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SS £ ROBERTO S. LOPEZ, a : a FICHA TECNICA Title onguoa:Iervista Sulla Citta Medievale Autor Roberto S. Lopes revista consid po: Afarino Berengo (© 1984, by Gur Laters & Fil, Barina Tradugio © FtonalPresenga, La, Lisbos, 1988 ‘Tradogso de Jil Soares Pereira Rensio de texto: Wanda Ramas Capa Pana de CASALE, dvanteo cerco de 1630 Composigioe mpressio:Tipografia Nunes, Lda. —4000 PORTO Ti eigco, Lisboa, 1988, eservados fedot 0 aretot para Hingus ponuguess a EDITORIAL PRESENCA, LDA, ‘Rus Angus Gl, 35-A "1000 LISBOA 1 A CIDADE COMO ESTADO DE ESPiRITO P. E necessdrio, antes de mais, advertir o leitor acerca de wm acordo prévio a que chegdmos para tornar mais proficuas estes nossos encontros. Sendo medievalista o entrevistado, mode nista o entrevistador, decidimos concentrar a nossa atencao p meiro na cidade italiana e, em segundo lugar, noutras cidades da Europa. do mundo, desde a recuperagao por volta do século XI até A crise do século XIV. Mas permitir-nos-emos, sempre que isso pareca til, atravessar fronteiras, especialmente para as zonas contiguas da Alta Idade Média e do Renascimento. R. Pela minha parte, desejana tornar claro que a férmula de entrevista nfo nos impedira de entrar em dicussbes abertas; © nifo hesitaremos em aprofundar argumentos que nos sugiram conclusées mais ou menos divergentes. P. Em primeiro lugar, propusémo-nos discutir a defini¢do do conceito de cidade, e desde logo twescolheste um titulo para.esta nossa primeira conversa: a cidade como estado de espirito. Porque? Tu és um dos historiadores urbanos que maior importancia e atencdo prestou a consciéncia que tinham os homens da Idade Média de serem cidadaos, e nao «comitativi»' ou forasteiros. Por oulras palavras, deveremos entéo, para + Ouarmo, gue note eqnvlenteersctoem ports. referee a gropos (ou comitvs) ects para cidade mediowas. (N. dT) melhor abordar a cidade medieval, utilizar a consciéncia dos contempordneos como categoria de individuagdo? R. Segundo a minha maneira de ver, sim; ¢ essa consciéncia ceverd ser bilateral, interaa e externa, Um aglomerado nfo mereceo titulo de cidade se nfo for literaimente uma localidade capital, ndo faltam critérios externos para Ihe chamar assim, ‘mas nenhum me parece tio fundamental como a capacidade de contribuir para a evolugao humana e aceleré-la. Ao concentrar permanentemente um grande mimero de habitantes num espaco Testrito €, a0 mesmo tempo, atrair imigrantes e visitantes, a cidade pode ter uma. personalidade colectiva, uma complexidade e intensidade de vida que nao se encontram na mesma escala numa simples aldeia; mas, para traduzir em actos este potencial, tem de tomar consciéncia dele e de convencer os forasteiros a segui-la, Nao basta que seja uma primeira forma de nago, e que mantenha o seu patriotismo mesmo se incorporada em nagdes maiores, nem que seja juridica ou estatisticamente Classificada como cidade; para quem cré na hist6ria, «cidade» no € um conceito absoluto, mas relativo. Tomemos como ‘exemplo um caso moderno: hoje em dia, Los Angeles é, pelo ndimero de habitantes e pela riqueza de iniciativas, a segunda cidade dos Estados Unidos, logo a seguir a Nova Torque; mas porque se dispersa em subirbios sem um verdadeiro centro motor e coordenador, tem um caracter urbano menos acentuado que Sao Francisco, que € muito mais pequena, Hd trinta anos atrds, calhou cair-me o olhar sobre dois versos de Alceu, que Julgo nenhum historiador teria até af notado, mas me pareceram © parecem exprimir a quintesséncia do estado de espirito citadino, nfo 6 para o mundo grego do século Via.C., mas para todos os tempos. Permite-me repeti-los, apesar de os saberes de cor: ‘«Nio sfo as casas de belos telhados, ndo so as paredes de pedra bem construfdas, ndo so os canais nem os cais que fazem cidade, mas os homens éapazes de aproveitar a ocasition. P. Estébem, maspassemos agoraa alguns elementos concretos "No semido Intel de Joalidade que se encontra 4 cabega da regito circundante (opoluoga).(%. Do) 8 CN para os quais a nossa atencdo moderna é mais explicitamente ‘chamada, Provavelmente, a caracteristica visual que primeiro nos vend ideiaéa cintura de muralhas: nio as muralhas de uma simples fortificacdo ou de um castelo, mas as que foram construfdas com funcées de muralhas urbanas. Parece-1e que sao um elemento caracterizador, ou nao? R. Semdivida, endo apenasna Idade Média, Ver-me uma vez mais & ideia um exemplo que tenho invocado, talvez com demasiada frequéncia: o hierdglifo que significava cidade no tempo dos Farads, Consiste numa cruz inscrita num circulo, quer dizer, uma encruzilhada de caminhos protegida por muralhas, B as muralhas levam-nos etimologicamente palavra urbs em latim, & palavra townem anglo-saxio, ea outras ainda, ‘A simbiose entre muralhas e encruzilhada de caminhos, que devem ser complementares, requer porém um compromisso, porta. A menos que as muralhas se desdobrem, como frequen- temente acontece na Antiguidade e na Alta Idade Média: uma cerca interna ou superior para a acrdpole ou o castelo, que tem tuma tinica porta esireita ou uma ponte levadiga e, mais abaixo, tum bairro mais aberto ao tréfego, mas também menos protegido das incurses inimigas ou das aluvides. Seri proveitoso determo-nos mais adiante neste bindmio castelo-subuirbio enas suas sucessivas vicissitudes, que terdo um papel importante na evolugiio histérica da cidade. P. De qualquer modo, as muralhas pressupdem as portas e, na verdade, ndo é raro a porta ser um simboio da cidade e do poder de quem a governa. R. Ha mais de cinco mil anos, numa inscrigo sobre a porta principal de Lagash, no Iraque, o seu soberano ¢ sacerdote do Geus da cidade proclamava: «Aqui se decreta o destino, aqui os deuses distribuema justia, e aqui reside Ur-Engur, conselheiro do deus do céu eda terran. A tradigao perpetuar-se~é de modos diversos e em épocas diversas: af exportio os sultes de Marrocos as cabecas decepadas dos malfeitores, af hospedario os imperadores bizuutinos os mercadores ¢ ombaixadorcs estrangeiros, sob honrosa vigiliincia, af colocaréo as cidades ocidentais da Alta Idade Média’ emblemas dos santos 9 protectores, af expressaré Siena a delicadeza do seu pensa- mento, abrindo o coragfio mais que. largura da porta: «Cor tibis magis Sena pandit», diz a inscrigio sobre a Porta Camollia. P. No entanto, os valores simbélicos nascem e crescem sobre esiruturas, sobre elementos que, defacto, sao néo s6 reais, como Jd adquiridos. Vejamos qual o cardcter origindrio com que se ‘forma a cintura murathada. R. Uma cidade com muralhas € mais compacta e estruturada que os aglomerados urbanos modemos que, geralmente, perderam inclusive a cerca que definia as portagens. AS muralhas e portas medievais servem, antes de mais, para definir acidade no espago, Em segundo lugar, conferem 2 cidade uma posigio hierdrquica privilegiada,eaos seus habitantes um stats. de cidadio, ao qual voltaremos a seguir. Por outro lado, a auséncia de muralhas torna indefeso qualquer aglomerado urbano. Quando Rotario conquista e pretende punir Génova, arrasa-lhe as muralhas; Frederico Barba-Ruiva far 0 mesmo em relagiio a Milfo, no destruir todo o aglomerado (como em tempos erradamente se julgou), mas mandard arrasar as muralhas, P. Nalguns casos, mais tarde, a exigéncia de construcdo de murathas, fortemente apoiada pelo governo central, favorecea constimigiio de corpos civicos. E 0 caso das bonnes villes francesas. O governo régio sentiu necessidade de wn interlocutor, de um organismo clvico que respondesse em nome de toda a comunidade por essa imponente intciativa municipal que eraaconstrucdo de uma cintura de muralhas. Neste caso, as muralhas foram concebidas ndo como peculiaridade de wm simples castelo, mas como elemento de identificagdo defensiva de wna cidade R. Imagino que estejas a aludir & epidemia de fortificagdes construidas sob pressiio durante a Guerra dos Cem Anos. Este fenémeno pode, de certo modo, comparar-se 2 série de recuusuugies ¢ novas construgées