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Quem fomos nds? Quem somos agora? sobre alguns siléncios e alguns assombros a respeito de territérios e caminkos interiores de fé e de destino’ - ~ * "Carlos Rodrigues Brandiio” Meu Deus, esstncia estranha ‘a0 vaso em que me sinto, ou forma vi, pois que, eu esséncia, ndo habito ‘vossa arquitetura imerecida: ‘meu Deus e meu conflito, nem vos dou conta de mim nem desafio as garras ineféveis: eis que assisto a meu desmonte palmo a palmo endo me aftijo de me tornar planicie em que jé pisam servos e bois e militares em servico da sombra, ¢ uma ertanca que 0 tempo novo me anuncia e nega. Carlos Drummond de Andrade Blegic? 0. Preaimbulo Este é um escrito pouco comum em simpésios como este, Portanto deve ser ouvido e lido, se algum dia for publicado, com este espirito, E um testemunho pessoal ecompanhado de uma cumplicidade solidéria. Falo aqui em meu proprio nome. Fago as minhas perguntas com poucas esperangas de respostas, ¢ imagino que elas serfo também de varies e varios de voces que me escutam, ou que me lerao, ‘Trago nomes de pessoas que conviveram comigo pelo menos desde 1961. Falo em nome de amigos querido e de “companheiros de destino” que j4 nos deixaram ha muito ou hé algum ° Zin uma primeira versio este texto foi apresentado om uma Mese Redonda durante 0 Encontro de CEHILA em Mariana, no comego de setembro de 2008. Depois de revisto e bastance empliado, ele foi lige coma uma das ‘ibuiges & cerimfnia de abertura do UP Simpésio internacional sobre religlosidades, didloges culruris © hibridizagoes, entre 21 © 24 de abril de 2009, wma realizago do Departamento de Histéris © Direito, do Cenito de Citncias Humanas'e Socials do Leborat6ric de RepresentanGes Religiosas ¢ Identtériag; da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, em Campo Grane. 2 antropslogo. Professor colaborador do Departamento de Antropotogia da UN(CAMP. Professor visitante do Programa de Pos-Gradvagtio em Geografia da Universidade Federal de Uberléndia, Pesquisadot vishante da Universidade Estadual ge Montes Claros. ® Coinego de um dos mais conhecides poemas de Drummond de Andrede. A versde aqui transcrita esti na piping 00%, de nxxcavavaccoonG, eitado pela axxo 0C00UGATANK EM HADDIN, et 19K. tempo. Falo em nome de pessoas que esto ainda entre nés e, como nés, no conseguiram se livrar de duas vocagies ~ ou compulsdes, dependendo do ponto vista—que séo também minhas: participar de simpésios como este, © escrever... para eles ou para outros destinatarios. Bastante do que estarei falando provein de conversas ¢ confidéncias comi/das pessoas de quem falo, ov que escutei falar em algum momento como este. Coloco aqui algumas frases em diferentes momentos ditas a mim ou Tidas a um piblico. Como no as gravei na ccasito © sequer as escrevi, retomo-as de meméria. Qualqner pessoa cujo nome e cuja lembranca apareceriio nas jinhas abaixo poders protestar dizendo: “nfo foi bem assim que eu falei e nem & bem assim que em vivo, penso ¢ sinto”. Desejo apenas que elas nfo repitam, em outra lingua e de outro modo, o que certa feita um indfgena (no me lembro quem, nem de onde e nem quando) disse ao ler uma etnografia escrita por um antropélogo a respeito da intimidade da cultura de seu povo: “tudo 0 que ele escreveu est absotulamente correto. © tnico problems é que, sobre quem nés somos, cle no entendeu coisa alguma”. De resto, a0 contrério de outros escritos meus, silo raras as citagbes de autores teéricos, vyenham cles da teologia ou das ciénoias sociais. Finalmente, devo lembrar que ha “aspas" em varias palavras. Nao querem significar algo estranbo, mas algo que foi on segue sendo dito ou escrito “assim”, naquetes tempos, ou agora. J. Deus existe? Hem? Hem? O que mais penso, texto e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nds, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religido: para se desendoidecer, desdoidar. Reza & que sara loucura. No geral, Isso é que ‘é salvagdo-da- alma... Muita religiGo, seu mogo! Eu ed, néio perco ocasiéio de religito. Aproveito de todas. Bebo dgua de tod rio... Uina 86, para mim & pouca, talvez ndo me chegue. Rezo cristéto, catélico, embrenho a certo; e aceito as proces de compadire meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando (posso, vou no Mindubim, onde um Matias € crente, metodista: a gente se acusa de pecador, 18 alto a Biblia, e ora, cantando hinos belos deies. Tudo me quieta, me suspende, Qualquer sombrinha me refresca. Mas é sé muito pravisério, Eu queria rezar ~0 tempo todo. Muita gente ndio me aprava, acham que lei de Deus é privilégios, invaridvel. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? - 0 que faco, que quero, muito curial, E em cara de todos faco, executado. Eu? — néio tresmalho! Olke: tem uma preta, Maria Leéncia, longe dagui ndo mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo més —encomenda de rezar ‘por mim um terco, tode santo dia, ¢, nos domingos, um rosério. Vale, se vale. ‘Minha mulher ndo vé mal nisso. E estou, ja mandei recado pra wma ovtra, do Vau-Vau, uma izina Calanga, para vir aqui, ouvi que reza também com grandes meremecéncias, vou efetuar com ela um trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! Viver é muito perigoso...* Esta € vima passagem ‘do’ iniéio’ das “incontéveis’ confidéneias qué‘ log nas. primeiras reredas, © exciagungo ¢ chefe de jagungos, Riobaldo, dito Riobaido paginas de o Grande sertdc ‘Tatarane, dito Urut Branco, ao falar de si mesmo ao vm seu silencioso interlocutor, confessa sem meios termos as suas escolhas de i de prece. Coisa que nés, estudiosos © pesquisadores de religibes ¢ culturas religiosas, das que um dia foram nossas e, de preferéncia, das de outros, evitamos sempre que podemos. J4 que iniciamos nossa conversa com uma passagem de Jo%o Guimaries Rosa, sigamos por mais algumas linhas com em sua companhia. Segundo se sabe, Guimartes Rosa foi um nilo-cristdo confesso, mas jamais um atew confesso, ¢ que em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ousow dizer, poucos dias antes de nos deixar que: “as pessoas nilo morrem, fica encantadas”. Eis © depoimento de Anténio Céndido a respeito dele, quando nos reunimos na Universidade de Sao Paulo em um congresso internacional em que comemordvamos justamente os cingtiemia anos de Grande sertéo: veredas. Ao tempo do acontecide do depoimento 0 seu grande romance havia sido j4 publicado, ¢ Joo Guimarties Rosa era enifio um escritor razoavelmente conhecido no Brasil. Era também um embaixador e sabe-se que ele servia na Alemanha quando do inicio da Segunda Guerra Mundial. Com Barcelona, ele foi. Mas como um born mineiro ¢ sertanejo, ouvi mi congresso, como de costume foi redigide por uma comisso um manifesto de escritores. ‘Todos os lado a um Congresso Intemacional de Escritores em « falou pouco. Ao final do presentes assinaram. Todos, menos Guimardes Rosa. O fato causou estranheza ¢ certo mal-estar entre os brasileiros presentes. Em nome dos outros Anténio Candido procurou Jodo Guimariies Rosa e buscou polidamente saber dele se a negativa era definitiva e quais as suas razBes. Esperava uma resposta diplomética. Afinal, como wn representante oficial do Governo Brasileiro, além de escritor, talvez nao Ihe fosse permitido assinar um documento de marcado teor politico e, em plena era da ‘Guerra Fria”, mais favoravel ao iado este do mundo do que do oeste. Recebeu uma sesposta inesperada. Escrevo-a aqui de meméria, mas acredito que estarei sendo fiel a Jotio e ao que Anténio nos narrou ¢ que tenho gravade na integra em algum lugar em * 0 Grande sertdo: veredas, 1983, pagina 15. minha casa. Ele respondeu isto: “Ant6nio, eu nfo assinei o manifesto dos escritores porque ele é um documento politico. E, sendo politico, ele deixow de lado 2 tinica pergunta essencial: Deus existe?”. A seguir um depoimento men mesmo a seu respeito. Estive hé muitos anos em um desses ‘nossos-seguidos simpésios académicos. Eya em. Brasilia ¢ nfo recordo mais qual a suavirea ¢ 0 seu tema, Em um momento de intervalo e café, aconteceu de cu estar em uma roda de conversa amena, ‘Li estava uma senbora que fora seeretiria de Joao Guimasies Rosa no Hamarati, quando ele era 0 diretor do Departamento de Fronteiras, E ela nos contou que um dia o embaixador-escritor confessou mais ou menos isto: “en daria tudo o que eu escrevi na vida por um momento de certeza sobre a imortalidade da alma”. E voc® que me cuve ou me 1 agora, acaso ousaria imaginar que sabe ou desconfia por onde anda a alma “encantada’* de Jodo Guimaraes Rosa? Se algum de nés por causa de uma pesquisa sobre “literatura e religido” fosse, virios anos tris, entrevistar Joo Guimaraes Rosa a respeito de suas escolhas confessionais, € possivel que ao invés do responder algo esperado, cle convidasse o pesquisador indiscreto a um passcio por sua biblioteca. 1.4 estariam, lado a lado, livros de literatura, de filosofia (poucos © pouco Tidos) ¢ de ‘eligi, religides, misticas e espiritualidades. Provavelmente cle nao teria resposta objetiva” alguma © & poss(vel que cle sequer accitasso “tar uma entrevista”. Ble deu uma dnica grande entrovista em sua vida, a0 alemiio Gunter Lorentz. io se espantem se eu provedesse de forma semelhante, ao ser também abordado pelo mesmo pesquisador. Tentando esquivar-me da pesquisa, é provavel que eu, de igual maneira, o convidesse & um passeio pela biblioteca que retine quase todos os meus livros em dois ou tres lugares de uma casa em uma chécara entre montes ¢ montanhas do Sul de Minas. Em uma delas, a maior ¢ a mais publica, ele encontsaria os livros do Brandao-antropélogo. Meus livros de filosofia, de historia, de sociologia, de educagtio ¢, sobretado, de antropologia. Nas outras duas, bem menores ‘e mais zelosamente protegidas, estariamn os meus livros de literatura ¢ os livros de... de que? Eles nfo so, como os da outra biblioteca, livros “sobre”, Nao so os meus livros cientificos de leitura ¢ consulta académica. Raramente me servem a estudos rigorosos para.o preparo dle aulas, para a eriago de projetos, para a redacéo de relatérios. Ali estilo, fora os muitos de romances, contos ©, sobretudo, poesia, livros de historia recente que tém a ver com minha vide, Como os que trata dos acontecimentos brasileiros ¢ latino-americanos dos anos sessenta para cd. LA esto os livros de religito do Carlos-cristo, dos tempos em que eu fui identitéria, assumida e militantemente um “cristo engajado”. Livros como os de Emanvel Mounier, de Pierre Teilhard de Chardin (2 obra completa), ao lado de intmeros outros divididos entre o que chamdvamos nos anos s sessenta/setenta, “livros de espiritualidade” ¢ os “livros de militéncia” que liamos seguidamente, a 63 ou em pequenos grupos, n6s, as € Os “militantes de Ago Catélica”. Varios livros de autores que ousarei chamar aqui de “humanistas”, cristos ou ndo, stuatizariam um repertério de livros que . guardo-comigo como uma reliquia-dos tempos, desde, um Jonginquo. 