You are on page 1of 6
Matrag, n° 9 ~ outubro de 1907 IN’ TUK CAQ: Tas da eS tenga 4 graméadtica do discurs Marisia Carneiro (UER/UGF) RESUMO | Reflexao sobre 0 papel da intui¢ao nos modelos da gramdtica gerativa e da pragmatica. palavras-chaves| poesia | modernidade tradugaio 4 Introdugio Apresento, neste breve artigo, reflexdes sobre o papel da intuicao nos modelos que, hoje, slo mais difundidos como representativos da linguagem: a gramatica gerativa e a pragmitica. Apés a introducao, o texto se divide em trés partes. No segundo tépico, encontra-se um resumo dos conceitos mais salientes da intui¢do, segundo correntes filos6ficas da Antigiidade aos dias de hoje, No terceiro ¢ quarto tépicos, localizamos a intuigao no modelo formalista de Noam Chomsky € no modelo empiricista, respectivamente. A pratica de se representarem 0s objetos do universo, na sua configuraco global ou em seu processo de existir, individual, fenomenclégico, por meio de cones e simbolos, di como resultado algo bastante diverso do que habitualmente se chama realidade. A representacio nao € 0 objeto representado. Ela exige a intercorréncia de um intérprete da relacio referencial que entio se instaura. A representagao é ilusio em graus varidveis, dependendo dos apelos ficcionais de cada um. A representacdo 0 erro primordial. Produz modelos em que se percebem, se forem observados atentamente, sinais de inefabilidade. Portanto, s20 modelos fadados 4 necessidade de revisao. Os conceitos que se fazem do mundo real tém sido organizados em complexos sistemas referenciais, racionais ou empiricos; mas nenhum pode substituir a realidade e nem sempre so fidedignos. Dai os riscos de atitudes dogmaticas face a quantos modelos se oferecem aos que buscam a verdade. A ciéncia, no plano das investigacbes dos fatos biolégicos ¢ fisicos, pode wo representar, por exemplo, o fendmeno chuva, explicitando, com objetividade, a correspondéncia entre o modelo e o fato, atemporalmente; mas nao podera fazé-lo considerando os aspectos hist6rico-espaciais da varidvel desse fendmeno observado num dado instante, Por outro lado, a ciéncia, no plano das investigagdes dos fatos sociais e humanos, nao podera deixar de considerar os aspectos temporais dos fatos se quiser aproximar-se da representacdo fidedigna. Por conseqiléncia, eis a questo fundamental que mobiliza aqueles que investigam os fatgs sociais e humanos: que validade tém os modelos que representam os fatos sociais e humanos, sem contextualizé-los? Nao cabe, aqui, tentar encontrar resposta. O fato € que de um lado os racionalistas, formalistas, e de outro os empiricistas, no-formalistas, buscam representar 0 objeto lingiiistico, com objetividade e fidedignidade, aplicando os primeiros ferramentas reducionistas e os segundos, ferramentas diversificantes. Em ambos, a intuigao € referida com certa relevancia. Neste trabalho, procura-se nao a defesa deste ou daquele modelo de abordagem dos fatos das linguas. Pretende-se escavar um pouco mais esse terreno da producto do conhecimento linguistico e buscar, nas raizes de suas manifestagdes mais visiveis, ¢ na especificidade de seus métodos, 0 papel da intuicdo. No desempenho do fenémeno global da representacao, em que se incluem todos os sistemas semidticos, 0 homem observa, coteja e interpreta, aplicando suas faculdades mentais. Dentre estas, a intuigao participa particularmente da construgo de modelos teéricos, quer na formulacao de conceitos aprioristicos, quer na solucao dos enlaces e da dependéncia dos fatos. Desenvolvem-se, nas linhas subseqtientes a esta introdugao, algumas explanacées a respeito do papel da intuigdo na construgao dos modelos lingiiisticos contempordineos que mais tém empolgado os pesquisadores: 0 modelo gerativista e os modelos pragmaticos. Tenta-se, aqui, contribuir com algumas idéias para 0 entendimento do debate motivado pelas questoes: Como conciliar intuigio € racionalismo formal? Como postular para a pragmética um modelo empiricista que possa conciliar razao ¢ intuicio? 