provocadas, cntre 03 séeulos TX eo XI, pelas invasdes dos hiingaros e dos normandos. Pouco tempo antes de estas comegarem, os soberanos carolingios 10 tinham inesperadamente permitido que as muralhas antigas ainda intactas, poupadas is invas6es germanicas e a séculos de negligéncia, Tossem por fim incorporadas em estruturas privadas de bispos, de importantes vassalos latcos ¢ até de alguns mercadores. Mas as muralhas que entio foram apressadamente erguidas so essencialmente um produto da iniciativa privada, mesmo se levada a cabo por um bispo ou um Feudatario que se tivesse substitufdo a um governo central impotente. O célebre «canto das sentinelas modenenses», de que alguns criticos recentes sublinharam com justeza a dependéncia do tema estritamente religioso da alba espiritual, emboraeucontinue acrer que convertia esse tema emexortagao aos cidadios a que defendessem as muralhas contra os hingaros pagiios, espelha o mesmo estado de espitito. Pelo contro, as muralhasconstruidas para a guerraanglo-francesa por ordem do governo central parecem-me um sinal da debilidade do fenémeno comunal; no é por acaso que a palavra ville evoca etimologicamente villagio (aldeia), em oposigio a cité, que reproduz.civiras. Em Italia, ¢ também em muitas regioes do norte, as cidades erguem muralhas por sua propria vontade: € amitide no em cooperagiio com 0 soberano, mas contra o soberano. P. Portanto, erés que quando wma cidade se fortifica a pedido do soberano, o cardcter urbano serd menos nitido. De um ponto de vista da autonomia politica, isso & indiscutfvel. Mas quando oreide Franca ouoduque de Borgonhareconhecemumacintura demuralhas urbanas cuja defesa é dificil a sua intervencao parte da premissa de que ali, e nao noutro lugar, existe uma cidade, Nao creio, portanto, que esta categoria seja de rejeitar: 0 reconhecimento de que a bonne ville seja efectivamente uma cidade contém algo de verdade, R. Sem diivida, o rei que suportavao 6nus da fortificagiio de um, centro ainda nao distinguido com uma dignidade urbana, reconhecia-o como uma comunidade j4 populosa, e organizada; por sua vez, a construgdo das muralhas favorecia o desen- volvimento urbano do centro, ofcrendo trabalho ¢ seguranga. Maso éxito nfo era um dado adquitido, sobretudo.em tempode guerra e de crise econémica e demografica. Muito poucas das u bastides que proliferavamao longo da aguerrida fronteira anglo- -francesa se tornaram cidades. As coisas sio diferentes na eonjuntura favordvel dos alvores da recuperacio medieval europeia: quando no século décimo o bispo de Bérgamo, encorajado pelo rei de Itdlia, se dispde a erguer as muralhas, 0 que assegura 0 seu éxito nao é 0 diploma régio, mas 0 consentimento activo dos cidadaos e a crescente produgo do campo. Quando, em 879, os ministeria de Sithiu constroem ou ampliam as muralhas, ¢ um populus constituido por «nobres, inferiores e pobres» as defendem contra os normandos, nasce a cidade de Saint-Omer. As muralhas, claro que sim, mas, para dizer como Santo Agostinho ¢ Isidoro de Sevilha, a civiras nao est nas pedras, mas nos homens, P. Mas ndo pées em diivida que as muralhas sejam um elemento determinante da cidade, nao é verdade? Mais ndo fosse, porque Separamas suas casas e os seus homens fisica ejuridicamente do campo, e porque nas suas portas se pagam os impostos sobre as ‘mercadorias que entram ou saem. Além disso, as muralhas ¢ as portas influenciam a ordem interna: hd pouco faldivamos de Sentinels, e é justamente em fungao das portas ¢ da defesa das murathas que habituaimente se articula a estrutura dos bairres. R. De acordo, Em Montpellier, antes de a cidade inteira acei- tar a soberania francesa, as corporagdes chamavan-se scale (cscadas), pois cada uma delas tinha de possuir uma ou mais escadas para poder subir as muralhase defender o trogoe aporta da sua algada. Poderia citar outros exemplos deste género, mas interessa-me sublinhar que a estrutura dos bairros ¢ da organizagio defensiva a eles associada precede de muito a formagio das corporagdes, mesmo se acaba por ser emodelada por estas, A origem dos’ bairros, nas cidades mais antigas, remonta precisamente & cruz no cfrculo do hierdglifo, com impressionantes coincidéncias entre paises ¢ povos que no puderam influenciar-se uns aos outros. Encontram-se quatro baisros e quatro portas orientadas em Tenoctitlan, a Cidade do “México azteca; em Cuzco, a capital inca; nas cidades romanas esquarteladas pelo cardo e pelo decumanus; nas pré-cidades da Dinamarca birbara; e assim sucessivamente. E, a0 mesmo 12 tempo, uma acentuada preferéncia por uma cintura muralhada tanto quanto possivel circular, que segundo alguns historiadores a cidade antiga serviria como simbolo do disco solar, encamado no soberano que a governa, ou mesmo da propria cidade como capital e umbigo do mundo. Estas interpretagoes deixam-me mais perplexo que convencido. Pelo menos para a Idade Média, mais nio vejo na cintura circular que o resultado de uma expansio tipo mancha de dleo, tio inevitavel como 0 desaparceimento do reticulado baseado nas quatro portas onde ‘ni houver uma autoridade que imponha o seu plano; mas sobre isto se falard a propésito da forma urbis. O certo é que quando, em 1288, Bonvesin de la Riva celebrar Milo por a sua forma admiravelmente circular ser um sinal da sua perfeigiio,aideiade que 0 circulo tivesse um significado césmico e solar nio Ihe passard pela cabeca; a grandeza da cidade, a riqueza dos habitantes, a fertilidade do territério, a diversificagio dos oficios, adifusio da cultura, as gldrias militares parecer-lhe~io, a cle como a tantos outros cronistas urbanos do seu tempo, qualidades muito mais importantes, P. Mas também para ele, o facto de Mildo ser uma capital, ow pelo menos um lugar importante, um centro administrativo € religioso, € um elemento de primeira grandeza, R. Naturalmente. E issoé uma herangadacidade antiga, queera uma cidade-estado, uma urbs no centro de uma civitas, que dominava econémica e politicamente o territério circundante, Desaparecidos na Alta Idade Média os magistrados civis que a governavam, as suas fun¢Ges transmitem-se ao bispo, e mesmo quando a comuna medieval recupera a autonomia e nomeia os seus magistrados, permanecerd o conceito juridico de que onde héuma cidade hd ernregra um bispo, e vice-versa. Mascadauma destas fases — cidade governada ou, pelo menos, administrada por leigos, cidade governada pelos bispos, comuna essen- cialmente Jaica— corresponde a uma situagao diferente. Regra geral, acidade-estadoda Antiguidade concentrou a vida piiblica dentro do espago urbano, mas é controlada pelos proprietirios de terras de todo o distrito; a cidade episcopal do perfododa Alta Tdade Média restringe os servigos publicos aos fornecidos pelo pessoal eclesiistico sob a direcgaio do bispo; a cidade da plena 13 | € da Baixa Idade Média nfo s6 devolve aos leigos as principais fungdes de governo, como se transforma gradualmente de comunidade essencialmente agriria em comunidade comercial e artest, P. No entanzo, mesmo nesta lima fase, 0 bispo conservanuuita da sua importincia; s6 para citar um exemplo, quando em 1530 oiiltimo dos Sforza pretende conferir a Vigevano adignidade de cidade, assegura-se de que af serd erigida a sé episcopal. De resto, sabemos bem que até d era napolednica os bispos conservaram o dominio temporal de muitas cidades, de Trento a Vurtzburgo, de Magonza a Liege. E além do bispo e da sua ctiria, que fazem da cidade episcopal um centro administrativo, hid um elemento antagénico, constituldo pelo capiulo da catedral, sobremdo a partir do século XII: um capitulo no qual estdo representactos os interesses, ¢ portanto as familias, mais poderasos da cidade, R, Porém, uma dessas familias €, geralmente, a do bispo; ou, melhor ainda, dado que poder episcopal no é hereditirio, sfio as familias que aspiram a obté-lo; o capitulo entra na lnta dos partidos e acaba amitide por fomecer 0 pessoal que governa a comuna. Mas o bispo e 0 capitulo, tal como o conde (ire- quentemente pertencendo & mesma