1961. Bles no estariam ss, Dividiriam estantes com a obra quase completa do Mahatma Gandhi ¢ varios livros de seus comentadores; com fivros sobre religiées e misticas orientais, como o budismo original, o tibetano, ¢ co “de zen”, o tavismo e alguns livres de misticas judaicas e mugulmanas. Varios livres de tradigao sufi poderiam ser encontrados. Nao faltariam livros entre os de Fritiof Capra ¢ os daqueles que tratam as questdes da natureza da Terra e do Césmico quase mistica ou religiosamente. Alguns livros sobre espiritualidades e com oragSes de povos tribais, como os Guarani, por exemplo, completariam as estantes. Caso eu nfio pudesse escapar do cereo-antropoldgico de meu interlocutor, e caso ele de repente ¢ sem os rituais de espera das pesquisas de campo de meu tempo, ousasse me perguntar (como en perguntei a tantos “outros”)... “final, qual é a suam religido? £ provavel que apanhado no susto eu por um momento invejasse um homem pobre a quem perguntei em uma das casas do “Risca’Faca”, 0 bairro de ruas de terra dos baixios de ttpira, onde fiz.a pesquisa de Os deuses do povo, Pois quando respeitosamente quis saber quem ele era, ele me responden alto e semi as davidas com que eu ndo saberia responder: “eu sou um preto, sou um pedreiro pobre e sem estudo. Mas sou um crente evangélico ¢ um salvo no Senhor. E o senhor?” E devo confessar que apanhado pela pergunta com que ele concluiu a sua reposta, tudo o que eu pude dizer é que eu era... “um professor de Campinas, fizendo uma pesquisa sobre a histéria de Itapira”. Mas ao meu pesquisador vindo de longe até ds terras altas do Sul de Minas, talvez em me esquivasse por um momenio da agudeza da pergunta, levando-o por entre uma pequena mata a/uma “capela ecuménica” que fiz construir de pedras num canto da Rosa dos Ventos (o nome da chavara) Ali ele se depararia com um cendrio cristio-catélico. A comegar pelo altar com uma biblia, ¢ um local alto com as imagens em barro de artesdo, representando cada um dos “Trés Reis Magos”, a quem a capela é dedicada. Uma estante ao lado ¢ mais alta contém varios livros “de religiao”. Ali esto, lado a lado, diferentes biblias, em algumas linguas e vindas. de-diversas tradigGes cristis. Hd um Livro dos ‘Mormons, a0 lado de ume Tora judaica, de um "Sagrado Aleorfio”, de um livro de preces Guarani, de livros de tradig&es budistas ¢ outros mais, As vezes penso que esta pequena estante sou eu! 6 ‘Nao sei como Jo&io Guimaries Rosa responderia (ou no) 4 pergunta tio comum ¢ mesmo respeitosa em outras culturas, e tho invasiva na nossa’. Sei que néo seria fécil a ele responder. A mim seria quase to iimediata quanto a do negro-pedreiro-pobre-e-crente de ltepira, se fosse entre 196 €-1971. Eu-diria: “eu sou-um cristo de tradiedc catblica, participante ative da-‘vida-da-minha igreja’, e militante da esquerda catSlica, engajado na Ago Catélica”. Depois de 1965 eu poderia substituir “Agdo Catélica”, pois j& me havia forma na universidade © buscava rumos profissionais, por: “movimento ecuménico”, “igreja das comunidades eclesiais de base”, “oristios para 0 socialismo” on “adepto da Teologia da Libertagio”. Seriam boas respostas ¢ ¢u as responderia com acerteza de quem crf e acredita que sabe no que cré Hoje, habitando comunidades de diferentes pesquisadores da religitio © fervorosos ‘ocultadores de suas proprias crengas (ou nfo-crengas), eu nfo sei se saberia responder. Se tentasse, podleria honestamente ensaiar, com um inevitivel recurso ao passedo, algo como: Vejamos. Eu venho de uma familia tradicional catblica Desde os meus dezoito ‘anos vivi uma espécie de converstio dentro de minha prépria confissiio religiosa, Acho que passei do que Bérgson chamaria de uma “religidio exterior”para uma assumida “religifo interior”. Em 1961 ingressei ne Juventude Universitéria Catélica, ao entrar na universidade. Militeé na JUC durante toda a minha vida académica e acompanhei a sua conhecida “virada para a esquerda”. Participei de movimentos de cultura popular dos anos sessenta. Fui assessor por muitos anos de ‘igrejas populares’, praticantes ativas da entdo nascente Teologia da Libertagdio, como as da Diocese de Goids e de Sdo Félix do Araguaia. Vivi durante mais de vinte anos como participante de wm ativo movimento ecuménica, o Centra Ecuménico de Documentagdo e Informagito. Pouco a pouco fui deixando pelo caaminko ~ entre idas e vindas ~ 0 que ew chamaria uma ‘vida de igreja”. Mas nunca de todo. Nos tiltimos vinte anos interessei-me (como Leonardo Boff, Marcos Arruda e tantos outros companheiros de destino, por estudos e vivéncias do que Albert Einstein chamaria de ‘religiéo césmica’, Estou sempre na fronteira hoje entre trocar um deus pessoal e da historia humana, por um deus césmico e da natureza universal, ou por deus nenhum, Tenko lido livros de misticas orientais e 0 budismo tibetano me parece muito préximo. Tenho livros de preces das mais diferentes tradighes religiosas, ¢ ‘gosto de lé-los ¢ orar com eles a deuses ou a poderes da natureza com os mais diversas nomes e rostos. A perda de uma fé confessional em muito pouco mudow os meus cendrios de vida e os meus ideais de militancia, Minka comunidade de prética social e de destino em muito pouco € a académica. Ela esta contida ent Pedro Casaldéliga eem Tomas Balduino, em Leonardo Boff, Frei Bétto, Carlos Josaphat,’ Marcelo Barros, Alda *Lembro de um dos mais intriguntes artigos sobre cultura, identidade e religio. Ele foi escrito por Mariza Peirano ha virios anon Seu nome é “Are you catholic”. Bo alo do ego, due conc anda em wm nimero de wma oportuna Série de atgos de estas deantcopotogia, da Universidade de Bras, ero da exatapergunte que de supeti lhe fez tm homem na ina, quando ea ise a.ee ve era brasileira, Maria Borges Cunha, Jether Pereira Ramatho, Imi Dorothy, e Marcos Arruda. Sigo gritando pelas ruas, como acabo de fazer no janeiro ¢ Belém, de mais um Forum Social Mundial, que ‘um outro mundo é posstvel! B nds? E nds todos e cada uma, e,cada um de nés? Me hee Suponham comigo que 20 cabo deste Congreso Internacional que nos retine aqui resolvéssemos escrever um documento destinado ands ¢ aos outros, uma “Carta de Campo Grande”, expondo ao mundo dos que ainda eréem ¢ dos que ja ndo eréem, as nossas proprias crengas ¢ as nossas certezes ou dividas. Suponham que de maneira democritica dediodssemos todo urn dia final a do coléquio a levantar entre nés, aqui presentes - como numa quase investigagfo em que AOssemos, 20 mesmo tempo, pesquisadores e pesquisados - alguns dados, versdes ¢ visOes a respeito dos mesmos temas religiosos que tantas vezes ditjgimos aos nossos “outros”, 05 sujeitos de nossas pesquisas. Enldio, 0 que vor responderia a questies ao mesmo tempo essenciais e indiscretas? O que vocé teria dizer de piblico para responder seja a perguntas e dividas de Jodo Guimartes Rosa, seja as que em nossos estudos tedricos ¢ empiricos costumamos fazer aos outros, na mesma medida evitamos que sejam a dirigidas a nés? Diga: Deus existe? Se cle existe, 6 0 deus cosmico dos filésofos ou o deus pessoal dos tedlogos judeus, cristos ou mugulmanos? Ble se ocupa de nosso mundo, de nossas vidas... de voct ¢ de mim? O que existe ¢ uma criag%o pessoalmente dele? }i a obra de uma sabia arquitetura a que alguns chamam “ordem do cosmos” e, outros, charnam de “deus”? Ou é apenas um jogo do acaso? A vida tem uma origem com sentido e um destino com significado? E ha aigum calor ou sentido no se fazer algo pela salvago da alma ou pela redengio da humanidade? Vale a pena amar o meu proximo? Ble existe? Ea alma... existe? Acabado o fluir da vida do corpo, pars onde é que ela vai? Vai a algum lugar? A uma outra dimensiio do que ha? Ou migra pata uma outra vida, em um outro corpo? Ou, entiio, ela sequer se acaba, porque nunca comecou e, assim, nao existe? E seu deus, quem €? O Deus IHVH (0 impronuncivel) da tradigdo judaica, transformado depois no “Pai” amoroso e primeira pessoa da Santissima Trindade® E a Santissima Trindade, deus uno em trés? E Jesus Cristo? E deus e 8 Segunda Pessoa da Santissima Trindade? £, mais metaférica do que existencialmente o Filho de Deus? E um mensageiro nico de um deus também tnico? Ou é um homem sobre quem cada era ou vocagio do cristianismo.~mas também de outras religides ~ atribui ‘uma qualidade propria de ser? As perguntas so muitas. Completa ¢ lista ow ignore todas. Um Pai tao pessoalmente santificado ¢ humanizado, que mais de uma vez owvi pessoas do pove dizerem, entre 0s dias a célebre Romaria de Divino Pai Eterno, em Trindade, Gotés: “aqui em Trindade, abaixo de Deus o santo mais poderoso é 0 Divino Pai Bterno!”, No enfanto, estamos diante de um fato talvez novo e, a meu ver, bastante desafiador. Enquanto aqui no Brasil ¢, oreio, em toda a América Latina dirigimos 0 nosso othar, 0 foco de nossas teorias (proprins ow apropriadas) © as nossas perguntas de pesquisas a f2, as crengas, aos -inodos de ser, sentis-se sendo, vives a vida ¢ praticar ums téligito 'déntrd ou fra de-xim a igréja; dos outros, tomados nossos sujeitos ou objetos de pesquisa, em varios paises da Europa ¢ nos Estados Unidos da América do Norte, ac lado de pesquisas semethantes as nossas, cresce 0 mimero de estudos, de confissées piblicas ¢ escritas, ou de didlogos a respeito do que créem, out nio créem mais as pessoas como nés. Escritores, cientistas sociais, agentes de religito, militantes ateus, descobrem que ao lado das diferentes entre praticantes “nativos” ou “populares” wna outra diferenga no carmpo religiose deve ser também ume razio de nossas perguntas ¢ um motivo de nossas proprias respostas. Coloco ao final deste relato, na integra, uma carta-circular de Pedro Casaldétiea, Ble comenta, por sua vez, uma ontra circular, escrita com peser pelo cardeal Martini. Bis 0 comego da mensager, O cardeal Carlo M, Martini, jesuita, biblista, arcebispo que foi de Milan e colega meu de Parkinson, é um eclesidstico de didlogo, de acolhida, de renovagdo a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade. Em seu livra de confidéncias ¢ confissées Cotdquios noturnos em Jerusalém, declara: «Antes eu tinka sonhos acerca da Igreja, Sonkava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza ¢ na huanildade, que niio depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de ralz a desconfianca; que desse espago as pessoas que pensem com mals amplidio; que desse dnimos, especialmente, Aqueles que se sentem pequenos o pecadores. Sonhava com uma Igreja Jovers. Hoje niio tenko mais esses sonhosy. Esta afirmaciio categdrica de Martini nao 6, ndo pode ser, uma declaragio de fracasse, de decepgao eclesial, de renincia a utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do préprio Deus. Ora, o simples fato de que um dos mais conhecidos e contestadores principes da Igreja Catélica vena de piblico confessar os “sonhos que tinha” ¢ que agora nfo tem mais a respeito Jpistamente de sua igreja, é algo de no pequena temeridade. Devo lembrar que na direso do que nos imporm aqui, slguns anos antes » mesmo cardeal Mastini vivew um riro ¢ fecunde didlogo vom um outro italiano, tio ou mais conhecido do que cle: Umberto Eco, Do que se ouviram ¢ disseram em wma demorada e aberta conversa saiu publicado wm livro que, traduzido pata o Portugués, tomou este nome: No que erBem os que niio créer’, © Livro foi ublicado ein Portugues pela Bdltora seccanab0n, de ra2xGaDOOUN E71 KIRAERIRIOKIARAINAR, Q difilogo citado acima, entre um cardeal catélico “crente” ¢ um escritor “nao-crente” no ¢ linico, ¢ mesmo entre outras pessoas ¢ ao redor de outras religites obras semelhantes tém sido publicadas, E nflo apenas didlogos intes-religiosos, como os que nos parecem mais freqiientes e mais acolhidos entre noses simpésios de estudos, mas entre justamente 0. que nos-interessa,agui.. Menos. - pessoalmente confessante ¢ bastante mais teérico, um livro mais recente merece ser Fido, Ele reuniu os fil6sofos Richard Rorty de um lado e, do outro, Gianni Vattino, mediados por Santiago Zabala. Ambos discutem 0 acontecer ¢ o futuro da religio em nossos tempos ¢ no futuro proximo. Na verdade, falando da religifo falam especialmente do cristianismo. E