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Indicionario Do Contemporaneo Completo
Indicionario Do Contemporaneo Completo
esobraea "Te eo dom Rl ares don ‘C- Benedetti, Sio Paulo, Martins Fontes, 2004, x. 1. Teoria, er * ‘Derrida, Mal de anuivo, 16, nota 1 Jacques LeGoff, Dacumento‘Manumento, em Encilopita i em nau, Lisboa, Imprensa Naional/Casa da Moeda, 1997, 1p, 99-100. Meme Histia, 52 aRguvo 25 Ch Hector Liberia, Las sapradas scrum, ends Ares Sudamericana, 193. 1 Lembremos que o primeizo arquivo do Ocdent, em Atenas, fi queimado pelos perass em 478-479 aC, como observa Georges Didi-Huberman em O fe vemos «que nos olka tad. Paulo Neves, Ro de Jane, Ealitora 34,1998 % Enea Mara de Souza, Janes indscretas: ensios de cricabiogrifica, Belo Horizonte, Editors UFMG, 201, p. 38-40. Ibidem,p.46-47.Como Drummond, Guimaries Ros fo outro autoarquvista Aedicado, Ibid, p38 © Guillermo Kuitca, Hans Michael Herzog en converscién con Guillermo ait, Buenos Aire, 25 de julho de 2006, en Das Lied Vow der Erde, Zurich, _Daroratinamerica, Hatje Cant, 2006 (1. Catilogo de expos, 25 nox 2006-18 mar. 2007 "César Ala, luego dels mundos, La Plata Hl Broche Ediciones, 2001. > SournJanelas indscretas,p. 1. Sri case de perpunta, enti, o que hoje ‘um mestre de obras da informatica? F, entre outeas cosas, um mestre de srs. Mas é também aqule em que ovulo deposit aesperanca va de que (9 anqulvosndo vier repentinamenteposia virtual, por mais milagrosas {rmulas de armazenamento digital que Se aventem (formulas estas que no param de ser descobertas abandonadas de modo cada vee mais velo). “ Santogo dregio oso Moreira Salles, Rio de Janeiro, Videoiimes, 2007, 35 mm, son. cor ¢ p&b, 80min. © pesuenospartamento carica de Santiago remee, de algum modo, guele de Manoel Bandeia em O peta do case, me de estria de Joaquim Pedro de Andrade em 1959. Ambos os protagonisas dsses filmes, que convveram ‘a mesma cidade em seus tempor dourades, thm ma simpata, um carsma una intlgtnetaincomuns, lém de teers dedicado com fervor durante toda sua exsénca a desentranhar as rina da istéiae da teratura Souza, Jala indscretas, p. 58-58 © Jean-Luc Nancy, Sobre adestruigo, em Arsuvida do senciente edo venti, tind, Marcela Vieira e Maria Pala Gurge Ribeiro, Sto Paul, luminaras, 2014, p38. ‘ARQUIVO 53COMUNIDADE ‘A comunidade esti na ordem do dia, tanto como pro- blema quanto como pritica. Se, nos tempos modernos, as ‘massas que resistiam & a¢io disciplinadora do Estado eram ‘a ameaga latente ao projeto modernizador contrapondo-se & nogio integradora de povo, hoje as multidées resistem a0 controle do capitalismo internacional desterritorializando- -se, Uma definigdo contemporanes de comunidade atenta .a0s problemas causados pelos nacionalismos no século XX passa por uma difundida consciéncia de integragao a uma rede na qual o impacto da agdo de um dos nés é, a0 mesmo ‘tempo, inevitavel, imprevisivel e incontrolivel, produzindo ‘efeitos que se propaga por todos os outros. A politica ‘mais vanguardista esta sendo feita de modo coletivo, hori- zontal, sem passar pelas instituigdes tradicionais (partidos, sindicatos etc.) e, 0 que é mais radical, sem planos progra- ‘miticos. Nao & toa, condiz com isso a necesséria problema- tizagio das nogdes de sujeito e individu, nagao e povo.E ainda as ideias de inespecificidade e impropriedade na arte respondem, de algum modo, a essa mesma sensibili- dade que nao se acomoda confortavelmente a uma defini- ‘sdo precisa e a uma divisio em esferas de pertencimento, Porque reconhece suas interconexdes e interagSes, Muito embora o conceito de comunidade nao seja con- tempordneo, o fato é que durante os tiltimos anos tem se convertido em um dos termos mais debatidos e polémicos. Seria possivel tracar uma genealogia do conceito, em um sentido amplo, retomando o percurso histérico-filosétfico delineado por Roberto Esposito,’ que passa pelas obras de Hobbes, Rousseau, Kant, Heidegger e Bataille. Ao fazer essa genealogia, Esposito centra-se na tensa relagio entre © pensamento de Heidegger e Bataille, opondo-se, assim, as diferentes acep¢des dadas pelos fildsofos anteriores a0 conceito, haja vista que, sob a tica do italiano, na obra de Hobbes, a comunidade representava algo que deveria ser destruido em pro da constituicio do poder absoluto do Estado; jé na critica comunitéria de Rousseau ao indivi- ualismo hobbesiano, reclama-se da auséncia de comuni- dade, como uma origem natural a qual é preciso retornar; €na filosofia de Kant, embora ndo haja nenhum ideal de reapropriagdo de uma esséncia ligada a um mito de ori- gem, a comunidade aparece como aquilo a que se deve aspirar, ndo obstante constitua sempre um irrealizével, 0 56 CONUMIDADE que recorda ao homem a sua finitude e impossibilidade de perfeicio. Aproximando-se assim a sensacao do sublime, ‘.aspiragio kantiana da comunidade funciona como expe- rigncia traumatica do limite, justapondo a tendéncia a se ‘querer ultrapassé-lo a impossibilidade de fazé-lo. £, porém, no pensamento de Heidegger quesse reconhece outro lugar de compreensio da comunidade, deixando esta de ser vista como principio ou fim, pressuposto ou destino, passando a ser entendida como condi¢ao, ao mesmo tempo singular plural, de nossa existéncia finita, Heidegger € 0 pensador que afirma com maior veeméncia que o momento verda- deiramente auténtico de nossa existéncia é a consciéncia madura de nossa inautenticidade origindria. Isso impl dizer “que a incompletude, a finitude, nao € 0 limite da ‘comunidade - como 0 retrato melancélico do pensamento ‘sempre imaginou -, mas o seu sentido, para ser mais exato”* ‘Note-se que a virada representada pela obra de Heidegger & fundamental para a entronizagao da questo do niilismo ‘no pensamento filoséfico e para ¢ tematizacdo da questio do “fim” na filosofia. Desse modo, o texto heideggeriano abre a questdo fundamental do fim da filosofia e da neces- sidade de se criar um outro pensamento com base nessa nova condigo. Contudo, enquanto Heidegger se coloca ‘como elemento ulterior da linhagem filoséfica ocidental, reinventando a filosofia de seu fim, Bataille inverte essa COMUNIDADE. 