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&y colAstee hd PROJETO DE plateau ry SECAO 1 - CONTO 1 - FEVEREIRO Os melhores contos de Bernardo Elis e Estérias da casa velha da ponte: Cora Coralina, Nhola dos Anjos e a cheia do Rio Corumba — Fio, fais um z6io de boi Ié fora pra ndis. © menino saiu do rancho com um baixeiro na cabega, e no terreiro, debaixo da chuva mitida e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele 0 pé, riscando com o dedo uma circunferéncia no chao mole — outra e mais outra. Trés circulos entrelagados, cujos centros formavam um triangulo equilatero. Isto era simpatia para fazer e: Menino voltot Eo — Pronto, vo. — O rio jd encheu mais? — perguntou ela. — Chi, té um mar d’agual Qué v8, espia, — e apontou com o dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e langou a vista. Para todo lado havia dgua. Somente para o sul, para a varzea, é que estava mais enxuto, pois 0 braco do rio af era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chao, feito um cachorro, cadela, alids: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um “ar de estupor” desde entdio nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram. Comecou a escurecer nevroticamente Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doenca fatal. © Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva. Dependurou numa forquilha a caroca, — que é a maneira LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS mais analfabeta de se esconder da chuva, — tirou a camisa molhada do corpo e se agachou nna beira da fornalha. — Mie, 0 vau té que ta sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudd, néis se muda. Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da dgua escorrida da calga de algodao rosso. Avelha trouxe-Ihe um prato de folha e ele comegou a tirar, com a colher te pau, 0 feljdo quente da panela de barro. Era um feijéo brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pés-se a fazer grandes capitées com a mao, com que entrouxava a bocarra. ‘Agora a gente sé ouvia 0 ronco do rio Id embaixo — ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterraneo. A calga de algodio cru do roceiro fumegava ante 0 calor da fornalha, como se pegasse fogo. Jd tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbé. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num tridngulo, de que dois lados eram formados por rios, e 0 terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da virzea era rasa e podiase vadear perfeitamente. No tempo da guerra do Lopes, ou antes ida, 0 avé de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formacao geografica construira um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, j estava quase extinto pelas ervas daninhas. Dai para cé foi a decadéncia. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar 0 resto do gado e as febres as pessoas. "— Este ano, se Deus ajudé, ndis se muda.” Hé quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A principio fora seu marido: “— Nois precisa de mudd, pruqué sendo a dgua leva néis”. Ele morreu de maleita e 0s outros continuaram no lugar. Depois era 0 filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar a velha Nhola, 0 filho Quelemente e 0 neto, um biruzinho sempre perrengado. A chuva caia meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava gua, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridao gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, — 0 diabo refugiava-se ali dentro, fugindo inundacdo, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote. Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Nao havia céu, nao havia horizonte — era aquela coisa confusa, transiticida e pegajosa. Clareava as trevas 0 branco leitoso das dguas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava 0 vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um. relampago. A noite era feito um grande cadaver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia, No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado. — Océ bota a gente hoje em riba do jirau, viu? — pediu ela ao filho. — Com essa chuveira de diltvio, tudo quanto € mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chao nao. Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara_ a cozinha_- numa intimidade pachorrenta. Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com agua. Pulou do jirau no chao e a agua subiu-lhe a0 umbigo. Sentiu um aperto no coragéo e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do liquido. Uma luz cansada e incémoda, que no permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar (2). La fora 0 barulh3o — confuso, subterréneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro. — Adonde sera que td 0 chulinho? Foi quando uma parede do rancho comegou a desmoronar. Os torrdes de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e cafam négua com um barulhinho brincalhgo — tchibungue — tibungue. De repente, foi-se todo o pano de parede. As ‘guas agitadas vieram banhar as pernas intiteis de mie Nhola: — Nossa Muquém! — Meu Divino Padre Eterno! O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcangar 0 teto. Dentro da casa, boiavam pedacos de madeira, cuias, coités, trapos e a superficie do liquido tinha umas contorgées diabélicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas. — Cé, nego, cd, nego — Nhola chamou © chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a Agua. O animal subiu ao jirau e sacudiu 0 pélo molhado, trémulo, e comecou a lamber a cara do menino. © teto agora comecava a desabar, estralando, arriando as palhas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplicio. Pelo véo da parede desconjuntada podia-se ver o lengol branco. — que se diluia na cortina didfana, leitosa do espaco repleto de chuva, — e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitacdo. