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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Rerrona Sandra Regina Goulart Almeida Vice-Riit0K Alessandro Fernandes Moreira EDITORA UFMG. Dizstor Flavio de Lemos Carsalade ‘Viex-Dinstona Camila Figueiredo CONSELHO EDITORIAL Flavio de Lemos Carsalade (rxusipeirs) Ana Carina Utsch Terra Antdnio de Pinho Margues J ‘Anténio Lula Pinho Ribeiro ‘Camila Figueiredo Carla Viana Coscarelt CCissio Eduardo Viana Hissa (César Geraldo Guimartes Eduardo da Motta e Albuquerque Elder Antonio Sousa Paiva Helena Lopes daSilva Jodo Andre Alves Langa Joso Antonio de Paula José Lolz Borges Horta Lira Cérdova Maria Alice de Lima Gomes Nogueira Maria Cristina Soares de Gouvéa Renato Alves Ribeiro Neto ‘Ricardo Hiroshi Caldeira Takahasht Rodrigo Patto 54 Motta Sénia Micussi Simbes gina Ribeleo Barbosa Terex Antonio Andrade | Antonio Carlos Santos Ariadne Costa Celia Pedrosa | Diana Klinger | Florencia Garramutio Jorge Wolf | Luciana di Leone Mario Cémara Paloma Vial | Rafael Gutiéret| Rac Antelo Reinaldo Marques | Wander Melo Miranda INDICIONARIO DO CONTEMPORANEO Celia Pedrosa | Diana Klinger | Jorge Wot | Mario Cémara Orgarzadores Belo Horizonte Editora UFMG 2018 (©2018, Editors UPMG "Est vo ou pare dele no pode ser eproduida por qualquer mio sem atoriasio ‘crit do Edo 139 Indiciondrio do contemporinco/ Clin Pedrosa. [eta organi 7EMG, 2018. Ho Andeade feta] res. ~ Belo Horizonte; a 263. (abel) ISBN: 978-85-423.0255-4 4. Literatura. 2. Arte 3, Te ‘Antonio. IL Pedro, Celi, criica. 4. Ensios. L Andrade, it. cpp: 804 cpu: 82 ‘hborada pela Biotec Profesor Anni aa Pa FICHIUENG Awsisriuc mmoust Hane Sousa ‘Distros auroaals Anne Carlie Siva CCooanagio ot exro+ Beatie Trindade Preranagio DeTExros Michel Gaonam avis og owas _ Ana Teresa Campos, Dar Domingues abril Prado Proverowehneo Clio Ribeiro. a partido projet orginal de Maro Belico Fomuaragioncara Alesana Magalies Proougioceisics Warren Mare EDITORA UEMG ‘Av Annio Carlos 6627 | CAD I1/ BLOCO TL (Campus amplb | 31270901 | Belo Horioet/MG eh +3831 80-4890 | Fee +5831 340.4768 tedtraaing.combr | eltorseuting be SUMARIO Apresentagio UM INDICIONARIO DE NOS Celia Pedrosa | Diana Klinger Jorge Wolff| Mario Camara ARQUIVO COMUNIDADE ENDEREGAMENTO (© CONTEMPORANEO POS-AUTONOMIA PRATICAS INESPECIFICAS 15 35. 7 125 165 205 Posficio ESPAGOTEMPO. Ratil Antelo SOBRE OS AUTORES 259 Apresentagio UM INDICIONARIO DE NOS Barbaro, nosso, vosso, este Indiciondrio supe, antes ‘que nada, insubordinagio, insatisfacao, inquietagio, inde- pendéncia... Mas supée, sobretudo, um infinito ¢ infini- tivo desejo de ler, falar, ver, fazer ¢ viver junto, de parte de ‘um in-certo grupo: um desejo de convivio e de comunidade enquanto amizade, conversa e conflito em distintas pai- sagens americanas. Joga também, este Indiciondrio, com 0 significante indice ao postular uma leitura-escritura indi- cial das linguagens e dos conceitos em cena. Antes mesmo, porém, de apresenté-los, caberia dizer que foram trabalhados coletivamente de modo desafiador e necessariamente cria- tivo, durante quatro anos, Conceitos que foram escritos ¢ reescritos por diferentes pares, 0 que implica uma outra pergunta, outro ponto de interrogacao, além do “como viver junto” barthesiano, e que vem a ser 0 “como escrever em colaboracao”, Vale dizer: como viver junto ¢ como escrever em colaboracio, como escrever, em suma, coletivamente a partir de diferentes perspectivas criticas e diferentes ‘geografias da América do Sul. Desde Cali, na Colombia, onde tudo comerou, mas também desde Campina Grande, na Paraiba, de Séo Paulo, Rio de Janeiro, Floriandpolis, Buenos Aires. No meio do caminho, este livro foi batizado 8 partir de outro “in” fundamental para pensar os “n6: te6rico-criticos entéo em processo, como veremos a seguir, 0 “in-utensilio” leminskiano: contra a inocéncia da lingua- ‘gem, a linguagem como “inutensilio”. Este livro surgiu, portanto, de um encontro entre ensais tas-pesquisadores-professores que utilizam as linguas bra- sileira e castelhana como linguas-maes-irmas e assim 0 fizeram em terras colombianas, vale dizer, amazonicas americanas por ocasio de um simpésio que se realizou na Universidad del Valle no més de julho de 2012. 0 primeiro encontro daquilo que hoje culmina como um in-dicionério sexto e bissexto, uma antiantologia tao breve como aberta de conceitos que incidem de modo decisivo sobre o pen- samento das artes e literaturas atuais, sto é, sobre poesia, politica, imagem, espaco e tempo, ou,em uma palavra, sobre « imaginacio-piblica-contempordnea ‘Viajar para a Coldmbia ~ pela primeira vez, para mui- tos que integraram o simpésio ~ foi o disparador confesso dessa reuniao em Cali em pleno Valle del Cauca, como articipantes de um congresso internacional, 0X JALLA Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana. Movidos 8 _APRESENTAGAO pela fome de viagem ¢ de seu relato (yalhe a redundéncia), propusemos entdo um simpésio em torno da questio do contemporiineo, que contou, de inicio, com a participagio de Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne Costa, Florencia Garramuio, Luciana di Leone, Maria Lucia de Barros Camargo, Rafael Gutiérrez, Reinaldo Marques ¢ ‘Wander Melo Miranda, além de seus quatro organizadores que assinam esta Apresentagao. Engajados no eixo temitico das “Politcas literérias do contempordneo”, sustentamos nas bases fundamentais do simpésio que a desconexio e a defa- sagem eram condigées iniludiveis para “ser contempora- neos”, isto &, para a adogio de uma perspectiva em perpétuo desajuste com o seu tempo, entendido como a mtisica de “um outro presente”, Nesse sentido, a literatura, com uma temporalidade que Ihe propria e que se nutre do anacro- rismo, parece ser um exercicio dessa condigio. Observiva- ‘mos também que nos iltimos anose de diferentes maneiras, _muitas vezes em aberto confronto, a literatura havia tornado ser abordada a partir da politica e em sua politicidade, € citvamos alguns poucos nomes: Giorgio Agamben, Jacques Ranciére, Alan Badiou. Como ponto de partida enumeramos algumas conceitualizagdes ~ a “palavra muda’, que emerge no regime estético das artes, capaz de reconfigurar a partic’o dada do sensivel, a escrita como um pensamento filos6fico, ‘poesia como experimento do impossivel ou, inclusive, de APRESENTAGHO. 9 | uma crise que constitui sua singularidade — e nos propuse ‘mosa explorar as formas nas quais a literatura se relaciona ‘com seu presente para indagar as figuras, os agenciamentose ‘osmodos de letura com os quais se constréi sua politicidade. Durante aquelas jornadas andinas, alguns conceitos foram aparecendo de modo recorrente nas diferentes apresenta- ‘0es individuais, o que nos levou a ideia de realizar um tra- balho conjunto ~ e quem sabe uma publicagio, esta ~ sobre 8 proprios conceitos, entre os quais os de comunidade, de comum, de horizontalidade. Dai surgiu a ideia de uma ublicasao coletiva que nao fosse uma mera compilacao de trabalhos individuais. A partir de entio, os ensaistas- -Viajantes trataram de escolher um ponto intermedisrio no ‘mapa, em que fosse possivel voltar a reunir cada um frente a frente. Enquanto isso, e tendo em conta essa localizacao ‘geogrifica diversificada de seus integrantes, deu-se inicio um intenso intercambio de textos pelo correio eletronico ue procurou delimitar um certo conjunto de definigdes cri- tico-tedricas eas equipes de trabalho para uma redaco inicil A primeira etapa do trabalho consistiu em ler os trabalhos apresentados nas quatro mesas programadas para o simpésio, Cada um de nés devia extrair conceitos considerados rele- vantes e sugerir bibliografia critica pertinente, Com essa tarefa realizada, fizemos circular os resultados, buscamos certas afinidades eletivas entre os diferentes integrantes do 10 APRESENTAGAO grupo emontamos o que seriam nessas equipes de trabalho. ‘Nessa fase foi gerada uma pletora de conceitos - como os de “Formas do nao pertencimento”, “Intimidade”, “Materialida- des", “Intempestividade’, “Sobrevivéncias”, “Afeto” -, depois refinados nos seis verbetes finais: “Arquivo”, “Comunidade”, “Enderegamento”, “O contemporineo”, “Pés-autonomia”, “*Priticas inespecificas”. A reinvengio coletiva desses seis conceitos ¢ sua redagio proviséria demandou um trabalho de cerca de oito meses, ‘quando se decidiu convocar 0 novo encontro que teria por ‘objetivo discutir o trabalho realizado. encaminhar uma forma final ao projeto. O segundo encontro do grupo se realizou em ‘outra cidade periférica da América do Sul, Floriandpolis, na sede da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), durante 0s dias 29 e 30 de abril de2013. Ocorreram modi- ficagbes no processo de organizagio do segundo encontro, ‘com a integracao de Paloma Vidal e a presenga de Maria Lucia de Barros Camargo, agora como convidada, para- elamente 4 intervengao de Rail Antelo, responsével pela conferéncia de abertura que hoje publicamos como Posficio do Indiciondrio com o titulo de “Espagotempo”. Nesses dois dias na Ilha do Desterro foram apresentados 08 trabalhos elaborados a distancia, em que atingimos 0 principal objetivo que era o de chegar aos conceitos finais, conforme aparecem no indice de nossa “antiantologia de APRESENTAGAO 11 16s”, ou seja, de certos nés teérico~ literdrias do presente. Na sequéncia dessas discussdes, em ousada volta de arafuso, decidiu-se que novas equipes assumiriam o tra- balho realizado pelas equipes originais para escrever o texto final ~ finalmente andnimo ~ de cada ensaio ou verbete indicial, Dessa maneira, intercambiando tantos as duplas de trabalho quanto 0 conceito trabalhado por cada uma, se aprofundou efetivamente 0 processo de escrita coletiva de ‘nosso heteréclito in-utensilio em forma de in-dicionério, cuja denominagao apelou nao apenas a insubordinacao, mas também ao humor ed alegria que a prova dos nove, segundo Oswald de Andrade. A alegria, ainda, de experi- mentar algo novo no seio das instituig6es puiblicas bra leiras e argentinas a que pertencemos, com outro bordio neovanguardista, dessa vez devido a Silviano Santiago, em ossas mentes ~ escrever é escrever contra, readaptado a0 cenério atual: escrever é escrever com, de que esse esforco conjunto e miiltiplo é claramente tributario, Titulo, definigées criticas e equipes fechadas, iniciamos a iiltima etapa deste insélito trabalho comunitario ~ tao ins6lito quanto incisivo, ao menos entre aqueles resultan- tes de simpésios de encontros académicos no campo das ciéncias humanas. Foi retomada entao a comunicagao vir- tual ¢, mediante mais um ano de interciimbios escritos via 12. APRESENTAGKO correio eletrénico, chegamos a esta versio do Indiciond- rio, cuja proposigao central & discutir e levar a piblico um modo diverso e independente de discutir, de se posicionar, de propor ¢ de pensar no interior dos chamados bancos universitérios. Afinal, compartithar com o leitor um traba- Iho coletivo sobre arte e politica significa também intervir no mundo das ideias e das politicas estético-literirias do presente, entre vanguarda e instituicao.’ (Os organizadores Nota * Onencntqie dermargem ceo drm Progam de iccrnain em Eto Ge terrace Uneriade eer Parnes (OFF) eda PogunsdePb Gradua emltentn USC Aceon Pe ieteierencend Ceueetah ne were e Gon Noa esq) epe una de pos Prqede ‘Rider FAPER, no ra pe Cenc Naso een Genny Talo CONICET) or etn APRESENTAGAO 13 o arquivo ainda bem contém aqui -o-aqui é- “do ar = do ardor a ‘arcaico arquiviolitico o arquivo 2 ainda mal contém x ouivo t outdo uivo -etroprospectivo palavras-cinzas -ardéncias do anarquivo Acolesao sem razéo: arquivo moderno, arquivo contemporaneo Em Imagens do pensamento ~ que é uma coletanea de textos redigidos entre 1925 ¢ 1934, reflexdes soltas, peque- ‘as crénicas, que parecem poder ser associadas por sua vontade de pensar tenses conceituais, como as de atrair ¢ destruir, esquecer e lembrar, esconder e mostrar -, Walter Benjamin inclui 0 conhecido texto “Desempacotando 4 minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador”, Escreve nele:“(...) tenho a intengao de dar uma ideia sobre © relacionamento de um colecionador com os seus per- fences, uma ideia sobre a arte de colecionar mais do que sobre a colegio em si (...) A existéncia do colecionador é ‘uma tensio dialética entre os polos da ordem e da desor- dem.” Assim, nos chama atengao nao para uma reflexio sobre os elementos que compéem uma colegio - se eles sao selos, soldadinhos de chumbo, lépis, livros ou obras de arte -, mas para a tensdo que marca todos os modos de acumulagao e de arquivamento, desde os élbuns de figurinhas ou de fotografias familiares até as bibliotecas nacionais, as galerias, as antologias, as enciclopédias ou qualquer outro modo de juntar as coisas. Essa tensio, que parece fundar a historia da humanidade enquanto historia, foi apaziguada ou maquiada, combatida ou resistida pelo espirito positivista que preferiu contar a histéria do triunfo 16 ARQuivo de um dos polos: 0 da ordem eo da razio, ordem baseada na definigdo identitaria dos elementos colecionados. Os museus da modernidade passaram a se caracterizar pelos objetos que capitalizavam, assim como o sujeito moderno pelos conheci- ‘mentos que era capaz de acumular. Museus e subjetividade modernos como dois tipos de arquivo, capitalizadores. No entanto, em paralelo e em contraponto a essa versao vitoriosa da historia da ordem ¢ do progresso, sabemos que outras concepgbes do mundo, outros tipos de produ- (oes artisticas e outras vidas, em lugar de tentarem apa- ziguar, enfrentaram essa tensio: olhares que chamamos, sem atentar para as cronologias, de contemporaneos. Em outras palavras, se os museus modernos enfrentaram 0 aos ordenando os seus materiais com um espfrito racio- nalista e afirmativo, as colegoes de Artur Bispo do Rosério owas fotografias de Rosingela Renné, as proliferagoes de corpos para além dos contoraos da Porta do Inferno, de Auguste Rodin, ou as dos sonetos a0 mesmo tempo barrocos e sempre iguais de Glauco Mattoso, as cura- dorias de Aby Warburg para outra histéria das imagens, ‘wos anagramas de Ferdinand deSaussure em lugar de seu valioso signo, a meméria excessiva e impiedosa dle Funes! Borges e de Guimaraes Rosa, ou ameméria que prescinde de sujeito de Bras Cubas, a releitura de si na obra de Guillermo Kuitca, ou na poesia de Ana Cristina Cesar ou de Paulo ‘arquivo 17 Leminski, au 0 arquivo multifacetado dos documentérios de Jodo Moreira Salles sio alguns dentre os muitos arqui- vos que olham diretamente nos olhos da voragem, ¢ se instalam barbaramente no terreno lamacento dos canteiros de obras, da destruigio enquanto construcio, do monturo e das cinzas enquanto criasao critica. Walter Benjamin sabe, entio, que a colesio, 0 arquivo, nio se define tanto por aquilo que guarda, mas pela rela- 40 que um sujeito mantém com esses objetos, imagens, palavras. Desse modo, a reflexio sobre o arquivo no pode, ‘ou nao deveria, pretender tracar uma linha demarcatéria s6lida entre um dominio piblico e um dominio intimo, entre ~ digamos, para sermos mais concretos ~ um exer- cicio de meméria coletiva e institucional e um exercicio de meméria de si, de lembranga pessoal. Parece ser neces- séria ~ ¢ talvez porque nas obras que podemos chamar de contemporineas isso se dé de forma clara - uma reflexdo que associe essas perspectivas, em que o modo de operar com os arquivos puiblicos ilumine a meméria pessoal, em ‘que a meméria individual ilumine a meméria coletiva, em ‘que a arqueologia e a psicanélise conversem, assim como (0s monumentos com as autobiografias. Como diz Derrida, © jogo do arquivo se situa entre a “casa” eo “museu’”, entre © nome intimo e o nome publico. Neste século, as redefinigoes que procuram rasurar uma concepeao de arquivo como repositério positive e puiblico 18 Arquivo oo se tornaram constantes ¢, entre clas, contamos com a con tundente reflexdo de Foucault, em A arqueologia do saber. Para ele, 0 arquivo nao ¢ apenas um espago de estocagem de dados, de contetidos, mas algo, em certo sentido, exte- rior & nossa linguagem: a positividade do gesto do enun- ciado, seu “ter lugar”, e nao o queesses enunciados dizem, A radicalidade da proposta foucaultiana, que procura des- vvendar as relagées de poder e dominio que se impdem no controle da linguagem, no controle nio apenas do que foi efetivamente dito mas do que pode ser dito, foi apontada por Gilles Deleuze, em 1986, no seu Foucault: ‘Um novo arquivista fol nomeado na cidade. Mas seré que foi mesmo nomeado? Ou agiria ele por sua propria conta? As pessoas rancorosas dizem que ele o novo representante de uma tecnologia, de uma tecnocracia estrutural, Outros, que tomam ‘sua prépria estupider por inteligéncia, dizem que ¢ um epigono de Hitler (...) outros dizem que é um farsante que nio consegue apoiar-se em nenihum texto sagrado e que mal cita os grandes filésofos. Outros, a0 contririo, dizem que algo de novo, de pro- fundamente novo, nasceu na flosofia.eque esta obra tem abeleza ‘Onovo daquilo que ela mesma recusa: uma manha de festa. arquivista anuncia que s6 vai se ocupar dos enunciados. Ele néo vai tratar daquilo que era, de mil maneiras. a preocupagio dos arquivistas anteriores: as proposigbes as frases? arquivo 19 ‘Os enunciados nao tém, para Foucault, a consisténcia de ‘um bem material que seri conservado museologicamente, como pode acontecer com proposigdes ¢ frases que si0 disputadas como bens simbélicos. Nao podem, por isso, ser hierarquizados pela sua ontologia, por algo que seria da ordem da esséncia ou do contetido significado. Esses ‘enunciados, portanto, teriam uma forma de acumulacdo especifica, no atingivel por nenhuma logica conservadora nem historicista Para Foucault, o arquivo seria uma colecio de enuncia- dos, um sistema: ‘io entendo por esse termo a soma de todos os textos que ‘uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu Préprio passado, ou como testemunho de sua identidade manti- dda; ndo entendo, tampouco, as instituigBes que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembranga e mantera livre disposigio. ...) Se ha coisas ditas, sua raaio estd no sistema de discursividade (e nao nelas ‘mesmas ou nos homens que as disseram)? Foucault, ao se distanciar de uma ideia de arquivo como “lugar de meméria” e “acumulagao”, aponta claramente para uma necessidade de superar a divisao exterior/interior, ‘memeéria puiblica/memeéria pessoal a partir da andlise do 20 aRauwvo CC ——— arquivo, termo que ele utiliza para nomear a forma particular de actimulo dos enunciados, desses elementos que tém por condi¢io apenas o seu “ter lugar”: 0 arquivo, segundo Foucault, néo guarda os significados, mas a positividade dos enunciados, eles ali se tornam acontecimentos, coisas, tm um valor em si mesmo. O arquivo se situaria entre a possibilidade de dizer e o ja dito e negaria a ideta de que o ‘enunciado seria a traducio de algo, um significado, que se encontra em outro lugar. ‘O arquivo seria, segundo Foucault, um a priori historico, algo assim como a condigdo de possibilidade, © que faz com que todas as coisas ditas nao se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa,néo se inscrevam numa linearidade sem ruptura ¢ nio desapareyam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distin- {as (.,.) se mantenham ou se esfumem segundo regularidades espectficas* O arquivo, a partir dessa definigao, nao recolheria a poeira dos enunciados, sua materialidade, mas definiria ‘sua (in)atualidade. Em outras palavras, ele € 0 sistema, a Jouca lei, que nos permite achar espectros, elementos signi- ficantes, na pocira, naquilo que restou de uma experiéncia irrecuperavel. arquivo 21 arquivo em disputa: controle, arconte Na reflexio de Foucault, entio, 0 que se evidencia é ue 0 funcionamento dos arquivos ¢ uma questéo de lutas de poder, de controle da possibilidade de enunciar e nao tanto de um controle dos contetidos enunciados. Em certo sentido, 0 que esta em jogo é o poder sobre o arquivo, a legitimagao de uma propriedade, de uma posse ou de uma assinatura. Sem o controle do arquivo nao hi, diré Derrida, nenhum poder politico, ao passo que a democratizagdo s6 se dara por uma abertura e livre uso dos arquivos. O arquivo é um territério de disputa, pois controlar 0 nifica controlar a possibilidade da enunciacio e, em tiltima instancia, a construgio de uma realidade ~ nao a sua conservagao, como almejavam os arquivos positivis- tas. Nesse sentido, revela-se que o arquivo no representa ‘um passado, no da testemunho historico, mas o constr6i. As formas de arquivamento e de selecao falam a respeito da construgao desse passado, através de um exercicio de meméria, sempre seletivo, e que comporta uma nova escri- tura, um novo relato suplementar. O novo relato estrutura © contetido pressuposto e, ao mesmo tempo, cria um pas- sado. Como escreve Reinaldo Marques, © arquivo ndo é uma realidade pronta eacabada; 0 contritio, ‘em certa medida ele € construfdo e desconstruido pelo olhar do 22 ARQUIVO ———— sujelto que, a0 cumprir nele um itinerdrio, deixa suas pegadas, seus vestigios, instituindo um certo roteiro de viagem.* ‘Questo de reescrituras. Lembremos, por exemplo, que, ‘em El vestido rosa, relato nascido da experiéncia de leitura de “O recado do morro”, de Guimaraes Rosa (ambas est6- rias de estrada), César Aira escreve: “Junto a cada relato real, existe outro virtual.” O personagem de Aira, depois de percorrer um longo caminho para levar uma mensagem, entrando em contato com diferentes personagens, princi- palmente com gaiichos e indios, cuja definigio identitéria ‘40 mesmo tempo se apresenta se questiona, “havia dado ‘com a chave das traducdes gerais’ j 0 arquivo arlequinal do conto de Rosa - também um relato de estrada, e todo arquivo é uma estrada sendo transitada ~ da com a chave de uma leitura perturbadora de si mesmo, de seu proprio status quo, que o obriga a ler em nova perspectiva, aquela de um arquivo por vir. Maneiras singulares de reinscrever ‘essas mensagens sem mensageiros, reescrevendo-as como egadas, vestigios, indicios. Jé apresentar-se como arconte exclusivo, leitor legal € oficial do arquivo é, no final das contas, a possibilidade de dominar, de criar 0 passado a partir dos préprios interesses ou, no minimo, do préprio lugar de enunciagao, cancelando (05 outros. Por isso, os arquivos estao em disputa, como Anquivo 23 esto em disputa as suas leituras. Importa quem tem o poder sobre o arquivo, ¢ importam os usos que dele se fazem. Por- ‘que quem cumpre um itinerdrio, ao mesmo tempo desor- ganizando e reorganizando o arquivo, ¢ alguma espécie de leitor, um leitor indetermindvel de antemao, um incerto amanuense. Os modos de arquivar e de usar 0 arquivo sio modos de leitura que ora podem ser os de um leitor auto- ritério, organizador, que procure dar um sentido fixo a0 Conjunto, ora os de um leitor némade, que circule de forma desorganizadora pelo material e que procure movimenté-lo estabelecendo novas redes, abrindo os sentidos, A dinamica de disputa, mando e controle pode ser veri- ficada tanto na compra e venda de bibliotecas e acervos de scritores quanto no controle dos seus legados, uma vez que do arquivo se depreende, de forma privilegiada, a figura Ptiblica. Os casos, como nao poderiam deixar de ser, sio ‘muitos e variados, Carlos Drummond de Andrade foi um dos grandes arquivistas de si mesmo, isto é, dos seus textos ¢ dos seus rastros. No afi de recuperar a fortuna critica de sua obra, nos comentarios permanentes que os poemas e textos ‘¢stabelecem uns com os outros, e mesmo na organizagao do seu escritério, ou no zelo com o qual guardava inclusive as Teprodugoes de seus escritos mais contingentes, como car- tas e dedicatérias,” podemos ver uma tentativa de organi- zar e controlar 0 seu proprio arquivo e a figura piiblica que 24 ARQUIVO — cle poderia se desprender. Como se tum legado simbélico tao obsessivamente organizado limitasse as leituras inde- sejadas. No caso de Paulo Leminsti, o controle do arquivo do poeta, dos textos deixados mas também da sua propria figura piiblica foi alvo, depois da sua morte, de uma dis- puta explicita entre a familia ~ mulher e filhas - e outro poeta, Régis Bonvicino. Este, como proprietério legal de uma série de cartas-poemas escritas por Leminski ea ele endere- cada, passou a exercer uma forte intervencio no controle dos modos de recepeao do poeta curitibano. Ana Cristina Cesar, por sta ve7, também preocupada com a construcio/ destruigdo do seu arquivo (“Que importa a mé fama depois que estamos mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho")é simbolicamente disputada por critics e poetas que, em nome da emizade, da proximidade amorosa, da afinidade estética ou de uma empatia catirtica pelo suicidio, se apresentam como protetores ou tinicos lei- tores legitimados. Delineia-se, a partir desses poucos exemplos, uma defi- nicdo bastante autoritéria da figura do proprietario do arquivo, que coincide neles com a figura do arconte: a cri- tica de arte ou literéria, o pantedo dos escritores nacionais, os herdeiros, os advogados, os testas de ferro, os apropria- dores, o superego. O “poder arcOntico” catalisa as fungbes de