Rorty, um nio-crente confessional, recupera do cristianismo o que poderia ser a sua esséneia imorredoura, mais como fogos do que como crenga, ¢ mais como desafio A prética do que ao crer 0 pensar. Vattino, um cristo critico e essencialmente dial6gico, defende pontos de vista nfo tdo diversos, mas pensados ¢ ditos “de dentro para fora, Para além da religito pensada como cristianismo, um dos livros mais surpreendentes que li nos liltimos anos eavolve um longo didlogo entre um pai e um filho, O pai, um filésofo cético ¢ ateu, recentemente falecido. © filho, um ex-promissor cientista de biologia que abandonou a caneira académica para tomar-se um monge budista de iradigao tibetana, 0 livro € O monge ¢ 0. ) filésofo’. No que nos importa de mais perto aqui, na verdade os diélogos dividem nto apenas pessoas ‘crengas ou ndo-crengas situadas em pontos extremos: “orer inteiramente” versus “no crer de modo algum”, mas justamente os diferentes modos de crer de pessoas situadas como eu e, provavelmente, voc® que me 1é, nos diversos pontos de intervalo entre uma posigio extrema ¢ outra, Do ponto de vista cristo, por exemplo, aqueles que eréem em tudo, ortodoxa e eclesiasticamente, como fiis catélicos, por exemplo; aqueles que ceréem heterodoxa e eclesialmente, como Pedro Casaldaliga e outios professantes ¢ praticantes de alguma das Jinhas da. Teologia da Libertagdo, situados uns e outros no interior da f& ¢ da Tgreja Catdlica; aqueles que créem em uma “esséncia do cristianismo”, situados no interior da religitio, mas fora de igrejas; aqueles que nfo eréem na esséncia historica do cristianismo (0 Deus dos judeus 6 uma criagfo cultural e Jesus Cristo foi um exemplar "homem humano” sem precisar ser um deus ou mesmo um especial “filho de deus”), crendo, no entanto, em uma cultura dos evangelhos, como um sistema de sentido e um guia de ethos ¢ de ética. Quero dizer que estamos diante de um antigo-novo olhar sobre a questo das diferengas culturais, identitarias, espirituais e/ou religiosas, Ao Jado da jovestigagao cada vez mais rigorosa ¢-criativamente plural "Ver O fienero da religito ~ solidariedade, caridade e ironia, organizado por Santiago Zabale e publicado em Portugués pela Relume Damaré, do Rio de Janeiro, em 2006. A longa introduc de Santiago Zabala tem este some: wna regio Jem teistas e atcéstas. © capitulo de Rorty trds este titulo: amticlericalismo e ctetsmo. O de Vattino ¢: a idade da lnterpretacio. © longo didloge entre os fr tomo este titulo: qual 0 futuro da religiie apés a metafsiea? * Foi publicado om recourx pela Editora Mandatim, de So Panto. 10 de religides ¢ agéncias confessionais, em todos os campos, em todas as suas interfaces, algo novo nos leva a regides de fronteira. A algo mais do que hibridizagtes. A alternativas diferenciais de ser, de quase-ser, de ndo-ser-mais de uma fé, uma crenga, uma religiio ou uma igreja. Nao apenas as alternativas de nomadismo e de vocagao de persistentes-buscadores da f8, @ue centrath cm si-mesmos as suas inquietagbes e escolhas, e se tormam fiéis a tudo, desde que nunca obrigados a uma fidelidade de longo-prazo. a Eston conveneido de que ao lado dos censos que ano apbs ano demonstram como desigualmente no Brasil ¢ na América Latina 0 “catolicismo romano” perde terreno para uma crescente e efervescenie polissemia de neo-tradigdes evangélicas; e como eu outros sctores em que a sociedade se abre a ser quase tio pés-modema e perversamente “liquida” como nos paises centrais, vivemos uma também crescente secularizagtio — de que eu mesmo ¢ varios de voces so bons exemplos — precisamos dirigir um olhar mais cultoral e pessoalmente sensivel nfo tanto a0 que as pessoas ¢ os grupos humanos “sio”, ou “dizem que siio”, confessionalmente, mas como um niimero crescente e pluri-diversos de pessoas de comunidades huraanas vivem entre trilhas de fronteiras as suas préprias experiéncias, escothas ¢ identidades de f€ e de partitha daquilo que, para ampliar bastante os limites impostos pela idéia de religido ~ ha tempos tenho chamado de sistemas de sentido, Algo que, na seqdéncia do dialogo entre Montini e Eco, entre um pai livre-pensador ¢ um filho monge budista, entre Rorty ¢ Vattimo, leva Gabriel Ringlet, um padre © pensador catslico, em seu livro L’évangile dum libre penseur ~ Diew serrait-it laique? A dizer que para além do diélogo eouménice entre cristfos; para além do didlogo entre cristios e os nfo-cristios (mas ainda confessionalmente religiosos), chegamos ao momento em que toma-se urgente o didlogo entre os que oréem ¢ os que nio-créem. Melhor ainds, entre aqueles que por no crerem em um dens, eréem no que acreditam no sentido da vida para além da existéncia de we deus". Ele actedita mesmo (¢ eu também) que qualquer outro didlogo entre ortodoxos, heterodoxos, diferentes ¢ hibridos, seré incompleto ¢ infecundo se nfio convidar & mesma mesa os situados nas fronteiras, ou jé para além dela, 2. N6s ¢ eles, ou: eles em nés Em Os deuses do povo — um estudo sobre a religido popular e em alguns outros estudos sobre sistemas de crengas, ritos e festas da experiéncia do catslicismo_ de camponeses e de negros, ' 0 tivro foi publicado na série Espaces Libres, daeditora Albin Michel, em Paris, em 1998, Tenko comiga a edigito de bbots0, de 2002. ul realizei o que, no meu caso, poderia considerar um maximo afastamento’’, Afinal, como apenas uma linica vez escrevi algo sobre a religio de um povo indigena e, mesmo assim, com base em estudos € erm documentos de outros autores, devo considerar minhas pesquises sobre aquilo a que, entre nés, -damos o-nome .de catolicismo- popular; come: 08.:meus esforgos de compreensio da “vida religiosa”mais distanciados de mim mesmo ¢ dos meus outros mais préximos"?, ous sujeitos de pesquisa e meus interlocutores eram cristdos catdlicos, como eu mesmo ~ ora com mais certezas, ora com maiores diividas ~ julgava também ser. Tanto assim que muitas ‘vezes oramos juntos em seus rituais ¢ néo foram poucas as vezes em que, diante de todos, deixei de lado meus aparatos de pesquisa ¢, reverente, tomei as fitas pendentes de um altar ristico, beijei-as ¢ as passei sobre a cabega, Fui corta feita “festeiro de Santos Reis” ern Sao Luis do Paraitinga e, talvez de uma forma préxima a varios de vocés aqui ¢ um tanto mais distante de outros companheiros de cigncias sociais, eu me sentia ¢ identificava como alguém que pesquisa algo de um sistema de £6, renga, culto e rito; de uma religifo enfim, que desde a minha infiincia era também “la minha” e em ‘cujas verdades essenciais, en também acreditava, Diante de um nistico altar de santos eu néio me ajocthava como um ator que representa “ser como eles”. ois diferente deles justamente no que me trazia até eles como um pesquisador de campo, eu cra como eles, a meu modo, no que nos unia na diferenga do que viviamos ali. Assim, eu que havia vindo de perto ou de Jonge até “ali” para aprender com eles algo sobre depois escreveria alguma coisa que eles nao leriam, convivia com eles como os meus outros: iguais e diferentes. Entre sotaques e entonagdes da fala ¢ dos gestos ora semelhantes, ora um tanto diversas, nos nos entendiamos. Falivamos a mesma lingua, devordvamos a mesma festiva comida ¢ ordvamos com as mesmas € outras preces aos mesmos seres sagrados. Aprendi a cantar alguns de seus cantos de tradicionais de devog#o ~ alguns em um retraduzido Latim de ladainhas - e devo confessar que de ‘modo geral gostava mais deles do que of canticos pré ¢ pos-conciliares das ceriménias de igreja. ‘Quisera haver vivido “‘missas” com a mesma emogao com que partilhei “rezas”. Em Goils ¢, depois, em Minas Gerais ¢ em Sio Paulo, varei fongas horas de noites entre dezembro e janeiro caminhando, cantando, orando ¢ comendo entre e com folides de Santos Reis. Lembo alguns livros e omito artigos. Algumasreferéncias mais compietas estar na bibliogafia so final: Sacerdotes de viola, Memria do sagredo, A Festa do santo de preto, 0 divino, 0 sarto ea senhora, cavathadas de Pirendpolis, A fuitura na rua, De ido longs eu veno vindo, O fesiim dos bruzos. Em breve devern sair outros do's livos: Fracee fla, {esta eromaria, pein Editora Santudri, de Aparesida; clara cor da noite escura ~ estuios sobre o negra em Minas (Gerate em Geokés, pela Editora da Universidade Federal de Uberlindia, 2 Tyatse de Or Guarani ~ indios do sul, que fo3 publicado mais de wna vez. A prisseta deles na série Texos ~ Estudos de Sociologia, do Departamento de Sociologis da FFILCH da Universidade de Sao Pauto em 1999. 12 Durante dias e semanas andei afrds ¢ entre ternos de congos ¢ de mogambiques em festas “de santo de proto”. Documentei e, af sim, varando noites inteiras em claro, ¢ afé dancei dangas, fimgées on folgas de Sto Gongalo, Quase sempre sozinho, como € costume entre antropblogos. Alguma vezes avompanhado de estudantes, em feoumdas ¢ breves jomnadas de ”ofioinas de pesquise de campo", a que me habituei desde meus primeiros anos de professor, ainda em Goi. Havia apenas algumas diferencas em tudo. Estas duas seriam as mais importantes. Primeira. Creio que eles oravam com uma diversa bastante maior ¢ mais sincera 18 do que eu mesmo, devotando em muitas ocasides as suas preces, rezas de tergo e cantorios de Jouvor ou de “peditério” wm tempo imensamente maior do que 0 que eu ousaria destinar a tais préticas. Segunda, Durante 08 quase sempre muito longos momentos de seus rituais devotos, eles apenas “faziam aquilo” a que se dedicavam. Eu partilhava com eles “aquilo”, quando era convidado ou quando me parecia devido ¢, ao mesmo tempo, eu os pesquisave. Se hé justica no mundo, eles receberiam as béngtios dos céus. Eu, os louvores da academia, Fntre as nossas distincias ¢ proximidades havia, & certo, uma cumplicidade de partitha cuttaral bastante maior do que a que suponho que exista entre um padre catélico pesquisador ¢ uma mae-de-santo do candomblé, a menos que ele seja também, & as escondidas de seu bispo, um alguém “da casa”. Maior ainda a disténcia que, entre lingua e a renga, separa um antropéloge carioca de wm vetho xam yanomami, Talvez por isso mesmo, bem sabemos que quanto mais préximos de nés mesmos ¢ de nossa cultura de origem so os nossos cenirios de pesquisa, e quanto mais familiares a nés’sio os nossos sujeitos ¢ sistemas investigados, tanto mais horizontaimente alargada © mais verticalmente superficial tende a ser a nossa etnografia no sentido tradicional de “descrig#o de uma cultura’ e, ‘em nosso caso, de uma dimensio ou um momento dc uma cultura religioss. Conhecemos casos ‘exemplares em exeesso. A um pesquisador mugulmano vindo do Paquistio para efetuar estudos sobre “rituais etuais do catolicismo urbano em Stio Paulo” nada do que nos pareceria trivial « marginal em uma missa de domingo, que descreveré com profundo mais interesso © uma enorme riqueza de detathes. Bastante mais do que a mesma descrig&o etnogréfica realizada por um antropélogo nascido no Bras e participante da Renovago Carismética de alguma pardquia de seu bairro. Aqui mesmo no Brasil possuimos incontiveis exemplos de rituais de devogHo indigena » De uma destse incursos saiu pela Universidade Fstadual de Campinas, um'cademo de estudos de alunas ¢ alunos meus, hoje doutores hé um bom temapo. Foros a Casugaba, ean Séo Luis do Paraitinga docunientar ceriménias do Dia de Finados, Fora a minha breve Inirodugio trée artigos sobre o tema foram publicados, Ver: Ritos ¢ mifos da morte em Catuzaba - trés estudos, 00 Boietim de Antropotogis 2, do Departamento de Ciéacias Socials do IFCH da UNICAMP, de dezembro de 1987, O trabalho a varias mos comeya com uma epigrafe recolhida por mim um diae pintada em wm ‘muro em Campings: “a morte & grande aventura da qual nfo sairemes vivos!” 