57 ——Posicao, Investindo nao numa nova filosofia do fim da filosofia clissica - de tradi¢ao metafisica -, mas numa filosofia do fim que, em vez.de operar no interior mesmo do saber, como Heidegger, desenvolve-se a partir do nao saber, como a afirmacao de uma negagio radical. Nesse sentido, em contraposigéo ao pensamento heideggeriano, “marcado pela subordinacao da experiéncia ao conheci- ‘mento”,’a obra de Bataille, por meio da ideia de “experiéncia interior”, percebe no préprio bojo do saber a simultanei- dade de uma poténcia (a experiéncia) estranha a qualquer, possibilidade de definigio filoséfica. A experiéncia, em termos bataillianos, seria assim aquilo que leva 0 sujeito para fora de si, destituindo-Ihe toda forma de subjeti- vidade. Dessa maneira, é possivel afirmar que a abertura representada pela relacio entre as nogées de experiéncia € comunidade em Bataille ergue-se como algo ainda mais problemitico, visto que o vazio que envolve a questio do cum ~ da relag3o comunitéria pensada para além dos mitos de origem e dos discursos imunitérios de identidade - bem como a desativacio do sentido que a experiéncia do mundo institui - deslocando sujeito, linguagem e pensamento de seus lugares consolidados ~ exigem refleti sobre a comu- nidade como aquilo que falta, porém nao como um nada que reclama “ser preenchido com novos e antigos mitos, ‘mas antes, ser interpretado a luz de seu préprio ‘nio”4 E 58 COMUNIDADE por essa via que a obra batalliana inaugura um espago na contemporaneidade para a emergéncia de um sentido “singular” que nao se reduz a0 mecanismo de produgao dos sentidos ja previamente impostos ou pressupos- tos em nosso contexto sociocultural, mas que, de outro ‘modo, mantém uma coincidéncia problemética com a auséncia de sentido, como a abertura de um sentido até ‘entio impensado que se formula sob a égide da exposi- ‘gio a experiéncia - entendida ai nio como 0 comum jé sabido, mas como 0 “nada em comum”. importante, portanto, frisar que desde a obra de Bataille, sobretudo ~ pensador de grande influéncia para filésofos contemporineos como Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy 0 préprio Esposito -, vem se gestando e desdobrando ‘um trabalho intelectual conjunto a respeito da nogio de comunidade que desloca a concepgao tradicional dos lacos comunitérios, no que se refere aos signos ow atri- butos de pertencimento e propriedade (lingua, religiio, raga, nagio etc.), concepgao esta que muitas vezes impede ‘© pensamento sobre o comum da comunidade de ter em conta a singularidade da diferenga Diante disso, surge um novo pensamento da comunidade que desconstréi ~ de modos diversos ~ essa ideia de comunidade anterior e pro- poe uma totalmente diferente. COMUNIDADE 59tee ‘Tentando pensar a diferenca dessa outra nogio de comu- nidade que se apresenta, Esposito elabora a seguinte reflexio a respeito do carter paradoxal que atravessa as definigoes tradicionais do conceito: (© que na verdade une a todas estas concepgdes & 0 pressu- posto irrefletido de que a comunidade é uma “propriedade” dos sujeitos que une: um atributo, uma determina¢o, um predicado ue os qualifica como pertencentesa um mesmo conjunto.(.,.) A ‘omunidede segue amarrada & semantica do proprium. (...) Basta Jembrar a mais sébria, ej amplamente secularizada, comunidade ‘weberiana, para que se veja sobressair, embora de uma maneira desnatutalizada, a propria figura da pertensa. “Uma relacio so- ‘ial deve se definir como comunidade se, e na medida em que, a disposicao para a aso repousa (...) sobre uma pertensa comum (afetiva ou tradicional) subjetivamente sentida pelos individuos {que participam dela” [Weber]. Se nos detivermos por um instante 4 refletir por fora dos esquemas habituais, veremos que o dado ‘mais paradoxal é que o “comum" se identifica com o seu oposto mais evidente: 6 comum o que une numa iinica identidade a ropriedade — étnica territorial, espiritual - de cada um de seus ‘membros. Eles tém em comum o que lhes é préprio, sio proprie- trios do que Ihes écomum: 60 COMUNIDADE ‘Segundo Nancy, no prélogo ao livro Communitas, de Esposito, um trabalho coletivo de definigao e discussio ‘da comunidade, compartilhado por diversos pensadores, sobretudo do contexto europeu, impos-se por um motivo terrivel, que a historia de nosso tal ponto que a sua ‘século (...) nao cessou de nos brinder, Jembranca, de tio angustiante, torna-se inevitve: em nome da ‘comunidade, a humanidade — acima de tudo na Europa ~ pos pprova uma capacidade insuspeitada de autodestruigdo.® esse mesmo texto, Nancy busca refletir sobre a ques- tio do “comum”, partindo da instabilidade do “ser junto” ‘como condigao. A questio que esses pensadores nos apre- sentam é a de pensar essa condigo de outro modo que nao derive unicamente de uma concepsio fechada de sujeito, Seja individual ou coletivo, isto é, que nao se restrinja a ‘nenhum “sujeito”, tentando, ao contrario, partir da propria condigao de relagao e vinculo: ‘© cum 6 que vincula (se é um vinculo) o1 0 que junta (se € uma juntura, um jugo, uma junta) 0 mumus do communis cuja {ogica ou carga semintica Esposito recanheceu e desenvolveu tio bem (...)