unificacao, identificagao, classificagao e consignacéo ARQUIVO 25 dos elementos ~ insistamos, nunca totalmente unificiveis, identificiveis, classificiveis e consigniveis - que compéem arquivo. Em oposisao a essa definigio conservadora e ordena- dora do arconte, se poderia opor outra tentativa de con- tole que, no entanto, nunca é totalmente bem-sucedida, a da assinatura, isto é, a impressio deixada pelo autor sobre © seu proprio arquivo, mesmo que em muitos casos, como no de Drummond, ele faca coincidir a assinatura e 0 con- trole. O autor, o produtor dos documentos que se estocam ‘Bum arquivo, participa dele, entdo, como uma impressio, ‘um gesto pousado nesses objetos, que imprime a eles uma diresao de leitura, uma érbita. Mas que pode ser ultrapas- sada pela autoridade do poder do arconte, que se torna ‘mais forte ou mais vistvel, que dé uma nova impressio, ‘mais férrea, que tenta guiar e unificar a leitura, A assinatura pode ser pensada, entéo, como a forga da auséncia de controle, a presenga da auséncia do arconte, que exerce um controle falho e paradoxal, fantasmal,espec- tral, cinzento. Restos, lembranca, biografia Pelo fato de o arquivo ser um conjunto de objetos cuja organizacio e controle ~ sua propriedade - est em dis- Puta e pelo fato de seu produtor se encontrar nesses objetos 26 ARQuivo — apenas como uma marca sutil e fantasmal é que pode ‘mos dizer que o arquivo, longe de ter uma consisténcia solida, esté formado apenas de restos. Como se o governo dos restos permitisse o governo do passado e fornecesse uma leitura mais sélida da hist6ria e de si. Nesse sentido, é necessirio vincular a nogao de arquivo com 0 método psi- canalitico, atravessando a ideia de inconsciente ou, como entenderia Benjamin a partir de Proust, com a articulag3o da meméria involuntaria. Retornemos, entéo, ao texto “Construcciones en el and- lisis" [Construgdes em anilise], de 1937, ou seja, do dltimo Freud. O titulo ¢ significativo, jé que nos coloca - e coloca a psicanslise ~ na esteira de um trabalho efetivo. Segundo Freud, a psicanilise tentaria “reconstruir” uma cena pri- mordial, uma “imagem confidvel’, “os anos esquecidos da vida do paciente” a partir de um trabalho de analise dos pre- cérios materiais fornecidos por ele, na sua (des)controlada fala, Materiais precarios que Freud chama de “fragmentos de verdade histérico-vivencial”, “fiapos”, “ocorréncias”, “rebentos”, “indicios”, que devem ser recolocados nessa cena histérica para que deixem de assombrar o presente: Que tipo de materiais nos oferece que poderiam ser aprovei- tados para conduzir o paciente ao caminho pelo qual haveré de reconquistar as embrangas perdidas? Sio de muito diversa indole: ARQuivo 27 flapos dessas lembrancas nos seus sonhos. de: A psicanilse relaciona-se com o arquivo, portanto, de uma forma tensa e paradoxal, situando no seu centro -e ide do seu funcionamento ~ a pro- ‘cura de uma verdade biogréfica, que é, porém, impossivel. Nessa mesma época, por sinal, mais precisamente em abril de 1936 ~ nos lembra Emanuele Coccia -, Sigmund Freud recebe uma carta de um amigo na qual este se prope inge- uamente a escrever a biografia daquele. Historia de vida ‘que se tornaria inevitivel post-mortem, como pressupunha certamente com asco o inventor da psicanilise, mas que naquele momento, os infames anos de 1930, ele rechagaria ‘com violencia. Quem se faz bidgrafo, responde asperamente Freud a carta ~ dando larga margem a reflexio nao menos spera de Coccia sobre o cariter biogritico dos evangelhos cristdos enquanto mito fundacional do Ocidente -, quem no centro da pos se faz bidgrafo 28 ARguIVO \comparivel valor ‘em si mesmos, mas por via de regra desfigurados por todos os fatores que participam na formacao do sonho; ocorréncias que ele produz quando se entrega a “associagio livre”, das quais podemos retirar umas alusdes is vivéncias teprimidas, rebentos das mogdes do afeto ou focadas, assim como das reagdes contra essas; por tltimo, indicios de repetigées dos afetos pertencentes ‘0 reprimido nas agbes mais importantes ou infimas do paciente* se obriga & mentira, ao segredo, & Aipocrisa, a idealizagio & também A dissimulacdo de sua propria incompreensio, porque iio se pode alcangar a verdade biografica, e mesmo se fosse al- ‘angada, nao se poderia utiliz-la. A verdade [biogréfica] no é praticivel ¢ 0s homens no a merecem. De resto, nosso principe ‘Hamlet ndo tinha por acaso razio quando perguntava se alguém poderia escapar ao chicote caso fosse tratado segundo o mérito?"® O trabalho psicanalitico atuaria, assim, na tensfo entre a verdade e o fantasma, entre a necessidade e a imp. lidade de decifragao, entre a exumagao das lembrangas ‘a construcao de presente. Freud chega a reconhecer em “Construgdes em andlise” que, no seu extremo, a verdade ea construgao exercem um efeito igual: “(...) se a and- lise tem sido executada de forma correta, alcanca-se nela uma convicgio certa sobre a verdade da construgio, que no terapéutico rende o mesmo que uma lembranga recupera- da”. © que nao ocorre, segundo Freud, com “quem se faz bidgrafo”. Como se na vontade psicanalitica e na vontade biografitica houvesse duas formas radicalmente opostas de conceber e de transitar 0 arquivo da subjetividade. © arquivo para a psicandlise nao seria uma meméria desorganizada porém completa, como o seria para um bid- grafo tradicional. O arquivo nao seria 0 que documenta 0 passado, o reflexo de uma verdade anterior e, no final das |ARQuivo 29 a contas, exterior a ele. Ao contririo, 0 arquivo se instala no eu lugar, na sua prépria falta do fundamento: “O arquivo tem lugar em lugar da falta originéria e estrutural da cha- mada meméria.”” Parafraseando Benjamin, quando diz que sem o cinema, sem as suas miragens, a decadéncia da aura seria insuportavel,” podemos dizer que sem arquivo a falta constitutiva do sujeito, a auséncia de uma verdade, seria insuportavel, mesmo que o arquivo ea tentativa de [é-lo nunca outorguem uma verdade definitiva. Nesse sen- tido, por exemplo, as colecdes multitudindrias de Arthur Bispo do Rosario, esses arquivos compulsivos, podem ser vistas como um caso extremo dessa substituicdo, do preen- chimento do vazio."* Bispo do Rosario, nascido no estado de Sergipe e morto em 1989 no Rio de Janeiro, aos 79 anos, lembremos, foi internado na Colénia Juliano Moreira em 1939 com o diagnéstico de esquizofrénico-paranoico, Ali omega a montar diversas coledes, muitas delas de objetos Provindos do lixo, como séries de canecas de lata, de gar- rafas de vidro, mas também colegdes de nomes que seriam bordados em panos, em futuras vestes. Coisas e nomes, ‘organizados a partir de ~ como diz Marcio Seligmann-Silva ~ uma pulsio analégica, contraria ao iluminismo dedutivo enciclopédico, através da montagem de colegdes com um objetivo salvifico. Assim, frente & auséncia de um sentido logico e hierarquico entre os elementos do mundo, a proli- feragao parece néo dar um sentido, mas preencher o vari 30° ARauIvo (Os elementos da memdéria que giram no vazio nao sto, portanto, “lembrangas no sentido tradicional” e nao chegam ‘ou resister a se converter em reliquas, pois nao conseguem remeter a uma experiéncia morta, Para Walter Benjamim: Alembranga éa reliquia secularizeda. A lembranga 0 com- plementoda “vivéncia”,nela se sedimenta acrescente autoalienagio do ser humano que inventariou seu passado como propriedade ‘morta, (...) A reliquia provém do cadéver, a lembranca da expe- riéncia morta, que, eufemisticamente se intitula vivéncia.” Pensar o arquivo enquanto resto, ¢ no enquanto docu- ‘mento-monumento, é devolver & reliquia uma vida propria = uma sobrevida, ainda que espectral -, e nao apenas um reenvio ao morto, Assim, nas intervencdes e reorganizacbes que Rosingela Renné, a artista mineira, faz sobre as foto- grafias de presididrios pertencentes ao acervo do Museu Penitencidrio de Sio Paulo na série Viulgo, de 1998," pode- ‘mos ver uma mudanga de signo arquivistico: seas fotogra- fias eram originariamente pensadés como documentais e tinham fins classificatérios e, de certo modo, referiam-se ‘0s presos enquanto mortos (litera's ou metaféricos), com 4 sua torso, Renné rasura essas pretenses cientifico-po- sitivistas e instala 0 signo da espectralidade e da sobrevi- véncia, Se todo presididrio é considerado morto para 0 ‘Arquivo 31 imaginério estatal, é esvaziado da sua subjetividade, e € cencarcerado ainda em imagens para ser melhor controlado, ‘outra concepgao dessas imagens implica uma tentativa de ressubjetivagao e de insurreigéo. Retomemos 0 arquivo sob o signo de Benjamin, isto é, como resto e como modo de se relacionar com objetos, imagens, palavras, mas agora no rastro de seu discipulo italiano, Giorgio Agamben. O arquivo, em sentido restrito = 0 sentido que aponta para o triunfo do polo da razéo -, “0 depésito que cataloga os tracos do ja dito para con- signé-los & meméria futura”, Depésito esse que Jorge Luis Borges fez encarnar, escrever, inscrever em “Funes”,” ao ‘mesmo tempo que o extrapolava e multidimensionava ao infinito ao incluir a “massa do no semintico inscrita em cada discurso significante(...) como margem obscura que circunda e limita toda concreta tomada de palavra”, nova- ‘mente nos termos de Agamben:"*termos que encaminham, pela via foucaultiana, o conceito de arquivo a um mais além dos mencionados “museus da modernidade”. A partir dai pode-se ler no ja dito, no ja inscrito e escrito, ‘© nio dito, aquilo por dizer, o dizer do outro, e é nesselimiar libertador que mora o perigo do entre-dois, quer dizer, do ‘morto-vivo, do animal humano ou ~ em termos tedricos ais explicitos ~ do biopolitico como excesso e excegao, vale dizer, do zoopolitico." Paulo Leminski termina um poema 32. ARQUIVO ss ‘com uma sugestio nessa diregio: “fica 0 que nao se escreve", conclui poeta e o poema, apontando ademais para um infi- nito animal da linguagem: Obicho alfabeto tem vinte e tres patas ‘ou quase poronde ele passa nascem palavras frases com frases se fazem asas palavras vento leve ‘obicho alfabeto passa fica o que nao se escreve.* E, uma ver que o bicho alfabeto vive na corda bamba entre o chamado empirico ou real e 0 chamado imaginé- rio ou virtual, sempre que alguém faz uso dele, sempre que alguém produz um ato de fala ou comete um poema, vem simultaneamente & tona todo o esquecimento, “o frag- ‘mento de meméria que se esquece toda vez no ato de dizer eu” Por ser a eternidade-totalidade do arquivo uma qui- mera, ea sua pesada inexisténcia um fato consumado, vale ARQUIVO 33, | T insistir, resta sempre dizer algo ~ e ha sempre algo a dizer ~ sobre as suas cinzas, sobre os seus restos: 0 arquivo como ‘monturo, como cinza, como escombro, como aquilo que se guarda a sete chaves ou que se elimina com fiiria e determi nagao, Ficam sempre, no entanto, os tragos. Nao é possivel climinar os tracos, 0s rastros, os restos os mais minimos, ue esto depois e mesmo antes do arquivo: cles pré e pés- ~existem a ele, preexistem a sua configuragao como potén- cia participam ativamente de sua eliminagio, impedindo-a simultaneamente. Mas tragos, rastros, restos, riscos — 0 que cles arquivam? Trata-se, com base nessa perspectiva parado- xal da destruicdo enquanto construcio, o que abordamos a seguir em termos de doenca e satide, mal e bem de arg} Construcéo-destruigéo, ordem-desordem, escritura-leitura O gesto de colocar o foco nas impossibilidades da lem- branga total, voluntaria e controlada, central para a psica- nélise, contribuiu para rasurar e reformular a ideia estatal ‘de meméria acumulativa e capitalista. Para poder lembrar, se tornou incontornavel assumir a tarefa de lidar com fan- tasmas, espectros, paradoxais restos de uma totalidade ‘nunca atingida porém almejada, como a construgao de um novo elenco do que deve ser lembrado coletivamente. Mi espectros e menos monumentos parecem ser os resultados 34 ARQUIVO dos trabalhos com arquivos na contemporaneidade. Assim, sea batalha positivista e moderna se trava contra os restos espectras, anestesiando-os ou recalcando-0s em acervos fechados ¢ enciclopédias que garantem um saber sélido, 0 gesto do contempordneo é o de trabalhar ~ barbaramente, ‘como diria Benjamin ~ com os restos, £0 de acolher os espec- ‘ros. Pensar os restos ¢ os espectros, as ruinas e as sobrevi- vvéncias € pensar 0 arquivo na contemporaneidade. ‘Em 1995, Jacques Derrida, ainda que nao seja 0 tinico a intervir no debate, escreve o texto que funciona como cata- lisador dessas preocupagées em torno da tensio entre um projeto afirmativo de procura da verdade e a constatagio de uma realidade