familia que o bispo) € até 0 ‘monarea nas capitais propriamente ditas, sio essencialmente elementos estranhos 4 comunidade urbana; podem modificar ou gerarascondigdes quecriamumacidade, masacidade medieval por exceléncia é uma cidade de mercadores e (geralmente em posigio subordinada) de artesos. A cidade que quer e pode desenvolver-se como'um centro de trocas ¢ de produgio, ¢ no simplesmente como centro de consumo, ou quando muito de exploragio do campo, deve desembaracar-se do bispo, abade, conde ou soberano como de um elemento estranho; se no correndo necessariamente com ele, pelo menos enquistando-o, exautorando-o, encerrando-o fisica e juridicamente no seu reduto e nas suas attibuigdes cada vez mais rigorosamente limitadas. A hist6ria das comunas estd recheada de esforgos como este, o seu éxito néo se completa até 0 clero € os feudatirios terem perdido todos os direitos e possibilidade de 14 ingeréncia na vida comunal. Roma, que nunca conseguiu desembaragar-se completamente do Papa mas que, por outro lado, dele depende para a sua grandeza, e que quando parece consegui-io sucumbe 2 um poder feudal soberano, nunca conseguiu apanhar as grandes comunas mercantis de Italia; e hoje a Cidade do Vaticano perpétua a imagem de um enquis- tamento total, Nas cidades que adquiriram plena consciéneia de sipréprias, nocomércioouna produgio, as imunidadeseclesisticas apenas permanecem como gritantes contradicdes ligadas a0 passado. ‘Um antagonismo aniilogo verifica-se também em relagéo as, universidades, de que falaremos mais adiante. P. Onde se mantém o poder do bispo ou do conde, tem-se uma sensacdo de atraso no proceso de desenvolvimento. R. Na maioria dos casos, sim. Mas nfo quer dizer que a Gistanciagio deva comesponder a um corte total: a convivencia ou, pelo menos, a vizinhanga podem ser harmoniosas, Em Génova, por exemplo, o bispo continua a receber uma parte modesta dos impostos (e ainvestir olucro naeconomia urbana); direitos honorificos (como, por exemplo, o cargo de chancelet das universidades), uma jurisdigao limitada, imunidades de todo género continuaram a ser reconhecidas aos bispos de quase todas as cidades europeias. P. Emgeral,ocompromisso entre uma comunidade urbana, que se emancipa pelo menos parcialmente, e wma autoridade, que se dissocia pelo menos parcialmente, é consagrado por wna carta, um foro, uma promocao a cidade imperial ou a uma forma de governo privilegiada. Parece-te jusio que nestes casos se Considere, como ofazem muitos historiadores do direito,a.carta como requisito indispensdvel para definir wna verdadeira cidade? R. Justo no terreno juridieo, mas apenas como um primeiro asso, nem sempre necessdrioe nem sequer suficiente, dado que as cartas sao mhitas vezes concedidas a simples aldeias, © nao raro seguindo um modelo, como a carta de Lorris, em Franga, ¢ ade Magdeburgo, a leste do Elba, Nao necessdrio porque se em grande parte da Buropa quase todas as cidades possuem uma carta, em Itdlia normalmente apenas hé_privilégios embrionirios no século X, e depois os acordos da paz de Constanga que permanecerdo letra morta; o que niioimpede que as comunas italianas reconhecam até 20 fim uma certa autoridade moral ao imperador ou ao papa, e chamem aos seus réprios decretos estatutos, em vezde leis. Na realidade, a carta € um documento arcaico e feudal que, precisamente por concedercerias liberdades, exclu implicitamente as outras; mas € essa uma matéria complexa que convird desenvolver mais adiante, pois vai muito além da definigao de cidade e insere-se no cerne da hist6ria politica urbana, P. De acordo; mas sem propriamente passar em revista estes e outros sinais ‘distintivos, que na historiografia ottocentista seriamda praxe, gostaria de pegar mum deles quefoi comum, se do a todas, pelo menos a quase todas as cidades europeias do antigo regime: 0 dos organismos profissionais, das artes, dos doficios, da Ziinfte: em sma, o mundo das corporacées. R. Comos oficios, passamos a uma outra ordem de caracteres, distintivos, 0s factores internos € concretos; mas antes de 0 fazer, sublinhemos que o pedantismo da velha escola juridica, tio itritante quando um Petit-Dutaillis exclufa Paris de um panorama das comunas francesas por nfo possuir uma carta, ajudava porém a descobrir os numerosos pontos de apoio que serviam para reivindicar a condigio de cidade: carta ouestatuto, sino ou sinete, direito de cunhagem, isengiio de impostos, cortes de justiga, porventura estandartes ou carroccio'e, até, um santo padrociro mais importante que os outros (Siio Marco em Veneza, Sio Jorge em Génova, So Bris em Dubrovnik-Ra- gusa, eassim sucessivamente). Que tivessemsidoobtidosdeum soberano, através de um acordo bilateral, usurpados pela forca, ou adquiridos tacitamente pelo costume tornado posse imemorial, alguns destes privilégios tém em muitos casos um valor econémico consideravel, Tal & por exemplo, 0 caso da autonomia monetéria: 0 florim de Florenga, 0 ducado de ‘Carr de guona medieval munide de bandera, sino aa, (N. do.) 16 Veneza, além de fontes de prestigio sfio fontes de riqueza, enquanto omonopéliorégio de cunhagem, parcial ov total, é um, fardo, tanto mais pesado para as cidades francesas e inglesas, quanto 0 soberano dele se serve para desvalorizagées © chantagens. P, Voltemos @ estrunira social. O essencial, na hustéria da cida- de, €a definigdo de wna sociedade, da qual as organizagées de artesdos sdo uma das manifestacées fundamentais. R. Sim, mas cronologicamente no sioas primeiras. Na cidade da Antiguidade, o trabalho forgado dos escravos e a ineficiicia das miquinas’reduziam 20 mfnimo a_possibilidade de organizagbes cficientes; mesmo onde hi collegia de artesiios pequenos comerciantes, trata-se geralmente de grupos pouco numerosos, econémica e politicamente débeis frente a0 forne- cedor de trabalho, 20 consumidor, ao Estado. Nos alvores do movimento comunal, encontramos grupos de trabalhadores especializados ais ordens de_um superintendente ou, pelo contrério, guildas e corporagées nem sempre especializadas profissionalmente e por vezes ilegais, mas, sobretudo, familias e classes mal definidas (maiores, mediocres, menores). As corporagées de artestios progredirio pouco a poucoe, na maior parte dos casos, serd preciso esperar pelo século XIII para que se organizem formalmente ¢ depois se tornem um factor na vida plblica da cidade, sem no entanto tomarem o poder antes dos ois tltimos séculos da Idade Média. Com ou sem corporagées regulares de artesfos, a caracteristica social necessina € suficiente da cidade no é portanto a estrutura juridica, mas diversificagio das ocupagGes ou fungdes; daqui nasce a troca de servicos, de produtos, de ideias, de iniciativas para explorar ou criar a ocasigo, que é a quinta-esséncia do dinamismo urbano. Rodeado de muralhas ou no, populoso ou nzo, um aglomerado medieval todo ou quase todo constituide por pescadores, mineiros, agricultores ou soldados nfo ¢ um organismo multicelular, € uma amiba. A cidade tem de ser diversificada; isto nfo impede, naturalmente, que a aldeia dificilmente carega de algum especialista, como 0 padre, o ferteiry, o canteteiny. Ente a cidade e a nfio-cidade existe, portanto, uma zona cinzenta e nao um corte nitido. Ficando assente 0 princfpio de gue € necessdrio um minimo de variedade para demonstrar 0 Ww cardcter urbano, € preciso resignarmo-nos a considerar que este mifnimo nfo se pode fixar de uma vez por todas e que, em dltima andlise, a definigio ndo € absoluta, mas relativa, dependendo dos tempos, dos locais e até do estado de espirito do observador. Héespeciaiistas da pré-hist6ria a quem bastam as figurinhas de argila pintada de Jericé € os tapetes de palha entrangada de Jarmo para chamar a esses centros agririos cidades primitivas. Por maioria de razio, os acampamentos de némodas como os hunos de Atila on os mongéis de Gengiscio facilmente poderao passar por urbanos, Ummedievalista hesitard emchamar cidade a uma qualquer bastide muralhada com uns quantos artesios, mas nio tera dividas no caso