}: a distribuigdo de uma carga. de um dever ou de uma COMUMIDADE 61trefa, endo a vomunidade de uma substancia. © ser-em-comum se define ¢ constitui por uma carga, eem tiltima andlise, ndo esta a cargo de outra coisa sendo do proprio cum? Tentando assim se distanciar, de modo radical, da dialé- tica entre o comum e 0 préprio, entendidos como elemen- tos essenciais da comunidade, Esposito procura um ponto de partida externo ~ por fora da filosofia politica moderna, dado que essa dialética seria inerente a sua linguagem conceitual -, focando-se na origem etimolégica do termo communitas. Nesse percurso por dentro da etimologia, chega a ideia de que “o munus que a communitas com- artilha nao é uma propriedade ou pertenca. Nao é uma posse, mas, pelo contrério, uma divida, um presente, um dom-a-dar.”* Esse modo de refletir sobre o conceito de comunidade leva em conta a poténcia da exterioridade, daquilo que nao se submete ao movimento de apropriagio e fixagio de parametros identitérios, ou “imunitérios” — para usar outra concepgao desenvolvida pelo fildsofo italiano. A recupe- aslo da raiz etimolégica de communitas faz. com que ele trate de atualizar a discussdo em torno do “comum” como. “Um dever” [que] une os sujeitos (..), que faz.com que nao sejam inteiramente donos de si mesmos. Em termos mais precisos, 62 COMUNIDADE cexpropria-Ihes, em part, sua propriedade mais propria isto sua subjetividade. Impomos assim um giro de cento eoitenta graus a sinonimia comum-préprio, nconscientemente pressuposta pelas filosofias comunitiias, erestabelecemesa oposicao fundamental: no € 0 proprio, e sim 0 impréprio ~ ou, mais drasticemente, 0 outro ~0 que caracteriza o comum. (..,) Na comunidade, os ujei- tos no acham um principio de identifcacio, nem tampouco um recinto asséptico em cujo interior se estabelega uma comunicagio transparente, ou quando menos, contetdo a comunicar Mas, novamente aqui, o carater paradoxal do conceito de comunidade reaparece, em Esposito, no debate que ele promove a respeito da dificuldade de se articular uma comunidade politica. Tal dificuldade se instaura justamente no fato de que essa comunidade se conjuga numa radical desconstrucdo do préprio e da propriedade, em torno da qual a tradicao politica funda a ideia de pertencimento. Por isso que na esteira da reflexao de Esposito" a propria nogio de “politico” é questionada a partir da percep¢ao de que o terreno da politica é um campo de lutas discur- sivas em torno da defini de sentidos, representacées ¢ raticas que fomentam intimeras formas de identidade e gregarismo, erigidas por meio de oposicdes bindrias, tais como direita versus esquerda, conservadorismo versus Progresso, capitalismo versus socialismo. Nesse sentido, COMUNIDADE 63,Esposito chama a atengao para a tensao entre clareza ¢ obscuridade em torno das concepgées politicas modernas, mostrando que, subjacente suposta clareza vinculada a ideais politicos transcendentes, reside uma face obscura e contraditéria aberta ao deslizamento de sentidos. E é ai,no bojo desse interdiscurso, que operam, simultaneamente, os ‘mecanismos de fechamento ¢ reparticio das comunidades, por um lado, e desterritorializacao e rearranjo dos lagos comunitérios, por outro. Leia-se a seguinte citacéo: Pode-se dizer que a relexio politica moderna, deslumbrada por essa uz, perdeu completamente de vista azona de sombra que recorta 0s conceitos politicos que nio coincide com o significado ‘manifesto destes. Enquanto este significado é sempre univoco, unilateral, fechado sobre si mesmo, o horizonte de sentido, em troca, 6 muito mais amplo, complexo, ambivalente, capaz de conter elementos reciprocamente contraditérios. Quando se reflete sobre eles, todos os conceitos mais influentes da tradi¢ao politica ~ poder liberdade, democracias - pdem de manifesto que possuem no fundo este nicleo aporético, antindmico, contradi- ‘rio; estdo expostos a uma verdadeira batalha pela conquista ea transformagio de seu sentido." Esse fragmento sinaliza, entre outras coisas, a consciéncia de que uma visada politica contemporinea precisa dissolver 64 COMUNIDADE universalistas,abandonando uma nogéo simplista realidade, em prol da reflexo em torno dos “regimes yerdade”, constituidos em meioa um complexo feixe ecelagoes ¢ campos de forca. Fica patente af que tal sub- 4 ldgica politica tradicional sb pode se dar na e pela gem, cuja prtica, conforme é mostrou Foucault,* inexoravelmente vinculada ao processo de produgio poder. Nao toa, na visio de Esposito, por exemplo, E possivel, numa perspectiva atal, “entender o pol tico & luz de qualquer acepeao dualista como algo que itivamente, a partir do exterior, se contrapusesse & Tinguagem do poder”. Esse posicionamento filoséfico se aduna com outras discuss6es, mais ligadas is ciéncias ‘sociais, como, por exemplo, a levantada por Michael Hardt ‘Antonio Negri em Império,livro no qual assinalam que todos os elementos de corrupcio e exploragao nos sio Jmpostos pelos regimes de produgio linguistica e comuni- " cativa: destrui-1os com palavras € tac urgente quanto fazé-lo ‘com agbes”." oe & Note-se que esta Ultima reflex suscitada pela leitura __ de Hardt e Negri é frutifera e interessante no 56 por trazer A tona a necesséria aproximacdo entre linguagem e praxis, ‘mas também por abrir caminho para se pensar a possivel COMUNIDADE 65relaglo entre pritica artistica ¢ outras priticas, nas quals @ constitui¢io do comum e a convivencia se tornam cen- trais. Isso porque as priticas artisticas estdo inseridas no contexto amplo de uma certa sensibilidade contempora- hnea para as questoes da vida em comum (a filosofia parte, justamente, da necessidade de interpretar esse contexto e encontrar nele ~ num gesto intempestivo, como querem Agamben/Nietzsche ~ as zonas obscuras).