1B desctitos sob o microscépio do olhar atento do pesquisador estranbo e estrangeiro. Multiplicamos uma rica © muito variada antropologia dos rituais religiosos das diferentes tradigSes afroamericanas, ‘a9 mesmo tempo em que € mal se sabe ~ 2 no ser quem partithe ~ de que maneira vivem os seus deuses-¢ 6 celebram.em seus cuitos os participantes da Feologia da Libertaglo. ++... Isso em boa medida se deve a que olhamos os “outros”, quando sujeitos de culturas indigenas, exéticas ou populares, através de muita cultura ¢ pouca hisiéria. Isto malgrado 0 surgimento das recentes inovagties da meméria social, da histéria oral, das histérias de vida e de suas derivadas. Ao mesmo tempo em que nos olhamos ¢ buscamos compreender a nés-mesmos ou 405 nossos outros préximos ~ aqueles que podem ser estranhios, ms nunca exéticos, come um, “native” — entre pesquisas e estudos carregados de muita historia e de pouca cultura’*, Nao é apenas porque ha. documentos eseritos de menos de um lado ¢ doctunentos escritos demais, do outro, que os historiadores ¢, menos, 0s socidlogos privilegiam pesquisas sobre as religides eruditas ¢ oficiais, através de suas instituigies © de seus atores ¢ atores de feitos ¢ de fatos social e/ou politicamente relevantes, entre aliados ¢ inimigos do passado e do presente, enquanto anttopélogos preferem dedicar-se as “sem histéria", empapados de ritos ¢ de mitos t20 melhores desde estudar quanto menos semelhantes aos meus. Este céndrio de repartigées afortunadamente vai se quebrande por toda a parte, inclusive com a chegada de outras vocagties de estudos © pesquisas, como a de gedgrafos, psicdlogos e até mesmo de economistas e arquitetos. De resto, Boaventura de Souza Santos lembra em um livro recente ¢ bastante conhecido entre nés, Um discurso sobre a ciéncia, que por estudaram a si-mesmos ¢ aos seus mundos sociais iuito préximos ~ sua comunidade, sua classe, seu segmento de classe, sua cultura ~ os sociélogos armaram-se, desde Emile Durkheim, ou mesmo antes‘ dele; de uma série de artificios ¢ de procedimentos metodoldgicos em nome da neutralidade e do distanciamento'®. “Considerar 0 fato social como coisa” era a ordem maxima de Durkheim, e muitos cientistas sociais a seguiram & risea por muito tempo. Em direo oposta, devotando-se originalmente a mundos sociais e a culturas “outras*: distantes, exéticas, desconhecidas, os antropélogos, desde Bronislaw Malinosky tomaram tum caminho diverso, e desenvolveram procedimentos em busca de ums de maxima aproximaco © familiaridade com o “outro”. Um estranho “objeto de pesquisa” a ser, por isto mesmo, © Detor Burke, o instigante historiador de Cambridge, trabalha com felicidade esta diffil questio em aiguns de seus livros, dentre 68 quais vale a pena recordar pelo menos dois, existentes em Portugués: O que ¢ histéria culteral, ¢ A ‘eultura popular na idade moderna. 55"Tania este ivto quanto outros dois livros que o sucedem © amptiam bastante, possuem mais de uma edigées equi no Brasil. Foram todos publicados pela Editors Cortez, de Sto Paulo. 14 metodologicamente tornado um sujeito familiar. Escrevo isto porque acredito que algo nao muito diferente aconteceu ¢, com muitas variages em todos os sentidos — segue ainda aconfecendo’no caso de nossos estudos ¢ ritual. ~-s © Moltemos por um momento #' iim e mithas manhas, tardes, noites,'¢ madrugadas. ‘Terminade a festa ow o ritual que por algum tempo nos aproximara, eles deixavam de serem reis ¢ rainhas, nobres de uma corte processional de negros, mestres, contra-mestres © outros devotos- artistas errantes em nome dos Trés Reis do Oriente, ou dangantes em louvor a Stio Gongalo, & retornavam A rotina de serem pedreiros, sub-empregados, biscateiros, garcons, lavradores de arroz e milhe, mulheres “donas de casa ¢ mes de familia”. Hea que os deixava © viajava de volta permanecia sendo o antropélogo que os “pesquisara” © agora deveria escrever sobre eles. Ou seja, traduzir 0 em ele acreditavam, que eles faziam ¢ criavam diante de mim e dos outros, em uma linguagem que cles no entenderiam, se algum dia me lessem, tal como eserevi algumas linhas cima. Mas, a seu modo, eles conheciam outras diferengas. E um dia, do meio de seu temo, a0 me ver numa esquina de rua gravando e fotografando, um capitio negro de congos interrompeu o seu canto para me gritar entre sorrisos: “Eh, meu branco! Quem sabe, danga. Quem nifo sabe, estuda!” Th escrevi sobre isto uma vez. Nao custa repetir aqui. B talvez. por dangarmos 80 pouco © estudanmos tanto, nés pagamos 0 prego que talvez no pese sobre “eles”. Ou pese de um modo diferente. Pouco depois de numa entrevista a um jomal de Sio Paulo, Rubem Alves haver-se declarado de piiblico ser hoje um “tedlogo ateu”, dias mais tarde ele nos contava, em minha casa, que hayia visto um homem velho ¢ pobre orando como que tem ne coragio, nas mos e nos olhos toda a f€ de que necessita um justo, segundo o Antigo Testamento, ou um santo, de acordo com 0 Novo. # ele nos disse de arremate: “Eu hoje nao tenho inveja de ninguém. Mas se tivesse, seria desse velho!” Repito a frase de memsria e pode niio ter sido bem assim. Mas se no foi assim, foi quase. E eu que 0 ouvia poderia ter completato: “e en também!” 3. Outros, como nds ce "Em outros estudos de antes e de'depois, pesquisei ¢ escrevi sobre a experiéncia do ser- cristio de tradigio catdtica entre outras pessoas e comunidades de outros mais “como nds mesmos”. Dopois de haver saido da vida universitaria como estudante e, também, da Juwentude Universitaria Catética e do Movimento de Educagtio de Base, onde vivi a mais forte e intensa experiéncia do CLL we 18 pertencer a uma pequena e ativa comunidade cristi de fé (0 crer pessoal), de crenga (0 crer ‘comunitariamente com outras pessoas), de vida, destino e de militincie ~ algo « que davamos naqueles anos o nome de “engajamento” ~ iniciei uma vida dupla que ja abria suas duss trilhas para mim ainda nos tempos de. estudante.-Creio que: varios dentre 0s que agora me escutam e mais. adiante poderao ler 0 que escrevi, viveram ou vivem ainda algo bastante semelhante. ‘Ao mesmo tempo, ¢ quase sempre repartindo um mesmo dia, uma mesma semana, um mesmo més de vida e de trabalho, eu me fornei vm professor universitario e permaneci vivendo 0 que até imagino ser uma dimensio de militincia. Assim, desde agosto de 1967 vivo o ser umn professor © um antrop6logo, desde cedo bastante motivado pelo mundo sural e pelos cendrios ¢ espagos rurais daquilo a que dei ¢ damos nomes como: culturas camponesas, culturas populares, culturas nisticas ¢, de maneira especial em meu caso, as tradiedes populares de negros, mestigos brancos catdlicos, residentes em éreas rurais ou em cidades agrérias de pequeno porte. As mesmas culturas @ que demos durante os anos sessenta ¢ seguintes nomes mais politicos, como: cultaras dominadas, culturas oprimidas, culturas do povo e assim por diante. Tempos em que com freqtiéncia Cultua Popular costamava ser escrita com maidsculas ¢ deu origem aos movimentos de cultura popular de que participei através do Movimento de Educagéo de Base™®, Nascido em Copacabana ¢ depois morador da Gavea, dois bairros de classe média de uma grande cidade, nunca me interessei por temas ligados & antropologia urbana e mesmo o limite de minhas pesquisas sobre a religiio foram cidades interioranas de porte médio om pequeno, como Tiapira, Sdo Luiz do Paraitinga, Goids (cidade de), Pirendpolis, Mossamedes ¢ outras. Em uma outra diregfo, tal como aconteceu com varias pessoas lembradas aqui, dei continuidade a uma “vida militante”, junto a “movimentos sociais de igreja” ¢ a experiéncias de huta e resistincia durante todo 0 periodo dos governos militares, de que as Comumidades Bclesiais de Base ou aquilo que na Diocese de Goids costumavamos chamar de Igreja do Evangetho. Boa parte de toda a minha participaciio de entéo foi através do Centro Ecuménico de Documentacao de Base, da Diocese de Goids e, em menor escala, de outras, como a de Sao Felix do Araguaia. Portanto, a0 longo de varing anos, dentro da academia © através dela ew pesquisava, escrevia € lecionava sobre “os outros”: negros, pobres, bbias-frias e camponeses sitiantes, parceiros ‘ou arrendatérios de terra, mas também: “reis”, “princesas”, “‘generais”, “mestres”, “capities”, “congos”, “foli6es”, “capeldes”, “benzedeiras”, “folgazSes", promesseiros” © outras diversas "60 nome sempre lembrado & o de Paulo Freire. Sou livre, Pedagagia do oprimido & wma referéncia ainds essencial. Osmar Favero reuniu em Culura popular e educacdo popular ~ meméria dos anos sessenia, os mais poltmicos & rlevantes documentos da épaca, 16 categorias de fiéis devotos @ artistas'”. A margem da academia eu assessorava “trabalhos da igreja popular” ¢, uma yez ou outra, realizava pesquisas antropoldgicas a servigo de tais trabalhos, ou derivados de minhas vivencias entres os seus praticantes. Exemplo: Como uma proposta: de acordo entte-o-Centro Ecuménico-de Documentagéio-e Informagdo ¢ a Diocese de Goids, participei de uma longa pesquisa munca publicada, e que entre nés tomou o nome de: A lereja do Evangelho. Dela participou também Eliseu Lopes, euja serena sabedoria ao longo dos anos foi um de meus methotes aprendizados. Foi na Diocese de Goids que vivi as dinicas experiéneias completas e bem concluidas de pesquisa participante'™. ‘Na seqiGncia, nos anos oitenta participei de um iongo trabalho de pesquisas sobre 0 catolicismo no Brasil de entio, Ele foi uma iniciativa do Instituto de Estudos da Religido, do qual fiz também parte por muitos anos, e foi coordenada por Pierre Sanchis'”. De maneira quase simbélica, mais do que académica, para um dos volumes escrevi um estudo sobre “eles”, os outros: A parliliu do tempo. Um momento de antropologia do Campesinato realizado junto a pessoas ¢ familias de uma comunidade eneravala na Serra do Mar, entre Taubaté, no Vale do Paraiba e Ubatuba, no Litoral Norte de So Paulo, chamada Catugaba e pertencente ao municipio de Séo Luis do Paraitinga. Um dos iltimos redutos brasileiros ¢ paulistas onde todos o8 anos, com solene pompa © alogre festa, comemora-se nas ruas ¢ também dentro da igreja a Festa do Divino Espirito Santo”. desta quadra de tempo a minha pesquisa sobre 0 campo religioso em uma cidade de Sto Paulo, que desaguow em ‘minha tose de doutorado, Seu nome original fbi: Os deuses de Haplra~— um estudo sobre a religido popular. Mais tarde, tam outro parece noe: Os deuses do povo um esto sobre a religio popular, elf publcada em duas edigbes pela Béitora Bruslinse, Neste ano de 2008 o livso salu em nova edigfa, agora com a versfo completa da tee origin pela tora da Universidade Federal de Uberlindia ~ EDUFU, Outros diferentes estudos sobre ocatolicsmo popular, mencionados aqui, foram também deste tempo que val dos comegos dos anos setenta alé 0 presente momento, Umma delas, a primeira, tomou o nome de O melo grito, titulo sugestivo de Fdalice, uma das mutheres do povo pacieipantes da pesquisa. Ela fot publicada pelo CEDI e pela Diocese de Goiés erm dupla verséo. Ums dirgida 1s Zgonies de pastoral, redipida por mim. Outre dirigida aos agenies da basc, © escritm por uma pequena comissio nvoivendo agentes locas e coordeiada par Paulo Michatizen. A entra, publicsda em oito cadernos de crculagao lot e poptlar, também redigida por inim em sua versdo final, oeupau um grande nimero de “agentes” de um lado e do out. Plt f, em bos medida, pensada