de Mantua, cidade predomi- nantemente agricola, mas provida de bispo, de cunhagem propria, de cénsules ¢ mercadores. P. Nestes termos, parece-me que a minha pergunia sobre as corporagées teré sido de certo modo, evasiva. Apaso xéculo XI, @ ndo pensemos apenas nas cidades de origem romana, mas também nas novas cidades que surgem no Mar do Norte, ndo hd centro urbano em crescimento ¢ desenvolvimento em que a estrutura corporativa ndo se faca anunciar. Ou seja, podem existir muralhas sem cidade; tipréprio ofizeste notar hd pouco, e eupartilho plenamente dessa afirmacdo. Mas quando existem numerosos organismos corporativos dentro de uma cintura urbana, dificilmente poderei deixar de me sentir numa cidade, Por outras palavras, parece-me ser esse um dos poucos caracteres exclusivos de wna cidade; é bastante dificil que um burgo tenha corporacaes. R. Contudo, tu partes da imagem da cidade do antigo regime (isto &, p6s-medieval). Eu, que parto da Alta Idade Média ¢ um pouco da Antiguidade, tenho um longo caminho a percorrer antes de ligar a definigao de cidade as corporagies de oficios propriamente ditas. Evidentemente que, quando no século XIII e mais ainda nos séculos seguintes as corporagbes se gene- ralizam, quando travam um combate desigual para participar no governo, nao hd cidade, mesmo pequena, que nao as tenha; mas noanomile tal aconversa éoutraeacidade tfpicadaplena Idade Médiandoédominada pelosartestios, mas pelosmercadores, tal 18 comoacidade da Antiguidade o era pelos proprietirios de terras. Por outro lado pode surgir, muito em breve, uma guilda de mercadores (raramente no sul, muito mais frequentemente no norte), mas geralmente desaparece ou identifica-se com a comuna urbana mal esta tenha triunfado. P. Nao se pode deixar de dar uma othadelaa um outro factor que quase sempre é apresentado para sugerir distingdes entre aglomerados urbanos e rurais: o factor demogréfico. O nimero absolute de habitantes, a densidade populacional na encruzilhada delimitadapelas muralhas, ndo serdporventura tao dirimente como a diversidade das ocupacdes? R. Também aqui poderia iludir a pergunta com uma citagio grega; em meados do sécuio sexto antes de Cristo e, portanto, cerca de cinquenta anos depois de Alcen, Focilides proclamou: « melhor uma pequena cidade bem’ destituida sobre um rochedo, que todas as riquezas de Ninive». Mas ndo quero ser evasivo. O critério demografico impée-se tantoc até talvez mais que 0 coeficiente de diversificagio profissional, funcional e social; mas, se se exclufrem os casos extremos (cem habitantes nfo bastam para uma cidade medieval, cem mil so uma metr6pole), o minimo demografico indispensivel é ainda mais dificil de identificar e mais varidvel, de acordo com o tempo e 0s lugares, Seja como for, antes de meados do século XIV (ou do fim do século XII em pouquissimas cidades:talianas) nao ha dados estatisticos que inspirem confianga, e mesmo depois as interpretagdes dos dados oscilam assustadoramente, consoante ‘quem os trata, mais ndo seja porque quase nunca dizem respeito a individuos Singulares, mas a chefes de familia, ou fogos ou contribuintes de determinados impostos. Basta pensar que, com base nos registos da taille parisiense escalonados entre 1292 e 1313e corroborados por outros elementos de apreciagiio nfio-es- tatisticos, estudiosos de grande mérito sugeriram para a populagio de Paris valores entre oitenta mil e duzentos mil habitantes. Um ponco mais de confianga inspiramas estimativas para Florenga e Millio citadas por dois cronistas contem- porineos, Giovanni Villani e Bonvesin de la Riva, sobretudo porque compativeis com valores relativos ao consumo apre- sentados pelos mesmos cronistas; mas, mesmo que os toms- semos letra, de que servern estimativas limitadas.aduas ou trés 19 cidades, enjo cardcter urbano nao se pode por em diivida por ‘outras tantas razbes? O primeiro censo geral fidedigno ¢ 0 do estado de Florenga, no inicio do século XV, completado com toda a espécie de informagio nfo-quantitativa por Herlihy e Christiane Klapisch; mas estamos no fim da Idade Média. Por outro lado, pode medir-se a superficie de todas as cidades com muralhas- (mas no tio facilmente a dos subiirbios) e, desse modo, estabelecer nfo um minimo, mas um maximo de populagio admissivel, sem postular ajuntamentos inver simeis; todavia, a densidade exacta dentro dessa superfici frequentemente ainda mais controversa que 0 nimero de ‘pessoas por fogo ou por familia, P, Ademografiahistéricaéumaciéncia jovem, que talvez corra alguns riscos, mas esté a fazer grandes progressos. Além da elaboracdo com computadores dos grandes levantamentos sincrdnicos (cadastros, estimativas, recenseamentos impostos, capitagées, etc.), utiliza wma crescente variedade de elementos ndo propriamente estatisticos, mas de qualquer forma quan- tificdveis: niimero e altura das casas em sectores limitados, céleulos dos espacos vazios (ruas, pracas, jardins, lagos, rufnas eassim sucessivamente), niimero de individuos afectos a certas profisses e servigos. A falta de valores exactos, podemos Contentar-nos com estas aproximacées para definir ordens de grandeza, Parece-me que nos illtimos quarenta anos tem sido bastante bem aceite a ese de Hektor Ammann de que, para uma cidade alema, um milhar de habitantes é um minimo suficiente e mais de 20.000 wm nimero excepcional; enquanto, para wna cidade italiana por volta de 1300-10.000 habitantes esid wm ‘pouco abaixo do minimo e 100.000 é um maximo atingido e, em dois ou trés casos, ultrapassado. R. Sim, mas essas coisas so quase intuitivas, jd 0 sabfamos ‘mesmo sem estatfsticas; ¢ justamente porque um historiador da economia tem um profundo respeito pelos niimeros exactos, essas aproximagoes dio-lhe mais aborrecimentos que ajuda. De resto, todas as quantidades so interpretadas e criticadas. Por exemplo, a densidade populacional, normalmente um sintoma positivo do movimento dos campos para a cidade, pode tomar- se um fenémeno negative quando demasiadas pessoas 20 partilham um quarto ou no tém um tecto. Em Opole, na Silésia polaca, os arquedlogos mediram os parcos aposentos das miserdveis casas dos primeiros séculos posteriores ao ano 1000 ¢ concluiram, com ou sem razio, que num par de hectares se apinhava a populagio de uma auténtica cidade, Em Cons- tantinopla havia grandes palicios, parques, jardins eruinas, mas Romano If considerou necessdrio fechar os pérticos para queos pedintes que af dormiam nao morressem de frio. Por outro lado, O proigresso do bem-estar, pelo menosnas classes abastadas,e as exigénoias do tréfego levaram, em cidades como Florenga, 20 alargamento das ruas e & construgao de casas com um relativo desaproveitamento do espaco. E depois, que significa o niimero sem a qualidade? Com cerca de cento ¢ vinte ¢ cinco mil habitantes, a Florenga de Dante era mais ou menos cidade que a Florenga de Miguel Angelo, que talvez tivesse setenta e cinco mil habitantes, ou que a Florenga hodierna, com quatrocentos mil? Se a cidade € antes de mais um estado de espirito, uma encruzilhada protegida e circunscrita por muralhas ou (nos tempos modernos) por simples fronteiras administrativas no identificéveis sem uma carta topogrifica que as descreva, nenhum elemento s6 por si deve ser negligenciado, mas nenhum basta para determinar a cidade. P. Nenhumaférmula, s6 por si, pode satisfazer-nos; ¢ os diver- sosfactores caracterizacores assumem, portanto, emcadaépoca ¢ em cada pais, um significado e um sentido préprios. Mas a nossa discussdo trouxe @ luz um elemento que, embora com os necessdrios matizes, 1w consideras no essencial prioritério para conferir a wm agiomerado carcter de cidade: 0 «estado de esplrito» dos habiiantes, Nesta perspectiva, a quesiao de Florenca jd ndo tem razGo de ser’ para os Florentinos ela foi sempre uma cidade, Mas se 0 foi mais no século XIV, ou com ‘Cosme I o1 hoje, isso podemos estabelecé-lo nds, se emlugar da Consciéncia coeva acentuarmos um outro critério, o das funcdes concretamente exercidas. R. E isso que concretamente