2. Intuigdéo: saber divino, saber de todos Atendendo as necessidades de objetividade e relevncia deste artigo, sintetizamos, neste t6pico, 0s conceitos de intuigao (Abbagnano, 1982: 552- 554), que nos vao servir nas reflexées sobre a sua func&o nos dois modelos mencionados. No sentido hist6rico e tradicional do termo, intuigao é um conhecimento superior e privilegiado atribuido @ competéncia divina, na sua relagao direta com um objeto qualquer. Da Idade Média a Kant, o termo Matraga, n° 9 — outubro de 1997 Macraga, n° 9~ outubro de 1997 designa um traco privilegiado da consciéncia humana, um conhecimento empirico, identificado com a experiéncia. Para o racionalista Descartes, através da intuicao a mente pode chegar ao conhecimento, na sua relacao imediata com um objeto, com intermediacao de idéias aprioristicas, inatas. Para 0 empirista Locke, o conhecimento intuitive percebe a conexo ou no-conexao entre duas idéias sem a intermediagao de outras. Kant atribui ao homem. apenas a intuicdo sensivd, o conhecimento em relacao ao objeto presente, © que se da passivamente; a Deus compete a intuicdo intelectual. Hegel entende que intuig&o € pensamento. Schopenhauer nao vé diferenga entre intuicao e intelecto. Bergson entende intuicao como relacao imediata com objetos do mundo real € com o “impulso criativo da vida”. Para Benedeto Croce, intuiclo é arte, pois nao distingue real e irreal. Hoje, 0 que se pode conservar do significado do termo intuicao? Peirce (1868, apud Abbagnano) afirmou que 0 significado de intuigédo nao wraduz a forma de conhecimento, e sobretudo de pensar, pois este s6 pode acontecer com © auxilio de sinais. O que, em termos absolutos, nao é verdadeiro. Os cientistas contemporaneos referem-se A intuico quando destacam “o cardter inventivo de sua ciéncia”. A intwigdo, faculdade da mente humana, gera a idéia ou hipdtese experimental, antecipando, dessa maneira, conhecimentos do objeto observado. Segundo Claude Bemard (1865, apud Abbagnano) ela é a faculdade que nos ensina a ver no campo das pesquisas experimentais. Em suma, a intuico designa o grau de liberdade do pesquisador em suas pesquisas. De tudo isso, como entender 0 temo intuicao nos modelos lingiiisticos? (Os que se dedicam ao modelo gerativista assumem a intuic2o como recurso de aquisicao da linguagem e experiéncia, reeditando os sentidos que o racionalismo cartesiano ¢ o kantismo dio 20 termo. Por outro lado,os modelos pragmdticos mostram que a intuigao cabe-lhes como experiéncia, como relaco direta entre a mente e 0s objetos sensiveis, sem intermediacdes aprioristicas, sem idéias inatas. Neste sentido, somente Kant esta presente. 5. Intuigzo no formalismo chomskyano Intuigao, no modelo gerativista, € nao $6 condicao do inatismo, mas também confunde-se com um saber natural necessirio 3 validagao da prépria teoria. Trata-se de validar as evidéncia da faculdade humana da linguagem, que é adquirida de forma espontinea pelo individuo em contato direto com suas manifestagSes concretas imediatas. Segundo Chomsky (1986:3), a intuicao é: “an innate component of the human mind that yelds a particular Ianguage through interation with presented experience, a device that converts experience into a system of knowledge attained: knowledge of one or another language.” = Warnes upeathen tcc ‘A crianca faz atuar sua faculdade inata da linguagem sobre os fatos concretos do mundo exterior. Dessa maneira intuitiva descobre as estruturas da lingua e constitui sua