e coordcnada por José de Souza Martins e a mais complet © cansistents experiencia de pettha do seber que conhogo. © ISER constituiu um Grupo de Estados do Catolicismo que nos reuniu pa Ladeira da Gléria 98 durante alguns fecundes¢ felizes anos. De nosso trabalho sempre bastantes dialogado, entre Tongas reunes de estado e de patithn de posses pesgusas,resltow ume tdlogia de Tivros, todos eoordenalos com sabedoria por Piere Sanchis, Eles foram: Cuiolcisme, modernidate ¢ tradisdo; Catoliciemo, cotdiano ¢ movinentos; Catolicismo: unidadé religiosa « pluralismo cultural. Foram todos publicados, com iguais.e. eclesiésticas capas brancas, em co-edigiio do ISER ¢ da Esigées Loyola. A eauipe reunie pessoas divididas quase todas ene @ sociologia ¢ a antropologia: Pierre Sanchis, Francisco Cartexo Relim, Cisment Cinira Macedo, José Ivo Follmann, Regina Novaes, Ana Maria Doimo, Nair Costa ‘Mids, Telma de Souza Birchal, Mathias Martinho Lenz, Patricia Birman, Raymundo Heraldo Maués, Pedro Ribeiro de Oliveira, ™ De meus estudos na regio derivaram dois livros: A partithu da vida, e O trabulho de saber ~ cultura camponesa e educago reroh, Partcpel também do documents drigo por José Inicio de Sa Paentc, ‘A Divi festa do pov. v Para um outro volume escrevi um estudo sobre “nés”, os cristios situados, frente 20s camponeses de Catugaba, do outro lado das culturas: a profana e a religiosa. Uma incémoda ¢ persistente clivagem visivel e vivide, que desde pelo menos os anos herdicos da década de sessenta nos acostumamos a chamar de “cultura erudita”:(a-nossa,,ou a.das.que pesquisam e eserevern... mas ilo sabem dancar) e/versus a “cultuca popular” (a deles, ou a dos que sto pesquisados, deseritos e escritos... mas sabem dancat). ‘Meu texto no volume Catolicismo — unidade religiosa e pluralismo cultural, tommou este nome: Crenca e identidade — campo religioso e mudanga cultural, Ele se volta a nbs, os que enti nos sentlamos “comprometides com © povo” e, ao mesmo tempo - como no meu préprio caso ~ 0 que escreviam textos “sobre 0 poo”. situados entre a pratica pastoral ¢ a académica, Assim sendo, a partir do que se vivia entio na Diocese de Goids, ¢ entre paralelos como 0 ser-catdlico © 0 ser- evangélico, on o sex-catélico “erudito” (cu, © qué?) ¢ 0 ser-catdtico “popular”, meu estudo buscava algumas respostas ndio tanto a perguntas como: “o que € crer?”, ou “como € que se cré?”, ou, ainda: em que se eré ou se pensa que se oré?”. Questdes talvez mais para teblogos (ateus ou nfo) do que para antropéloges (idem). Minhas perguntas visavam de preferéncia algo a respeito de: “como é que uma pessoa se identifica como um alguém-que-cré-no-que-cré ¢ vive-o-que-vive?”, ‘Naquele entio, para pensar como acontece o reconhecimento e/ou a atribuigio de uma identidade através da religito, tomando o ser-catdlico no Ambito da Diocese de Goidis, terminei por estabelecer trés alternativas possiveis, Trés qualidades de identificag#o de acordo com o tear da pertenga a uma fé, a uma religifio efou a uma igreja. Utilizando uma formula entio bastante corrente entre n6s, defini como uma primeira eategoria, a das pessoas que se reconhecem como sendo: “a igzoja em Goiis”. Eis o que escrevi na ocesifo. A énfase no artigo & aqui muito importante. Na verdade é ela quem estabelece a ‘iferenca entre fidis aparentemente préximos. Religiosos ou leigas, gente “do iugar”, ow vinda de fora para trabalar na Diocese de Golds, (aqui esttio) aqueles que se reconhecem coma autores ¢ sujeitos identificados com a “linha da pastoral popular’ considerando-se nia apenas possoas ds igreja, como seriam os “outros cauélices, ainda no ativamente “comprometidos”, mas aqueles que fazem a pripria igreja local. (1992:56). A diferenga essencial estaria, entio, na proximidade e na oposigao de/entre dois verbos: pertencer ¢ pasticipar; ou entre dois qualificadores: praticante versus participante. Pois uma segunda categoria do ser-catélico estaria reservada aos que se reconbecem como também catélicos, mas “da igreja de Golds”. Desde 0 ponto de vista dos que se reconhecem como sendo © constituindo, pastoral 6 profeticamente, “a igreja em Goids” (cu incluido), seriam “da igreja de Goids” praticam a 18, vida rotineira e eclesidstica da igreja, sem se identificarem, entre 2 crenca e a pritice, com a “linha da Igreja de Golds”. Aqueles que mesmo quando praticantes fervorosos, freqiientadores de missas, sacramentos e festas de igreja, nio pecticipavam de uma “nova maneira de ser igreja”, enunciadora do-essencial dos evangelhos ¢ ativamente comprometida com a causa popular, em-nome de uma, profética re-leitura pés-conciliar dos proprios evangethos © sua mensagem. Em muitas casos tais pessoas, antes de serem assim pensadas pelos que se reconheciam como “a igreja em Golds”, afiemavam.se, eles préprios, como pessoas catdlicas de igreja, mas situadas 4 margem ou mesmo em. aberta oposigtio A entio “linha pastoral da Diocese”. Finalmente, uma terceira altemativa abria-se aos que se consideravam como pessoas catolicas, por tradigzo de farailia ou op¢alo pessoal de fé confessional, mas nfo praticantes ou nio- afiliadus & igreju. A qualquer vivencia institucional © eelesiéstica de sua f6 © de suas préticas religiosas pessoais. Seriam aqueles que em meu texto denominei como 0 “ser da religiio, fora da igreja”. Devo transcrever aqui uma longa passage de meu texto de entio. Observemos que ele preserva algo do saber e do sabor da época. i ele podert ser itil mais ediante, quando chegar o momento de nos perguntarmos se esta critica (nos dois sentidos da palavra) posigso de crenga e pertenga, nfo € bastante semelhante aquela que hoje, em boa medida, identifica alguns varios de nés, Entendamas hem as diferengas. Fin grupos anteriores de elassificugiin dixpamos agueles que se separam de wena presenca diocesina ¢ paroguial por ndio concordarem- hostil ou evasivamente com o prajeto e o processo de conducio da “vida de igreja", reforcando, no entanto, dentro dela, movintentos e grupos de resistencia religiosa e/ou politica (a linha pastoral da Iereja de Goids). Isto é muito diferente de um recuo assumido a wma indivtduatizagdo de crenca e da prética catélicas. Aguile que no passado costumeiramente assoctava-se a alguma coisa como: “ew nito concordo com essa igreja icusagbes de bispos e padres “comunistas"sdo sempre lembradas), ou: “ew nao aceito 0 que aconteceu com a igreja de uns tempos pra ci”. Aparentemente priximas essas so duas alternativas de experitncia catdlica muito desiguais. De um lado 0 que existe é um afastamento intencional ¢ organizado de uma modalidade de trabalho de producio e oferta de bens religiosos que provoca wma reagio simbélica e politica de producao e oferta de bens e servicos alternativos. Rens e servigos de que 08 mais importantes 80, sem divvida alguma, os de atribuigdio de sentido a0 ser catdlico, associadas a wma ativa ou moderada participagdo do fiel em uma poquena ¢ accita dissidéncia de igreja, dentro de uma mesma religid. Aigo qué, nto esquegamos, nas dioceses ¢ igrefa definitivamente conservadoras, transforma em dissidentes aqueles que sdo acusados, ° itegitima e usirpadora do poder eclesidstico ¢ pastoral.” De outra lado o que existe & uma espécie de explicacdo renovada para um modo universalmente consagrado de ser catélico, que consiste, como vimos, em uma individualizagiio da experiéncia ¢ do retrato com que a pessoa se v8 sendo e vivendo seu catolicisme, Estranko que estudos ¢ escritos sobre a igreja catélica no Brasil com fregiténcia esquecam @ lugar ¢ a importéncia desta “massa catélica”. Uma presenca 19 ‘por certo muitas vezes maior do que as pequenas fragbes militantes a quem eles com razdo se dirigem. Corretas do ponto de vista estritamente teolégico ¢ pastoral, eles podem estar bastante equivacades ante uma anélise mals objeiiva de que de fato facontece com a cultura e a experitncia catélica no pais Afinal, é possivel gue, rea pritica, a vide da Igrefa esta endo algo bastante ifernte da vivencia da religio entre 0s carsticos: (1992: 60 € 61). ee E esta persistente © talver erescente “massa” dos catélicos-de-religiio, mas sem-aigreja, deva ser somada agora a outras, como a dos “cristios n&o-confessionais” ©, portanto, no canonicamente catélicos, Ou como a dos “jé-nflo-cristdos” como fé religiosa ou crenga eclesial, mas abertos aos valores de vida dos evangelhos, Ou seja, muitas ¢ muitos de “nés mesmos”, agora. © que viyemos ¢ somos agora? © qué? Quem?. Nés que trilhamos 0 ser-cristdo-cat6lico entre a Agito Catdlica e os Movimentos de Cultura Popular entre o fina! dos aos 50 ¢ os anos 60. ‘Aqueles que depois viveram intensamente, como tantas ¢ tantos de nés, as vocag6es renovadoras coneiliares ¢ pos-concitiares, que na esteira de nossas proprias ousadias anteriores nos abriram dificeis portas e nos apontaram no menos desafiadores horizontes que desaguavam na Teologia da Libertagdo, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas “Igrejas do Evangelho’”? Nés que nos abrimos = em tempos de novos fundamentalismos e, em direeZo oposta, tempos de uma mercantilizagtio desenfreada do sagrado - a redescobertas que nos obrigam a despojamentos antes impensiveis de nos-mesmos. Que nos desafia agora a saltos em diregiio a aliangas ¢ comunhdes com “outros” cada vex mais diversos ¢ cada vez mais aproximados de ¢ a nbs préprios justamente por causa de suas diferengas culturais e, no interior delas, religiosas. ‘Lembro-me dos timidos primeiros passos de nossa vocagao ecuménico-orista dos tempos de surgimento, em minha vida, do Centro Eeuménico de Documentagéio ¢ Informagao ¢ do Instituto de Estudos da Religido. Lembro-me da abertara deste primeiro passo de acolhida do diferente ¢ dos saltos seguintes a que ele nos obrigou. Lembro-me do que aprendi com pessoas do Conselho Missiondrio Indigenista e da Teologia da Inculturacdo. Em meio a catilicos ¢ a outros cristios empenhados em dedicar suas vidas 4 conversto de “pagiios” negros do candomblé ou indigenas da Amaz6nia, ejs-nos diante de missionarios catélicos que se negavam qualquer ago conversionista € me ensinavam, como ouvi de um deles, que: “a minha misso como missionario inculturado é fazer tudo 0 que puder para que os indios com quem trabalho creiam e vivam a sua propria fé indigena tradicional em toda a sua plenitude, Porque o ser- cristo neles no € 0 converter-se ao meu cristianismo, mas o viver a sua prépria ancestral experiéncia religiosa e espititual de seus deuses”. 