* Ambitos muito diferentes do conhecimento estao se dedicando, simultaneamente, a pensar a comunidade (ou a convivéncia, a vida em comum). Essa é uma questao urgente hoje. Nunca se falou tanto em complexidade e, possivelmente, em nenhuma outra época, a relacio entre as diferentes esferas da atuagio humana e a consciéncia do impacto miituo esteve tdo evidente no coti no. Basta pensar, por exemplo, em como a preocupacéo com 0 meio ambiente e 0 aquecimento global deixaram o ambito cien- tifico para habitar ~ e as vezes direcionar ~ os debates poli- ticos, a industria de bens de consumo, a publicidade, a0 Ponto de reformular a propria nogio de ética. Em gran- des centros urbanos, perguntas como “o que vocé come?”, “onde vocé compra sua comida?”, “onde compra?”, sim- plesmente, e “o qué?”, “o que vocé faz com seus restos?” se tornaram perguntas politicas. 66 COMUNIDADE E possivel peceber a que anogio de convivéneia pre= senta uma importante duplicidade de apropriagoes em termos tebricos.Liga-s,flosoficamente,& experiencia de abertura ao outro, a qual desabilita a pulsio imunitéria/ {dentitéria das comunidades, bem como os lugares estabi- lizados da forma e do sentido, no discurso artistico. Jé no {que tange aos estudos sociais, convivéncia ¢ 0 resultado de ‘uma conjuntura hist6rica/geopolitica que se imp6e a priori ‘como um problema, dentro de uma estrutura sociocultural acostumada a lidar com a separacio/estratificagao. Sendo assim, na légica da militincia politico-intelectual contempo- ‘rinea, é preciso aprender lidar com o outro, conviver com le, estruturando relagdes politicas e culturais produtivas, dentro da inexorivel multiculturalidade do presente. Nesse sentido, se, por um lado, a postura estético-filosofica parece parar no lugar do “nao”, da desconstrugéo dos discursos hhegeménicos em torno da comunicade, por outro, a postura sociol6gica parece ser um tanto ou quanto heuristica. Conforme jé demonstramos, a vertente filoséfica tenta deixar para trés.aideia de que a comunidade éa Gemeinschaft, ‘em que os membros se unem por um sentido de lealdade 4 princfpios morais, por uma ideatidade comum ou pela nostalgia da comunidade como conjunto harménico. Con- tudo, uma ideia de comunidade que nao se sustente no COMUNIOADE 67pertencimento nem na propriedade, mas na coexisténcia, no cum, despotencializa-se, muitas vezes, em meio a inope- ancia de seu préprio discurso, que se institui como a pro- messa de algo “que vem”, renegando criticamente lutas especificas, interesses compartilhados e afetos mobilizadores do presente. A principio, parece haver uma disjuncio entre a nogdo de comunidade de que falam os filésofos (Nancy, Esposito, Agamben) e aquela de que falam os cientistas politicos ¢ sociais (como Negri, Hardt) e os teéricos da comunicagio (como Clay Shitky, Howard Rheingold). Um desencontro ide como conceito filoséfico e a comuni- dade da vida cotidiana, a “comunidade dos humanos”.* Os filésofos europeus, em gera, partem sempre do trauma Pelos usos que se fez da comunidade no século XX: das atro- ‘cidades cometidas em nome de um sentido de comunidade baseado na identidade do grupo (no caso do nazismo) e do fracasso do grande projeto politico baseado no comum (no ‘caso do comunismo). Escrevem com muito tato, sabendo da aversio dos leitores europeus pelo vocabulério ligado {a0 comum-comunismo-comunitério. Nancy, em especial, reforca a ideia da comunidade como um mito que perde sua forga no momento mesmo em que ¢ reconhecido como tal, Para eles, a nostalgia da comunidade se expressa muitas 68 COMUNIDADE -yeres como 0 desejo de recuperagio de uma certa idade de ouro perdida, uma visio de comunidade calcada num certo pacto de confianca miitua que nao existe, nunca exis- tiu. Fles partem dat para pensar uma possivel comunidade das singularidades, uma comunidade que nao se funde sobre a identidade (a semelhanga), mas que se construa na rede da heterogeneidade (a “comuridade inoperante” oua “comunidade que esté por vir"). Negri e Hardt nao falam precisamente em comunidade ¢ talvez evitem o termo pelos mesmos motivos histéricos que indicavam Nancy e os demais. Negri menciona ainda 0s efeitos perversos que o conceito de comunidade baseado em uma identidade de raga nos deixou, como a heranca da colonizacao, lembrando que nao s6a Europa viu as conse- quéncias cruéis da nogao tradicional de comunidade. Esses autores preferem, entdo, otermo “multidai €0 mesmo escolhido por Paolo Vimo. © modo como eles entendem a multidao, no entanto, se aproxima muito da fdeia de uma comunidade heterogénea, composta por sin- gularidades e sem unificagao, que aparece nos outros filb- sofos. No entanto, em sua reflexio, a multidao claramente emerge do estagio atual do capitalismo e 6 um conceito inseparével da globalizagao. A multidao é a alternativa que ‘vai se construindo dentro do império: que COMUNIDADE 69)A globalizayio, contudo, também €a criagao de navosctreuitos de cooperagio ¢ colaboragdo que se alargam pelas nagbes e con- tinentes, facultando uma quantidade infinita de encontros, Esta, segunda face da globalizagdo no quer dizer que todos no mundo se tornem iguais; o que ela proporciona & a possibilidade de que, mesmo nos mantendo diferentes, descubramos os pontos comuns ‘que permitam que nos comuniquemos uns com os outros para ‘que possamos agir conjuntamente. Também a multidio pode ser encarada como uma rede: uma rede aberta eem expansio na qual todas as diferencas podem ser expressas livre e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios da convergéncia para que possamos trabalhar ¢ viver em comum.” Quais sio as categorias que nos permitem fazer uma leitura desta nova realidade? Dizemos que sio as categorias de multidao, comum e de singularidade. Quando falamos de multidio falamos de um conjunto, mais do que uma soma, de singularidades cooperantes. A multidao pode ser definida como 0 conjunto de singularidades cooperantes que se apresentam como uma rede, uma network, um con: junto que define as singularidades em suas relagées umas com as outras.