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em. torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por embiras. Quelemente — nadou, —_apanhou-a, colocou em cima a mae e 0 filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejao, e 8 se foram derivando, nessa jangada improvisada. Senhora d’Abadia do — E 0 chulinho? — perguntou o menino, masa nica resposta foi mesmo o uivo do cachorro. Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcancar as érvores. A embarca¢3o mantinha-se a coisa de dois dedos acima da superficie das dguas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso era alcangar a vargem, agarrar-se aos galhos das drvores, sair por esse nico ponto mais préximo e mais seguro. Dai em diante 0 rio pegava a estreitar-se entre _barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrério, depois de cair no canal, 0 jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira. — £— 0 mato? — perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite Sim. © mato se aproximava, discerniam-se sobre 0 liquide grandes manchas, sonambulicamente _pesadas, emergindo do insondavel — deviam ser as copas das drvores. De suibito, porém, a sirga nao alcangou mais o fundo. A correnteza pegou a jangada de chofre, f@la tornear rapidamente e arrebatou-2 no lombo espumarento. As trés pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis, mas um tronco de 4rvore que derivava chocou-se com a embarcag3o, que agora corria na garupa da correnteza. Quelemente viu a velha cair ndgua, com © choque, mas no péde nem mover-se procurava, por milhares de célculos, escapar & cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforcava-se para identificar 0 local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira. A velha debatia-se, presa ainda & jangada por uma mao, despendendo esforcos impossiveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada jé no suportava trés pessoas. O choque com 0 LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS tronco de arvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha nao podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali jé n&o cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vitima As Aguas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, ndo havia forga capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas mortas que as dguas metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforgo da velha estava fazendo a embarcagdo perder a estabilidade. Ela jé estava quase abaixo das guas. A velha nao podia subir. Nao podia. Era a morte que chegava, abragando Quelemente com 0 manto liquide das dguas sem fim Tapando a sua respira¢do, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de gua, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho, que era perrengue e estava grudado nele. Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda 4 borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressdo de incompreensao e terror espantado (3). Novo coice melhor aplicado e um tufo d’dgua espirrou no escuro. Aquele Ultimo coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que fugiu das mos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio. Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés 0 cho seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza, porém, 0 arrastava, de to forte. A mae, se tivesse pernas vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo AhI se ele soubesse que aquilo era raso, nao teria dado dois coices na cara da velha, nao teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada num lugar raso, onde ninguém. se afogaria se a jangada afundasse... Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no cho, as pernas escorrendo a0 longo do rio? ‘Quem sabe ela no tinha rodado? Nao tinha caido na cachoeira, cujo ronco escurecia mais ainda a treva? — Mae, 6 mae! — Mae, a senhora ta ai? E as dguas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado. — Me, 6 mae! Eu num sabia que era raso. — Pera ai, mae. O barulho do rio ora crescia, ora morria € Quelemente foi-se metendo por ele adentro. ‘A agua barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mae ninando filhos doentes, uivos dsperos de ces danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre tumulos. — Mae! — Id se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a gua Ihe encheu a boca aberta, Ihe tapou o nariz, Ihe encheu os olhos arregalados, Ihe entupiu os ouvides abertos 8 voz da mae que nao respondia, e foi deixd-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira. Bernardo Elis. em “Os cem melhores contos brasileiros do século”. (diversos autores).. [organizagao e selecao [talo Morriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000. LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS Ad PROJETO DE Dyan 1 SEGAO 1 - CONTO 2- FEVEREIRO Procisséo das Almas* Cora Coralina Antigamente, as casas de Goids tinham janelas de rétulas, como te ver um todas as cidades coloniais deste imenso Brasil. Em Goids ela sobreviveram por mais de dois séculos. Sobreviveram ainda com velhos costumes domésticos que véo se diluindo através das geragdes, ao tempo que as rétulas se modifica, sem desaparecer de um todo. Nestes ltimos tempos, tém sido substituidas por venezianas abrindo-se para dentro. Sim, que as rétulas se abriam para fora, em Goiés e em toda parte. Mesmo desusadas e substituidas, ainda restam algumas em casas no reformadas; noutras foram simplesmente pregadas, enquanto que as _restantes continuam se abrindo para o lado da rua. Foi muito variada no Brasil a esquadria das rétulas. Nem sabemos bem se elas vieram de Portugal ou da Espanha; se eram autenticamente lusas ou mouriscas. Foram elas o documentério mais expressivo da segregacio da mulher dentro da casa senhorial. ‘As de Goids eram as chamadas rétulas de tabuletas, de tabuinhas, de colocaco horizontal, grampeadas num pino vertical mével com trincos e tramelinhas laterais, para abrir e fechar a vontade. ‘As paredes onde se encaixavam essas janelas eram de notavel