iremos averiguar. Mas considero que compreender o espirito ea mentalidude de quem viveu esse ambiente e essa experigncia € o primeiro dever a cumprir do ponto de vista da Historia, Nao é por acaso que os soberanos do 2 Ocidente, habituados a um sistema feudal baseado em acordos bilaterais entre individuos singulares, conceberam frequen- temente as cidades como partes orginicas do sistema, equipa- rando-as a vassalos colectivos. A integragdo transferin-se para ‘© parlamento com os representantes e os porta-vozes das cida- es, A propria cidade sentiu necessidade de se conferir de algum modo uma personalidade colectiva: Novgorod (para citar pelo menos um exemplo fora do Ocidente) autodefiniu-se nos documentos piiblicos como «o Senhor Novgorod, 2 Grande», E para citar um exemplo italiano, havia em Génova (e também noutras cidades do territ6rio metropolitano e colonial genovés) um Funeionério piiblicode importincia modesta, 0 centraco, que de ordindrio servia de pregoeiro ¢ arauto mas, sempre que a cidade conclufa um acordo ou um tratado, devia jurar o seu cumprimento sobre o «espirito da Comuna»., E certo que no basta que uma cidade se considere superior a uma aldeia pela intensidade da sua vida, pelas tradigGes historicas, pela riqueza € pelo poderio. Tudo serve para se afirmar perante o mundo exterior: as inscrig6es sobre as portas da cidade, as catedrais, os palicios piblicos, os sinos e mais tarde os rel6gios, mas, repito, € também necessirio que esta conviegiio ou pretensio seja de algum modo aceite pelos outros. E jé que Roma caput mundi 6 © modelo supremo do éxito urbano, intimeras cidades se declaram filhas primogénitas de Roma. E como se isso niio bastasse, 0 londrino que descreve a Londres do século XIII, William Fitzstephen, reivindica para a sua cidade um fundador troiano, Brito, ep6nimo de britinico, ¢ portanto contemporiineo de Eneias e anterior a R6mulo. Veneza, que olhava mais para a segunda Roma, Constantinopla, nifo se contentou com ser sua filha primogénita e conquistou-a. 2 DA CIDADE ROMANA AS ORIGENS DA COMUNA P. Comeco com wna questdo tradicional: tem-se considerado proficuo insistir no dilema da continuidade ou, fractura entre a cidade do fim da Antiguidade e a cidade da plena e da Baixa Idade Média. R. Isso foi jé discutido na primeira semana de Spoleto dedicada a cidade da Alta Idade Média (em 1958) mas, quinze anos depois, a semana dedicada atopografia urbana nfioretomouesse dilema, apesar de as igrejas, as pontes, asruas, as préprias pedras reutilizadas em sucessivas construgoes _terem certamente ‘constitufdo elementos de continuidade. Creio, de qualquer modo, ter expresso uma convicedo largamente partilhada no meu resumo da primeira semana, dizendo que o problema da continuidade, mesmo se inevitivel como ponto de partida, no ‘esti correctamente colocado: nfo se deve procurar a continuidade, mas a persisténcia, Tal como todos os organismos vivos, uma cidade nao pode perdurar sem se adaptarde imediato as circunstdncias em ransformagio. P. Aofalar de continuidade ou de fracturaza atencéo centra-se nas fases de recuperacdo ou até de renascimento. Tu dedicaste um artigo @ polémica contra a tentativa de fazer recuar 0 -Renascimento até ao século X. R, Tal cumo Calasso, crcio que para se renascer é preciso nfo se ter morrido completamente: muitos renascimentos prepararamo Renascimento, cada uma seu tempo ea seu modo. 23 E, comefeito, é muito provavel que na Alta Idade Média tenham persistido num bom niimero de cidades de origem romana, especialmente Itilia actividades olectivasque nuncaforam interrompidas por serem indispensiveis, como a manutengao € a defesa das muralhas ¢ da ordem piiblica interna, uma certa manutengio das pontes € dos esgotos, a administragtio dos pastos e dos terrenos suburbanos colectivos, ohdbitodereunio, seniio no foro piblico, que geralmente tinha desaparecido, pelo menos diante da igreja (conventus ante ecclesiam), mais raramente e por menos tempo alguma antiga magistratura com fungdes reduzidas ou transformadas, Mas sem adaptagio noha vida, apenas hd os esqueletos evocados por Carducct na Consulta araldica. Nao se pode negar a continuiciade formal do Império Romano, transferido para o Oriente e transmitido sem interrupcZo do primeiro ao décimo primeiro Constantino; mas a sua persisténcia vital expressou-se na passagem do latim 20 grego, do Corpus Juris 4 Ecloga, da legiio & cavalaria catafractaria. P. Entdo ndo se deve sobrevalorizar nem sequer a continuidade ‘formal de umaglomerado urbano como Mildo, onde subsistiram ‘ bispo, um rito ambrosiano que remonta ao fim do Império € uma basilica de Sdo Lourenco edificada precisamente sobre as estruturas termais romanas? R. Também neste caso a palavra-chave parece-me ser mais persisténcia que continuidade. As estruturas eclesidsticas, soli- damente implantadas antes da queda do Império romano, permaneceram ancoradas 2 cidade episcopal, mais no fora porque o bispo tinha necessidade das muralhas para se proteger da encruzilhada para comunicar com todos os fi¢is da sua jurisdigo. Mas hd uma boa diferenga entre santo Ambrésio € Ariberto d’Intimiano, entre Ariberto ¢ Ottone Visconti, entre Ottone e 0 cardeal Montini. Além do mais, durante quase um século, obispo de Milfo auto-exilou-se em Génova; ¢ quanto & inevitdvel persisténcia dos esgotos, de que ha pouco faldmos, em Mildo os arquedlogos encontraram as tubagens romanas estmagadas sob varius mewos de deuitws da Alta dade Média. Em seu lugar, no século X corria & superficie um fétido regato ainda chamado cloaca e depois substituido por novas 24 instalagdes. Obispo completou pois a sua apropriagio da administracdo civil, j4 iniciada com Justiniano, e a0 mesmo tempo perdeu 0 controle docampo que, pelo menos no Império, cabia ao conde militar. Concluiu-se, assim, o primeiro paso em direcgdo a transformagio da civitas, de capital de um distrito agrfcola em centro comercial em oposigZo a0 campo. No respeitante ao bispo, a corrente comegard a nverter-se bastante mais tarde, nos séculos XII-XII1, especialmente na Alemanha, onde a cidade procurari rechag&-la de novo para o campo. P. Efectivamente, em Col6nia, que €a maior cidade romana da ‘Alemanha, os cidaddos derrubardo em 1288, apds prolongada luta, o poder do bispo, que se retirard com asua corte para Bona. O peso da poderosissima ctiria, com os seus ministeriales (wm deles era o conde de Jilich), tinha-se tornado insuportével para 0 impetuoso desenvolvimento da cidade. Quase para- doxalmente, de elemento propulsor da vida citadina contra 0 elemento laico e militar circunscrito ao campo, 0 bispo tenderd atransformar-se em expoente do feudalismo agrério.Mas assim ndo sucede em toda a parte: hd lugares, como Liége ou Varlzburgo, onde 0 bispo se mantém no poder na cidade, travando-lhe inevitavelmente o crescimento: Liége sera ultrapassada por Grande, Vurleburgo por Francoforte, ¢ assim sucessivamente. R. Acrescente-se que também na Alta Idade Média muitas sés episcopais se deslocaram do centfo urbano das comunicagdes para a colina menos exposta a ataques ¢ A impaludagio, de ‘Anicium para Le-Puy-en-Velay, de Verulamio para St, Albans. ‘Apesar disso, a Tgreja continuou a insistir na ligagzo episcopado-cidade, devido a um conservadorismo paralelo a0 a administragio bizantina, Quando os francos quiseram criar uma rede de dioceses na Saxdnia, recentemente convertida, preocuparam-se com a falta de cidades onde as implantar e por isso fundaram-nas, nfo raramente com éxito; esta pritica continuou nos paises de colonizacdo mais para leste. Por outro Jado, na Irlanda, obstinadamente rural, a Igreja nfo foi bem sucedida ¢ ctigiu cm sedes episcopnis os mosteiros, chamando- “Ihes civisares, embora no conseguisse transformé-los automaticamenie em verdadeiros centros urbanos. Noutros 25 lugares houve mosteiros que deram origem a uma cidade, embora raramente de primeira grandeza: Saint Riquier, por exemplo, era na época carolingia um centro urbano em minia~ tura, com profissées especializadas ¢ um mercado