* O conceito de multidao se afasta dos de “povo” e de ““massas” pela heterogeneidade, mas o que permite sua arti- culagéo é 0 comum. Ea construgio do comum o objetivo 70 COMUNIDADE da multidao, ¢ nao a tomada do poder: “Na medida em {que a multidao nao é uma identidade (como o povo) nem éuniforme (como as massas), suas diferencas internas deve descobrir 0 comum (the commons) que lhe permite ‘comunicar-se e agir em conjunto.” Parece curioso que justamente os filésofos militantes (Virno e Negri) coincidam nessa escolha e que o termo que cles usam, “multidao”, seja mais “pé no chio” e de cariter mais concreto do que a “comunidade inoperante”, de Nancy” e a “comunidade que vem”, de Agamben, que ‘parecem evocar mais a auséncia ou a impossibilidade do que a efetiva existéncia da comunidade, qualquer que seja sua forma. A definigao de multidao parte da possibilidade da colaboracio, esti ancorada na agio concreta. Para além da “comunidade inoperante”, existe algo, ainda que frégil ‘eprovisdrio, que as pessoas leigas em seu cotidiano enten- dem por comunidade. E ela funciona, mesmo que esteja sempre a ponto de se desfazer.”" Embora a multidao apareca inicialmente em Negri e Hardt como um projeto, um objetivo a ser conquistado (Como um horizonte ut6pico), apds a sucesso de eventos de 2011 ~ da revolta na Tunisia que se estende pelo Oriente ‘Médio, pasando pela tomada da Puerta del Sol em Madre ‘da Praga Syntagma em Atenas, até 0 surgimento do Occupy Wall Street (OWS) ~ eles passam a falar no assunto como, COMUNIDADE 71algo presente, em progresso. Esses eventos sau recebidos com entusiasmo pelos autores porque ilustram perfeita- ‘mente 0 projeto de construcéo do comum pela multidao, ‘com seu mecanismo horizontal de organizagao, sem comi- {és ou lideres identificéveis pela mi Apesar de a definicéo de multidao apresentada por €sses autores (Virno, Negri, Hardt), cada um a seu modo, coincidir em muitos aspectos com a ideia de comunidade apresentada pelos filésofos, o que diferencia os dois con- ceitos é0 fato de que os pensadores que falam da multidao nio tratam dela como algo que esté por vir, mas como algo que jé existe, que esta presente e ativo agora (uma comuni- dade operante, afinal), ainda que, por sua prépria natureza, ermaneca em construgio. Nao se pode ignorar ainda que o conceito de multi- dio como um “conjunto de singularidades cooperantes” depende da interconectividade, de ages mituas. A inte- Tagio com a tecnologia ¢ a transformagao que ela causa nos modos de produgao e consumo é fundamental para as ideias de Negri e Hardt, e & 0 que os aproxima dos ted- ricos da comunicagio. Estudiosos da internet, como Clay Shirky,” por exemplo, tém descrito e prognosticado as Possibilidades de aco colaborativa proporcionadas pela ifusdo da tecnologia, desde a Wikipédia, as novas formas 72 COMUNIDADE de producao e difusio de noticia, o software livre, o con- ‘sumo colaborativo, até as estruturas de gerenciamento de ‘empresas ¢ sistemas de avaliacio de servicos. ‘Mas o entusiasmo de Negri e Hardt pela multidio (para ‘les, aparentemente imbufda de valores positivos) faz com ‘que se concentrem naquelas possibilidades de cooperagio ‘que se enquadram em suas prépries expectativas politicas. Porém, o potencial da multidao nao esta disponivel s6 para ‘agenda da esquerda, nem sé para fins diretamente poli- ticos. Nao a toa, quando Howard Rheingold fala de multi- does inteligentes, ele se refere & capacidade de articulagio ‘entre pessoas que ndo se conhecem para realizar uma ago ‘comum. Mas a acio nao é necessariamente benéfica, pois ‘a convergéncia de tecnologias, ao passo que abre um novo ‘panorama de cooperacio, também possibilita uma economia de vigilancia universal ¢ ‘utoriza o sanguinario, bem como o altruista. Como todo salto ‘Prévio no poder tecnolégico, a nova convergéncia da computagao ‘sem fio e da comunicagio social permitiré que as pessoas melho- rem a vida e a liberdade em alguns aspectos e as degradem em ‘outros. A mesma tecnologia tem o potencial de ser usada tanto ‘como uma arma de controle social quanto um meio de resistencia. Mesmo os efeitos benéficos iro ter eftitos secundrios.” COMUNIDADE 73eee £ importante atentar para essa tensfo entre poténcia € controle que a interconectividade na sociedade midis- suscita, Ndo & toa, alguns artistas ¢ intelectuais con- temporaneos tém percebido esse poder diiplice que 0 uso das redes sociais, por exemplo, implica, a saber: 0 de ser ‘20 mesmo tempo canal de reivindicagao, protesto, ¢ ins- trumento de exposicao e fragilizacio dos sujeitos que por las se manifestam. A titulo de exemplificagdo, veja-se um comentario postado no Facebook pelo poeta, jorna- lista e professor brasileiro Eduardo Sterzi, em 15 de julho de 2014, dois dias apés o cumprimento de mandados de risao preventiva de 37 militantes de movimentos sociais supostamente envolvidos na organizacao de manifestagdes ue coincidiriam com a final da Copa do Mundo do Brasil: ‘A gente continuard repassando noticia apés noticia, imagem apés imagem, testemunho apds testemunho, movidos por uma raiva que ds vezes & quase s6 tristeza, mas que s6 por ser raiva também nos salva de irmos direto ao fundo do pogo, que nio tem fundo, Eo mais trégico talvezseja saber que, mesmo se de- dicarmos 0 dia todo, todos os dias, a fazer a informagao circular, Provavelmente ndo convenceremos ninguém que j nlo esejasa- bendo na carne, pior: provavelmente nossos inimigos, inclusive alguns, ou muitos, que até ha pouco tempo eram nossos amigos, 74 COMUNIDADE ‘ou assim se diziam, vio celebrar, a cadadia mais vergonhosamen- te, cada agressio que sofrermos, e quemesmo a informacio que fazemos circular (o niimero de presos, gravidade das violéncias, 4 extensio das exceydes etc.) serd também motivo de festa para quem ji nio tem um pingo de cardter na carcaga vazia ~ porque talvez nunca tenha tido, nbs que néo percebiamos. Repassando, erepassando, e repassando informagao - até que todos estejamos presos. E isto também é trigico, muito trigico: saber que, se as coisas continuarem como estio, nenhum de nés escapa. ‘Note-se que Sterzi, nessa postagem, paralelamente & ‘poténcia do gesto raivoso ¢ irasctvel de dentincia — atrelado 4 proliferagao discursiva propiciada pelo suporte virtual, capaz de fazer informacdes de diferentes esferas e perspec- tivas ideolégicas e autorais circularem, dando visibilidade muiitas yezes aquilo que se encontra velado no convivio social -, justapde a consciéncia de que tal gesto expoe € fra- giliza o sujeito da enunciagao, a0 passo que provoca regozijo dos que se alinham as posicdes autoritarias. Desse modo, 0 autor nos propde uma reflexio sobre uma forma de resistén- cia frégil, na contemporaneidade, que embora enxergue sua Potencialidade de contestagio como algo continuo, prevé a Possibilidade tragica do fim, da desiruicio de qualquer ten- tativa de mudanga, desvelando, simultaneamente, a frag- ‘mentacio do espaco social em grupos antagonicos. ‘COMUNIDADE. 75,Essa perspectiva coaduna-se a elaborada por Agamben,!* ‘quem, no bojo da discussio em torno da nogéo de “comu- nidade que vem”, leva em conta tensdes que se desenvol- ‘vem de maneira transversal em nossa histéria, revelando a forca de coergao do aparelho estatal em relagéo ao que ele denomina de “singularidade qualquer”, desapegada das modelizagées identitarias (algo que sempre esté/esteve/ ‘staré presente). Nesse sentido, o filésofo dedica um dos capitulos de seu livro sobre a comunidade ao massacre da Praca Tienanmen (China, 1989), no qual vai afirmar 0 seguinte: “Ali onde estas singularidades manifestam paci- ficamente seu ser comum, ali haverd uma Tienanmen e, antes ou depois, chegarao os carros blindados.”™ Dessa forma, Agamben, assim como outros filésofos que refletem em torno do conceito de comunidade, mostra sua diferenca em relagao aos movimentos multitudinérios ~ que marcam historicamente diferentes épocas, nio s6 a atual, é claro -, evidenciando que, nio obstante reconheca a potencialidade de tais acontecimentos, no aposta na multido como um dispositivo de superagao do status quo. ‘Nao seria descabido apontar que mesmo Negri ¢ Hardt,” embora desde outro angulo, percebem em suas reflexes certos pontos problematicos da multidao. Embora esses tedricos compreendam esta como um mecanismo politico de desarticulagio do capitalismo pés-industrial a partir 76 coMUNIDADE de suas prOprias bases e sistemas comunicativos, maquini- ‘cos e cooperativos, assinalam certo obsticulo que ¢ a difi- culdade de se configurar com “o corpo da multidio” um télos2 A falta de um télos da multidao ~ af no sentido de ‘um agenciamento coletivo, nao formado por mediagbes, "que constitua uma nogao de finalidade - impée-se para os autores, 20 final da obra Império, por exemplo, como um ‘incémodo. Leia-se: ‘A capacidade de constrair lugares, temporalidades, migragoes © ‘novos corposjéafirma sua hegemonia por ages da multidio contra (0 Império.(...) O tinico evento que ainda estamos esperando é a construsio, ou melhor insurreigio, de uma poderosa organizagio."* ‘Na medida em que vai se tornando cada vez mais per- ceptivel o rearranjo veloz das estruturas conservadoras ‘ap6s 0 processo de desencadeamento-acirramento-arrefe~ cimento das manifestagdes populares ~ a exemplo do que ‘vem ocorrendo no Brasil desde junho de 2013 -, vem a ‘tona o questionamento em torno ¢a capacidade de impacto desses movimentos, tanto em termos culturais quanto sociopoliticos. Paralelo a isso, reside um intento por parte das organizacdes sociais e das legendas partidarias de ‘cooptar as discursividades e os sentidos mobilizados pelas chamadas “vozes das ruas”. Até mesmo a universidade COMUNIDADE. 77nesse contexto tende a se enxergar como protagonista inte- lectual do proceso, fornecendo aos grupos alternativos suporte, legitimidade e background académico para suas reivindicagées. Visivelmente contrarios a essas tendéncias, ‘Negri e Hardt negam qualquer tipo de postura prescritiva, dizendo o seguinte: “Nao dispomos de qualquer modelo (...) $6.a multidao, pela experimentagao pritica, ofereceré (0s modelos.”