espessura como ainda se vé em tantas casas. Comportavam, internamente, dos lados, assentos lisos ou com almofadas, onde as mulheres mais comodamente pudessem estar a rotula. Movendo trincos, pinos e tramelinhas era que a gente da casa via 0 pequeno mundo da cidade e tomava conhecimento de seus moradores. No meu tempo de menina pouco se usava a palavra rétula, s6 as pessoas mais antigas. Diziamos “tabuleta” - estar na tabuleta jé sabia estar alguém por dentro, olhando sem ser vista, habito esse que perdurou em Golds até o comeco deste século. Pela tabuleta rigada e graduada, a pessoa, sem se mostrar, via a rua, os passantes, as casas fronteiricas e, dentro de um certo angulo,-observava_os acontecimentos, as passadas de uns tantos vizinhos e, sobretudo, fiscalizava a vida alheia, que sempre nos pareceu mais interessante do que nossa prépria vida. Nesse observatério de tabuletas, sempre permaneciam, sistematicamente, criaturas curiosas__e fuxiqueiras dos velhos tempos, com seu espirito agucado de intrigas e malicias. A observa¢do mais fina e valiosa era da noite, alta noite, com a cidade escura ou enluarada e adormecida. Viam e diziam coisas de arrepiar. Minha bisav6, entre outras, contava a estéria da procisséo das almas, que ela ouviu da prépria mesma, com quem o caso se deu e que era pessoa do seu conhecimento. 0 fato, com todos os menores ouvidos de minha bisavé, inclusive o nome da pessoa, foi aqui passado com Dona Miguelina Reginata de Assis Regente, mais conhecida por Dona Minguta e que morava na Rua da Abadia A noite era para ficar na rétula, com a casa fechada as escuras ¢ ela, ali, invisivel, no seu observatério doméstico, assuntando algum vizinho que entrasse tarde, mulher casada que abrisse porta, moga donzela que pusesse a cabeca de fora ou mesmo vulto embucado que, passando, enfiasse bilhetinho pelas tabuletas ou andnimos debaixo das portas. Era uma vitéria e uma sensacéo de prazer catalogar qualquer um desses passos. Cada rua tinha sua observadora devotada & tarefa, tecendo sua teia laboriosa de conclusées e que fora da rétula, era moralista feroz e impiedosa com os pecados do préximo, vizinho ou nao. Se havia reunides e clube, era que o tempo néo ajudava, mas o grupo era conhecido, ligado e com fervoroso espirito de classe. LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS Trocavam-se os informes desta para aquela rua, dava-se ampliagio e relevo a pequenos incidentes, e a vida noturna da cidade era depurada num filtro minucioso de alto rigor, controlado pelas tais. As tabuletas tinham também seus préstimos inegaveis. Era assim, que muito antes de o fato de se dar e do caso acontecer, a cidade j4 murmurava por antecipacdo. Muitas vezes até adverténcias anénimas se fizeram, na base dessa fiscaliza¢ao maliciosa. Dona Minguta era certa na tabuleta da noite, e o dia era para as conclusdes maledicentes do que anotara em horas mortas. Numa sexta feira da Quaresma, estava ela no seu posto de vista e de escuta. Pouco tinha aproveitado até aquela hora, meia-noite jd passada. Num magote de negros, de sunga e camisa de baeta, ela reconheceu os escravos do Brigadeiro Felipe Anténio Cardoso, que costumavam pular 0 muro dos senhores e corriam para um batuque que zoava do lado da Rua do Fogo. Passaram dois embucados que ela mal reconheceu. Passou uma cadela uivando e ela fez 0 sinal da cruz, depois uma porca com sua ninhada e um bode bodejando atrés de suas cabras. Passaram mais umas machorras de merinaques e basquinas e nomes do homem na boca e que também procuravam a zona do bangulé. Pela uma hora, mais ou menos, ela percebeu uns vultos que vinha vindo do Largo do Rosdrio com umas luzinhas apaga-ndo- apaga... Era uma procisséo de Peniténcia, das muitas que se faziam naquele tempo. A Irmandade da Misericérdia, grupo de pessoas ou familias se reuniam, encabegavam com outas e, cumprindo promessa feita de dificil graca alcangada, sufragio de morto deprecante ou mesmo caridade para com algum encarcerado indicado para. a _forca, organizavam-se uma procisso daquelas, ditas de Peniténcia Sairam do adro de uma igreja ou de um paco de rua. Levavam na frente um cruzeiro pesado, alguns oratérios de casa, paus enormes, pedras, pote d’dgua na cabeca Todos descalgos, no poucos rasgados, iam rezando penitentes, num lamento lugubre € angustioso, até se dissolverem na porta de outra igreja. Quando 0 caso era de sufragio de alma penada, entdo subiam mesmo até o porto do cemitério, continuando a reza, num. soturno murmiirio de réquiem. Era uma prociss3o dessas que vinha vindo. Homens e mulheres de mantéus, embiocados, & moda do tempo. Dona Minguta rigou bem a tabuleta para ver melhor e nao reconheceu ninguém. Foi ent que uma embucada parou na frente da janela, enfiou uma vela pela fresta e segredou: guarda isso para mim até sexta-feira que vem Dona Minguta sentiu o frio da mo que Ihe entregou a vela. Meio ressabiada nem quis ver 0 resto da procisséo. Tramelou a rétula, fechou os tampos de dentro, meteu a vela na gaveta e foi pra cama, No dia seguinte, contou das observagées da noite. O principal tinha sido a procissio da Peniténcia e que uma pessoa, decerto sua conhecida, tinha Ihe dado uma vela para guardar até a outra sexta-feira. Acrescentou que nao reconheceu ninguém e foi rever a vela para documentar o caso Abriu a gaveta e recuou apavorada. O que estava ali dentro era um osso, branco e liso, de canela de defunto. Outros escritores, tratando dessa mesma hist6ria ficam por aqui. Acontece que esta de Goids, com faros de realidade e que ouvi de minha bisavd, tem, por direito de contado, seu finalzinho, dentro da légica dos acontecimentos. Quem deu a vela a guardar disse: até sexta-feira que vem... Sinal, portanto, de que voltaria para procurar. Dona Miguelina, refeita do assombro, foi se ter com 0 vigério, que era 0 Cénego Vicente José Vieira. Contou do acontecido. Fez mesmo uma boa confisséo e se acusou do seu LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS gostinho salgado de vigiar a rua da greta da janela e retalhar na pele do préximo. © Cénego, pensativo, ouviu o contado. Fez ver a ela o castigo de sua bisbilhotice que aquele acontecimento representava. Deu-Ihe sabios conselhos e boa peniténcia. Disse a ela que se pusesse na janela no dia e hora aprazada, mas que tivesse consigo duas velas acesas e um vidrinho de dgua-benta Que no tivesse medo e entregasse 0 objeto recebido a quem o procurasse, juntamente com uma das velas. Aquela semana toda Dona Miguelina passou no oratério, em novenas e rosérios, sem contar jejuns e peniténcias duras Tremendo e com 0 coragéo aos pulos, Dona Miguelina se pés na janela na noite & hora de sexta-feira. Pela uma hora, mais ou menos, percebeu que vinha vindo a procissao. Rigou a tabuleta, acendeu as velas, rezou sua jaculatéria e esperou. A procissio de embiocados vagarosamente vinha vindo, vinha subindo a rua com seu soturno murmiirio de réquiem. Passava agora pela sua casa, Uma pessoa, embucada de preto, parou na frente da janela e estendeu a mao. Ela entregou a vela acesa, junto com o que tinha recebido, e chacoalhou 0 vidro de dgua- benta Ai, 0 vulto se destacou, cresceu, encostou a cara na rétula. O bioco se abriu € ela viu que era uma caveira e falou para ela ouvir na fala das caveiras: —Eoquete vale. Cora Coralina. Em “Estérias da casa velha da ponte” / Contos brasileiros |. 14 ed. - Sé0 Paulo: Global, 2014. 112p. Vamos avaliar a leitura dos contos 1e2. Acesso.0QR CODE ou o link e responda 0 ‘questionério. ate aces Dita SEGAO 2 - CONTO 3- MARCO Os melhores contos de Bernardo Elis e Estdrias da casa velha da ponte: Cora Coralina. © louco da Sombra Bernardo Elis, Aquilo era um vale do outro mundo. A Proporcéo que fomos entrando nele, o sol pegou a escurecer-se e a fumaca a adensar-se. As drvores perderam as cores e a gente s6 via seus vultos pesados, hirtos, sob a luz avermelhada de um calor sufocante. La embaixo, 0 rio estava seco, mostrando a ossada dos seixos alvacentos. Um passarinho mudo, apagado, espalmou-se no ar parado, como uma pintura de jarra chinesa. Mais adiante uma sucupira abria sua copa roxa, que era antes um grito aflitive, no ambiente sonambulesco. & a fumaca asfixiava a vista, matava-a ali perto da gente. Olhei para cima - um céu padavasco de Aguas suja, onde rolava um sol defunto de laranja podre. Quando galguei o alto da serra, suspirei aliviado! A estrada corria numa_planicie jamente monétona, que se perdia de vista, numa mesmice deprimente de delirio. Oh! Regido feia, essa das gerais areentas! LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS Com a tarde, avistei uma fazenda grande. A ave-maria arroxeava, ameigava-se em cariciosas cambiantes de docura e bondade. A primeira estrela palpitante no alto, branca, sozinha, era um sino luminoso batendo 2 dngelus naquele deserto impio, Um bom jantar estava na mesa de toalha branquinha de algodo. Seu Carlos, dono da fazendo de grandes bigodées, tinha um ar vago, dignamente triste. Pouco falava. A noite entrava pé-ante-pé na varanda, como um ladrdo terrivel e a casa cala vagarosamente numa escuridao completa. Estranhamente que no se acendessem luzes, propus buscar uma vela das que trazia comigo, mas seu Carlos se ‘opés, dizendo que eu me ajeitasse assim mesmo porque no lugar havia muita muricoca e que a luz atraia. E continuou patriarcalmente delicado, dentro de seu tristonho laconismo. No momento de tomar o café, lobriguei um vulto troncudo que passeava pela casa como uma sombra da sobra noturna. De vez em quando dava uns grunhidos tragicos. Talvez fosse impresséo, mas sentia vagando no ar a presenca estranha de espiritos e maus pressdgios. Agora, por exemplo, parecia-me ver dois olhos que boiavam perto do chao, quase apagados, destilando uma luz terna de fogo fétuo. Fugiam, voltavam, apagavam-se. No meu medo, cheguei a formar para eles um rosto branco disfano, com cabelos loiros e mao purissimas. ‘A voz, porém, do Cel. quebrou-me as imagens e ao mesmo tempo levou-me 8 tona da realidade, com essas palavras: — Se o sr. quiser deitar-se, 0 quarto esté pronto. Espichei-me na cama, abri os dedos dos. pés doloridos da bota. Estava meio aturdido com a casa, com o vale, com os olhos, com os costumes. E, depois, era nesse oco de mudo que fica pros confins da Bahia, perto da Serra dos Pildes. — “Se houvesse ao menos com quem trocar ideias!” porque a palavra, como a luz inspira confianga, vida, ampara o fraco raciocinio humano. — “Nao. Nao podia mais..." Tomei o fésforo e acendi a vela estearina que trazia na mo havia tempo. Pinguei umas gostas na cabeceira da cama, prendi 0 coto e fiquei gozando desse bem com a vollipia dos que, condenados & morte, se veem de um momento para outro postos em liberdade. — “Bem-aventurados os que podem acender uma vela.” Foi quando assomou a janela do quarto um vulto humano, alto. Tinha no rosto o cinismo paralisado das estétuas. Evolvia-Ihe 0 rosto, sujando-o, a vicosa moita de capim de sua cabeleira e barba. $6 os olhos viviam. Brilhavam na cintilaggo vitrea dos alucinados. Pulou a janela, olhou para mim um momento e em seguida fitou a sombra dele mesmo na parede. Arregalou, ento, muito os olhos. Seu rosto foi-se adocando, como se por dentro dele se acendesse uma luz angelical Mas, de repente, deu um grito atroz. Eu, que nao gosto de graca com essas coisas, dei um tranco eo vulto, roncando, caiu de joelhos, gesticulando, querendo agarrar a sombra. Seu Carlos, calmo, patriarcal, surgiu & porta, soprou a vela e levou nos bracos 0 homem. Eu estava ainda sem poder pensar e, inconscientemente, movido pelo medo, fui atrés de seu Carlos. Ele, porém, mandou-me secamente que fosse dormir. No outro dia, ao almoco, encontrei-o & mesa. Seu rosto tinha a mesma expressao de grandeza resignada e dolorida. As pupilas dangavam vagamente, sem fixar coisa alguma Pediu-me que ndo fizesse ceriménias e me servisse & vontade. Depois, de