activo. E 0 mesmo se pode dizer de varios castelos, micieos de aglomerados urbanos novos ou que ressurgiram, especialmente na Flandres, onde grande parte das civizates romanas tinham desaparecido ou, pelo menos, se se aceitar a discutivel tese de Verhulst em oposigo 2 tese ckissica de Pirenne, estavam muito debilitadas. ‘Também na Franca do Sudoeste mosteiros ¢ castelos, velhos ou novos, tiveram uma funedo urbanizadora, criando subirbios onde nao faltava um nicleo antigo, e em lugares como Arles € Nimes a arena romana serviu de miicleo fortificado, Disto se yoltard a falar a propésito da forma urbis mas, para concluir provisoriamente a questo da continuidade, € de notar que no renascimento urbano que assinala a passagem da Alta a Baixa Tdade Média (renascimento ii bem encaminhado no inicio do século X nos territ6rios antetiormente romanos) nfo raro algu- mascidades antigas, de cuja persisténcia hd provasindiscutiveis durante a Alta Idade Média, foram depois ultrapassados por novos ceniros. Nao hi parte do Ocidente onde a tese da continuidade parega mais plausivel que a Italia bizantina; e, de facto, Napoles nunca foi totalmente eclipsada, Ravena teve organizacées de oficios que aparentemente teriio passado sem interrupgiio do collegium romano para a scuiola bizantina © depois para a arte comunal; Aquileia s6 cedeu em parte a sua fungio a vizinha Grado, mas varias cidades que passaram para primeira linha nos alvores da recuperaciio urbana so novas ou renovadas: Veneza, Amalfi e Bolonha. No norte barbaro, aonde Romaniio tinha chegado, a recuperagiio manifesta-se sobretudo numa série de portos maritimos ou fluviais, sustenticulos frequentemente preciirios e variaveis, pois basta uma inundagio ou uma incursio de piratas para que os seus habitantes e visitantes procurem outro ponto de apoio. Na Suécia, por exemplo, a vida urbana embriondria tendia a concentrar-se numa das suas muitas ilhotas lacustres, propicias is comunicagdes ¢ adequadas i defesa, mas a preferéncia pelas ilhas s6 sé fixou depois de vanas experiéncias em Lillo, no século VII, em Pirka, no IX, em Sigtuna, no XL, por fim, no século XI, em Estocolmo. E também ‘na zona da fronteira 26 EE ———————————— romana houve transferéncias semelhantes, de Boulogne para Quentovie, para Duurstad, para Calais. Até Londres viré, em dada altura, a ser chamada Lundenwik, como se se tratasse de uma nova cidade. "A localizagio geogrifica exacta pode até mudar, mas mantém-se um convite para formar centros urbanos em deter- rminadas regides a fim de responder a determinadas exigéncias. ‘Amalfié, porassim dizer, uma variagio do tema Napoles, Calais uma variagio do tema Boulogne. P. Naplanicie do Pé, todas as capitais das provincias modernas coincidem com as civitates romanas mais importantes, das quais até conservaram o nome, salvo Ferrara, que surge como posto avangado longobardo peranteaRavena bizantina. E tambémem Franca, em Espanha, em grande parte da drea danubiana-bal- cénica, a lista dos centros urbanos importantes confirma na maior parte dos casos uma correspondénciasemelhante. Apenas nna zona de fronteira a rede urbana se deslocou sensivelmente: ‘em Inglaterra, por exemplo; mas também ai o golpe de mise- ricérdia ao passado néo veio tanto das destruicdes anglo-saxé- nicas como das construgées da revolugéo industrial. R. Por isso ew aceitei a palavra persisténcia. A verdadeira continuidade, se existir, deveremos procuré-la ao nivel biol6~ gico mais baixo, o da familia, E evidente que muttas familias se Extinguiram nos séculos de depressio demogrifica (também se extinguem na nossa era de explosio demogrifica), mas é ainda mais evidente que niio hi filhos sem pais. Mesmo nos séculos mais obscuros, quando a autoridade central se revela impotente @ a sociedade Se encontra desagregada, quando aumentam os fespagos vazios entre um aglomerado e outro e nesses vazios se ddispersam as iniciativas comuns e jd niio ha meio de satisfazer certas exigéncias, a familia permancce a tinica instituigao social valida. P. Concentremos entéio wn pouco da nossa atencdo na arti- cullaciio concreta da vida piiblica na cidade da Baixa Idade Média. Também eu estou convencido de que, para além de uma dificil reconstituicdo genealégica dos séculos da Alta Idade Média, é a familia extensa que convird ter como ponto de 27 partida, Tem-se discutido muito, e sobretudo nas tiltimas gera- goes de historiadores alemdes, franceses e também italianos, ‘mais que no passado, sobre a origem das familias que vemos surgir na vida urbana mal os dados se tornam mais numerosos @ seguros, isto é, logo que conseguimos seguir um certo riomo orgdnico e quotidiano da sociedade urbana, Crés que seja itil retomar o problema do ajluxo @ cidade das familias feudais, ministeriais, em geral de nobreza mediata e territorial? R. Certamente que sim, até porque esse afluxo est em parte ligado A grande transformagiio das exigéncias a que a cidade medieval responde. 14 nfo se trata de exigéncias predomi- nantemente agréirias, mas sim comerciantes; Veneza esti menos ligada A agricultura do interior que Ravena, mas € preciso ser-se prudente. As construgdes genealégicas baseadas na anaiogia e na recorréncia de nomes de pessoas que sio muito comuns revelam-se bastante arriscadas, e até porque cada familia que sobe na vida procura no sublinhar o seu nome, mas camuflar as suas origens. Tipico € 0 caso dos descendentes de Baruch, 0 judeu, que se tornou Benedetto, o cristo, financeiro e pres- tamista, progenitor dos Pierleone, que na luta das investiduras estenderfio uma mao firme aos’ papas reformadores e, em especial, a Gregorio VII; que tentardo a carta do papado com Anacleto Ie, depois de este ter sido declarado antipapa por uma contestavel arbitragem de io Bernardo, se pordio 2 cabega da primeira comunade Roma com oirmao Giordano, acabando por fabricar uma genealogia que os associa aos Anici (ou seja, 20s imperadores romanos, ao papa Gregdrio Magno, etc.). Penso também no doge veneziano Orio Malipiero (fins do sée. XII), descendente de um Mastropiero! que anula o patronimico ariesfio, No quero com isto asseverar que a maior parte das familias importantes nas primeiras comunas italianas sejam de origem ndo-nobre e niio-feudal; pelo contrario, é caracteristico da hist6ria italiana, e explica o seu precoce desenvolvimento, que um grande niimero de nobres menores liquidem as suas terras ow invistam as receitas provenientes da agricultura no comércio. As familias que se poem & cabega da comuna Mesire Pero (N.d0.) 28 Lae EE ETE EE ETE EE EEE ERE ee ne ere EEE PEEEEE EE EERE EEE EEE HEE EEE EEE CEE HEE ECE CEH EEE EEE CECeEHEEEerer® genovesa, tal como da de Pisa, so descendentes de viscondes; @ isso revela uma diferenca notével em relacio is familias que ‘mais se distinguem em Marselha ou em Barcelona, também de viscondes, mas que no se misturam com os mercadores © mantém a sua feigdo de terra-tenentes. O caso de Amalfi é um caso intermédio, porque a aristocracia da cidade participa no comércio mas, por assim dizer, com a mio esquerda. Como Del ‘Treppo fez notar, esses homens mantém-se fundamentalmente proprietirios de terras; e porventura nao serd esta a menor das muitasrazes do travao imposto ao desenvolvimentode Amalfi Em Veneza, a participagio da nobreza no comércio & particularmente evidente, Basta pensar num dos documentos venezianos mais antigos: o testamento do doge Giustiniano Partecipazio, que ja em 829 dispée de considerdvel capital Viquido investido ‘no comércio marftimo. Fora de Itilia, a participago da nobreza feudal & muito mais limitada, ou pelo menos assim parece, j4 que o aparecimento de documentos susceptiveis de verificagao é muito posterior. Os «cavaleiros da arena» de Nimes, por exemplo, podem ter contribuido para o Gesenvolvimento da cidade. Quando, porém, se comega a ver mais claro, as pessoas que figuram na primeira linha de um movimento comunal ou pré-comunal revelam-se, na maioria dos casos, no s6 de origem niio-nobre, mas até inferior. P. Se aqui afloramos o problema