fantasmatica, suplementar, do arquivo; entre o desejo “construtivo” de meméria ea ansiedade des- trutiva: Mal d’archive: une impression freudienn Derrida enuncia ali o paradoxo, identificando no desejo de meméria, gesto acumulativo e construtivo, uma impa- ciéncia absoluta, um “mal” ou “febre” que “arruina, desvia ‘ou destréi o préprio principio do arquivo”, tensio entre a procura de uma verdade, de uma origem explicativa e a sua consisténcia fantasmética, imprecisa, espectral. A ansiedade, por outra via, também era pensada como vimos na figura do “colecionador”, de Benjamin, que mostrava ~ chamando a si mesmo de colecionador ~ que o valor da colegio nunca esta dado pelos objetos em si, mas pelo olhar anquivo 35 do colecionador, que toma posse deles (que ee cente posauido neles), j4 que so esses objetos os que podem suscitar uma rede de reminiscéncias, de lembrangas ¢ de esquecimentos. O significante arconte foi reativado ou resgatado do Pé de velhos dicionsrios no livro de Jacques Derrida, que anuncia aboa e velha nova, o “mal de arquivo”, cuja pulsio de morte ameaca e faz tremer “todo primado arcéntico”, vale dizer, “todo desejo ~ mal ~ de arquivo”. Segue-se dai que ~ escreve Derrida - “o arquivamento tanto produz quanto registra o evento”. No entanto, e ao mesmo tempo, “nada menos garantido, nada é menos claro hoje do que a pala- vyra arquivo” O que parece ficar claro, mais uma vez, chamando aten- sto pela jovialidade e resistencia, é a méxima macluhaniana de queo meio éa mensagem, com o fundamental acréscimo de que sio ambos vazios:a técnica arquivistica, ndo determi- nada pelo momento tinico do registro conservador, mas sim pela “instituicdo mesma do acontecimento arquivavel”, 0 arquivo, a instituigdo em analise em Mal de arquivo, &a pré- pria psicanalise como Nova Ciéncia, cujo arquivo comporta documentos privados e secretos, os quais, quando se tornam pblicos,o fazem sob a forma de uma “autoarqueologizacio” de ordem turistica, de uma museificacio da meméria indivi- dual, como é precisamente 0 caso de Freud, cuja casa tornou- -se la mesma “um arquivo privado em dominio piiblico”» 36 ARQUIVO eS No dia6 de maio de 1891, 20 completar 35 anos observa Derrida -, Sigmund Freud recebe como presente do pai uma ‘yelha Biblia “com pele nova”, quer dizer, nova capa ou cober- tura, e uma longa “dedicat6ria arquivada do arquipatriarca da psicanzlise”, Jakob Freud. Essa dedicatéria contém em si *toda lei do arquivo”, sendo ela um memorial e um lembrete: ‘“Anamnesis, Mneme, Hupomnera”.”” Mais do que isso, para Derrida, o “pensamento do arquivo” depende da possi- bilidade (Futura) desse conceito, Ele o afirma ao postular trés sentidos para a nocio de impressio: a escritural ou tipogré- fica, em primeiro lugar; a “impressio freudiana”, da qual se depreende 0 “pensamento do arquivo” anteriormente men- cionado, ea psicandlise como teorie do arquivo; ea tiltima, ‘mas no menos importante, a prépria impressio deixada por Freud a partir de seu acontecimento primordial, vale dizer, de ‘sua circuncisio, Toca-se aqui no aspecto radicalmente auto- biografico da experiéncia daquele eniversariante, regalado ‘com o exemplar renovado da Biblia que ja the pertencia, ‘Nessa tensdo entre impresses distinguiveis apenas de um ponto de vista hermenéutico, 0 que hé por vir - ¢ ‘so hd, segundo Derrida, arquivo por vir ~ é a “messiani- dade expectrl do arquivo" © que significa perguntar pela experiéncia da vida-morte, o que equivale a problematizar desde jé o estatuto futuro do arquivamento, mostrando que a temporalidade do arquivo resura e sutura de forma anouive 37 anacrénica 0 tempo progressive, jé que v arquivo faz € desfaz no presente a futuridade do pasado, E, no entanto, ou or esse mesmo motivo, “estamos com mal de arquiv questio de duragio e ardéncia porque “alguma coisa nele se anarquiva’.® O arquivo (mal de) segundo Derrida remeteria, de algum ‘modo, por outro lado, ao texto (teoria do) segundo Barthes,” mais de vinte anos antes: o texto, 'écriture, destruia um certo arquivo e propunha certo outro, em nome de uma utopia que, em Derrida nos anos de 1990, se des-continua ‘ou mesmo se re-imagina em forma de um devir democri- tico que “se mede sempre por este critério essencial: a par- ticipagao ¢ 0 acesso ao arquivo, a sua constituigio ea sua interpretagio”,” uma vez.que € proprio do arquivo - como se vit ~ ser ao mesmo tempo instituidor e conservador, ou seja, ser exercido por uma instituigo cujo procedimento- -padrio é 0 da violencia instituidora. Como 0 arquivo esté sempre & mercé da interpreta- sao ~e interpretagio no sentido de leitura e tradugio de alguma lingua ou linguagem -, ele também existe enquanto texto de qualquer espécie, incluindo o chamado literério. Como tal, o arquivo esté invariavelmente sujeito a meta- morfoses, das quais a propria critica filol6gica, no ambito da literatura, aprendeu a se alimentar, desde as suas fon- tes primarias até o Ultimo entre os tltimos leitores de 38 ARQUIVO ‘um determinado texto, objeto, imagem ou documento, salvo por artes de criticos genéticos digitais. Em funcéo desse estado de coisas, todos os avatares da cadeia de escrituras-leituras esto em exame e movimento e, em ‘consequéncia, dispostos a se expor por inteiro a cada ‘manipulagio de suas miquinas de linguagens, tanto do ponto de vista dos arquivos tidas como tais, dos arquivos fisicamente manipuliveis, entendidos como fontes prima- ras, quanto do ponto de vista do uriverso totalmente voli- tile nebuloso dos arquivos digitais (abordados a seguir). ‘Mas, como qualquer documento, conforme fartamente demonstrado em A arqueologia do saber, uma fonte ~ dita primaria ou digital ~ é desde sempre uma montagem, uma ‘oupagem resultante da manipulagio dessas fontes por um historiador, um censor ou um arconte qualquer. No final do século XX, o historiador Jacques LeGotf faz, referéncia ao documento por vir a propésito do que cha- ‘mou de “revolugio documental”, que tenderia a promover “uma nova unidade de informagao”, o que ele ainda pen- sava em termos analégicos (denurciado pelo emprego da expressio “fita magnética”): (...) em lugar do fato que condurz to acontecimento ea uma ‘histérla linear, a uma meméria progressiva, ela [a “revolugio ocumental"] prvilegia 0 dado, que leva a série €a uma hist6ria arquivo 39 descontinua. Tornam-se necessérios novos arquivos, onde o ‘eiro lugar € ocupado pelo corpus, afta magnética. A meméria coletiva valoria-se, insttui-se em patriménio cultural. O novo. documento ¢ armazenado e manejado nos bancos de dados. Ele exige uma nova erudigio que balbucia ainda e que deve responder simultaneamente as exigéncias do computador e& critica da sua ‘sempre crescente influéncia sobre a meméria coletiva.” Perguntemos, no entanto, ainda uma vez: 0 que signi- fica, problematiza cilumina a teoria derridiana do arquivo, visto como mais além das postulagdes de LeGoff, e de certa forma radicalizando as de Benjamin e as de Foucault, em diresdo a0 arquivo por vir? Derrida Ihe dé um estatuto violentamente abarcador que tem a virtude de eliminar de imediato qualquer laivo de “bem de arquivo” no que diz, respeito a sua teoria:trata-se explicitae insistentemente de ‘mal de arquivo, febre, mania, doenga de arquivo, e nao de ‘outta coisa. Construgio e destruigao se superpdem entéo nessa defi- nigao de arquivo, de colegio e de meméria. Os modos de encenar esse mal de arquivo na arte contempordinea (quando “contemporinco” nao se referea datas especificas) sio diver- 08, Tudo 0 que se disse e diz, tudo o que seescrevewe escreve,, as sagradas escrituras (nos termos de Héctor Libertella® antes que nos dos Evangelhos), um aleph abismal, vertiginoso, a 40. arquivo passaget dos séculos ~ presente, passado futuro - vista do ‘cimo de um monte por Brés Cubas ecomo que filmada antes do advento do cinema. So nada metros que todas as edigées hhumanas, conforme apresentadas na teoria do narrador espectral de Machado de Assis em Memérias péstumas de ‘Bras Cubas (1881). Detenhamo-nos por um segundo nele, ‘ou no mal de arquivo segundo ele. O seu narrador pro- mete, contudo, chegar logo & parte narrativa das mem6- rias postumas e brasileiras. Memsrias de ultratumba que poderiam apontar para 0 mesmo ¢ 0 inteiramente distinto: ‘o arquivo como arquivamento no museu do romantismo europeu; ¢ 0 cabo no comeso da istéria do defunto-au- tor (e nao autor-defunto). Entre os fins mais comuns do ‘verbo arquivar esti 0 de término, fecho, encerramento, ‘Em Bras Cubas, narrador morto, arquivar cheira a mofo, isto é, a umidade dos contornos do subterrineo, onde a terra, as carnes ¢ 0s vermes conversam; assim como todo o espace fisico chamado arquivo ~ a0 menos na era pré-di gital ~ é um lugar sujo e empoeirado, com teias de aranha, ‘estantes envelhecidas de madeira ou de ferro em que se amontoam papéis em pastas, cujo fim mais plausivel é 0 fogo.” Arquivar algo, nesse sentido, é uma forma usual de dar morte lenta (pelo sufocamento do mofo e da morte) ‘ou répida (pelo carater brasil do fogo, se assim podemos dizer) a esses materiais que trazem em si a marca da pior arquivo 41 das melancolias, aquela burocrética, o mal de arquivo em estado puro, o mais temido € doloroso, como aparece nas fabulas com doses calculadas de realismo em Franz Katka, Mas se Freud no final da vida nao pode se referir & biografia sendo como mentira, hipocrisia, idealizagio ou dissimulacdo, a biografia, além de ser um dos principais motores da industria editorial mundial, pode ser pensada como um “bem de arquivo”, agora no sentido dos rastros depois da morte ~ ¢ refuncionalizacdo - do autor. Em “A biografia - bem de arquivo", Eneida Maria de Souza aponta ara a revitalizacio ~ a diferenca de uma “conservacio” — das chamadas fontes primarias do escritor, com base na “retomada critica da figura do autor”, e cita um aforismo do critico genético Jean-Louis Lebrave: “o manuscrito ser © futuro do texto”. Trata-se de uma defesa das edigoes «riticas, partindo justamente da Coleco Archives, que a énsaista lembra ter sido inspirada pela doagao dos manus- critos de Miguel Angel Asturias (1899-1974), por iniciativa do préprio escritor guatemalteco, a Biblioteca Nacional da Franca em 1971, A propisito, a Coleco Archives, idealizada pela UNESCO em parceria com varios paises latino-americanos nos anos de 1970, com denominagao que fala por si, é exemplar sobre- tudo por sua trajetéria editorial errética, por vezes caética, ‘que tem resultado em contribuicéo inestimavel no momento 42 aRQuivo uposto canto de cisne do 1 Fo cat “desnuda a ser arquivo pblico”. Trata-se de qualquer forma, de um imenso eliterério cemitério latino- -americano, quer dizer, de um cemitério meto indio, meto europe um grande “bat de ossos, a sepultura-continente ‘em forma de mapa do Novo Mundo, a histéria das Indias (Ocidentais contada aos bérbaro-civilizados europeus por i livro ~ algo que esta, por cles mesmos ¢ por seus outros. io se pode ou nio convém, por outro lado, como vimos, separar 0 arquivo como meméria ¢o arquivo como intimi- dade, independentemente de ter alcance local, continental ou global: uma coisa implica diretamente a outra, uma coisa simultaneamente constréi e destr6i a outra. Nao poderia ser diferente 0 caso de Joao Guimaraes Rosa. No diario escrito ‘em Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial, oescritor de Cordisburgo anota vida e obra, vale dizer, nasce-morre a ‘cada entrada de didrio e espectraliza assim o seu proprio devir- -monumento artistico-arquivistico-literdrio, “Na escrita do Didrio de guerra’, observa Eneida, “o leitor se depara com os bastidores da criagio, com as experiéncias do escritor frentea sua producio litera e existencal,lagares pouco explorados pela critica Critica essa que,em grande parte, anda insist rria em ver nos arquivos do autor uma “entidade incémoda”, ‘oquea seu ver obrigariaa uma verdadera operasio de desre calque em relagao a “presenga do escritor na cena literdria”. Arquivo 43 Por outro lado, essa “poténcia arquiviolitica”, como a ‘chama Derrida, essa compulsio a admitir dentro de si tudo aquilo que lhe é préximo, faz-com que o arquivo igualmente tudo capitalize, e ndo apenas o que garante o seu funcio- rnamento, o que referenda o poder vigente, mas aquilo que © destréi. Construsio e destrui¢do mostram-se no arquivo como um mesmo movimento, meméria e desmemséria, pre- senga e auséncia, ou, como diz Derrida, todo arquivo é, a0 mesmo tempo, instituidor e conservador, revolucionatio € tradicional. Explicitando 0 paradoxo légico que assegura ‘que, se € possivel enunciar uma das partes da dicotomia, & Porque a outra ¢ inevitivel,e se faz presente, 0 arquivo segundo Kuitca, Aira, Orwell, Merlo Essa mesma tensio entre conservago/construcio e des- truigao pode ser vista em muitas das obras de Guillermo Kuitea. Em Curriculum (2002), por exemplo, vemos uma impressao em papel fotogréfico, na qual aparece uma Pagina do curriculum vitae do préprio artista - apresen- tado em duas colunas, organizado por datas, com alguns dados legiveis sobre exposicdes -, mas aparentemente sub- metida a um triturador de papel, esfiapada, desbotada. O curriculum vitae, texto padronizado e com uma base pro- sgressiva, burocratica e freudianamente biogrifica, é des- truido para construir outra coisa, que ele, por outro lado, 44° ARauIvo nao deixa de ser. © duplo movimento estatia, segundo 0 artista, no fato de que, para construir a obra, ele teve que colocar uma bomba ¢ ter feito explodir a minha histéria ‘em mil pedagos”.” : Jao potencial destrutivo dos computadores imaginado por César Aira em Bl juego de los mundos™ desdobra-se nna destruigio de mundos através de jogos de computador ‘como passatempo corriqueiro do filho do pai-protagonista de seus amigos adolescentes, num ponto do futuro em ‘quea palavra literatura tinha sido abandonada havia muito ¢ jé nao significava mais nada, Poder de destruigio verf- cado igualmente do ponto de vista do “bem de arquivo’ do presente: 0 computador, anota Eneida Maria de Souza, “dotado de potencialidades muito mais destrutivas frente 40 arquivo pessoal do escritor”.” No fundo, esses novos arquivos ja so predefinidos imaterialmente enquanto poeira, ‘na medida em que poeira é 0 que paira e em que a grande ‘massa de dados - dedos, digitos, pontos, particulas, pixels = est nas nuvens, n’A nuvem - o aléphico arquivo digi- tal mundial, eufemizado & maneira de um velho quadro impressionista. No contexto da pan-lingua, pouco menos velha, do romance 1984 de George Orwell se diria que esse Grande Arquivo é manipulado 365 dias por ano pelo Grande Irmo, mas um grande irmao também ele melancolicamente dissolvido em poeira, que hesita diante de seus préprios ARQUIVO 45 fandamentos, confundindo e20 mesmo tempo afirmando: ~ Nio sei se do pé viemos, tampouco sei se a ele voltare- ‘mos, mas nao resta diivida de que nele vivemos, de que 0 agora a ele dedicamos, A esta agoridade chamamos 0 contemporineo. Porque a histéria como acumulacao pode ser explodida e pode saltar em pedagos, como em Guillermo Kuitca, ou explicitando seu funcionamento ilbgico, colocando 0 acento na compulsdo da colegio ¢ nio na racionalidade da sua organizacao, como no caso ji citado de Arthur Bispo do Rosério, ou tam- ‘bém no corte estabelecido na histéria da arte pelo Atlas ‘Mnemosyne de Aby Warburg, que desmonta e remonta a historia da arte ocidental, menos por uma légica analitica € mais por uma légica analégica, que, na sua apresentagio, é capaz de estabelecer outras conexdes, fazer falar outro pasado em outro futuro, ‘Também se pode pensar 0 museu imaginério de Santiago Badariotti Merlo, no documentirio Santiago, de 2007," do Ponto de vista da histéria como acumulagio feita em mil pedagos ~ mais precisamente, em trinta mil fichas, no caso do mordomo de origem italo-argentina da familia Moreira Salles, a quem serviu durante trinta anos no Rio de Janeiro. filme de Jodo Moreira Salles esgarca a nogio de filme- -documentrio com uma experiéncia do tempo que inclui treze anos de suspensio do arquivo filmado e a retomada 46 ARQUIVO do material sob outra mirada, com a destruigao completa do projeto original. A retomada em Santiago significa tra- zer 4 tona o que tinha sido sumariamente abandonado: 105 escritos do protagonista sobre dinastias da nobreza de todas as eras, estirpes e continentes nas fichas cuidadosa- ‘mente armazenadas e expostas emuma estante de seu apar- tamento tipo quarto ¢ sala, de trabalhador aposentado no Rio de fins do século XX.*! Questio de sobrevivéncia pela ‘via da memoria da vida alheia e da escrita exercida como ‘cépia ¢ reapropriaglo, na medida em que “falar do outro” significa “narrar a si proprio”. Frequentador de bibliote- cas e formado nas soirées operistcas do Teatro Colin da Buenos Aires aristocritica dos anos de 1920 e 1930 ¢ ass duo frequentador de bibliotecas, lém de talentoso florista ¢ bailarino, ou seja, um acabado personagem, Santiago € abordado sob olhar inteiramente distinto na retomada do ‘material filmico pelo diretor, que decide se autobiogra- far criticamente uma década e pouco depois, como fruto ‘de uma crise pessoal aos 43 anos de idade, levando-o a narrar com melancolia e despojamento a passagem do ‘tempo e a dar ao filme o subtitulo de “uma reflexio sobre © material bruto”. Pode-se dizer que Santiago é um certo personage de Borges, 0 memorioso, conforme sugere Eneida, pondo-os justificadamente em conexio: ‘ARQUIVO 47 © cuidado em arquivar, pela pia vida e dinastias doe no bres, desejo de revitaliz-1osetorné-los companheiros eamigos de fiecionalizar sua existncia e superar a solidio com a ajuda dese trabalho de criagio/cépia delivros escrtos em linguas diver- ‘as, transformam Santiago em personagem borgiano,em “Funes, ‘© memorioso”. Como Funes, ele ndo se esquecia de nada, sofria -rsari,pdf, acesio em 21 jan ‘oie. rd > Yate Bsa Chars Baae mo sg cpa Jur CatceNaros Barbone tonmscn seh aa Beis, Donen 72 Obes ARQUIVO 51 Asie goer mn inn expo os Calta Cage Vem Paula cemcgldaa Lombard Fee Atgem Non ek soe hran Centre for Photography, em Sydney. Parte da série ‘encontra-se disponivel em

esobraea "Te eo dom Rl ares don ‘C- Benedetti, Sio Paulo, Martins Fontes, 2004, x. 1. Teoria, er * ‘Derrida, Mal de anuivo, 16, nota 1 Jacques LeGoff, Dacumento‘Manumento, em Encilopita i em nau, Lisboa, Imprensa Naional/Casa da Moeda, 1997, 1p, 99-100. Meme Histia, 52 aRguvo 25 Ch Hector Liberia, Las sapradas scrum, ends Ares Sudamericana, 193. 1 Lembremos que o primeizo arquivo do Ocdent, em Atenas, fi queimado pelos perass em 478-479 aC, como observa Georges Didi-Huberman em O fe vemos «que nos olka tad. Paulo Neves, Ro de Jane, Ealitora 34,1998 % Enea Mara de Souza, Janes indscretas: ensios de cricabiogrifica, Belo Horizonte, Editors UFMG, 201, p. 38-40. Ibidem,p.46-47.Como Drummond, Guimaries Ros fo outro autoarquvista Aedicado, Ibid, p38 © Guillermo Kuitca, Hans Michael Herzog en converscién con Guillermo ait, Buenos Aire, 25 de julho de 2006, en Das Lied Vow der Erde, Zurich, _Daroratinamerica, Hatje Cant, 2006 (1. Catilogo de expos, 25 nox 2006-18 mar. 2007 "César Ala, luego dels mundos, La Plata Hl Broche Ediciones, 2001. > SournJanelas indscretas,p. 1. Sri case de perpunta, enti, o que hoje ‘um mestre de obras da informatica? F, entre outeas cosas, um mestre de srs. Mas é também aqule em que ovulo deposit aesperanca va de que (9 anqulvosndo vier repentinamenteposia virtual, por mais milagrosas {rmulas de armazenamento digital que Se aventem (formulas estas que no param de ser descobertas abandonadas de modo cada vee mais velo). “ Santogo dregio oso Moreira Salles, Rio de Janeiro, Videoiimes, 2007, 35 mm, son. cor ¢ p&b, 80min. © pesuenospartamento carica de Santiago remee, de algum modo, guele de Manoel Bandeia em O peta do case, me de estria de Joaquim Pedro de Andrade em 1959. Ambos os protagonisas dsses filmes, que convveram ‘a mesma cidade em seus tempor dourades, thm ma simpata, um carsma una intlgtnetaincomuns, lém de teers dedicado com fervor durante toda sua exsénca a desentranhar as rina da istéiae da teratura Souza, Jala indscretas, p. 58-58 © Jean-Luc Nancy, Sobre adestruigo, em Arsuvida do senciente edo venti, tind, Marcela Vieira e Maria Pala Gurge Ribeiro, Sto Paul, luminaras, 2014, p38. ‘ARQUIVO 53 COMUNIDADE ‘A comunidade esti na ordem do dia, tanto como pro- blema quanto como pritica. Se, nos tempos modernos, as ‘massas que resistiam & a¢io disciplinadora do Estado eram ‘a ameaga latente ao projeto modernizador contrapondo-se & nogio integradora de povo, hoje as multidées resistem a0 controle do capitalismo internacional desterritorializando- -se, Uma definigdo contemporanes de comunidade atenta .a0s problemas causados pelos nacionalismos no século XX passa por uma difundida consciéncia de integragao a uma rede na qual o impacto da agdo de um dos nés é, a0 mesmo ‘tempo, inevitavel, imprevisivel e incontrolivel, produzindo ‘efeitos que se propaga por todos os outros. A politica ‘mais vanguardista esta sendo feita de modo coletivo, hori- zontal, sem passar pelas instituigdes tradicionais (partidos, sindicatos etc.) e, 0 que é mais radical, sem planos progra- ‘miticos. Nao & toa, condiz com isso a necesséria problema- tizagio das nogdes de sujeito e individu, nagao e povo. E ainda as ideias de inespecificidade e impropriedade na arte respondem, de algum modo, a essa mesma sensibili- dade que nao se acomoda confortavelmente a uma defini- ‘sdo precisa e a uma divisio em esferas de pertencimento, Porque reconhece suas interconexdes e interagSes, Muito embora o conceito de comunidade nao seja con- tempordneo, o fato é que durante os tiltimos anos tem se convertido em um dos termos mais debatidos e polémicos. Seria possivel tracar uma genealogia do conceito, em um sentido amplo, retomando o percurso histérico-filosétfico delineado por Roberto Esposito,’ que passa pelas obras de Hobbes, Rousseau, Kant, Heidegger e Bataille. Ao fazer essa genealogia, Esposito centra-se na tensa relagio entre © pensamento de Heidegger e Bataille, opondo-se, assim, as diferentes acep¢des dadas pelos fildsofos anteriores a0 conceito, haja vista que, sob a tica do italiano, na obra de Hobbes, a comunidade representava algo que deveria ser destruido em pro da constituicio do poder absoluto do Estado; jé na critica comunitéria de Rousseau ao indivi- ualismo hobbesiano, reclama-se da auséncia de comuni- dade, como uma origem natural a qual é preciso retornar; €na filosofia de Kant, embora ndo haja nenhum ideal de reapropriagdo de uma esséncia ligada a um mito de ori- gem, a comunidade aparece como aquilo a que se deve aspirar, ndo obstante constitua sempre um irrealizével, 0 56 CONUMIDADE que recorda ao homem a sua finitude e impossibilidade de perfeicio. Aproximando-se assim a sensacao do sublime, ‘.aspiragio kantiana da comunidade funciona como expe- rigncia traumatica do limite, justapondo a tendéncia a se ‘querer ultrapassé-lo a impossibilidade de fazé-lo. £, porém, no pensamento de Heidegger quesse reconhece outro lugar de compreensio da comunidade, deixando esta de ser vista como principio ou fim, pressuposto ou destino, passando a ser entendida como condi¢ao, ao mesmo tempo singular plural, de nossa existéncia finita, Heidegger € 0 pensador que afirma com maior veeméncia que o momento verda- deiramente auténtico de nossa existéncia é a consciéncia madura de nossa inautenticidade origindria. Isso impl dizer “que a incompletude, a finitude, nao € 0 limite da ‘comunidade - como 0 retrato melancélico do pensamento ‘sempre imaginou -, mas o seu sentido, para ser mais exato”* ‘Note-se que a virada representada pela obra de Heidegger & fundamental para a entronizagao da questo do niilismo ‘no pensamento filoséfico e para ¢ tematizacdo da questio do “fim” na filosofia. Desse modo, o texto heideggeriano abre a questdo fundamental do fim da filosofia e da neces- sidade de se criar um outro pensamento com base nessa nova condigo. Contudo, enquanto Heidegger se coloca ‘como elemento ulterior da linhagem filoséfica ocidental, reinventando a filosofia de seu fim, Bataille inverte essa COMUNIDADE. 