sopetio, impulsionado talvez pela resolugdo instantanea de algum ato, que hé muito o vinha trabalhando, disse: — Ora, pedi que nao acendesse a luz ontem! ‘Aquele rapaz é doente e é por isto que ndo gosto de hospedar ninguém. Causa ma impressao. Pedi desculpas, que no sabia, que isso, que aquilo. Mas ele continuava_—_distante, procurando entreter uma conversa que néo rendia, que no prossegui — Osr. segue hoje, nao é? LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS Eu no ia seguir, queria descansar ali, nico lugar onde se encontra certo conforto, —mas nao sei mesmo porque, concordei que sim, que ia seguir. Ele, ent&o, foi a janela, ralhou com alguém que corria atrés dos patos no rego do monjolo e deu ordens para que me trouxessem o animal, o arreassem, tal Quando bati a porteira do curral, meu roskopff velho marcava dez e meia. Em dois pousos consecutivos, por mais que perguntasse o motivo da doenca do rapaz, ninguém dizia. Trancados, agamados por um respeito cheio de dé e de temor. Afinal, cheguei ao terceiro pouso. Era um ranchinho sonolento, esquecido & beira de uma vargem onde cresciam buritis esguios e bonitos, de uma paz velha e morta de aquarela antiga. © dono do rancho era preto. Mas um preto com feigdes de branco, cabelos lisos. (Topam-se muitos desse jeito por ali). Um europeu oxidado. ‘A mulher dele era aa, de uma cor indefinivel, cabelos_alourados, mas encarapinhados — de uma feiura irritante. Pedi um jantar, mas o negro me confessou que nada tinham para comer, mesmo a mandioca se acabara — Nem café ndis num pissti. A garapa se acabou, — nun acabou, fulana? — invocou © testemunho irretorquivel da mulher. De fato, nao possufam coisa alguma; a0 redor da rancho era o bamburral. Nenhuma planta, nenhum animal doméstico afora o cachorrinho e uma galinha chocando. — € a derradeira papuira. O resto o bicho comeu. Bem, prevendo aquilo, trazia comigo uns dois quilos de carne seca de curraleiro, dessa carne que somente Goids produz; tomei- 0s e entreguei ao negro para assar. Trouxe mais uma garrafa de pinga, pois carne seca néo dispensa nunca esse aperitivo. Eu mais 0 preto entramos nela até danar — eu sentado no piléo, perto da espetada de carne e ele em minha frente, num banquinho de trés pés. Lembrou-me, entdo, 0 caso do louco. O negro estava um anjo — rindo, mostrando a canjica dos dentes alvos, muito satisfeito com a embriaguez. Ao tocar, entretanto, no caso, 0 rosto dele se fechou numa luta interna, cobrindo-se de uma sombra de concentracao, de esforco para afastar 0 vapor do alcool e ajustar a razdo. Depois alisou a carranca, seu semblante foi-se tornando humano e ele contou 0 causo, como dizia. Seu Carlos chegou para ali com aquele filho — Luiz e mais a mocinha — Margarida. Seu Carlos falava que a moga era filha de uma parenta de Paracatu, donde eram todos, mas que ele a tinha na conta de filha. O negro aqui fez um paréntesis, explicando “qui u povo garraro a fala que a minina tomem era fia de seu Carlos” ¢ terminou — “cum esse negdco de fomia eu num bulo”. Vai eu luiz se _—_apaixona senvergonhamente pela mosa e pede ao pai para casa com ela, Seu Carlos, homem duro, no consente e ambos concertaram de fugir. Vieram dar mesmo ali no ranchinho do preto. A mora, talvez pela caminhada a pé, talvez por ter contraido alguma moléstia na jornada, chegou abatida, livida, muito loura, feito uma nossa senhora de zdio azu. E de noite, luz de um rolo, a moca disse ao esposo: — a morte vem chegando. Ela a pressentia no ar. Ouvi-lhe o passo apressado de quem precisa chegar sempre & hora exata, Andavam pelo ambiente mos invisiveis apagando a chama do rolo e estrangulando a moga. Ela encandeou os olhos de pupilas acinzentadas e pergunto a Luiz porque ele nao acendia de novo 0 rolo. Mas ele estava bem aceso, com a flama alongada saracoteando como um capetinha & viragdo cheirosa da noite. © rapaz consolava-a: — Nao, Maga, agora é que vamos gozar 0 nosso a..., e ndo pode terminar. Desenhava-se na parede a sombra fugidia, esgarcada de um cranio completamente calvo que encimava um esqueleto. A mulher estendeu-Ihe os bragos, como se quisesse alcancar uma coisa posta muito longe, como se a fizesse um gesto de desejo irrealizével de penetrar o pértico do grande LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS templo, sem tempo sem espaco, que vislumbrava. — “Quando intrei” , disse o preto, “inda vi cum esses z6i0, seu mogo, aquela fumaca infeliz apaga num apaga na parede. Eta trem feio!” = "Vigia sé cuma é qui eu t6! cabelos dos bragos estavam todos de pé. — “Foi esse nego que feché as parpras daquela fulé, porque seu Luiz garré a unhd as paredes, e inderde esse dia é aquela conversa cum a sombra, aquele chamego, até dé aqueles acesso, coitado! Foi um castigo do inferno.” — 0s Bernardo Elis. em “Os cem melhores contos brasileiros do século”. (diversos autores). [organizagao e selecao Italo Morriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000. Af PROJETO DE Diane .y SECAO 2 - CONTO 4 ~ PROJETO DE LEITURA Os melhores contos de Bernardo Elis € Estérias da casa velha da ponte: Cora Coralina, Apedrinha de “Briante” Cora Coralina. Foi a velha Honorata quem acabou de criar 0 sobrinho, quando a mae morreu e deixou 0 molecote amarelo lombriguento, feioso e com um jeito de retardado. Deu foi trabalho pra Sid Norata. Como ela nao tinha filhos eo marido jé estava “em bom lugar”, tomou amizade ao sobrinho e fez © possivel para ele arribar, e arribou mesmo. Arribou mesmo. Arribou e entrou na escola, j4 taludo. Sempre bem-comportado e com seu uniformezinho limpo e passado, foi apanhado alguma coisa do muito que a escola ensina. ‘A velha Honorata tinha sua casinha ld no Bairro Alto. Além de ser muito trabalhadeira, estimada e de bons préstimos, era dona de uma verdadeira sabedoria no lavar € passar ternos e camisas de homem. Lavava € passava roupa de ganho. De manhé & tarde, era na vasca e nas tinas, ensaboando, esfregando, quarando, torcendo