* tee A dificuldade de se extrair um télos reformador dessas experimentagdes/experiéncias que constituem as novas préticas comunitirias talvez seja mesmo uma condigao paradoxal do contemporaneo, visto que o ser-em-comum, ‘ou, em outras palavras, o aberto que as novas formas de manifestacio da comunidade exige - uma comunidade da relagao, nao do pertencimento, da propriedade -, se despotencializa ao ser fixado em modelos organizacionais preestabelecidos. As novas propostas e modelos de mili- tancia em geral sio facilmente reapropriados por forcas politicas tradicionais e grupos fundamentalistas. Reside justamente aia perigosa tendéncia politica e discursiva a0 fechamento imunitario dos grupos sociais, conforme ja assinalou Esposito: 78 CONUWIDADE [Apesar de todas as precaugoeste6rcas inclinadasa garanti-lo, esse vazio tende irresstivelmente a propor-se como um pleno, a reduzir 0 geral do “em comm" ao particular de um sujeito ificada ~ com um povo, uma terra, uma ‘comum. Uma ver ide ‘essincia -, a comunidade permanece amuralhada dentro de si mesma eseparada de seu exterior, eainversio mitica cumpre-se perfeitamente.” B importante refletir que esse movimento de ressigni- ficagao do lugar do vazio como algo pleno ¢ interpretavel, sob a égide de uma origem essencializada, nao constitui unicamente uma tendéncia, mas é por outro lado, fruto do ‘medo e da angiistia em se aderir a uma experiéncia comu- nitdria pensada como uma interagdo de singularidades, ¢ no reduzida as representagdes que fazem as comunidades serem entendidas como entidades (povo, nacao, classe ou raga, para mencionar termos historicos mais evidentes). ‘Atente-se para o fato de que pensar a coletividade como ‘um encontro de singularidades nao significa recuperar qual- quer tipo de ideia romantica de subjetividade homogénea. O sujeito singular tampouco deve ser visto como uma enti- dade aprioristica que transcende a dinamica sociocultural. Artelacio com a exterioridade e com a heterogeneidade de formacbes discursivas é fundamental para a compreensio do sujeito contemporineo. Nao & toa, dentro dos estudos COMUNIDADE 79dedicados ao conceito de multidao, o problema do anoni- mato aparece com bastante énfase, visto que o anénimo neste «aso é perspectivado como elemento pré-individual constitu- tivo, que faz parte do mosaico dialégico que conforma o “eu”, Nao podemos deixar de recordar a propésito disso que, para ‘Virno," teérico que utiliza essa categoria a fim de problema- tizar a nogio de individuo: Anogio de subjetividade ¢ anfbia: “Eu falo” co-habita com 0 “fala-se",o que nio podemos reproduzir est estreitamente mes- «lado com o recursive ecomo serial. Mais precisamente:no tecido do sujeito encontram-se, como partes integrantes, a tonalidade andnima do que & percebido (a sensasio enquanto sensagio da espécie) eo cariter imediatamente interpsiquico ou “piiblico” da lingua materna (...) A coexisténcia do pré-individual e do indi- viduado no seio do sujeito est mediada pelos afetos; emogdes ¢ pPaixdes assinalam a integracao provisoria dos dois aspectos, mas, também seu eventual desapego: nio faltam crises nem recesses ‘nem catistrofes. Hé medo, panico ou angiistia quando nao se sabe compor os aspectos pré-individuais de sua propria experiéncia com 0s aspectos individuados.” Nao é de se espantar que, na perspectiva de diversos Poetas-criticos contemporaneos atuais, por exemplo, a 80 COMUNIDADE " experiéncia do presente configure-se como uma pro- blemética (tanto quanto produtiva) tensio entre o ime- diatismo ¢ a irrepresentabilidade, de outro modo: entre a ‘panalidade da experiencia vivida ~que se coloca na ordem do comum, passivel de ser experienciado por qualquer pessoa ~ € 0 aspecto singular que essa experiéncia ganha nna dtica do sujeito, capaz de retiré-la do campo representa~ tivo habitual para fazé-Ia destizar em direco a novos hori- zontes de sentido. Leia-se, a titulo de exemplificacdo, um fragmento de Aqui América Latina, em que Josefina Ludmer ‘elata 20 leitor uma consideracdo da poeta e critica argen- tina Tamara Kamenszain a respeitoda questio da experién- na novissima geracio da poesia portenha: Paradoxalmente esses textos, que trabalham com 0 mais sparente, © mais cotidiano, o mais imediato, de repente se jam mais dificeis de entender do que o prdprio Ulises. porque nao oferecam nada que mereca ser lido a sério. .cem ser como o proprio real. Sim, eu sei que o termo soa ‘io lacaniano, vocé jé me disse outras vezes, e de alguma ‘maneira é, pelo menos neste caso parece nao haver divida de ‘0 uS0 nesse sentido. Pois quero me referir ao que no pode representado, apesar de se tratar apenas de um xixi que me COMUNIDADE 81Claro que nesse comentario de Tamara ~ citado em forma de discurso direto por Ludmer ~ subjaz uma reflexdo sobre a questio mais ampla da impropriedade do campo Poético-literério em face da experiéncia contemporiinea, Como se a linguagem postica se autoproblematizasse em sua potencialidade de produzir sentidos para além da doxa da representagdo, Note-se assim um paralelo entre o per- curso de desenvolvimento da literatura e 0 dos debates ted- ricos a respeito do conceito de comunidade. ‘Tal impropriedade, evidentemente, promove diferentes formas de hibridizagao que fazem a literatura extrapolar Seu campo especifico ¢ auténomo. Na obra de Kamenscain, Por exemplo, fundem-se géneros e tipologias discursivas da poesia ¢ da narrativa ~ nao a toa, sua coletinea poética intitula-se La novela de la poesia.» Os problemas literdrios € as citagoes intertextuais nela aparecem frequentemente mesclados a questdes extremamenteintimas e biogrificas: um exemplo disso €0 fato de seus livros O gueto e O eco da ‘minha mae girarem, respectivamente, em torno da morte de seu pai e de sua mie. Nao poucas vezes, percebe-se tam- bém na produgio da autora a interface entre questdes edis- cussdes relativas tanto a sua poesia quanto a sua produgéo ensafstica note-se, a este respeito, um apontamento do titico Jorge Monteleone: 82 COMUNIDADE [No entanto, em O gueto, a poesia de Kamenszain dava um giro que, sem desdenhar