57 —— Posicao, Investindo nao numa nova filosofia do fim da filosofia clissica - de tradi¢ao metafisica -, mas numa filosofia do fim que, em vez.de operar no interior mesmo do saber, como Heidegger, desenvolve-se a partir do nao saber, como a afirmacao de uma negagio radical. Nesse sentido, em contraposigéo ao pensamento heideggeriano, “marcado pela subordinacao da experiéncia ao conheci- ‘mento”,’a obra de Bataille, por meio da ideia de “experiéncia interior”, percebe no préprio bojo do saber a simultanei- dade de uma poténcia (a experiéncia) estranha a qualquer, possibilidade de definigio filoséfica. A experiéncia, em termos bataillianos, seria assim aquilo que leva 0 sujeito para fora de si, destituindo-Ihe toda forma de subjeti- vidade. Dessa maneira, é possivel afirmar que a abertura representada pela relacio entre as nogées de experiéncia € comunidade em Bataille ergue-se como algo ainda mais problemitico, visto que o vazio que envolve a questio do cum ~ da relag3o comunitéria pensada para além dos mitos de origem e dos discursos imunitérios de identidade - bem como a desativacio do sentido que a experiéncia do mundo institui - deslocando sujeito, linguagem e pensamento de seus lugares consolidados ~ exigem refleti sobre a comu- nidade como aquilo que falta, porém nao como um nada que reclama “ser preenchido com novos e antigos mitos, ‘mas antes, ser interpretado a luz de seu préprio ‘nio”4 E 58 COMUNIDADE por essa via que a obra batalliana inaugura um espago na contemporaneidade para a emergéncia de um sentido “singular” que nao se reduz a0 mecanismo de produgao dos sentidos ja previamente impostos ou pressupos- tos em nosso contexto sociocultural, mas que, de outro ‘modo, mantém uma coincidéncia problemética com a auséncia de sentido, como a abertura de um sentido até ‘entio impensado que se formula sob a égide da exposi- ‘gio a experiéncia - entendida ai nio como 0 comum jé sabido, mas como 0 “nada em comum”. importante, portanto, frisar que desde a obra de Bataille, sobretudo ~ pensador de grande influéncia para filésofos contemporineos como Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy 0 préprio Esposito -, vem se gestando e desdobrando ‘um trabalho intelectual conjunto a respeito da nogio de comunidade que desloca a concepgao tradicional dos lacos comunitérios, no que se refere aos signos ow atri- butos de pertencimento e propriedade (lingua, religiio, raga, nagio etc.), concepgao esta que muitas vezes impede ‘© pensamento sobre o comum da comunidade de ter em conta a singularidade da diferenga Diante disso, surge um novo pensamento da comunidade que desconstréi ~ de modos diversos ~ essa ideia de comunidade anterior e pro- poe uma totalmente diferente. COMUNIDADE 59 tee ‘Tentando pensar a diferenca dessa outra nogio de comu- nidade que se apresenta, Esposito elabora a seguinte reflexio a respeito do carter paradoxal que atravessa as definigoes tradicionais do conceito: (© que na verdade une a todas estas concepgdes & 0 pressu- posto irrefletido de que a comunidade é uma “propriedade” dos sujeitos que une: um atributo, uma determina¢o, um predicado ue os qualifica como pertencentesa um mesmo conjunto.(.,.) A ‘omunidede segue amarrada & semantica do proprium. (...) Basta Jembrar a mais sébria, ej amplamente secularizada, comunidade ‘weberiana, para que se veja sobressair, embora de uma maneira desnatutalizada, a propria figura da pertensa. “Uma relacio so- ‘ial deve se definir como comunidade se, e na medida em que, a disposicao para a aso repousa (...) sobre uma pertensa comum (afetiva ou tradicional) subjetivamente sentida pelos individuos {que participam dela” [Weber]. Se nos detivermos por um instante 4 refletir por fora dos esquemas habituais, veremos que o dado ‘mais paradoxal é que o “comum" se identifica com o seu oposto mais evidente: 6 comum o que une numa iinica identidade a ropriedade — étnica territorial, espiritual - de cada um de seus ‘membros. Eles tém em comum o que lhes é préprio, sio proprie- trios do que Ihes écomum: 60 COMUNIDADE ‘Segundo Nancy, no prélogo ao livro Communitas, de Esposito, um trabalho coletivo de definigao e discussio ‘da comunidade, compartilhado por diversos pensadores, sobretudo do contexto europeu, impos-se por um motivo terrivel, que a historia de nosso tal ponto que a sua ‘século (...) nao cessou de nos brinder, Jembranca, de tio angustiante, torna-se inevitve: em nome da ‘comunidade, a humanidade — acima de tudo na Europa ~ pos pprova uma capacidade insuspeitada de autodestruigdo.® esse mesmo texto, Nancy busca refletir sobre a ques- tio do “comum”, partindo da instabilidade do “ser junto” ‘como condigao. A questio que esses pensadores nos apre- sentam é a de pensar essa condigo de outro modo que nao derive unicamente de uma concepsio fechada de sujeito, Seja individual ou coletivo, isto é, que nao se restrinja a ‘nenhum “sujeito”, tentando, ao contrario, partir da propria condigao de relagao e vinculo: ‘© cum 6 que vincula (se é um vinculo) o1 0 que junta (se € uma juntura, um jugo, uma junta) 0 mumus do communis cuja {ogica ou carga semintica Esposito recanheceu e desenvolveu tio bem (...)}: a distribuigdo de uma carga. de um dever ou de uma COMUMIDADE 61 trefa, endo a vomunidade de uma substancia. © ser-em-comum se define ¢ constitui por uma carga, eem tiltima andlise, ndo esta a cargo de outra coisa sendo do proprio cum? Tentando assim se distanciar, de modo radical, da dialé- tica entre o comum e 0 préprio, entendidos como elemen- tos essenciais da comunidade, Esposito procura um ponto de partida externo ~ por fora da filosofia politica moderna, dado que essa dialética seria inerente a sua linguagem conceitual -, focando-se na origem etimolégica do termo communitas. Nesse percurso por dentro da etimologia, chega a ideia de que “o munus que a communitas com- artilha nao é uma propriedade ou pertenca. Nao é uma posse, mas, pelo contrério, uma divida, um presente, um dom-a-dar.”* Esse modo de refletir sobre o conceito de comunidade leva em conta a poténcia da exterioridade, daquilo que nao se submete ao movimento de apropriagio e fixagio de parametros identitérios, ou “imunitérios” — para usar outra concepgao desenvolvida pelo fildsofo italiano. A recupe- aslo da raiz etimolégica de communitas faz. com que ele trate de atualizar a discussdo em torno do “comum” como. “Um dever” [que] une os sujeitos (..), que faz.com que nao sejam inteiramente donos de si mesmos. Em termos mais precisos, 62 COMUNIDADE cexpropria-Ihes, em part, sua propriedade mais propria isto sua subjetividade. Impomos assim um giro de cento eoitenta graus a sinonimia comum-préprio, nconscientemente pressuposta pelas filosofias comunitiias, erestabelecemesa oposicao fundamental: no € 0 proprio, e sim 0 impréprio ~ ou, mais drasticemente, 0 outro ~0 que caracteriza o comum. (..,) Na comunidade, os ujei- tos no acham um principio de identifcacio, nem tampouco um recinto asséptico em cujo interior se estabelega uma comunicagio transparente, ou quando menos, contetdo a comunicar Mas, novamente aqui, o carater paradoxal do conceito de comunidade reaparece, em Esposito, no debate que ele promove a respeito da dificuldade de se articular uma comunidade politica. Tal dificuldade se instaura justamente no fato de que essa comunidade se conjuga numa radical desconstrucdo do préprio e da propriedade, em torno da qual a tradicao politica funda a ideia de pertencimento. Por isso que na esteira da reflexao de Esposito" a propria nogio de “politico” é questionada a partir da percep¢ao de que o terreno da politica é um campo de lutas discur- sivas em torno da defini de sentidos, representacées ¢ raticas que fomentam intimeras formas de identidade e gregarismo, erigidas por meio de oposicdes bindrias, tais como direita versus esquerda, conservadorismo versus Progresso, capitalismo versus socialismo. Nesse sentido, COMUNIDADE 63, Esposito chama a atengao para a tensao entre clareza ¢ obscuridade em torno das concepgées politicas modernas, mostrando que, subjacente suposta clareza vinculada a ideais politicos transcendentes, reside uma face obscura e contraditéria aberta ao deslizamento de sentidos. E é ai,no bojo desse interdiscurso, que operam, simultaneamente, os ‘mecanismos de fechamento ¢ reparticio das comunidades, por um lado, e desterritorializacao e rearranjo dos lagos comunitérios, por outro. Leia-se a seguinte citacéo: Pode-se dizer que a relexio politica moderna, deslumbrada por essa uz, perdeu completamente de vista azona de sombra que recorta 0s conceitos politicos que nio coincide com o significado ‘manifesto destes. Enquanto este significado é sempre univoco, unilateral, fechado sobre si mesmo, o horizonte de sentido, em troca, 6 muito mais amplo, complexo, ambivalente, capaz de conter elementos reciprocamente contraditérios. Quando se reflete sobre eles, todos os conceitos mais influentes da tradi¢ao politica ~ poder liberdade, democracias - pdem de manifesto que possuem no fundo este nicleo aporético, antindmico, contradi- ‘rio; estdo expostos a uma verdadeira batalha pela conquista ea transformagio de seu sentido." Esse fragmento sinaliza, entre outras coisas, a consciéncia de que uma visada politica contemporinea precisa dissolver 64 COMUNIDADE universalistas,abandonando uma nogéo simplista realidade, em prol da reflexo em torno dos “regimes yerdade”, constituidos em meioa um complexo feixe ecelagoes ¢ campos de forca. Fica patente af que tal sub- 4 ldgica politica tradicional sb pode se dar na e pela gem, cuja prtica, conforme é mostrou Foucault,* inexoravelmente vinculada ao processo de produgio poder. Nao toa, na visio de Esposito, por exemplo, E possivel, numa perspectiva atal, “entender o pol tico & luz de qualquer acepeao dualista como algo que itivamente, a partir do exterior, se contrapusesse & Tinguagem do poder”. Esse posicionamento filoséfico se aduna com outras discuss6es, mais ligadas is ciéncias ‘sociais, como, por exemplo, a levantada por Michael Hardt ‘Antonio Negri em Império,livro no qual assinalam que todos os elementos de corrupcio e exploragao nos sio Jmpostos pelos regimes de produgio linguistica e comuni- " cativa: destrui-1os com palavras € tac urgente quanto fazé-lo ‘com agbes”." oe & Note-se que esta Ultima reflex suscitada pela leitura __ de Hardt e Negri é frutifera e interessante no 56 por trazer A tona a necesséria aproximacdo entre linguagem e praxis, ‘mas também por abrir caminho para se pensar a possivel COMUNIDADE 65 relaglo entre pritica artistica ¢ outras priticas, nas quals @ constitui¢io do comum e a convivencia se tornam cen- trais. Isso porque as priticas artisticas estdo inseridas no contexto amplo de uma certa sensibilidade contempora- hnea para as questoes da vida em comum (a filosofia parte, justamente, da necessidade de interpretar esse contexto e encontrar nele ~ num gesto intempestivo, como querem Agamben/Nietzsche ~ as zonas obscuras).* Ambitos muito diferentes do conhecimento estao se dedicando, simultaneamente, a pensar a comunidade (ou a convivéncia, a vida em comum). Essa é uma questao urgente hoje. Nunca se falou tanto em complexidade e, possivelmente, em nenhuma outra época, a relacio entre as diferentes esferas da atuagio humana e a consciéncia do impacto miituo esteve tdo evidente no coti no. Basta pensar, por exemplo, em como a preocupacéo com 0 meio ambiente e 0 aquecimento global deixaram o ambito cien- tifico para habitar ~ e as vezes direcionar ~ os debates poli- ticos, a industria de bens de consumo, a publicidade, a0 Ponto de reformular a propria nogio de ética. Em gran- des centros urbanos, perguntas como “o que vocé come?”, “onde vocé compra sua comida?”, “onde compra?”, sim- plesmente, e “o qué?”, “o que vocé faz com seus restos?” se tornaram perguntas politicas. 66 COMUNIDADE E possivel peceber a que anogio de convivéneia pre= senta uma importante duplicidade de apropriagoes em termos tebricos.Liga-s,flosoficamente,& experiencia de abertura ao outro, a qual desabilita a pulsio imunitéria/ {dentitéria das comunidades, bem como os lugares estabi- lizados da forma e do sentido, no discurso artistico. Jé no {que tange aos estudos sociais, convivéncia ¢ 0 resultado de ‘uma conjuntura hist6rica/geopolitica que se imp6e a priori ‘como um problema, dentro de uma estrutura sociocultural acostumada a lidar com a separacio/estratificagao. Sendo assim, na légica da militincia politico-intelectual contempo- ‘rinea, é preciso aprender lidar com o outro, conviver com le, estruturando relagdes politicas e culturais produtivas, dentro da inexorivel multiculturalidade do presente. Nesse sentido, se, por um lado, a postura estético-filosofica parece parar no lugar do “nao”, da desconstrugéo dos discursos hhegeménicos em torno da comunicade, por outro, a postura sociol6gica parece ser um tanto ou quanto heuristica. Conforme jé demonstramos, a vertente filoséfica tenta deixar para trés.aideia de que a comunidade éa Gemeinschaft, ‘em que os membros se unem por um sentido de lealdade 4 princfpios morais, por uma ideatidade comum ou pela nostalgia da comunidade como conjunto harménico. Con- tudo, uma ideia de comunidade que nao se sustente no COMUNIOADE 67 pertencimento nem na propriedade, mas na coexisténcia, no cum, despotencializa-se, muitas vezes, em meio a inope- ancia de seu préprio discurso, que se institui como a pro- messa de algo “que vem”, renegando criticamente lutas especificas, interesses compartilhados e afetos mobilizadores do presente. A principio, parece haver uma disjuncio entre a nogdo de comunidade de que falam os filésofos (Nancy, Esposito, Agamben) e aquela de que falam os cientistas politicos ¢ sociais (como Negri, Hardt) e os teéricos da comunicagio (como Clay Shitky, Howard Rheingold). Um desencontro ide como conceito filoséfico e a comuni- dade da vida cotidiana, a “comunidade dos humanos”.