e estendendo pelos varais. De noite, acendia seu ferro-de-brasas e era ento um passar roupa até as horas tardias do sono. Com sua boa caridade, deu leitura e educagdo de pobre ao sobrinho, que se chamava Izidoro, mas atendido por Zidoro. Deu a ele, sobretudo, um bom catecismo com sua primeira comunhdo, missa dominical, guarda dos dias santos, respeito pelos mais velhos e temor de ofensas a Deus. Perdida nao foi para ele a escola, apesar do pouco proveito. Era sossegado e lerdo de entendimento. Pela frequéncia assidua_e bom comportamento, sempre aprendeu com dificuldade, dele e da mestra, 0 que de mais facil a escola ensina e transfere a quem no mais alcanga. Leitura de coisas féceis, escrita facil e continhas féceis. Disso pra frente ele esbarrou e nao rompeu mesmo. Em idade de “puxar pelo corpo’, recolheu os cadernos, disse adeus 4 professora e foi ajudar a tia. Buscava e entregava trouxas de roupas, mexia tacho de sabo, partia lenha e capinava © quintal Desse servicinho caseiro passou para outros e comegou a ganhar seu dinheirinho, que entregava & tia e que esta guardava escrupulosamente “para o futuro do rapaz”, dizia. Um dia, Zidoro ouviu contar uma estéria muito bonita, um carreiro de Igarapava que ia indo por uma estrada com seu carro cantador, suas juntas de boi, sua vara de ferro LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS 10 € argolinhas, sua calca remendada, sua camisa grosseira de riscado, seu chapéu de palha e de pés no cho. la indo sossegado, bem pobrezinho, sé pensando na sua lida e nos seus bois, quando deu uma topada e machucou o dedio. Achou ruim. Levou a mo ao pé, enfezado. Procurou arrancar a travanca. Tava ali enquistada. Forgou a ponta da faca, a coisa saltou. Ele pegou com raiva, xingou 0 nome da mae e sacudiu longe. No volteio que a pedra deu, ele viu uma chispa fosforescente, esquisita. Ficou impressionado. Foi até 0 barraco, cacou a pedra, achou. Pedrinha escurinha, com sua chispa azulada. Olhou, mirou. Nao sabia se era de valor ou um trem a toa. Pelo seguro, meteu na capanga. Meses passados era jd um outro que trabalhava com 0 carro e com os bois. O carreiro mesmo da topada estava era dono de um bar de esquina na cidade de Igarapava, senhor de uma diizia de casas de aluguel, ane! de pedras nos dedos e com muito dinheiro. A pedra, de grande valor, de uma porgo de quilates, tinha sido vendida por muitos vinte contos de réis. Zidoro ficar sugestionado com a estéria, Como trabalhava pelos alheios, tinha sempre na mente o carreiro felizardo, esperando que num golpe de sua enxada, j4 no olho, saltasse uma cria da pedra de Igarapava, Trabalhava ele, um dia, no quintal de nossa casa, em Pendpolis. Da janela, sem ser vista, eu ia acompanhando seus lances Coisinha fraca. Nem 0 matinho do quintal requeria mais, Dava uns tantos golpes, abaixava e apanhava alguma coisa no chao. Olhava, remirava, as vezes até passava a lingua. Jogava fora ou enfiava no bolso. Intrigada com aquela manobra de pouco rendimento para o servico, desci, me acerquei e perguntei — Que é esté procurando, perdeu alguma pratinha do bolso? — N8o senhora, disse ele, tow precurando é uma pedrinha de briante... E me contou a estéria do carreiro de Igarapava Achei graca. Dei ele grandes esperancas e pensei comigo: “Sim, Zidoro, simples e casto Zidoro, nds todos procuramos: nossa pedrinha de brilhante. Que fazemos ndo procurar com afinco, pelos caminhos da vida, essa pedrinha imagindria que tao facilmente saiu no pé descalgo de um carreiro humilde”, Tempos depois, soube pela velha Honorata que 0 sobrinho ia se casar, e que o casamento era tanto a contragosto dela que, embora desejasse uma companhia moca em sua casa, avisou o sobrinho de que se quisesse mesmo aquele casamento, procurasse casa para morar, depois de casado; com ela, nao. E que 0 Zidoro tinha se embeicado de uma tal Ivone que tinha aparecido com um filho, sabe la de quem... e que a familia, gente pobrezinha, mas direita, acatou em casa para que no se perdesse de todo a espera de uma oportunidade. Zidoro, sem despesas em casa da tia, que esta sabia reger sua pobrezinha de mulher simples e trabalhadeira, tinha juntado seus cobres e, mesmo com desaprovacao da tia, cuidou de apressar 0 casamento, com grande ‘empenho da gente da moca que nele viuo bom arranjo para a parente desarranjada. Tirou os papéis e pagou do seu. Mandou fazer terno para o dia, comprou vestido e sapato pra noiva. Aparelhou a casinha e supriu de um todo, na regra de pobre. Comprou duas camas: uma larga de dois e uma de um s6, pro menino. Num sabado bonito de sol quente, casou mesmo 0 Zidoro e entrou na sua casinha com a mulher o filho desta. Encontrando a velha_Honorata, perguntei como ia indo o sobrinho de vida LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS 1 nova... Ela me disse de seus antigos pressentimentos e que o casamento do sobrinho tava fracateado. E que esse agora cumpria a sina.. Mais nao falou e mais nao perguntei ali, no movimento da feira e mesmo porque a velhinha encheu os olhos de lagrimas. Tempos depois, dei com Zidoro demudado, sujo, rasgado, de pé no chdo e com sua enxadinha no ombro. Brinquei com ele: — Ent&o, Zidoro, sempre acabou achando a pedrinha de briante, nao? — € dona, eu flui logrado... — Como assim, Zidoro? — Vigia a senhora. Home casa é pra mode de ter casa e de ter muler...eu botei na casinha duas cama — uma larga de dois e uma pro enteado. Pois nao 6 que a lvone, desde que néis se casou, posa na cama larga de dois e me coage a fica com a tarimba estreita. — E que diz ela, perguntei. Vocé nao reclamou seus direitos? — Arrecramei, dona, mais ela disse que no posa comigo mode num ter um fio feio que nem eu... — Lembra-se da pedrinha de brilhante que vocé procurava, Zidoro? — €, ese alembro, dona, mais a minha saiu farsa... é sina. — Nao sé a sua, Zidoro, disse eu. Quanta pedrinha boa a agente encontra na estrada da vida, apanha, limpa e depois descobre que é falsa.. —Esina... Cora Coralina, Em “Estérias da casa velha da ponte” / Contos brasileiros |. 