ndo dos servas rlsticos, mas dos homens ndo-livres a que na Baviera, na Borgonha e em tantos sitios da drea alema se chama’ ministeriais, ndo é certamente aos homens livres que nos referimos, mas aos potentes e primiores das grandes familias. E a isso que aludes? R. Sim, sobretudo a esses, e também aos chamados censuales, que so servos da igreja e perseveram nessa sua qualidade num grande niimero das cidades setentrionais entre Arras e Worms: 2 estes nao convém dissimular a sua origem, precisamente porque, como servos na chamada familia eclesisticae pagando um censo pouco mais que simbélico, tém direito a uma jimunidade que perderiam com a liberdade absoluta. Isso no impede que entre os séculos XT e XII surjam ma lideranga das suas cidades. Nao & preciso aderir As teses extremas de Plessner, que aproveitou a imigragio de libertos de uma aldeia para 29 Florenga para reduzir o tema do «servo fugitivo» a lenda, Na realidade, os exemplos de servos risticos que procuram ¢ encontram a liberdade, infiltrando-se entre as muralhas de uma comuna livre, sio numerosos e irrefutéveis. Todavia, € de admitir que, nos séculosdecharneiraentre a Altac aBaixa Idade ‘Média, a linha de demarcagao entre servidio ¢ liberdade se perde na nebulosidade do direito e no esboroamento do poder central. P. Nemmesmooportede armas é, paraeste efeito, umelemento diferencial; nem todos os homens que faziam a’ guerra eram Livres e, muito menos, nobres. R. E isso faz-se sobretudo sentir nas zonas de fronteira ¢ de contenda que, no século X, se estendem a quase toda a Europa. ‘Até etimologicamente os extremos se tocam: em inglés knight significa cavaleiro ¢ em alemio knechr significa servo, mas a raz € a mesma, Em Castela ¢ Leo hf uma categoria de caballeros villanos que Sio, na realidade, camponeses a cavalo {que esperam vir a ser (se tudo correr bem) hifos de algo, filhos de algumas posses, ¢ talvez ricos hombres, ricos de terra, de dinheiro ou de ambas as coisas. No século X, a primeira e notivel carta puebla, ou estatuto embrionério, de Cardona, na Catalunha, acolhe na cidade servos fugitivos € adiilteros procurados pela justia. A mobilidade social manifesta-se também a um nivel mais elevado. Os valvassort (vassalos de vassalos) do Milanés fazem que Conrado II Ihes conceda o direito de heranga dos feudos como os capitiies, ¢ a0 mesmo tempo combatem o arcebispo e preparam a comuna. ‘Mas falaste nos ministeriais: entre estes hd uma categoria importante e insuficientemente estudada, os moedeiros. Presentes em toda a Europa na altura da’ viragem para as comunas tém, julgo eu, uma fungdo-chave, mas 0 seu destino ifere de pats para pais, ou até de cidade para cidade, Cunham moeda e sem divida a trocam e emprestam; encontram-se portanto entre os primeiros a poder investir capital Iiquido na nova economia comercial, mas foram os primeiros a eclipsar-se quando se desenvolve 0 comércio e a banca especializuda, Na Itélia eram jé livres e quase nobres no século IX, mas mal tertio tempo de ingressar na classe dirigente da comuna antes de 30 Peers er eegere reese eeCe rere veered geee tee svpECeaPRCR err vere Taree raver rz gpEEC PEERS tee gSTEPStag EEE TESECSEEEE =H regressarem & sombra, Em Franga e em Espanha mantém a sua posigdo deferenciada um pouco mais de tempo: na Alemanha passam da servidio & pequena nobreza, mas nalgumas cidades ingressario no patriciado urbano € farfo parte de governos municipais, Retomemos entio o exame da evolugio urbana de funda- mentalmente agraria para fundamentalmente comercial, par- tindo das tés classes vagamente identificadas como «maiores, medjocrese menores» (mas odaselasradicadasnaagricultura). ‘Também na precoce Veneza de 971, a mais antiga acta de um parlamento urbano que chegou até nds fala de «os mais altos, os iédios e os mais baixos» que, de pé frente do doge, do patriarca edealguns bispos (estes, pelocontrério, sentados) discutemme- didas de politica comercial e juram 0 seu cumprimento. A ter- minologia € arcaica, mas trata-se de comércio e todos os presentes parecem ser homens livres. E jd em 750, no meio do reino longobardo, Astolfo tinha equiparado os negociantes poderosos, mediocres e menores aos proprietirios de terras, ‘obrigando-os ao servico militar em armas diferentes consoante a sua classe, Em Franga, cem anos mais tarde, Carlos, o Calvo, Fardaos negociantesa gravosa honrade os submetera umtributo especial para a guerra contra os normandos: do mal o menos, Teconhece-os implicitamente como homens livres. Na ‘Alemanha serd preciso esperar um pouco mais. A comuna nao nasceu e, todavia, ouve-se falar ainda antes do século X em pleitos © conjuras urbanas contra bispos do Império, por exemplo em Turim, Cremona e Cambrai. Em 998, nomeia-se uma domus civitates prépria em Cremona, onde porventura se reGinem os representantes do bispoe os membros das trésclasses jf referidas e onde, certamente, se discute uma velha contro- vérsia entre 0 bispo e os mercadores do P6, a propésito de impostos sobre a navegagiio fluvial; e é precisamente nessa época que os imperadores comecam a decretar privilégios modestos para as cidades italianas e alemas. A palavra «comuna», breve e estranhamente, aparece pela primeira vez a luzem Le Mans, uma cidade francesa mediocremente agrériana Idade Modena, como na Idade Média. Contudo, a comuna afuyar-se-d ein Sangue, cmv acuutecerd a oulias teulativas de autogoverno que surgem entre o Sena eo Reno na primeira metade do século XII. Quatro anos antes, em terra francéfona 31 ‘mas imperial, 0 bispo de Liége tinha concedido por clevado prego a vila subdita de Huy a primeira carta de liberdade de que Fe tem conhecimento a norte dos Alpes, reservando porém aos Feudatirios das redondezas os seus direitos sobre os servos que residissem dentro das suas muralhas. Mas, naquele tempo, jt varias cidades lombardas € toscanas se teriam provavelmente ‘emancipado; se néio conhecemos antes de 1080 os nomes ¢ os titulos dos seus magistrados electivos—— boni homines e depois consules — , € porque nio tinham esperado a autorizagiio do {mperador ou bispo para se governarem a si proprias. Daf em diante, deixa de se ouvir falar em Itdlia das trés classes amorfas {ue tommos como ponto de partida, ea cidade dos mercadores livres encontra-se em pleno desenvolvimento. P. Parece-me que tens vindo deste modo a delinear wna peculiaridade do desenvolvimento comunal e urbano italiano: a existéncia e a progressiva afirmacdo de uma classe burgiesa de omens livres, que noutros lados (na Alemanhae, sobretudo, na Inglaterra) ainda tinha dificuldade para se constituir R. Sim, mas no € preciso exagerar a diferenga, Repito: a primeira comuna assim chamada foi em Franga, € nada leva a ‘rer que os participantes na sublevagio que The deu origem niio m homens livres: trata-se, contudo, de moedeiros, 3s, lojistas e talvez até camponeses, e outra gente de modesta condigo. Por seu turno, em Tiel, um porto na foz do Reno, os mercadores governavam-se praticamente a si mesmos pouco depois de 1070, ndio como nome de comuna mas com 0 be guilda, que no mundo germiinico designava toda aespécie de associagées, do clube de gentis-homens ou grandes pro- prietdrios ao bando de aventureiros. Segundo 0 maledicente Eronista que os descreve, os homens de Tiel uniam-se para negociarem Inglaterra, combater os piratas que orei eraincapaz de enfrentar, procurar uma esposa provisoria em cada porto, embriagar-se logo de manhdzinha © enganar-se mutuamente Com falsos juramentos, coisa dificilmente crivel em comer- ciantes. Mas a propria comuna é descrita por um outro autor eclesidstico do norte de Franga como um «péssimonomenovor, fe niio€ caso para fazer reparos, as novidades nio podem agradar 3s autoridades constitufdas ea Igreja tentard 2 longo prazo, mas 32 com eseasso éxito e pouco duradouro, domesticar toda esta tibaldaria, convertendo-a em confrarias ou em associagbes para a paz. Pelo contririo em Espanha, o proprio ret promove a formagio de novas cidades-fortalezas 20 longo da fronteira crist@ em constante