* Os filésofos europeus, em gera, partem sempre do trauma Pelos usos que se fez da comunidade no século XX: das atro- ‘cidades cometidas em nome de um sentido de comunidade baseado na identidade do grupo (no caso do nazismo) e do fracasso do grande projeto politico baseado no comum (no ‘caso do comunismo). Escrevem com muito tato, sabendo da aversio dos leitores europeus pelo vocabulério ligado {a0 comum-comunismo-comunitério. Nancy, em especial, reforca a ideia da comunidade como um mito que perde sua forga no momento mesmo em que ¢ reconhecido como tal, Para eles, a nostalgia da comunidade se expressa muitas 68 COMUNIDADE -yeres como 0 desejo de recuperagio de uma certa idade de ouro perdida, uma visio de comunidade calcada num certo pacto de confianca miitua que nao existe, nunca exis- tiu. Fles partem dat para pensar uma possivel comunidade das singularidades, uma comunidade que nao se funde sobre a identidade (a semelhanga), mas que se construa na rede da heterogeneidade (a “comuridade inoperante” oua “comunidade que esté por vir"). Negri e Hardt nao falam precisamente em comunidade ¢ talvez evitem o termo pelos mesmos motivos histéricos que indicavam Nancy e os demais. Negri menciona ainda 0s efeitos perversos que o conceito de comunidade baseado em uma identidade de raga nos deixou, como a heranca da colonizacao, lembrando que nao s6a Europa viu as conse- quéncias cruéis da nogao tradicional de comunidade. Esses autores preferem, entdo, otermo “multidai €0 mesmo escolhido por Paolo Vimo. © modo como eles entendem a multidao, no entanto, se aproxima muito da fdeia de uma comunidade heterogénea, composta por sin- gularidades e sem unificagao, que aparece nos outros filb- sofos. No entanto, em sua reflexio, a multidao claramente emerge do estagio atual do capitalismo e 6 um conceito inseparével da globalizagao. A multidao é a alternativa que ‘vai se construindo dentro do império: que COMUNIDADE 69) A globalizayio, contudo, também €a criagao de navosctreuitos de cooperagio ¢ colaboragdo que se alargam pelas nagbes e con- tinentes, facultando uma quantidade infinita de encontros, Esta, segunda face da globalizagdo no quer dizer que todos no mundo se tornem iguais; o que ela proporciona & a possibilidade de que, mesmo nos mantendo diferentes, descubramos os pontos comuns ‘que permitam que nos comuniquemos uns com os outros para ‘que possamos agir conjuntamente. Também a multidio pode ser encarada como uma rede: uma rede aberta eem expansio na qual todas as diferencas podem ser expressas livre e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios da convergéncia para que possamos trabalhar ¢ viver em comum.” Quais sio as categorias que nos permitem fazer uma leitura desta nova realidade? Dizemos que sio as categorias de multidao, comum e de singularidade. Quando falamos de multidio falamos de um conjunto, mais do que uma soma, de singularidades cooperantes. A multidao pode ser definida como 0 conjunto de singularidades cooperantes que se apresentam como uma rede, uma network, um con: junto que define as singularidades em suas relagées umas com as outras.* O conceito de multidao se afasta dos de “povo” e de ““massas” pela heterogeneidade, mas o que permite sua arti- culagéo é 0 comum. Ea construgio do comum o objetivo 70 COMUNIDADE da multidao, ¢ nao a tomada do poder: “Na medida em {que a multidao nao é uma identidade (como o povo) nem éuniforme (como as massas), suas diferencas internas deve descobrir 0 comum (the commons) que lhe permite ‘comunicar-se e agir em conjunto.” Parece curioso que justamente os filésofos militantes (Virno e Negri) coincidam nessa escolha e que o termo que cles usam, “multidao”, seja mais “pé no chio” e de cariter mais concreto do que a “comunidade inoperante”, de Nancy” e a “comunidade que vem”, de Agamben, que ‘parecem evocar mais a auséncia ou a impossibilidade do que a efetiva existéncia da comunidade, qualquer que seja sua forma. A definigao de multidao parte da possibilidade da colaboracio, esti ancorada na agio concreta. Para além da “comunidade inoperante”, existe algo, ainda que frégil ‘eprovisdrio, que as pessoas leigas em seu cotidiano enten- dem por comunidade. E ela funciona, mesmo que esteja sempre a ponto de se desfazer.”" Embora a multidao apareca inicialmente em Negri e Hardt como um projeto, um objetivo a ser conquistado (Como um horizonte ut6pico), apds a sucesso de eventos de 2011 ~ da revolta na Tunisia que se estende pelo Oriente ‘Médio, pasando pela tomada da Puerta del Sol em Madre ‘da Praga Syntagma em Atenas, até 0 surgimento do Occupy Wall Street (OWS) ~ eles passam a falar no assunto como, COMUNIDADE 71 algo presente, em progresso. Esses eventos sau recebidos com entusiasmo pelos autores porque ilustram perfeita- ‘mente 0 projeto de construcéo do comum pela multidao, ‘com seu mecanismo horizontal de organizagao, sem comi- {és ou lideres identificéveis pela mi Apesar de a definicéo de multidao apresentada por €sses autores (Virno, Negri, Hardt), cada um a seu modo, coincidir em muitos aspectos com a ideia de comunidade apresentada pelos filésofos, o que diferencia os dois con- ceitos é0 fato de que os pensadores que falam da multidao nio tratam dela como algo que esté por vir, mas como algo que jé existe, que esta presente e ativo agora (uma comuni- dade operante, afinal), ainda que, por sua prépria natureza, ermaneca em construgio. Nao se pode ignorar ainda que o conceito de multi- dio como um “conjunto de singularidades cooperantes” depende da interconectividade, de ages mituas. A inte- Tagio com a tecnologia ¢ a transformagao que ela causa nos modos de produgao e consumo é fundamental para as ideias de Negri e Hardt, e & 0 que os aproxima dos ted- ricos da comunicagio. Estudiosos da internet, como Clay Shirky,” por exemplo, tém descrito e prognosticado as Possibilidades de aco colaborativa proporcionadas pela ifusdo da tecnologia, desde a Wikipédia, as novas formas 72 COMUNIDADE de producao e difusio de noticia, o software livre, o con- ‘sumo colaborativo, até as estruturas de gerenciamento de ‘empresas ¢ sistemas de avaliacio de servicos. ‘Mas o entusiasmo de Negri e Hardt pela multidio (para ‘les, aparentemente imbufda de valores positivos) faz com ‘que se concentrem naquelas possibilidades de cooperagio ‘que se enquadram em suas prépries expectativas politicas. Porém, o potencial da multidao nao esta disponivel s6 para ‘agenda da esquerda, nem sé para fins diretamente poli- ticos. Nao a toa, quando Howard Rheingold fala de multi- does inteligentes, ele se refere & capacidade de articulagio ‘entre pessoas que ndo se conhecem para realizar uma ago ‘comum. Mas a acio nao é necessariamente benéfica, pois ‘a convergéncia de tecnologias, ao passo que abre um novo ‘panorama de cooperacio, também possibilita uma economia de vigilancia universal ¢ ‘utoriza o sanguinario, bem como o altruista. Como todo salto ‘Prévio no poder tecnolégico, a nova convergéncia da computagao ‘sem fio e da comunicagio social permitiré que as pessoas melho- rem a vida e a liberdade em alguns aspectos e as degradem em ‘outros. A mesma tecnologia tem o potencial de ser usada tanto ‘como uma arma de controle social quanto um meio de resistencia. Mesmo os efeitos benéficos iro ter eftitos secundrios.” COMUNIDADE 73 eee £ importante atentar para essa tensfo entre poténcia € controle que a interconectividade na sociedade midis- suscita, Ndo & toa, alguns artistas ¢ intelectuais con- temporaneos tém percebido esse poder diiplice que 0 uso das redes sociais, por exemplo, implica, a saber: 0 de ser ‘20 mesmo tempo canal de reivindicagao, protesto, ¢ ins- trumento de exposicao e fragilizacio dos sujeitos que por las se manifestam. A titulo de exemplificagdo, veja-se um comentario postado no Facebook pelo poeta, jorna- lista e professor brasileiro Eduardo Sterzi, em 15 de julho de 2014, dois dias apés o cumprimento de mandados de risao preventiva de 37 militantes de movimentos sociais supostamente envolvidos na organizacao de manifestagdes ue coincidiriam com a final da Copa do Mundo do Brasil: ‘A gente continuard repassando noticia apés noticia, imagem apés imagem, testemunho apds testemunho, movidos por uma raiva que ds vezes & quase s6 tristeza, mas que s6 por ser raiva também nos salva de irmos direto ao fundo do pogo, que nio tem fundo, Eo mais trégico talvezseja saber que, mesmo se de- dicarmos 0 dia todo, todos os dias, a fazer a informagao circular, Provavelmente ndo convenceremos ninguém que j nlo esejasa- bendo na carne, pior: provavelmente nossos inimigos, inclusive alguns, ou muitos, que até ha pouco tempo eram nossos amigos, 74 COMUNIDADE ‘ou assim se diziam, vio celebrar, a cadadia mais vergonhosamen- te, cada agressio que sofrermos, e quemesmo a informacio que fazemos circular (o niimero de presos, gravidade das violéncias, 4 extensio das exceydes etc.) serd também motivo de festa para quem ji nio tem um pingo de cardter na carcaga vazia ~ porque talvez nunca tenha tido, nbs que néo percebiamos. Repassando, erepassando, e repassando informagao - até que todos estejamos presos. E isto também é trigico, muito trigico: saber que, se as coisas continuarem como estio, nenhum de nés escapa. ‘Note-se que Sterzi, nessa postagem, paralelamente & ‘poténcia do gesto raivoso ¢ irasctvel de dentincia — atrelado 4 proliferagao discursiva propiciada pelo suporte virtual, capaz de fazer informacdes de diferentes esferas e perspec- tivas ideolégicas e autorais circularem, dando visibilidade muiitas yezes aquilo que se encontra velado no convivio social -, justapde a consciéncia de que tal gesto expoe € fra- giliza o sujeito da enunciagao, a0 passo que provoca regozijo dos que se alinham as posicdes autoritarias. Desse modo, 0 autor nos propde uma reflexio sobre uma forma de resistén- cia frégil, na contemporaneidade, que embora enxergue sua Potencialidade de contestagio como algo continuo, prevé a Possibilidade tragica do fim, da desiruicio de qualquer ten- tativa de mudanga, desvelando, simultaneamente, a frag- ‘mentacio do espaco social em grupos antagonicos. ‘COMUNIDADE. 75, Essa perspectiva coaduna-se a elaborada por Agamben,!* ‘quem, no bojo da discussio em torno da nogéo de “comu- nidade que vem”, leva em conta tensdes que se desenvol- ‘vem de maneira transversal em nossa histéria, revelando a forca de coergao do aparelho estatal em relagéo ao que ele denomina de “singularidade qualquer”, desapegada das modelizagées identitarias (algo que sempre esté/esteve/ ‘staré presente). Nesse sentido, o filésofo dedica um dos capitulos de seu livro sobre a comunidade ao massacre da Praca Tienanmen (China, 1989), no qual vai afirmar 0 seguinte: “Ali onde estas singularidades manifestam paci- ficamente seu ser comum, ali haverd uma Tienanmen e, antes ou depois, chegarao os carros blindados.”™ Dessa forma, Agamben, assim como outros filésofos que refletem em torno do conceito de comunidade, mostra sua diferenca em relagao aos movimentos multitudinérios ~ que marcam historicamente diferentes épocas, nio s6 a atual, é claro -, evidenciando que, nio obstante reconheca a potencialidade de tais acontecimentos, no aposta na multido como um dispositivo de superagao do status quo. ‘Nao seria descabido apontar que mesmo Negri ¢ Hardt,” embora desde outro angulo, percebem em suas reflexes certos pontos problematicos da multidao. Embora esses tedricos compreendam esta como um mecanismo politico de desarticulagio do capitalismo pés-industrial a partir 76 coMUNIDADE de suas prOprias bases e sistemas comunicativos, maquini- ‘cos e cooperativos, assinalam certo obsticulo que ¢ a difi- culdade de se configurar com “o corpo da multidio” um télos2 A falta de um télos da multidao ~ af no sentido de ‘um agenciamento coletivo, nao formado por mediagbes, "que constitua uma nogao de finalidade - impée-se para os autores, 20 final da obra Império, por exemplo, como um ‘incémodo. Leia-se: ‘A capacidade de constrair lugares, temporalidades, migragoes © ‘novos corposjéafirma sua hegemonia por ages da multidio contra (0 Império.(...) O tinico evento que ainda estamos esperando é a construsio, ou melhor insurreigio, de uma poderosa organizagio."