20 E alguns passos e saltos maiores foram e seguem sendo dados ainda. Recordo 0 Mosteiro da Amunciagio do Senkor, também na Cidade de Gods, Nas ceriménias rituais de cada manhi celebrivamos um dia “em comunhio com os noss0s irméios budistas”; outro com os mugulmasos, outro.com:os praticantes dos cultos religiosés de tradigaio afro-americana.E nos-consideravamos ~ a menos que eu mesmo esteja colocando sobre este “nds” o que eram as palavras de mes proprio desejo —“cristlios de tradig#io catélica”, Homens ¢ mulheres praticantes ¢ participantes de uma entre tantas vocagdes de 18 ¢ de pritica pessoal ¢ solidéria da religifo ¢ da vida espiritual, todas elas tradigdes to “verdadeiras” ¢ santificadoras quanto a nossa, a “catélica”, uma entre tantas outras ‘radigées histéricas ¢ culturais de uma mesma religido: o eristianismo. E, ela mesma, uma religifio ‘entre as muitas moradas de £6 em que um mesmo deus de multiples rostos se da a ver, ¢ promunciado © é acolhido pelos humanos. Alguns anos apés 0 término dos trabalhos de nosso grupo de estudos do catolicismo no ‘Brasil, do SER, ¢ da publicagio dos seus trés volumes de escritos da equipe, elaborei ainda alguns outros artigos. Pensei que seria a minha tltima participagtio por escrito em temas como este, pois por meu gosto o mundo de pesquisas no campo da religio estaria limitado as tradigdes religiosas populares do catolicismo camponés, tal como no titulo de um de meus primeiros livros de antropologie da religito: Sacerdotes de viola. No quase final de um dos escritos do men “outro lado”, tentei sintetizar desta mancira o que pensava entio a respeito de “tudo aquilo”, . Posso estabelecer com 0 outro o diétogo na exata meidida de nossas dijerencas, pois criamas entre nés 0 ditilogo porque somos diferentes. E para sair dele diferentes: do ‘outro ¢ de nds mesmos, antes dele. Num didlogo religicso franco, posso acredivar que a possibilidade de minha fé é a desigualdade deta, que me & dade pelo outro. De algum ‘oda, posso crer que é 0 rosto do deus do outro que desenha, que torna visivel, 0 do meu. Pois € no meu desejo verdadeiro de seu entendimento, de procurar com todas as minkas forcas compreendé-lo, por niio ser o meu, que eu compreendo 0 meu, a minha Sf. a mint". ‘Trago esta pequena passagem de alguns anos atrés, porque acredito que em boa medida nela realizei uma frigil, mas acreditével stimula da abertura daguilo em que, solidiria © diversamente, acreditamos que cremos; daquilo que cremos que somos; que imaginamos partilhar com aqueles com quem estamos juntos, “companheiros de- destino”. E mais, daquilo que fundamenta o que pensamos a respeito mundo em que vivemos, ¢ 0 que achamos que podemos fazer | Bsté na pagina 132 de: O roste do deus do outro, um dos trés escritos que reparto com Jadir de Morals Pessoa, ¢ que tem este mesmo nome no plural: Os rostos da deus do outro ~ mapas, franteiras, identidades e olkares sobre a religito ‘no Brasil, © livro & de 2005, 2 para transformé-fo, entre os que ainda acreditam que algo partido de nds ¢ de outros pode ser ainda feito para transformer humanizadoramente © mundo de nossas vidas, Uma abertura que em alguns de nés pode significar uma perda de toda a fé de antes. |A mesma que em outros representa, 20 contratip,-uma fecunda ~ com todos os-seus enormes riscos..abertura da propria f;.em nome da acothida do outro, seja ele um deus ou um homem. 4. Ends? O que somos e no que cremos... agora? Em que lugar ficou © que agora me fez falta oque nao sei nem mais o nome 0 que antes fot tao querido e era guardado no boiso de dentro, no intimo no centro de mim cercado por minha pele feito eu mesmo? Armando Frets Filho Langa vida - 67 Lembro que esie “nés” a que me tenho referido 0 aqui deve ser entendido em uma dimenséo muito simples © até mesmo familiar. Ele comega em mim-mesmo, minha biografia e minhas incertezas de antes ¢ de agora, E ele se estende a pessoas, algumas ainda entre nés, outras que j4 partiram (¢ terio visto “tudo”... ov “nada” do outro lado) que partilharam de um modo ou de outro os trajetos de “vida de igreja” de que tenho falado aqui. Trajetos que ex pretendi iniciar na Agia Catélica dos anos 60 e que se estendem até, por exemplo, o livro A arte de semear estrelas, de frei Beto. ‘Otho para dentro de mim (o mais dificii dos espelhos) ¢ olno a0 meu redor, e vejo o que? ‘Vejo e percebo algo que compreendo? Compreendo alga que possa ser unificado como uma “visto comum”, como uma “vocagao partilhiada”, cémo ui “mesmo horizonte de uma mesma uma ¢ miltipla £2"? Ou tudo © que vejo ~ bem & moda de nosso tempo ~ séo fragmentos, colagens de 2 ke liveo fol publicado pela Nova Frenteire, do Rio de Janeiro, em 1982. Anos mais tarde saiu a obre podtisa completa de Armando de Freitas Filho, um velbo companhelro dos tempos de colégio no Rio de Janeiro. imagens de mim e de nés mesmos em dlbuns-clo-ser-quem-sou fo frageis e mutiveis quanto tudo o que parece existir ao nosso redor? Faz nos compro é utilize todos os anos a Agenda Latino-americana Mundial. A palavra “mundial” foi acrescentada nos_ltimos anos” Nae apenas uso & Itio- i Agenda —porgue’ ela: é iambém um livro a muitas méos, mas 4 recomendo a cada fim de ano, enfaticamente. Entende-se que ela é uma agenda cristi de tradigio catblica, © as apresentagdes de D. Pedro Casaldaliga e de José Maria Vigil, nas primeiras paginas de todos os anos, devem set um confivel atestado de ‘origem. Mas as suas palavras de abertura abrem com. outras palavras o antincio do que a agenda é ¢ aque e quem se destina, Assim. livre latino-americano mais diftmntio, cada ano, dentro’e fora do Continente. Sinal de comunhdo continental e mundial, entre as pessoas e as comunidades que vibram e se comprometem com as Grandes Causas da Péiria Grande, como resposta aos desafios da Péiria Mator. Um anuério de esperanga acs pobres do mundo a partir da perspectiva latino-americana. Um manual companheiro para ir criando a “outra mundialidade”. Uma sintese da memdria historica da militéncia”. * Seus temas, suas referéncias ¢ seus artigos deixam clara uma visto religiosamente eristi, vocacionalmente pan-couménica © politicamente critica e conforme a iradigtio da Teologia da Libertagio. A onda dia pelo menos um “santo do dia” & moncionado, mas um destaque bastante maior & dado 2 acontecimentos latino-americanos do passado e do quase presente, ov a acontecimentos mundiais, Assim, cis o que esti dito para a segunda feira, dia 1 de setembro, em que escrevo isto. Arturo 1 Cor USES Luc 4, 16-30 Noite da ascensdo de Maomé, transferido da Mecu a Jerusalém, de li uxcendew ao i, 1971: Julio Expdsito, estudante, 19 anos, militante cristdo, mértir das Tutas do povo uruguaio, assassinado pela poticia. 1976 ~ Adriana Coblo, militente metodista, martir da causa das pobres, em Buenos Aires, 1978~ Surge o grupo Unido Consciéncia Negra (mais tarde dos Agentes de Pastoral Negros). 1979 — Jesus Jiménez, camponts, Ministro da Palavra, martir da Boa Nova aos pobres ‘em Et Salvador, assassinado. © iinico andincio para o dia seguinte, 2 de setembro, & 0 do “Primeiro dia do Ramada (1429), A Agenda, desde a sua primeira edigio, revela-se unr instrumento de critica da globalizagfo neo-liberal, apresentads ano a sno como a grande “idolatria” de nossos tempos, e a ela opSe um projeto de universalizeedo planetarizante das pessoas e comunidades dedicadas & construgdo de “um ® Tpto esté escrito logo na pagina de abertura da edicfo de 2008. 0 tema deste ano é: a politica morreu, viva a poiticul 23 outro mundo possivel”. Ao lado disso, é muito clara a sua vocacko pan-ecuménica, desde uma confissto cristé de origem. Haja visto a anincio da “ascensdo de Maomé", que precede a lembranga de que no dia seguinfe comega o longo periodo purificador do jejum dos mugulmenos. Nao moe Jembro de-referéncias totalizantes ¢ esperancosas.a um “Corpe Mistico de Cristo”,-e o-antincio de - um “Reino de Deus” associa-se & construgo terrena e politica da “Patria Grande” o, por extensio, da “Patria Mator” a Terra planetarizada de homens © mulheres livses e reconciliados entre eles ¢ com um deus pai e presente. ‘Talver esta Agenda Latino-americana seja, mais do que livros e melhor do que manifestos, © documento mais fiel e mais amplamente accito de uma pluralidade de diferentes pessoas que, como eu, desde uma origem primeiro catélico-confessional e, depois, militantemente cristi- vocacional e pan-ecuménica, vivem uma mesma e méltipla diéspora solidaria e solitaria, Quem sou eu? Em que creio? E nome do que e de quem vivo o que me parece bom, belo © verdadeiro viver? A quem me sinto en “ligado”? B seri que palavras como: “rigajado em”, “comprometido com” e “militante de” ainda me soam nao apenas familiares, mas indicadoras de minha mais assumida vocagiio © de minha propria identidade? Crejo que estas perguntas, formuladas no singular ¢ que so, mais existencial do que teoricamente minhas, valem de mancira. igual para a comunidade de “nés” proximos de que me imagino parte. ‘Na Agenda Latino-americana assiin como nas agendas pessoais ¢ interiores de varios entre nés, 08 fatos € feitos do que canonicamente poderia ser considerado como a Igreja Catélica ‘Apostélica Romana, estéo ausentes ou silo raros e discretos, Néo hd documentos pontificios de ‘rientagdo pastoral, mas alguns militantes no-cristios, como penso que seja o caso de Eduardo Galeano, possuem paginas reservadas para as suas idéias. Ela fala a uma comunidade em diaspora, congregada em uma identidade ao mesmo tempo religiosa, pastoral, ideolégica e politica que nfo ccabe por certo no idedrio de qualquer igreja confessional de tradigio cristf. A relagio dos “mértires” brasiteiros, latino-americanos e, em menor proporso, de outros povos, é quase toda de militantes cristéos ou associados @ alguma causa popular. Assim também 0 anincio dos acontecimentos antigos ou mais recentes, envolve eausas hutas de povos indigenas ¢ movimentos populares. Nao devo entrar em maiores detalhes e sugiro @ quem no 2 conheca, 2 sua leitura. E Jembro que a de 2009 deve estar seindo. - ween “frouxe 0 seu exemplo porque acredito que a Agenda Latino-americana contém, talvez mais do que 0 de Nicéia, a sintese daquilo em que muitos de nbs aoreditamos, ou imaginamos que, pelo em parte... cremos. O que me faz recordar a resposta de um sacerdote da Diocese de Gots, m4 quando hé mais de vinte anos, preocupado en mesmo com pequenas questBes de £, perguntei a ele qual a qualidade de crenga a respeito da virgindade ¢ da assungiio de Nossa Senhora, de ressurreigto da came, da existéncia tenebrosa do purgatério e, pior ainda, dos infernos. A resposta dele foi simples ¢-curta. “fz muito tempo que ew ni penso én nacla disso!” Continuamos a vonversare ele, com caima e sabedoria, me foi ensinando a separar o “entutho” da “orenga” e a “crenga” da “fe” Enifio eu perguntei a ele algo como: “afinal, no que voc8 cré?” E ele, entre o evangelho e a fiel heresia respondeu: “eu creio numa comunidade que c78, ¢ que vive do que cré”. Um tanto mais vago e facénico, mas nem por isso menos atual para os dias de agora, Jembro-me que quando perguntei a um ex-companbeiro de Juventude Universitaria Catélica, apes cerca de dez, anos de ditadura’militar, no que ele ainda acroditava, ele, um entio engenheiro, respondes entre sorrisos isto: “Eu por agora acredito em duas coisas. Primeira: tudo 0 que existe esté mudando, Segunda”: toda esta mudanga deve ter um sentido”. Fomos por algum tempo uina pequena confiaria de leitores de Pierre Teithard de Chardin, ¢ creio que a0 tempo de minha pergunta meu querido amigo engenheito acreditava ainda na esséncis de suas idéias, Devo dizer que, tal como frei Betlo, Leonardo Boff ¢ Marcos Arruda, sou ainda um leitor de Teilhard, ¢ malgrado os anos de leituras obrigat6rias de escritos de antropologia que 0 contradizem, ainda me considero um alguém que sonha no deixar de crer nem na noosfera € nem no Ponto Omega. Pois olko uo meu redor & o que vejo. Rubem Alves declara em uma entrevista publicada em um jomal que se considera um “teblogo ateu”. Nao faz nmuito tempo perguntei a ele, num repent ousado, quando faldvamos sobre a morte (um dos seus temas mais temidos ¢ desejados): “Rubem, pra onde vocé acha que vai quando morrer?” E ele me respondeu como quem passou da ditvida & certeza: “Vou voltar para o lugar de onde eu vim a milhdes de anos!” E com um gesto do rosto apontou a terra é, nfo, 0 céu, Leio o dltimo livro que frei Retto carinhosamente me enviow: A arte de semear estrelas. Neste livro em que Betto se excede em clareza ¢ beleza, leio mais um apelo ao desveto do corpo do que a salvagdo da alma. Por isso, talvez. este livro