avango, povoando-as com imigrantes corajosos e livres e dotando-as logo de inicio com feras. Sio centros predominantemente agrérios, mas fiero significa mercado, de nome ¢ de facto, ¢ os representantes do governo central imiscuem-se 0 menos possivel nos negécios dos colonos. Aligs, é bem sabido que 0 tipo da cidade-mercado, munida de carta de liberdade, se difnde por toda a Europa, Mas em nenhuma outra drea mais que na Iiélia centro-setentrional ha tio estreita simbiose entre os valvassori que vem na cidade eos grandes burgueses que ali estiveram, livres e mercadores tanto runs como 0s outros. Jf nfo se trata, como acontecia em Veneza em 971, um doge ou. um bispo sentado frente a uma assembleia {que se conserva de pé, mas todos estiio ao mesmo nivel, apesar de falarem mais alto os que provém de familias antigas ¢ eminentes: as familias que em tempos deram assessores 20s tribunais imperiais ou eclesidsucos, administradores & abastecedores as instituigdes piblicas que persistem na cidade da Alta Idade Média. Delas sairam os boni homines e, pot fim, ‘08 consuiles, que com este nome clissico renovado retomam & consolidam as suas fungGes. P. Comestas linhas interpretativas estamos a deixar para tras um outro velho tema um pouco fora de moda desde os tempos de Volpe: a origent revoluciondria da conuina, é qual Gabotto ‘a sua escola opunham a tese de uma origem senhorial. R. Acontrovérsiaaquete referes jiniiome parece umproblema essencial, Que em muitos casos, ¢ talvez até na maioria, 0 divorcio da cidade em relagdo A autoridade superior, que the era estranha, tenha dado lugar sublevagdes sangrentas nao se pode porem diivida, Mesmo onde os interesses comuns ou a vontade Ge compromisso levou a uma separagdo amigdvel ¢ gradual, deve ter havidodesacordo quanto 3 partilha dos bens ou ao prego Ga concessio. No enntauto, vimos ja que em eertos casos a iniciativa para uma delegagio parcial dos direitos de soberania teve origem no proprio soberano; posteriormente, teremos 33 inclusive fundagdes de cidades através do que poderemos chamar um cons6rcio entre 0 soberano ¢ os futuros cidadiios: este, por exemplo, 0 caso de muitas empresas de colonizagio germanica no leste, através de locatores, e no interior da ‘Alemanha com a unido entre os Zihringer e um grupo de mercadores em Friburgo, na Brisgéia, em Friburgo, na Suiga, e em Berna, E mesmo no tipo clissico da cidade episcopal que se ‘emancipa do seu bispo, pouco importa se a emancipagio € fruto de uma conjura ou de uma vagatura da sé, que tenha habituado (08 seus subordinados laicos a passar sem ele. A comuna cons- titui sempre e cm toda a parte um facto revolucionéro, ja que interpée uma terceira ordem de govemo, burguesa, portanto, «mecinica», entre as duas ordens privilegiadas tradicionais, (eclesidstica e militar) ea massa dos governados, na sua maioria trabalhadores do campo, que os governantes inclufam indistintamente numa tinica ordem de servigos. P. A teoria das irés ordens inicialmente elaborada em Ingla~ terra, é depois retomada e explicitada por intelectuais franceses do século X, implicitamente evocada mais tarde pelos adver- sdrios da civilizacdo comunal e polemicamente reexaminada durante a crise do século XIV. Como explicas esta alterndncia, que encerra assimilar toda a pardbola da conuna medieval? R. Tal como 0 direito, a teoria nasce velha: no século X, a sociedade trinitaria jé existia havia bastante tempo, ¢ um certo mimero de mercadores tinha-se jé diferenciado da massa informe dos trabalhadores: € 0 caso de Liutfredo de Coldnia, tanercador opulento» e embaixador de Ordo I em Constan- tinopla, €0.caso dos doges de Veneza, auténticos mercadores & soberanos, € 0 caso dos mercadores aventureiros da Es- candinvia, para nfo multiplicar inutilmente os exemplos. Nos trés séculos que se seguem, jf ndo era possivel ignorar as «violentase pestilenciais» comunas (Jacques de Vitry), mas nfo seera obrigado a ter emconsideragao as suas ideins; instituigdes eminentemente priticas, os estados urbanos no comegaram a claborara sua teoria antes do final do século XIlLe principio do século XIV, de modo que ela jd nasce velha. A crise do séoulo XIV toma a por todas as ordens em questio, e as ordens 34 privilegiadas uma vez mais limpamo p6 Ateoria, esperando, no semn uma certa razio, tirar desforra. P. Mais umapergunta antes de concluir. Mencionaste hd pouco otitulo de cénsul, que reaparece a cabeca da comuna depois de meio milénio de siléncio, Crés ser caso para pensar num fendmeno de persisténcia, apesar de o imervalo ser sem dtivida demasiado longo para se supor uma continuidade? R. Comoscénsules, a comuna estar em pleno funcionamento, eporisso parece-me oportuno adiara discussio das suas tarefas, Mas o problema da persisiéncia diz respeito aos séculos precedentes, por isso te respondo desde jé que, mesmo que fossemencontradas listas de cOnsules para preencherointervalo (€ nao foram), estas no provariam uma persisténcia insti- tucional; as suas funcSes tinham-se tomado_ puramente decorativas ainda antes do desmantelamento da administragdo municipal romana, Até no caso de repartices menores das cidades de provincia, o desaparecimento dos cargos € das fungSes foi descrito passo 2 passo, em especial num estudo de Sanchez Albomoz sobre a Espanha visigética. Outros sustentam que, quando o titulo de cénsul reaparecen pela primeira vez na Itdlia do fim do século XT, terd sido assimilado por etimologia popular ao titulo mais familiar de consiliarius; pode ser que sim, mas custa a crer que num pais onde se liam textos antigos, se contemplavam monumentos romanos € se ufilizava o latim como lingua escrita ficii de entender, nao viesse & cabega de ninguém que a epublica romana tinha sido governada por cénsules efeitos por um s6 ano. Por outro lado, a palavra respublica no significa, nos textos medievais, a comuna republicana, mas o Impérioromano-germanico, aoqual a comuna nunca negou homenagem contanto que as. suas liberdades permanecessem intactas. Mais tarde, o titulo de «cénsul» passard da Itilia 4 Franga meridional e, ainda mais tarde, 4 Alemanha hansedtica, mas sempre com as mesmas distorgoes e restrigoes. No entanto, algo do passado deve sobreviver no presente de cada época sucessiva, mas quando ColadiRienzoretomaro titulo de «tribuno» e pretenderque esse 35 aa NTT TTT nome dé a Roma o império do mundo, e quando, mais tarde, 0 Renascimento voltar costas 4 Idade-Média, a discrepincia entre nomes velhos ¢ homens novos far-se-d de imediato sentir. ¥ 3 O GOVERNO DOS MERCADORES P. Como rino que a nossa conversa tomou, seré necessdrio Ficarmos do iado de cd dos Alpes e, mais precisamente, entre os Alpes e o Tibre. Faldmos jd das origens da comuna; devemos agora deter-nos ma época do grande florescimento urbano e da cidade-estado, que é um fendmeno eminentemente italiano e, nalguns aspectos, flamengo. R._Tentar uma abordagem em termos gerais torna-se muito | mais dificil. E é uma dificuldade que se reflecte na bibliografin | ou, melhor, na tradigio historiogrifica. A medida que todas as | cidades italianas vio encontrando uma ordem propria cvivendo | a sua propria historia, as monografias de que dispomos tendem | a concentrar-se no espago, no tempo ou no fingulo visual: uma | cidade, um oficio, uma sublevagio popular, uma reforma | constitucional, ués meses de guerra. Nio € por acaso que os | i nossos historiadores se exortam mutuamente a escrever esse livro, a tragar um quadro de conjunto e, apesar disso, que a obra tantas vezes projectada ou prometida, ainda nfo tenha nascido, P. Convém também referirque nos iltimos trinta anos a historia da época comunal ndo tem tido um ntimero adequado de cultores i € se tem preferido estudar mais as crises desse mundo que o sett plenoflorescimento.Nao haverd porventuraalgumas incertezas quanto ao conceito de liberdade comunal? R. Naidadedo particularismo, como jé Giorgio Falco feznotar, a liberdade consistia sobretudo em desembaracar-se de uma 36 37 |

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