* ‘Na medida em que vai se tornando cada vez mais per- ceptivel o rearranjo veloz das estruturas conservadoras ‘ap6s 0 processo de desencadeamento-acirramento-arrefe~ cimento das manifestagdes populares ~ a exemplo do que ‘vem ocorrendo no Brasil desde junho de 2013 -, vem a ‘tona o questionamento em torno ¢a capacidade de impacto desses movimentos, tanto em termos culturais quanto sociopoliticos. Paralelo a isso, reside um intento por parte das organizacdes sociais e das legendas partidarias de ‘cooptar as discursividades e os sentidos mobilizados pelas chamadas “vozes das ruas”. Até mesmo a universidade COMUNIDADE. 77 nesse contexto tende a se enxergar como protagonista inte- lectual do proceso, fornecendo aos grupos alternativos suporte, legitimidade e background académico para suas reivindicagées. Visivelmente contrarios a essas tendéncias, ‘Negri e Hardt negam qualquer tipo de postura prescritiva, dizendo o seguinte: “Nao dispomos de qualquer modelo (...) $6.a multidao, pela experimentagao pritica, ofereceré (0s modelos.”* tee A dificuldade de se extrair um télos reformador dessas experimentagdes/experiéncias que constituem as novas préticas comunitirias talvez seja mesmo uma condigao paradoxal do contemporaneo, visto que o ser-em-comum, ‘ou, em outras palavras, o aberto que as novas formas de manifestacio da comunidade exige - uma comunidade da relagao, nao do pertencimento, da propriedade -, se despotencializa ao ser fixado em modelos organizacionais preestabelecidos. As novas propostas e modelos de mili- tancia em geral sio facilmente reapropriados por forcas politicas tradicionais e grupos fundamentalistas. Reside justamente aia perigosa tendéncia politica e discursiva a0 fechamento imunitario dos grupos sociais, conforme ja assinalou Esposito: 78 CONUWIDADE [Apesar de todas as precaugoeste6rcas inclinadasa garanti-lo, esse vazio tende irresstivelmente a propor-se como um pleno, a reduzir 0 geral do “em comm" ao particular de um sujeito ificada ~ com um povo, uma terra, uma ‘comum. Uma ver ide ‘essincia -, a comunidade permanece amuralhada dentro de si mesma eseparada de seu exterior, eainversio mitica cumpre-se perfeitamente.” B importante refletir que esse movimento de ressigni- ficagao do lugar do vazio como algo pleno ¢ interpretavel, sob a égide de uma origem essencializada, nao constitui unicamente uma tendéncia, mas é por outro lado, fruto do ‘medo e da angiistia em se aderir a uma experiéncia comu- nitdria pensada como uma interagdo de singularidades, ¢ no reduzida as representagdes que fazem as comunidades serem entendidas como entidades (povo, nacao, classe ou raga, para mencionar termos historicos mais evidentes). ‘Atente-se para o fato de que pensar a coletividade como ‘um encontro de singularidades nao significa recuperar qual- quer tipo de ideia romantica de subjetividade homogénea. O sujeito singular tampouco deve ser visto como uma enti- dade aprioristica que transcende a dinamica sociocultural. Artelacio com a exterioridade e com a heterogeneidade de formacbes discursivas é fundamental para a compreensio do sujeito contemporineo. Nao & toa, dentro dos estudos COMUNIDADE 79 dedicados ao conceito de multidao, o problema do anoni- mato aparece com bastante énfase, visto que o anénimo neste «aso é perspectivado como elemento pré-individual constitu- tivo, que faz parte do mosaico dialégico que conforma o “eu”, Nao podemos deixar de recordar a propésito disso que, para ‘Virno," teérico que utiliza essa categoria a fim de problema- tizar a nogio de individuo: Anogio de subjetividade ¢ anfbia: “Eu falo” co-habita com 0 “fala-se",o que nio podemos reproduzir est estreitamente mes- «lado com o recursive ecomo serial. Mais precisamente:no tecido do sujeito encontram-se, como partes integrantes, a tonalidade andnima do que & percebido (a sensasio enquanto sensagio da espécie) eo cariter imediatamente interpsiquico ou “piiblico” da lingua materna (...) A coexisténcia do pré-individual e do indi- viduado no seio do sujeito est mediada pelos afetos; emogdes ¢ pPaixdes assinalam a integracao provisoria dos dois aspectos, mas, também seu eventual desapego: nio faltam crises nem recesses ‘nem catistrofes. Hé medo, panico ou angiistia quando nao se sabe compor os aspectos pré-individuais de sua propria experiéncia com 0s aspectos individuados.” Nao é de se espantar que, na perspectiva de diversos Poetas-criticos contemporaneos atuais, por exemplo, a 80 COMUNIDADE " experiéncia do presente configure-se como uma pro- blemética (tanto quanto produtiva) tensio entre o ime- diatismo ¢ a irrepresentabilidade, de outro modo: entre a ‘panalidade da experiencia vivida ~que se coloca na ordem do comum, passivel de ser experienciado por qualquer pessoa ~ € 0 aspecto singular que essa experiéncia ganha nna dtica do sujeito, capaz de retiré-la do campo representa~ tivo habitual para fazé-Ia destizar em direco a novos hori- zontes de sentido. Leia-se, a titulo de exemplificacdo, um fragmento de Aqui América Latina, em que Josefina Ludmer ‘elata 20 leitor uma consideracdo da poeta e critica argen- tina Tamara Kamenszain a respeitoda questio da experién- na novissima geracio da poesia portenha: Paradoxalmente esses textos, que trabalham com 0 mais sparente, © mais cotidiano, o mais imediato, de repente se jam mais dificeis de entender do que o prdprio Ulises. porque nao oferecam nada que mereca ser lido a sério. .cem ser como o proprio real. Sim, eu sei que o termo soa ‘io lacaniano, vocé jé me disse outras vezes, e de alguma ‘maneira é, pelo menos neste caso parece nao haver divida de ‘0 uS0 nesse sentido. Pois quero me referir ao que no pode representado, apesar de se tratar apenas de um xixi que me COMUNIDADE 81 Claro que nesse comentario de Tamara ~ citado em forma de discurso direto por Ludmer ~ subjaz uma reflexdo sobre a questio mais ampla da impropriedade do campo Poético-literério em face da experiéncia contemporiinea, Como se a linguagem postica se autoproblematizasse em sua potencialidade de produzir sentidos para além da doxa da representagdo, Note-se assim um paralelo entre o per- curso de desenvolvimento da literatura e 0 dos debates ted- ricos a respeito do conceito de comunidade. ‘Tal impropriedade, evidentemente, promove diferentes formas de hibridizagao que fazem a literatura extrapolar Seu campo especifico ¢ auténomo. Na obra de Kamenscain, Por exemplo, fundem-se géneros e tipologias discursivas da poesia ¢ da narrativa ~ nao a toa, sua coletinea poética intitula-se La novela de la poesia.» Os problemas literdrios € as citagoes intertextuais nela aparecem frequentemente mesclados a questdes extremamenteintimas e biogrificas: um exemplo disso €0 fato de seus livros O gueto e O eco da ‘minha mae girarem, respectivamente, em torno da morte de seu pai e de sua mie. Nao poucas vezes, percebe-se tam- bém na produgio da autora a interface entre questdes edis- cussdes relativas tanto a sua poesia quanto a sua produgéo ensafstica note-se, a este respeito, um apontamento do titico Jorge Monteleone: 82 COMUNIDADE [No entanto, em O gueto, a poesia de Kamenszain dava um giro que, sem desdenhar aqueles nicleos de distincia eronia, se nalizavam de um modo inequivoco com 0 motivo da morte ar. Era um modo de explorar também o lugar do nome, ¢ rele, inscrigio da origem: tal como ela mesma observou sobre ‘Alejandra Pizarnik no seu notivel livo de ensaios La boca del testimonio, o nome judeu de Kamenszain ¢ o nome do pie.” [im consoninci com todas essasfusdes emesclas a poesia de Tamara coloca-se no terreno daanautonomia isto &, do ‘no autOnomo: entre-lugar que se eypande em diregio a cam- ‘pos de reflexio que vio além do podtico, atingindo patamares de discussio sobre cultura, politica, ingua( gem), psicandlise ‘et. Biso se produz no bojo de uma escritasimultaneamente ‘pessoal ecoletiva, autobiografica e experimental, como sea experincia da alteridade (isto 6, com o outro do outro em simesmo)abalasse a linguagem do poema a ponto de faz#-lo singularizar a rlagdo sujeito-comunidade. Perceba-se que, tanto em O gueto quanto em O eco da minha mae, a ques- " tio da experiéncia torna-se uma problemitica. No poema “Judes de O gut, porexemplo, interessant nota tensa configuracdo de um “nds” (de “tonalidade anénima”, como diria Virno) que nio consegue fixar-se em uma identidade nacional, étnico-cultural,religiosa oa linguistica. CONUNIDADE 83 ‘Somos los de la combi "Corcovado" portusioles tirando de las faldas de un guia ue alos pies macizos del redentor one los brazos en cruz como hasta aqui legamos. ‘Algo de la altura nos marea es una percusién que se eleva de los otros, fantasias golpeando en redondo ellos avanizan sobre su carnaval de todos una bandera ‘que dice escola nos desorienta més porque al tam tam de las voces se suman Jas nuestras también ya somos disfrazados tuna fauna dejada de la mano de dios los que bailan y los que ven bailar ‘nauguramos el mismo carnaval 2001 y todo es como siempre al otro lado del Cristo el precipicio. yy todos sin embargo marchamos ‘esta marcha de ciegos sobre los pasos que le debemos a la misica loca fantasia de una escuela de vida donde se aprende golpe a golpe ‘que los de arriba y los de abajo {que los de abajo con los de arriba son distintos diferentes a costa de lo mismo son el borde mismo de un idéntico abismo 1 tamboril que adelanta si detiene 84 COMUNIDADE ‘su tam tam para el santo y sefa: hhasta aqui legamos. u Pero hay més. Nosotros Jos de la combi en éxtasisforineo ‘vamos a dejar nuestros disfraces de hotel ‘vamos a colgar nuestra bermuda en estandarte de una ventana abierta al morro xy.que nos reconozean. Pueblito que baja y se pierde anjraza ni nacién ni religion del argentino la parte en camiseta (lo que transpira deste al Che) hay una didspora subida al Corcovado parte por parte acudimos a esa cruz sin raza sin nacionalidad sin religion {8 fuimos cavados pero ain no semos “tan portusioles tan ladinos tan idshistas ‘no somos suicidas aqui no ha pasodo nada sélo se trata de kimpenes peregrimaciones ddeun dia mas por Rio de Janeiro ‘isa de tuistaboleto de ida y vuela ‘no empujen ya quedamos atrés ‘pasé de largo la parada del milenio bijense ahora todos precipiten, que hasta aqui legamos.* COMUNIDADE 85 © poem, desde seu titulo, traz& baila a questi da di ora inusitadamente imbricada & do turismo, Nele, 0 cend- rio, que simboliza ao mesmo tempo a tradicio crista (ja af lum outro em relagio ao elemento judaico) e o cliché turis- tico da cidade do Rio de Janeiro, funciona como local de interacio, conflito, contato linguistico (“portuitolestirando de las faldas / de un guia’), por um lado, e interpenetracdo e deslizamento dos discursos que vio paulatinamente deses- tabilizando fronteiras cristalizadas pela cultura (“porque al tam tam de las voces se suman / las nuestras también ya somos disfrazados”), por outro, No texto, Tamara afirma ‘um “Nosotros” complexo que ora é indice de diferenca em relagao ao “ellos”, ora constitui sinal de que o comum é composto de alteridades, sendo a voz subjetiva um arranjo de vozes a priori dessemelhantes (“diferentes a costa de lo mismo / (...) el borde mismo de un idéntico abismo"). esse sentido, ainda, é interessante chamar atengdo para as citagdes, em forma de pastiche, do poema “Liimpenes peregrinaciones”, de Néstor Perlongher, e do texto de José Saramago, “Hasta aqui he legado”, publicado no jor- nal El Pais, em protesto & continuidade dos fuzilamentos em Cuba nos anos de 2000. Nao sio escolhas aleatérias, & medida que ambos nutriram por meio de suas biografias 4 imbricacdo, também projetada ai por Kamenszain, entre membérias e formagdes discursivas advindas de regies 86 CONUNIDADE Lingufstico-cultuaislusofonas e hspanicas, tendo o poeta ‘e antropélogo argentino vivido no Brasil ¢ 0 romancista portugues, na Espanha, Janos poemas de O eco da minha mae, configura-se uma ao da estratégia de problematizagio da comunidade ‘via ancoragem enunciativa do “nds”. Neles, encena-se uma ‘yor poética em primeira pessoa do singular que, em vir- ‘tude da relagao (de cunho autobiogrifico) com a doenca da ‘mae, enfrenta-se com seu proprio processo de dessubjeti- “yacio. Segue um exemplo: Ayer descubri que me habia vuelto ain menos yo para ella Snivia Moutor ‘Como mi madre que a veces me trata de usted ‘yyome doy vuelta para ver quién soy, Ia amiga de Sylvia que perdié el veseo adesconoce hablindole de to. Correctas educadas casi pomposas ‘estas rehenes del Alzheimer ‘ponen a congelar la lengua materra mientras nos despiden de su mundo sin palabras. Sin embargo site canto tu cancién infantil Ja neurona del idisch se posa dulce sobre tus labios ‘ytodo lo que nunca entendi en ese idioma lo repito con vos viejta, y me queda claro.” ‘COMUNIDADE. 87

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