menos catblico, pastoral ¢ politico do que os outros, terd sido até agora o sen escrito mais humanamente cristio. F se Leonardo Boff escreveu a pouco um livro sobre S80 José, tera sido para revelar nele mais o “homem humano” com nés somos ou podereinos ser, do give 0 santo piegis &in que 0 ttansformaram., £ isto depois de haver escrito varios livros em que a “Mae Terra” quase ocupe o lugar sagrado e supostamente tinico do “Deus Pai”. “Escritos mais sobre o que fazer com a Terra do que sobre o que esperar do Céa, em 25 que o apelo-a uma caridade cristf restrita aos humanos estende-se 4 compaixao dos budistas. Uma caridade onde cabem todos os seres que conosco compartem a vida na Terra. LLeio a s6s e com meus alunos os dois primeiros volumes da trilogia de livros de Marcos ‘Arruda publicados pela Editora VOZES (0 teroeiro esta a caminho. E neles-encontro-a polissemia de afetos, de idéias, de propostas do pensar e do agir e de autores que sonho, sem os mesmos efeitos, colocar em meus préprios livros, No primeiro volume da série: Humanizar 0 infra-humano — a formacdo do ser humano integral: homo evolutivo, préxis e economia solidéria Marcos Auda abre-se a uma leifura da pessoa humana, de seu destino € do sentido de seu agir na histéria, que transcende até mesmo as fronteiras mais abertas do que temes chamado de pan-ccumenismo. Bie ‘ndo apenas acata 0 diferente, mas pensa através da integragto de/entre diferentes. B, assim, pensa a ‘mensagem crist& através das propostas dos paradigmas emergentes no mundo da ciéncia, onde se unem Pritjof Capra, Tlya Prigogine e Leonardo Boff. Ble re-escreve Teithard de Chardin através de Sri Aurobindo, ali, onde Marx e Buds podem compartir uma igual esperanga num “outro mando possivel’ Quero imaginar pelo menos dois lugares-de-escolhas situados a um lado e do outro do que imagino serem as opgdes de f€ destas e de outras pessoas conhecidas © amigas. Fago isto, ja que acabo de citar a pessoa de Bude, para sitar Marcos, Betto, Leonardo, Rubem ¢ eu mesmo num possivel “caminho do meio”, tio caro ao budismo, entre dois outros, se nfo opostos, pelo menos bastante divergentes. Mais adiante desdobrarei este exercicio de busca de auto-compreensio. Em um ponto ov um lugar-de-escolhas — ampio o bastante pera converter-se em uma grande linha com vitias e diferentes opgtes - reconheso pessoas, homens © mulheres de minha geragio © de um semelhante “tempo de vida engajada na igreja”, ¢ que se afastaram dela, do cristianismo ¢ de qualquer opeto de vida religiosa de uma maneira completa, ou quase, Entre as mais préximas, convivo com amigos para quem as perguntas que fiz acima —e que me faco com freqdéncia —jé nfo fazem mais parte de conversas e, segundo alguns, sequer de qualquer plano de preocupagdes cotidianas, Cristo terd sido um judeu ousado e um homem exemplar, Mas viveu a sua vida © rmorreu a sua mozte coma tantos outros, antes ¢ depois dele, Deus nio existe. Ou, no limite. se existe, nade fem a ver com o deus teista, amoroso ¢ implacivel da tradigdo judaico-cristi. Melhor seria crer na “religiio césmica? proposta por Albert Einstein, ele mesmo um.judeu desorente do YHVH de seus pais, para poder crer em um deus real, mesmo que cosmicamente abstrato. Esssas pessoas ao meu redor e espathadas por todo 0 mundo sto tio imimeras ¢ densamente diversas, que deveriam ser tratadas com mais inteligéncia em nossos censos. Chamé-tas de “ateus” 26 ‘ou de “agnésticos” serve apenas como um rétulo. © mesmo vale para um vago “teista”. Assim como, pior ainda, qualificé-las de modo geral ¢ empacotado como “Nova Bra”. Algo semethante a pensar que mé:mons, festemunhas de Jeové, batistas, anglicanos, luteranos, espiritas, pentecostais € catélicos sto todos? genericamente: ctistios. any : LP Dentre elas vejo ainda uma diferenca essencial. E penso que, com outras palavras ¢ sentido, ela vale também para as pessoas habitantes de uma refigitio. A um lado devo pensar naqueles que ademais de nfio-religiosos, ou “ndo-crentes” so também descrentes em qualquer origem dotada de sentido e de direco para os seres humanos, a vida ¢ o planeta Terra. Nao apenas deus nio existe ~ ou se existe nada tem a ver com 0 que acontece conosco ~ coma qualquer intencionalidade de origem ¢ finalidade de destino constituem uma dupla iusto. Tudo o que hi ~ se E que algo ha ¢ 0 proprio existir ndo é também uma fantasia — € obra do acaso, E se um deus existe, “acaso” seria o seu melhor nome. De outro tado — ora mais proximos, ora mais distanciados - esto aqueles e aquelas que, situados fora da religifio e distantes da crenga em um deus criador e presente ov nfo pa histéria humana, acreditam que existe algo além do puro acaso entre a matéria ¢ a energia do universo ¢ @ humanidade. B, no que nos toca como seres hurnanos, baste trocarmos a idéia de deus pela de homem para conquistarmos, aqui mesmo no dinico lugar viével da vida, ao mesmo tempo a nossa liberdade ¢ # nossa responsabilidade por nds mesmos. Quem conhega um bom marsista saber’ de quem fato, E seria preciso lembrar que entre os precursores conhecidos entre nés dos novos paradigmas ¢ das propostas de instauragdo de outras completas e complexas maneiras de sentir, de pensar, de criar e de agit, no parece haver entre os mais lidos e conhecidos, de Edgar Morin a Boaventura de Souza Santos, nenhum que se apresente como cristéo, Ao que eu me lembre Teilhard de Chardin € muito raramente lembrado entre eles ¢, em direpfio oposta, entre Marcos Arruda e ‘Leonardo Boff todos eles e vérios outros sto referéncias essenciais. Este € 0 momento de irmos até o outro Tugar-de-escothas situada do outro lado de nosso “caminbo do meio”, aquele em que me reconheco uma caminhanto. Frei Retto © Leonardo Bot, assim como Marcelo Barros estariam situndos aqui, bem mais ¢ gosto do que no lugar imaginario — ‘on pessoal ¢ socialmente real ~ em que ie-vejo 20 lado dé Marcos Arruda, de Rubem Alves e de tantas outras pessoas, vindas de uma mesma origem “cristé de esquerda ¢ ecuménica”. Deis conhecidos e exemplares bispos amigos poderiam ocupar um lugar ainda mais confessionalmente A 27 definido, mesmo quando apontados por outros como progressistas em excesso ¢ pouco ortodoxos: D, Tomas Balduino ¢ D. Pedro Casaldalige. Entre as suas diferengas ~ que imagino que sero também as minbas, ou niio? reconhego neles cristios de tradigdo caldlice figis a igreja; mas em, muito pouco. ortodoxos nela-ou para com ela. A comegar pela confissio de um pan-ecumenismo bastante mais aberto € acolhedor da pessoa, da vocagio ¢ da crenga do outro, do que os documentos oficiais mais ousados de qualquer confissto cxista A leitura radical dos evangethos, 0 re-encontro com a pessoa do povo como sujeito preferencial do ser-de-igreja, ¢ 0 acolhimento, para muito além de outras crengas e outros sistemas de sentido, cristo, religiosos ou nao, fundam entre eles uma “maneira de ser-igreja hoje”, de que as palavras da Agenda latino-americana so, recordo uma vez mais, um bom idedrio. Imagino que, vinte anos depois, qualquer um deles responderia as perguntas que ousei fazer a Bliseu Lopes, e que recordei linhas acima, de uma mancire bastante semelhante &s suas respostas. © mestno Foto Guimariies Rosa disse certa feita que “para muita coisa falta nome”. E é bem verdade, Falta um nome para mim. Falta um nome para dizer quem eu sou, Pra dizer quem somos, nds, habitantes © viajeiros desta mdltipla “diéspora da £6”. - para uma a teia de uma comunidade tensa, fecunda e unitariamente diversa e dispersa nio sei que vai de pessoas que ainda créem “numa comunidade que cré”, a quase desesperangados “teslogos ateus”, Uma comunidade de destino & de didspora que as vezes, ao ser perguntada assim: “o que voré 6"; ou “qual a sua religiio?”; ou, ainda, “em que vocé cr8?” em um primeiro momento se "Um nome ~ sera que isto & preciso espanta e descobre que “falta nome” para dizer em uma palavra ou duas que, afinal eu sou, no que ex ereio e do que eu fago parte 'N&o consegue - como cu nfo consigo - responder a estas perguntas com a certeza de um velho pedreiro em Itapira, quando, ha muitos anos querendo saber de sua ocupaséo profissional em minha pesquisa, humildemente perguntei a ele: “o que o senhor é?” E ele respondeu com es olhos no meu rosto: “Eu sou um preto ¢ um pedreiro pobre. Mas sou um create ¢ um salvo no Senhor? E jogo a seguir me perguntou: “e o senhor?”, E ja naquele ent&o eu nao soube ao certo o que responder. Faz tempo pesquise ¢ convivo'com as mais diversas escolhas de sistemas de sentido, entre a religifo fundamentalista e uma vaga “filosofia de vida”, ow uma fidgil ¢ errante “isto de mundo”. E agora, depois de tudo e de tanto, eis que eu me pergunto se no tera chegado a nossa prépria hora 28 de nos queremos saber quem afinal somos? Que crengas siio as nossas ¢ que nomes cabem a nés, para além dos rStulos da profissio ¢ dos titalos da academia? Respondo com um “sim’” 4 primeira pergunta, Mas reconheyo que no cabe tentar sequer. um esbogo de resposta aqui para a seguiida. Ao inivés isso prefiro retomar exercicios de ordenagio preciria do “quem sio eles e quem somos nés”, esborados em alguns momentos das finhas acima, ¢ pensar em que modalidades de: “pessoas que créem”, “pessoas que ainda exter”; “pessoas que jd ilo mais crtem”, Este 6, por agora, e a partir de experiéncias vividas ¢ pensadas, mais do que de leituras feitas c feorias consultadas a que me atrevo no presente momento, Assim sendo, quando olho e avalio a difusa comunidade-de-quem-somos-agora, a partir de uma bem mais definida ¢ auto-assumida comunidade-de-quem-fomos-antes, partindo de pessoas ‘com quem comparti, momentos da A¢do Catdlica no exato comego dos anos sessenta, até 0 difuso final dos anos oitenta e, sobretudo, ao longo dos anos de lé pata hoje, eu “nos” vejo distribuidos desta mancira, N6s, “‘militantes caidlicos” de antes, em que cenarios de uma disperse, mas viva visivel “comunidade de diaspora” podemos ser agora reunidos e agrupados? ‘Um primeiro cendrio —e que esta palavra tenha uma conotagfo mais mistico-geogrifiea do que politico-mididtica — retine as pessoas que permanecem sendo de uma religidio através de sé reconhecerem pertencentes a sua igrefa. Homens ¢ mulheres provenientes em maioria da teologéa da Ubertacie © suas vaciantes, das comunidades eclesiais de base da “linha pastoral” a que, recordo, davamos na Diocese de Goiés 0 nome de Igreja do Evangelho. Pessoais que mesmo quundo pouco preocupadas com os dogmas e doutrinas oficiais da Igrefa Catélica ¢ mesmo quando abertas a uma vocago pan-ecuménica que thes permite dizerem-se: “cristis de tradigGo catdlica”, entre prelados, padres e leigos assumem-se como uma “pessoa de igteja”” Um segundo cendrio & 0 que retine as pessoas que ainda se reconhecem de reli agora nfo mais de sua igreja. Mas € preciso notar aqui o que me parece uma diferenga essencial frente a algo semelhante com que nos encontramos paginas atrés, Creio —e serd que porque me reconhego como alguém em transigao entre este cenario e o proximo? ~ que agora nfo se trata mais da postura de quem se afirma “cristo” ou mesmo “catdlico”, mas senhor de sua prépria f& e autor de sens proprios gostos e habitos de “vida religiosa”. Nada ou poueo existe aqui do’ aqui’ de ‘cristianismo internlizado e individualizado to tipivo e conhecido do: “eu tenho a minha religito, sou catélico & minha maneira ¢ vivo a minha £8 come eu acho certo”. Ao contrévio, agui reconhego pessoas de uma ativa escola crista estendida talvez mais 2 uma ~ essa sim ~ comunidade de f& em didspora que, para prosseguir fiel ao essencial 29 do Bvangelho desloca-o tanto de suas amazras eclesiasticas da igreja quando de seus apelos eclesiais da religido. Enire uma ética, uma espiritualidade e um partilhado projeto de futuro pan-ecuraénicos gue, ainda mais do que no cenario anterior ~ fazem de “meu modo de ser, viver e erer” — um entre muitos, E tanto éransitam entre estudos, proces e. préticas. mulii-religiosas ~ a partir de um ainda fundamento cristo de origem ~ quanto desojam que entre as inmimeras diferengas entre sistemas de sentido nfo apenas eclesiisticos, religiosos ou mesmo espirituais haja didlogo, convergéncia, acolbimento e interagao. ‘Em um terceiro cendrio podemes esperar encontrar uquetes que, separados de uma igreja de origem, reconhecem-se fora também de uma tradigdo religiosa original. Pessoas que responderao com um forte e definido duplo nao - quase 0 “nfiozio” de uma passage do Grande Sertio: veredas out, no limite, como um “acho que ndo mais”, a perguntas como: “voc8 é catélico?”; “e eristio, ‘voot ainda 6?”