder em 1868, destituindo o shogun que até entao detinha o poder mili- tar. Esse processo ficou conhecido como “restauracao Meiji”, nome da nova era que significava “Governo Iluminado”. Na Era Meiji, muitos samurais se submeteram a subempregos para se sustentar, pois haviam perdido sua fungo como militares, posto que foram criados um exército nacional e uma policia nos moldes ocidentais, tornando obsoletas as formas refinadas, porém ineficientes, de combate apés a introdugao massiva das armas de fogo no Japao. Por outro lado, adaptando-se aos novos tempos, mestres de algumas artes marciais optaram por fazer um novo uso do bushidé: 0 que antes criava a disciplina e o preparo mental e espiritual para as batalhas contra os inimigos, deveria, a partir de entao, ser utilizado para vencer 0s “ini- ‘migos internos”; a ignorancia, o medo, o orgulho, a vaidade e tantas outras imperfeigdes espiri- tuais e de cardter. E nesse cendrio que surgem os Gendai Bud, artes marciais modernas, e personagens como Jigoro Kano, Funakoshi Gichin e Morihei Ueshiba, BO. oroucris. versoons th. O Caminho Suave Um jovem que na adolescéncia se sentia inferiorizado sempre que precisasse despen. der muita energia fisica para resolver um problema, Jigoro Kano resolveu modificar © tradicional Jujutsu, 0 conjunto de técnicas desarmadas dos samurais, unificando os diferentes sistemas e transformando-os em um poderoso método de educacaio fisica: 0 Jud6, “O Caminho Suave”. Procurando encontrar explicagées cien- tificas para as técnicas, selecionou e classifi cou os melhores golpes dos varios sistemas de Jujutsu, enfatizando as lutas de solo do estilo Tenshin-Shinyo-Ryu e as projecdes do estilo Kito-Ryu. Inseriu principios bisicos como 0 do equilibrio, do centro de gravida- dee sistema de alavancas nas execucdes dos movimentos légicos. Jigoro Kano No Jud6, Jigoro Kano tentava dar m: expressio A lenda de origem do estilo de JujutsuYoshin-Ryu (Escola do Coragao de Salgueiro), Esta se baseava no principio de “ceder para vencer”, utilizando a nao resi téncia para controlar, desequilibrar e ven- cer o adversério com o minimo de esforco. Segundo essa lenda, Shirobei Akyama, um médico interessado em aprimorar suas téc- nicas de reanimagéo, teria viajado & China no século XVII. Ao retornar a Nagasaki, onde vivia, passou a ensinar as jutas chine- sas que ld aprendeu a um pequeno grupo de alunos, mas ainda ficava intrigado por no conseguir derrotar oponentes maiores ‘ou mais fortes. Foi apés uma nevasca que ele percebeu que os galhos de um forte e grande pinheiro haviam se partido com © peso da neve depositada nos galhos, a0 passo que um salgueiro nas proximidades, pela flexibilidade de seus ramos, gentil- ‘mente cedia ao peso da neve e a depositava no solo, retornando a sua posigao inicial em seguida, intacto. Em um combate, os praticantes objetiva- vam somente a vitéria. No entender de Kano, isso era totalmente errado. Por esse motivo, estabeleceu trés principios fundamentais para o Jud6: Jita kyoei, que demanda prospe- ridade e beneficio miituo na pratica do Judd; Seiryoku zen'yo, a maxima eficiéncia com 0 minimo de esforgo; e Ju, a suavidade no em- prego das técnicas e na vida em sociedade. O Caminho das Maos Vazias Oriundo do arquipélago Ryukyu, ao Sul do Japao, Funakoshi Gichin, por volta de 1900, seleciona e combina técnicas de Shu- ri Tee Naha Te, dois estilos de Okinawa Te, luta desarmada usada na resisténcia contra a anexacao do arquipélago de Ryukyu ao vento orosicnez 34 @ PESQUISA Império Japonés, que se consolidou em 1609, criando assim o Karaté Do, “o cami- nho das maos vazias”, estabelecendo que aquela pritica de luta, que outrora era um meio de resistir aos invasores, deveria ser uma pratica “para a vida ou para a mor- te”. Uma prética para a vida, pois quando feita de acordo com os principios de nao- -precipitacao e de respeito poderia manter e melhorar a saiide e 0 vigor fisico do pra- ticante, e uma pratica para a morte quando ‘mal empregada, caindo no abismo da igno- rancia e da agressividade desmedida. Para explicar o motivo de chamar a luta sistematizada por si de “Caminho das Mos Vazias’, evidente por essa arte de autodefesa no usar armas, somente pés desguarneci- dos e maos vazias, Funakoshi recomenda aos estudantes de Karaté-Do a terem como meta ndo sé aperfeicoar a arte de sua es- on ‘OROSACRUZ - VERKO 2014 colha, mas também esvaziar 0 coracio ea mente de todo desejo e vaidade terrenos Para guiar seus alunos no aprendizado, Funakoshi estabeleceu vinte principios fun- damentais que delineavam seu Caminho tanto na esfera técnica quanto na moral. 