14 ed. - Séo Paulo: Global, 2014. 112p. Vamos avaliar 2 leitura dos contos 3 e4 ? Acesso © QR CODE ‘uo link responda o questionéri. https://forms.gle/WsLR8Vx3gyK152S4A, hd PROJETO DE plateau ry SECAO 3 - CONTO 5 ~ ABRIL Os melhores contos de Bernardo Estérias da casa velha da ponte: Cora Coralina. ise Alavadeira chamava-se pedra Bernardo Elis. A pergunta — por que a senhora ndo compra para ele uma gaita — a lavadeira respondeu que nao compra para ele uma gaita — a lavadeira respondeu que ndo comprava porque gaita custava dinheiro pra danar e que ele tinha que trabalhar duas semanas para juntar o dinheiro de uma gaitinha, das menores da praca. E quem iria comprar a comida, pagar o aluguel? Enquanto a mulher falava, seu interlocutor recordava que também ele na sua infancia sonhou muito com um berimbau de um velho ex-escravo do vizinho do pai. Belo berimbau, misterioso, donde o preto velho retirava melodias lindas, sem esforgo e sem tropeco, como se estivesse apenas acariciando a corda. $6 muito tempo depois, de barba na cara, pode ter um berimbau; mas af o que ele apertava entre os dedos era um arco duro e velha e fedorenta cula, os dedos dofam, o instrumento era desajeitado, nenhum som dele se desprendia: era um arco e uma cuia. LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS 2 — Vou te dar uma gaita, — falou o homem passando a mao pela carinha do menino que ouvia a conversa e que naquele momento deixava de ser o filho da lavadeira para ser uma projecéo da infancia do interlocutor. E a lavadeira sua mae, sentiu os olhos arderem de choro. Coitado, logo aquele homem to pobre, to infeliz, logo o ladrao da cidadezinha 6 que se lembrava de seu filho e entendia seu pequeno sonho de menino! Como 0 povo era mau tratando aquele homem como se fosse uma fera, um bicho sem alma. Se o conhecessem como ela 0 conhecia, vissem © coragio dele como era bondoso, se conhecessem o desejo que ele sentia em dar alegria aos outros, no fariam com ele tanta judiagio, 0 ajudariam a viver em paz com dignidade. Ela nunca o trataria mal: ela o conhecia bem. Foi ai que o menino entrou na historia perguntando muito contente se néo seria no Natal que o ladréo ia trazer a sua gaita, A lavadeira nem chegou a responder, pois o coitadinho nunca tinha dinheiro nem para comer! Ora s6, dar uma gaita, dar uma gaita ele que era 0 ladro oficial da cidadezinha, cuja fama se definiu de vez gracas a dona Arginusa, a senhora mais rica e piedosa de toda a regido. Um dia o ladrao apareceu em sua casa dizendo ao administrador, que ali estava para devolver uma joia que furtara & dona fazia dois anos. Dois anos! Impossivel! — pensou o administrador, pois. dona Arginusa diariamente passava em revista suas joias e nunca deu por falta de nenhuma! Mas como 0 ladro insistisse, dona Arginusa apareceu, tomou a joia, e apés minucioso exame reconheceu que era mesmo seu aquele broche de ouro e brilhantes, fora sua mae que o herdou da avé, que herdou de outra avd. Sé a ideia de ter podido perder a joia causou 4 sensivel senhora um desgosto tao grande que logo vieram médicos enfermeiras ministrar-Ihe sais e injecdes. Mas dona Arginusa tinha como principio rigido ndo perdoar nunca os ladrées porque muita vez um simples castigo podia corrigir um transviado ou salvar uma alma do inferno. Por isso, chamou a policia e determinou que se instaurasse 0 mais rigoroso e perfeito dos inquéritos e depois de provada de maneira irrefutavel a culpa, aplicassem a0 faltoso o castigo capaz de redimir de uma vez por todas daquela vida de crime e de pecado, amém. Foi nesse processo que se oficializou definitivamente seu cargo de ladrao. O mais rico comerciante declarou sob os evangelhos que certa feita um caixeiro seu fez 0 acusado desenrolar a barra de calca, na loja e de dentro cairam trés pedrinhas de sal provavelmente furtadas no armazém onde possuia toneladas e toneladas de sal; o maior fazendeiro com a dignidade de suas dez mil cabecas de gado de qualidade provou com ~—_—_detalhes impressionantes que certa noite de luar os camaradas viram 0 acusado roubar um ovo de galinha na fazenda. E 0 acusado, gracas & piedosa senhora, foi recolhido a prisdo por muitos anos. Quando definitivamente oficializado ladrao deixou a cadeia, ndo 0 deixaram mudar de profisséo, jé que agora todos o conheciam. Dai para a frente, tio logo sumia uma coisa, 0 dono corria a0 rancho onde morava o ladrao, tomava o que pudesse ld encontrar, mesmo que o ladrio afirmasse que aquele objeto ele o comprara ou ganhara. Na maioria dos casos, muita gente alegava que tinha sido furtada apenas para tomar ao lado alguma coisa; outros mais delicados tomavam ao ladrao qualquer coisa desde que em sua casa qualquer coisa sumia, mas se a coisa sumida aparecesse, os delicados se esqueciam de devolver ao ladrao 0 que fora tomado. Por tal forma o ladriio nunca tinha nada. Ora, entdo podia esse coitadinho dar uma gaital Antigamente, talvez até que pudesse, mas agora estava na cidade um Delegado que era uma fera. Prometia matar sumariamente qualquer ladrao que por acaso tentasse botar a cabeca de fora. Mas sera que um Delegado daquela fama, um militar de tio alta patente, cheio de galdes e bordados, seré que uma to poderosa autoridade ia Ié se preocupar com ladraozinho do tipo do ladrao oficial? Para muita gente quando Delegado dizia ladrées estava referindo-se — isso sim — ao coronel da cidade que estava contra o Governo e de quem (desde que passou para a B oposi¢éo) se dizia que enriquecera e continuava enriquecendo a custa dos pesos alterados, e das medidas adulteradas que usava no seu comércio, em cujos livros aumentava as contas dos devedores e deixava sem pagar os saldrios dos trabalhadores. Esse que era ladrao para a rede de um Delegado to caro e famani. Pois acontece que na manhi do dia 25 de dezembro, quando a lavadeira abriu a porta