. Pessoas convertidas a uma outra religido, entre 0 budismo e o isla. Ou pessoas ainda “buscadoras da f6”, ¢ senhoras de dois caminhos. Primeiro, O da constragdo pessoal ¢ “cosmicamente partilhada” de um pan-ecumenismo interiorizado. Pois agora, eu Zo acato e acolho todas as religides e espirituatidades com um sinal de convergencia com a minha escolba. Eu interiorizo em meu proprio modo de ser-e-crer esta propria pluralidade convergente, Segundo. O da adesio a uma religitio césmica ao estilo de Albert Einstein. Uma espiritualidade ~ até mais do que uma religio definida ¢ com um nome ~ que tanto sacraliza uma flor ou toda @ arquitetura do universo quando coloca o que existe de mais divino nele “dentro de mim”, Uma espiritualidade que por sua propria individuagao cosmicisante tende a afastar-se do deus teista e revelado da tradigio judaico-crist8, guardando dele apenas a experiéncia do amor fratemo, ao lado de uma esperanga éscatolégica que remete a Teilhard de Chardin, Mas uma 7 in uma secente entrevists ao jomal O Tempo, de Belo Horizonte, ume das fandadoras da conhecida comunidade de Findhorn, na EscOcia, erecém chegada ao Brast) como escala de sus viagem planetéria em nome de wma carapants para ‘que um mili ée dcvores sejam plentadas no planeta Terra, disse isto: Quarido estabeiecems contato com nossa Givindade interior, ndia podemes facer nada a nfo ser levé-la conosco donde quer que formos. Ent pademos nos Conectar com ela onde estivermas, pois Deus esté em todo lugar, inciuindo as cidades grandes. Podemos, por exerplo, ‘encontrar wma pequene flor em uni parque na cidade, perceber 0 divino neta, e entto caminkar pela vida no amor. Seu ‘home é Dorothy Maclean, ela tem 88 anos ew entrevista esté na pagina M5 da edie de 9 de setembro de 2008. Nao por facaso na sessfo sob o titulo: “esotérico, Creio que esta mancira de sentir, penser exer ¢ viver Deus 6 0 sagrado & partilhade por um nimero muito grande de pessoas E nfo apenas aquelas auto ou alter voraladas como “esotéricas” ou "Nova Era’. 2 No eequecer que ao tempo em que seus livros “faziam a cabega” de cristhosrilitantes por toda 0 mando, suas obras de cientista¢ de padre jesuita acabavam de serem tiberadas das proibigaes impostas pelo Vaticano, Creio que ele falecou sein ver isto acontecer, Sua heterodoxia seguiu e segue. sendo mal-vista em vastos cenésios da Igreja Carica. 30— > espiritualidade que ainda reconhece, bastante estendida ¢ a-cristionizada, a existéncia de “Ser Supremo” ou um “plano divino” na ordem do que existe e do que se transforma. Ha ainda um quarto cendrio. Ele aproxima infimeras pessoas cujos findamentos de um sisfoma —estavel ou transitério de crenga: e pratica — aboiem’ a pessoa e a existéncia — césmaica, interiorizada ou o que seja ~ de um deus, mas nfo a de uma césmica sacralidade nofdo que existe. ‘Nao ha um deus ¢ nem € necessario crer nele para crer. Mas a Vida (com maitisculas} ¢ ¢ Universo sfo sagrados ~ ou sacralizaveis ~ ¢ hé tanto nela e nele, quanto em cada um de seus participantes, quem quer que sejam, um sentido de ser. Finalmente — sera mesmo? ~ reconhego ainda um quinto cendrio entre aqueles que “foram comigo e como ex” e com quem ainda convivo. Tanto a ordem do cosmos quanto'a da vida (agora ‘com miniisculas), tanto 0 passado do que houve quanto o presente do que’ hi ¢ 0 futuro do que haveri, mdo 6 ¢ sempre foi obra do acaso. A histOria humana no pode ser humanamente transformada ¢ talver, nem mesmo compreendida, Deus, 0 cosmos ¢ a vida sio tio incompreensiveis ¢ ilusérios quants os escritos sobre INH, Jesus Cristo, ¢ Buda, ou tanto quanto tudo © que escreveram Marx, Teithard de Chardin, Paulo Freire ou Leonardo Botf. Entre os que me dizem que se reconhecem assim, quero fazer a justiea de reconhecer duas ‘vocaeses opostas. Uma a daqueles que dizem: “Justamente por isto o homem ¢ livre ¢ responsivel. £0 absurdo de sua responsabilidade é nao deixar de viver ¢ praticar o que ¢ devido, mesmo sabendo que 0 meu horizonte eo da vida & a morte: primeiro a minhe, depois, a dela’. Uma a dos que dizem: “se niio hi sentido em nada e nada far. sentido, enti importa viver, entre o prazer ¢ o poder, a préptia breve vida”. 5. Bew.. entre nds Se palavras e temas alé ha muito pouco quase desconhecidas entre nbs, estudiosos dos mistérios da religifio, tomam-se agora tio mais freqtentes e ameagam viver um tempo de domingicia tedrica, € porque nao apenas “eles”, os que estudamos entre proximos, vizinhos, distantes ¢ nativos, mas também nds, nos descobrimos vivendo mundos sociais ¢ vidas reais imagindrias em que nio apenas “tudo o que 6 sélido dissolve-se no ar”, mas em que até mesmo 0 que é“ar* parece mais volétil do quo a propria atmosfera terrestré que iricorporamos aos nossos corpos, para vivermos um minuto a mais, uma hora a mais, um tempo breve ou longo a mais. O préprio ar cultural que respiram nossas mentes parece cada vez mais tornar-se extremamente volatil, mutdvel, hibrido, fugidio. 31 Ei em perigo), como diferenca (palavra em que s6 pensamos quando nos surge o medo de virmos a nos as voltas com palavras como identidade (algo em que s6 se pensa quando ela est sex “como todo 0 mundo”), como hibridizacdo (patavra que aparece quando ~ tal como acentece com, os milhos ou as batatas, quande mais tornados menos: uma unidade. original, tanto melhor).e fronteiva (palavra que tomamos comum porque descobrimos que mesmo os mais centralmente situados podem ser os que mais se encontram em outras zonas de fronteiras, entre as desejadas ¢ as inevitiveis). E basta ver os trabathos apresentados entre nossos encontros, simpésios ¢ congressos, para vermos como em boa parte dos casos elas aparecem associadas a ameagas de “perda de”; a diferentes modalidades do violéncias de todo o tipo, inclusive as mais sutis e perversas, por serem as mais simbélicas; a exclusdes, expropriagdes, evasdes. Denise de Assis, a coordenadora da sesso: Nova perspectiva para o século XX - 0 didlogo entre ciéncia, religido e espiritualidade, inicia a apresentagao da proposta dos trabalhos a serem realizados aqui em nosso /I* Simpésio Internacional sobre Religiosidades, Didlogos Culturais ¢ Hibridizagées, com a lembranga de que de acordo com os censos do IBGE em 1980 “o ‘grupo conhecido como pessoas ‘sem religiio’ representava 1,6% da populagtio brasileira. No ano 2000 passou a representar 7,3%."° O dado impressiona, porque provavelmente este seré.o maior erescimento “confessional” fora o das confissbes evangélico-pentecostais, ‘Mas seria preciso ir além dos nimeros ¢ do que eles sugerom a um olhar mais apressado, Um olhar que conclua, por exemplo: “este € mais um indicador de que estamos nos aproximando 0 Primero Mundo”. “Talvez seja necessirio voltarmos a nés mesmos, tonto quanto aqueles a quem de modo ‘geral em nossas investigacdes no pergumtamos nada, porque eles nos parecem sem interesse cientifico algum até fato de que nés somos “eles” - 0 que afinal esté acontecendo, Em primeiro lugar esté ocorrendo algo que a todos nés parece evidente, s6 que ainda pouco compreensivel: tal ‘como outros campos sociais e simbélicos dos mundos em que vivemos nossas vidas, 0 campo da religifo “jé nfo é mais como era”. E nfo apenas porque mudam as porcentagens dos censos ¢ as variagses das alternativas de escolhas de formas de fit, de estilos de crenga ¢ de modes de vida religiosa e/ou espiritual. Taivez a pergunta essencial no seja “quem esta crendo no qué”, mas de que plorais maneiras pessoas que “créem no mesmo” esto participando diferencialmente de uma 0, de uma mesma espiritualidade, mesma fé, de uma mesma crenga, de uma mesma reli > sté na pagina $2 do Programa ¢ resumos do congresso mencionadio. 32 Talvez. uma resposta possa ser encontrsda no titulo dos trabalhos a serem apresentados na propria sesstio de que falei acima, Quase todos eles tém a ver com uma escolha religiosa e com uma vocagio religiosa coletiva nko por uma meta-busca de um sistema de sentido ou, pelo menos, de uma ética de vida de fimdamento religioso,"mas por’ uma procura motivada em, wma, forma “de resposta imediata a um mal do corpo, ou da vida. Uma quase associago entrée religiso e auto-ajuda. Isto — mas nfo apenas isto — nos remete a uma questfio que me parece essencial ¢ nem sempre levada a sério, Ao analisarmos a multiplicidade atual de religides, de espiritualidades e de alternativas de escolhas, de transefincias e de hibridizag&es, apelamos para fatores como, de um lado, uma erescente individualizacio, ela mesmo na fronteira com um orescente © fomentado individualismo. B, de outro lado, a abertura escancarada do campo religioso: como um quase mercado dos bens de sentido © salvagio onde para a imensa diversidade de desejos ¢ de simbolizagdes dos desejos, existem respostas miltiplas realizadas como religides, confissies © espiritualidades. Isto é verdadeito e por demais estudado. O que falta compreender é um ainda outro lado da questi. B, j4 que falamos tanto av redor de Joao Guimaraes Rosa no comego destes escritos, podemos convidiito a ester conosco uma vez mais. Tulvez esteja faltando encontrarmos a “icrocira ‘margem do rio”. Nao sei onde ela fica, mas poderia indicar um dos caminhos que por certo vai até perto dela, Devo dizer, noste escrito bastante possoal ¢ confessante, que vivo este dilema “no corpo e no espirito”. Se vovés percorrerem de volta o caminho que trithamos até aqui, verdo que apesar dos apelos candentes de Pedro Casaldaliga e scus companheiros (eu inclusive) em pro! de ainda grandes metas, de megametas, como, no limite mais terreno, « construefo da “Patria Grinde” e, no mais ‘eésmico ou mesmo celestial, a construgo do Reino de Deus, uma proposta crist catélica.ou ccuménica fundadora de ou fiundada cm uma mega-meta, tal como as que nos motivaram durante toda as décadas dos anos sessenta a citenta, 6 rmuito pouco presente na vida de uma hoje imensa imaioria de pessoas que esto situadas em qualguer ponto do gradiente com que trabalhei paginas atrés. Menos entre os que, como Boff, Beto, Balduino e Casaldaliga, ainda falam de dentro do cristianismo catélico © mesmo desde o interior da Igreja Catblica, e bastante mais entre os que professam um cristianismo catélico fortemente intémalizado e individuilizado, como nia Renowagdio Carismética Catélica ¢ na Canciéo Nova, a crenga da fé a pritica da crenga entre cristios afasta a religio, como um poderoso ¢ mobilizador sistema de sentido, de pelos menos dois fundamentos essenciais dos “velhos tempos”.

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