0 primeiro deles dizia que o praticante nao poderia se esquecer de que Karaté comeca € termina com respeito, tanto por si mesmo quanto pelo oponente, colega de treino e até mesmo pelo local onde se pratica a luta, onde se entra e sai realizando uma breve porém respeitosa reveréncia. J o quinto adverte que antes de usar as técnicas da arte, os golpes propriamente ditos, o praticante de Karaté deve se utilizar da “técnica do espfrito”, en- tendida como o raciocinio ou o uso da intui- ¢40, contemplado no sexto principio que diz ao praticante para “liberar a mente”, pensar nas possibilidades e deixar a intuicao auxi- liar na “caminhada’”, enfocando um aspecto intuitivo muitas vezes negligenciado. O Caminho da Harmonia das Energias Morihei Ueshiba tornou-se um habilidoso lutador por ter sido incentivado desde cedo a praticar atividades fisicas, tendo transitado por alguns estilos de lutas como 0 Sumé e alguns estilos de Jujutsu. Ao se deparar com ahabilidade de Sokaku Takeda, mestre do estilo Daito Ryu Aikijujutsu, torna-se seu dis- cipulo e com ele aprende técnicas armadas ¢ desarmadas. Quando seu pai adoece, toma conhecimento dos supostos poderes curati- vos do lider espiritual Onisaburo Deguchi, da religiio Omoto-kyo, uma espécie de seita derivada do Xintoismo, e embora as preces deste nao tenham livrado seu pai da transi- 40 torna-se adepto dessa nova religiio. Complementando seus estudos de Dai- to Ryu Aikijujutsu com Takeda, parte para ‘uma malsucedida viagem 4 Mongélia, onde pretendia, junto a Deguchi, estabelecer um ponto de difusdo da Omoto-kyo. Ao retor- narem ao Japao, Ueshiba passa oito anos na cidade de Ayabe em meditacao e estudo so- bre o Bushidé e o Xintoismo (que deu origem 4 Omoto-kyo) ¢ ainda domina 0 conceito do Koto Tama, pratica semelhante & dos man- tras. E durante essa época que se questiona sobre coisas que o intrigavam: “De que serve vencer aos outros, seja com uma técnica ou outra?” “Se hoje ganhei, amanha ou mais tarde perderei. O vencedor de hoje é 0 perdedor de amanha” “O camped forte de hoje amanhd se defrontaré com um adversario mais jovem e perder.” “Isto significa, entao, que a vitéria é algo relativo! Serdé que existe a vitéria absoluta? Que importancia tem para cada um?” Isolado nas montanhas, longe do burburi- nho mundano e vivendo como um asceta, praticava sozinho com o bokken (espada de madeira), desferindo golpes no ar e ao mes- ‘mo tempo se perguntava constantemente: “O que é um budé?” Em 1925, um oficial de marinha, perito espadachim, veio visita-lo em Ayabe. A con- versa termina em discussao e eles decidem acertar a diferenga em um duelo de espada de madeira. O oficial ataca seguidamente, mas Ueshiba evita, esquivando-se a cada golpe do adversirio. Incapaz de atingi-lo e cansado, o homem acaba desistindo. Com 0 intuito de descansar daquele combate, Morihei Ueshiba Ueshiba vai para o jardim de sua cabana e, ao olhar para o céu, subitamente tem uma estranha inspiraco. Em suas palavras “Tive a sensagao de que 0 Universo inteiro entrava em vibragdo e uma energia de cor dourada se elevava da terra e se enrolava como um novelo no meu corpo, transformando-o em dourado, Nesse instante meu corpo e meu espirito tiveram uma clara consciéncia do pensamento de Deus, 0 criador do Universo” Considera-se, a partir desse acontecimento, em 1925, 0 inicio da mudanga do que ele deno- minava Aiki-jujtsu,a “técnica suave de unio das energias” para Aikido, o “camino da harmonia” das energias, mudanga que se consolida em 1942 com a adogao dessa nova denominagio. veniowx orosicn 33 at @ PESQUISA ‘Tendo ele estabelecido cinco principios fundamentais, estes nos chamam a atengao por serem, relacionados aquilo que os rosacruzes denominam Consciéneia Césmic: @ O Aikido é 0 caminho que reine todos os caminhos do universo por toda eternidade; é a Mente Universal que encerra todas as coisas e a todas unifica. . @ 0 Aikido é a verdade ensinada pelo universo e deve ser aplicada & nossa vida na Terra. a d= @ O Aikido é 0 principio e o caminho que unem a humanidade 4 Consciéncia Universal @ 0 Aikido se realizaré plenamente quando cada pessoa, seguindo seu verdadeiro caminho, se tornar uma sé e coisa com o universo. @ 0 Aikido é 0 caminho de forsa e compaixio que conduz a infinita perfeigdo e & gldria crescente de Deus. A titulo de conclusdo A sublimagio das técnicas (Jutsu) para uma senda, um caminho de autoconhecimento e harmo- nizacao com a sociedade (Do), pode ser considerada como um salto qualitativo das artes marciais, ‘um aspecto intrinseco & cultura japonesa, o que nos remete a Lavoisier, filésofo iluminista, lem- brando-se de sua célebre maxima: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma’. Assim como na natureza, praticas que poderiam se perder no turbilhao de transformagoes ocorridas na vida social, politica, cultural e econdmica do Japao a partir da Restauracao Meiji, em 1868, foram ressignificadas e adquiriram um novo carter, deixando de ser meios de dominar a outrem para se tornar meios de dominar a si mesmo. 7 ‘ Mestre em estudos histéricase socioculturas ds Educacio Fisica e das prticas corporals, instrutor de Shotokan Karate Do, estudante rosacruz Referdncias: FUNAKOSHI, Gichin, Keraté-do: 0 meu mode de vida. S.ed, Séo Paulo: Cultrix, 2006; FUNAKOSHI, Gichin. Os vinteprinciios fundamentals do Karaté, So Paulo: Cult. 2011; SOHO, Takuan. A mente liberta. Sao Paulo: Cultrin, 2000; STEVENS, John. Tiés mestres do bud, S80 Paulo: Cultrix. 2007; SUGAI, Vera Lica, © caminho do guerreiro 2 volumes. ‘So Paulo: Gente, 2000. ~~? ‘OROSACRUZ . VERAO 2014

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