do quintal do seu rancho que nao era cercado de muros, viu que o sol nascente botava faiscas num objeto que rebrilhava e deitava chispas na soleira da porta: que se abaixa, pega, olha — uma gaita, ndo muito grande nem muito pequena. A mulher sentiu os cabelos da nuca arrepiar: e dizer que papai Noel nao existe! Porém, e a promessa do ladréo? A gaita era novinha em folha, cheirando a loja, os metais brancos da guarnigéo rebrilhando. Certamente caira do céu ou fora trazida por um daqueles anjos de asas certificou-se de que muitas outras gaitas iguais havia nas lojas da cidade que ela visitara justamente em busca de um presente barato para o filho, Por isso, a hipdtese de tratar-se de um objeto vindo do céu comegou a ser afastada; quando muito, podia ser um objeto terreno mesmo posto ali por um ente celestial, um anjo, por exemplo. Aja lavadeira observou que a gaitinha mostrava no metal branco, no lado que tinha estado em contato com a soleira da porta, umas manchas vermelhas meio peganhentas, eco! Imitando sangue, que a lavadeira teve vontade de jogar o objeto fora, mas se lembrou do filho e foi lava-lo na borda da cisterna, cautelosamente, para evitar que se molhasse o verniz novo. Ai, voltou a pensar no ladrdo. Ele tinha prometide dar uma gaita.... A lavadeira cautelosamente retornou ao local onde encontrara a gaita e ndo viu qualquer sinal de sangue, que por estas alturas vinha chegando 0 filho recém-erguido da cama e sem ao menos pedir béngdo & me, tomou a gaitinha, sentou-se por ali, pegou a decifrar os segredos do instrumento, ensaiando sons, acomodando 0 sopro, talvez pensando no velho ladréo, talvez pensando na mae, em papai Noel, em anjos, em se tornar um grande misico, em executar uma cangao que achava a mais bela de todas, mas nao era tdo facil como acreditava domar e dominar o instrumento que resistia e oferecia dificuldades. E nesse pronto que entra a vizinha dos fundos. Vé o menino com a gaita e fica muito entretida espiando-o decifrar seus mistérios. A lavadeira também se aproxima, pensa em contar & amiga como achou aquilo, mas algo impede: seria 0 ladrao? Talvez o ladrao tivesse tirado a gaita de alguma janela ali por perto, podia ser até da janela da vizinha, ou de alguma conhecida da vizinha. A vizinha agora sussurrava ao ouvido da lavadeira que haviam matado o ladréo naquela noite. Um tiro no pescoco. A lavadeira ficou espantada e pediu a vizinha que falasse baixo, o menino podia estar ouvindo. A vaga ideia de que fora o ladrao que deixara ali a gaita voltou a brilhar com mais seguranca: 0 sangue, a morte do ladrao, tiros no pescoco. E isso Ihe trouxe medo, um temor assim difuso, sensago de inseguranca quase tortura. Seré que a vizinha nao estava espionando? Nao estaria ali jogando um verde? Jé ndo a estariam apontando como companheira do ladréo naquele furto da gaita ou de qualquer outro ou de todos os furtos da cidade? Tudo confuso, embrulhado, a nao ser ‘© agudo sentido de perigo e de temor. Mas nao covinha exasperar-se: porque nao admitir que papai Noel existia e que anjos na noite de natal 880 portadores de presentes fabricados em série pela industria humana! Ao lado a gaitinha continuava soando, tateando o menino a nota exata, 0 sopro preciso, mas aquilo doia nos ouvidos da lavadeira, parecia-Ihe que o menino estava conclamando a cidade inteira para testemunhar o furto de que ela era a comparsa, De repente, sobressaltou-se e exigiu do menino que parasse com aquilo, parasse o toque da gaitinha, ela detestava gaitas, coisa horrivel. A vizinha quis interceder pelo menino, que o deixasse, estava téo engracadinho. A mae porém estava agressiva, de uma agressividade desconhecida para a vizinha que estranhou, mas deixou pra la. De novo entrou na cozinha outra pessoa. Agora, um homem morador também perto. Dizia que sabia que a lavadeira era LINGUAGENS E SUAS TECNOLOGIAS 4 amiga do ladrdo, ele costumava comer aqui, a senhora lavava as roupas dele, e que vinha chamé-la para o enterro. Na verdade fora um tiro, © Delegado teria dito que seus soldados viram um vulto no quintal e dispararam dois tiros contra, podia ser duas horas da madrugada. Arrematou lastimando: — coitado, vamos ver que estava furtando alguma coisa que nao valia nada, que o coitadinho sempre foi ladrao muito humilde. 0 que furtou de mais valor, acabou devolvendo era a joia de dona Arginusa. — Mas era um ladro — rosnou com ferocidade a lavadeira. — € ladrao, sé matando. — Credo, comadre, mas matar um pobre mode uma galinha, mode um trenzinho sem valor! — Sinceramente que a comadre estava desconhecendo a lavadeira naquela manh, téo nervosa, querendo brigar, sem caridade com 0 pobre do ladrao que era téo seu amigo! Entretanto, neste momento, com as palavras do home, a lavadeira jé nao tinha duivida, Papai Noel nao existia ou se existia nao foi ele 0 portador daquela gaita. A gaita fora posta ali pelo ladro, tal como prometera. E comegava a desconfiar daqueles vizinhos, eles ndo estavam ali sendo para bisbilhotar, para constatar 0 achado da gaita suja de sangue, isso Ihe dava medo, tanto medo, sufocava-se, um suor frio escorria pela espinha, tinha a vida j8 t8o dificultosa, com tantos inimigos querendo fazer mal & gente, com tanta conversinha ocultando intengdes maldosas, e agora por cima de tudo aquele complicacéo por causa de uma besteira, sua fama de ladrona correndo pela cidade, ninguém mais the dando roupa para lavar, o filho passando necessidade, motivo de cagoada na escola, os soldados metendo nela a palmatéria, tomando a gaita do filho. E porque o ladrao envolveu ela naquilo, meu santo Deus! O home convidava a todos para irem ao enterro, mas a lavadeira recusava-se. O que convidava achou aquilo esquisito, pois a lavadeira era amiga do ladrao, alids, 0 ladrio nfo tinha inimizades na cidade. Mas a lavadeira ndo iria. Afirmava de pedra e cal que nao era amiga dele, nunca fora, nunca dos

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