competéncia lingitistica. Ela nao é livre tendo em vista as restrigées estruturais. Segundo esse modelo racionalista, a lingua natural distingue-se dos demais sistemas semidticos de representacao pela intuicao no sentido cartesiano e kantiano, mas também no sentido de invengao a partir das estruturas existentes, 0 que explica a criatividade lingiiistica. Esta designa a faculdade de o falante gerar uma infinidade de sentencas a partir de um ntimero definido de elementos conhecidos, 0 que Ihe permite combinar unidades descontinuas, mais do que diversificar de maneira continua os parimetros do sistema. Entretanto, sendo reducionista, esse modelo nao se preocupa em tratar de tudo 0 que possa resultar dessa propriedade da linguagem, j4 que s6 se interessa pelas sentencas descontextualizadas. O sentido de intuicio, no modelo gerativo, nao € simples. No modelo da gramitica gerativa, a intuicao serve, também, de argumento para tomar fidedignas as decis6es de aceitabilidade dos dados da lingua por parte do falante-ouvinte ideal. Seguindo esse caminho, 0 gerativismo utiliza-se da intuigio do falante nativo para selecionar seus dados € tomé-los como evidéncias da coeréncia de seu modelo universal das linguas. Entretanto, a base racionalista serve para sistematizar os principios aprioristicos e universais e os pardmetros especificos da lingua I (internalizada), organizando-os segundo a coeréncia légica e matemitica. Neste ponto os dois conceitos, raz0 e intuigo, criam um conflito: 2 intransitividade entre o reducionismo restritivo da légica, expresso nas formalizacdes chomskyanas, € o recurso 2 intuicao para explicar o processo da aquisicao da linguagem e para validar os dados. 4. Intuigao pragmdtica: caminho inevitével para o contexto ‘Ao usar a lingua adquirida ou aprendida, o falante so manifesta seu conhecimento real dessa lingua na medida em que atribui forca ilocucionaria as expressdes. Cabe-Ihe adequar sua fala &s condigdes em que ele a concretiza. O modelo pragmatico considera, portanto, os fatores contextuais, extralingiifsticos nas suas investigacdes dos fatos. Ele faz investigacdes que déem conta das peculiaridades do desempenho lingiifstico e, portanto, nao dispensa também a intuicao lingtiistica do falante, no sentido de invencao, ¢ a do investigador, no sentido de experiéncia Nesse modelo empiricista, o que se diz que € dado pelo contexio, na verdade € apreendido pelo falante através da sua intuicao, isto é, no seu Macraga, n° 9 — ounubro de 1997 contato direto com expresses contextualizadas. Dessa maneira, 0 desempenho € a manifestagio espontinea da intuicao lingiifstica em consonancia com 0 contexto. Portanto, ela nao é totalmente livre, tendo em vista as restricdes contextuais. No dominio da gramatica, uma das derivacdes da pragmAtica, o chamado funcionalismo mostra as estruturas como formas congeladas de expressées lexicais cujo sentido era facilmente apreendido pelos interlocutores. Surge a gramftica como um mecanismode regras constituidas @ posteriori, formuladas a partir da andlise de um corpus da Iingua. Isso se constata nas observacdes de certas formas tidas com fun¢ao puramente gramatical, mas que s4o ricas em fungées discursivas. Por exemplo, eis uma das conclusdes a que chega a pesquisadora Risso (1993: 56) em seu trabalho sobre a funcao e uso de agora: “As observagées acima apontam para o fato de que os usos diversificados de ‘agora’, enquanto marcador de estruturagao discursiva, no configuram uma perda total de elos com a significagao de seu homénimo adverbial" £ um modelo claramente anti-racionalista, no sentido de nao postular idéias inatas e aprioristicas, e nio-reducionista. Por outro lado, sendo a intui¢ao uma faculdade mental de efeito imponderavel, ja que se