aqueles nicleos de distincia eronia, se nalizavam de um modo inequivoco com 0 motivo da morte ar. Era um modo de explorar também o lugar do nome, ¢ rele, inscrigio da origem: tal como ela mesma observou sobre ‘Alejandra Pizarnik no seu notivel livo de ensaios La boca del testimonio, o nome judeu de Kamenszain ¢ o nome do pie.” [im consoninci com todas essasfusdes emesclas a poesia de Tamara coloca-se no terreno daanautonomia isto &, do ‘no autOnomo: entre-lugar que se eypande em diregio a cam- ‘pos de reflexio que vio além do podtico, atingindo patamares de discussio sobre cultura, politica, ingua( gem), psicandlise ‘et. Biso se produz no bojo de uma escritasimultaneamente ‘pessoal ecoletiva, autobiografica e experimental, como sea experincia da alteridade (isto 6, com o outro do outro em simesmo)abalasse a linguagem do poema a ponto de faz#-lo singularizar a rlagdo sujeito-comunidade. Perceba-se que, tanto em O gueto quanto em O eco da minha mae, a ques- " tio da experiéncia torna-se uma problemitica. No poema “Judes de O gut, porexemplo, interessant nota tensa configuracdo de um “nds” (de “tonalidade anénima”, como diria Virno) que nio consegue fixar-se em uma identidade nacional, étnico-cultural,religiosa oa linguistica. CONUNIDADE 83‘Somos los de la combi "Corcovado" portusioles tirando de las faldas de un guia ue alos pies macizos del redentor one los brazos en cruz como hasta aqui legamos. ‘Algo de la altura nos marea es una percusién que se eleva de los otros, fantasias golpeando en redondo ellos avanizan sobre su carnaval de todos una bandera ‘que dice escola nos desorienta més porque al tam tam de las voces se suman Jas nuestras también ya somos disfrazados tuna fauna dejada de la mano de dios los que bailan y los que ven bailar ‘nauguramos el mismo carnaval 2001 y todo es como siempre al otro lado del Cristo el precipicio. yy todos sin embargo marchamos ‘esta marcha de ciegos sobre los pasos que le debemos a la misica loca fantasia de una escuela de vida donde se aprende golpe a golpe ‘que los de arriba y los de abajo {que los de abajo con los de arriba son distintos diferentes a costa de lo mismo son el borde mismo de un idéntico abismo 1 tamboril que adelanta si detiene 84 COMUNIDADE ‘su tam tam para el santo y sefa: hhasta aqui legamos. u Pero hay més. Nosotros Jos de la combi en éxtasisforineo ‘vamos a dejar nuestros disfraces de hotel ‘vamos a colgar nuestra bermuda en estandarte de una ventana abierta al morro xy.que nos reconozean. Pueblito que baja y se pierde anjraza ni nacién ni religion del argentino la parte en camiseta (lo que transpira deste al Che) hay una didspora subida al Corcovado parte por parte acudimos a esa cruz sin raza sin nacionalidad sin religion {8 fuimos cavados pero ain no semos “tan portusioles tan ladinos tan idshistas ‘no somos suicidas aqui no ha pasodo nada sélo se trata de kimpenes peregrimaciones ddeun dia mas por Rio de Janeiro ‘isa de tuistaboleto de ida y vuela ‘no empujen ya quedamos atrés ‘pasé de largo la parada del milenio bijense ahora todos precipiten, que hasta aqui legamos.* COMUNIDADE 85© poem, desde seu titulo, traz& baila a questi da di ora inusitadamente imbricada & do turismo, Nele, 0 cend- rio, que simboliza ao mesmo tempo a tradicio crista (ja af lum outro em relagio ao elemento judaico) e o cliché turis- tico da cidade do Rio de Janeiro, funciona como local de interacio, conflito, contato linguistico (“portuitolestirando de las faldas / de un guia’), por um lado, e interpenetracdo e deslizamento dos discursos que vio paulatinamente deses- tabilizando fronteiras cristalizadas pela cultura (“porque al tam tam de las voces se suman / las nuestras también ya somos disfrazados”), por outro, No texto, Tamara afirma ‘um “Nosotros” complexo que ora é indice de diferenca em relagao ao “ellos”, ora constitui sinal de que o comum é composto de alteridades, sendo a voz subjetiva um arranjo de vozes a priori dessemelhantes (“diferentes a costa de lo mismo / (...) el borde mismo de un idéntico abismo"). esse sentido, ainda, é interessante chamar atengdo para as citagdes, em forma de pastiche, do poema “Liimpenes peregrinaciones”, de Néstor Perlongher, e do texto de José Saramago, “Hasta aqui he legado”, publicado no jor- nal El Pais, em protesto & continuidade dos fuzilamentos em Cuba nos anos de 2000. Nao sio escolhas aleatérias, & medida que ambos nutriram por meio de suas biografias 4 imbricacdo, também projetada ai por Kamenszain, entre membérias e formagdes discursivas advindas de regies 86 CONUNIDADE Lingufstico-cultuaislusofonas e hspanicas, tendo o poeta ‘e antropélogo argentino vivido no Brasil ¢ 0 romancista portugues, na Espanha, Janos poemas de O eco da minha mae, configura-se uma ao da estratégia de problematizagio da comunidade ‘via ancoragem enunciativa do “nds”. Neles, encena-se uma ‘yor poética em primeira pessoa do singular que, em vir- ‘tude da relagao (de cunho autobiogrifico) com a doenca da ‘mae, enfrenta-se com seu proprio processo de dessubjeti- “yacio. Segue um exemplo: Ayer descubri que me habia vuelto ain menos yo para ella Snivia Moutor ‘Como mi madre que a veces me trata de usted ‘yyome doy vuelta para ver quién soy, Ia amiga de Sylvia que perdié el veseo adesconoce hablindole de to. Correctas educadas casi pomposas ‘estas rehenes del Alzheimer ‘ponen a congelar la lengua materra mientras nos despiden de su mundo sin palabras. Sin embargo site canto tu cancién infantil Ja neurona del idisch se posa dulce sobre tus labios ‘ytodo lo que nunca entendi en ese idioma lo repito con vos viejta, y me queda claro.” ‘COMUNIDADE. 87