realiza na experiéncia, ela oferece resultados imprevisiveis, levando o falante a agirpara além dos limites das estruturas da lingua, o que se traduz na sua competéncia comunicativa. Portanto, no modelo pragmitico, a intuicao tem, também, o sentido kantiano de relagao direta do sujeito com 0 objeto do mundo real, sem a interferéncia, segundo Locke, de idéias aprioristicas. A sistematizagio pretendida pelos racionalistas nao € abandonada, mas o método para aleangé-la € que é diferente do cartesianismo positivista, pois nao opera sobre a produtividade, mas sobre a produgao. o Ihe interessa a fonte geratriz, a competéncia lingilistica, a lingua I, ja que suas evidéncias nao podem ser encontradas num corpus, mas interessam- Ihe os resultados, a lingua falada como tal. A intuicao, nesse modelo, serve para ressaltar a importanica do contato direto do falante e do pesquisador com os fatos da lingua. Serve, também, para explicar esse saber natural que o falante possui ao manejar com adequacao as formas da lingua segundo suas intencdes comunicativas. Nesse sentido, as formas que constituem a intuicdo do falante gramaticalizaram-se nas estruturas cristalizadas. Mas, tais estruturas nao sao, de forma alguma, construgées predeterminadas por um tipo de especializagao biolégica do homem para a realizaco da faculdade da linguagem. Sdo conhecidos os exemplos agramaticais da pidgnizacao e a sua posterior dialetalizagao decorrente do congelamento de formas consagradas pelo uso coletivo. A sistematizacao, conhecimento teérico e racional, vem depois e serve para deduzir e organizar 0 que € produto de um saber natural, nao por ser inato ao homem, mas por fazer parte do processo de conhecimento da realidade (cognicao) | §- Conclusio Na fundamentacio teérica do modelo formalista proposto por Noam Chomsky e sua equipe do MIT, est bastante difundida a constatacao de que a relevancia da intuicao, tal como foi compreendida acima, € recurso para investigar a lingua I. A intuicao é, ainda, um saber natural a que se recorre, centre outras finalidades, para validar hipoteses e dados. Por isso € que se pode afirmar que ela, como € considerada no modelo gerativo, é um sinal de sua inefabilidade. Assim, o modelo nao esconde suas incertezas e traz, ja em sua base, a necessidade imediata e quase eterna de renovacao. Nos modelos pragmaticos, 0 termo intuigao € de uso mais restrito € especifico e nao se instala na propria concepgio teérica de linguagem. Aqui, nao se toma a intuigao como parte do fundamento do sistema de referéncias desse modelo, porque ela € vista apenas como um aspecto da capacidade intelectiva do ser humano. Assim, ela é experiéncia da lingua no contexto comunicativo e serve apenas para se estabelecerem hipéteses, no ponto de vista do pesquisador. Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Diciondrio de filosofia Trad., coord. e rev: Alfredo Bosi, 2 ed. Sao Paulo: Mestre Jou, 1982 CHOMSKY, Noam. Knowledge of language: its nature, origin, and use. New York: Praeger, 1986. DASCAL, Marcelo. “O lugar da pragmatic na teoria da linguagem”. In: Acts semiotica et linguisticaw. 3 So Paulo: Global Editora, s/d. “As convulsées metodolégicas da lingitistica contemporinea’’. In: Fundamentos metodoldgicos da lingitistica. Org. Marcelo Dascal. $40 Paulo: Global Editora, 1978. HEIDEGGER, Martin. Chemins que ne ménent nulle part. Trad. Wolfgang Brokmeier. Paris: Gallimard, 1968. RISSO, Mercedes. “Agora... 0 que eu acho € o seguinte’: um aspecto da articulacto do discurso no portugués culto falado. In: Gramdtica do portugués falado. v. TI: As abordagens. AtalibaTeixeira de Castilho (Org.) Campinas, Sao Paulo: Editora da Unicamp, Sic Paulo: FAPESP, 1993. Matraga, n° 9 — outubro de 1997

You might also like