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O Acto Administrativo Informatico (O direito administrativo portugués face a aplicacao da informatica na decisao administrativa) (*) 1. A informatica na Administragao Publica A importa cia do uso da informatica no desempenho das fungoes administrativas esta bem expressa numa sugestiva formulagdéo de Vittorio Frosini - “(...) l’elaboratore elettronico rappresenta una nuova figura di funzionario, dotato de uno zelo instancabile e privo di umane debolezze” (1) - que nos elucida sobre a “natureza revo- lucionaria” da designada automacéo administrativa, enquanto factor de uma crescente “desumanizacio” de alguns sectores da fungao administrativa, e nos desafia a reflectir sobre as suas consequéncias e sobre o impacto que a “administragao através das méquinas” (2) pode ter na configuracao juridice de um instituto central do direito administrativo, originariamente concebido para exprimir uma decisdo humana: 0 acto administrativo. Este trabalho pretende exactamente contribuir, por um lado, para a identificagdo dos casos e para a definicaéo dos termos ou condicées de aplicacdo das tecnologias de tratamento da informagao (¢) O presente trabalho foi elaborado para o Instituto Juridico da Comunicagao da Faculdade de Direito de Coimbra e sera incluido na colectanes sobre “Estudos de Direito da Comunicacio” que aquele Instituto ira publicar. (1} Che. Vittorio FROSINL L'informatica e ls pubblica anmtinistrazione, in Rivista trimestrale di diritto pubblico, 1983, p. 491. {@) Usimos uma expressio que da titulo 2 uma monografia fundamental sobre o tema, da autoria de Hans Peter BULL, Verwalting durch Maschinen (Koln, 1964) Scientia Ieridica ~ T. XLVL, 1997, n 265/267 8 SCIENTIA IVRIDICA aa elaboragdo de decisées administrativas, e, por outro, para o sstudo das consequéncias daquela aplicacio ao nivel da teoria geral to acto administrativo (3). L.1. A automagéio administrativa Designamos “automagao administrativa” 0 fenémeno que se raduz no uso de equipamentos informiticos e na aplicagdo das ecnologias de tratamento da informacgdo no exercicio da fungao administrativa por parte dos érgdos da Administracdo Ptiblica. Sao conhecidas as razées da crescente importancia da automacio administrativa, que, segundo alguns, s4o causa de uma verdadeira “Computereuphorie” (4): a informatica é um poderoso instrumento de facilitagao e de racionalizacao do trabalho e das actuacGes ad- ninistrativas, que assegura um acesso répido e eficaz a informacao de que os funciondrios carecem e que pode mesmo substitui-los na 2xecucio de tarefas repetitivas e massificadas. Para alguns, 0 uso da informatica pela Administracao, organizagdo que, naturalmente recorre aos meios que a técnica de cada momento oferece (5), 6, mais do que um sinal de “sagezza” econémica (como no sector privado), am imperativo inerente ao servico ptblico (6). Sendo objectivo fundamental deste trabalho o estudo dos pro- alemas implicados com a aplicagdo da informatica na decisdo ad- ministrativa, hé toda a conveniéncia em delimitar 0 tipo de automagao administrativa que ira constituir 0 centro da nossa atengao, pois que 2sse fendmeno pode dizer respeito a dois dom{nios diferentes. O primeiro (e ainda hoje mais importante) 6 0 que se socorre da designada informatica documental (7), que confere 4 Administracdo G) Repare-se que o titulo que damos ao trabalho sugere imediatamente que, para nés, a aplicacio Ja informitica na produgio do acto administrative no altera a sua posigéo enquanto figura central do Jireito administrativo; parece-nos alids que o conceito de acto administrativo informatio acaba por ser um sintoma da intemporalidade e da adaptabilidade do préprio conceito de acto administrativo no sistema de sdministragio executiva - atribuindo ao acto administrativo do Estado p6s-social uma (nova) fungi de acilitacao ou de potenciacio da automagio na Administracdo Piblica, cfr. Vasco PEREIRA DA SILVA, Em Susea da Acto Administretio Perdido, Coimbra, 1996, p. 481 ss. (4) Cir. Klaus GRIMMER, Die Automation und das Verhltvis der Verwaltung 2um Birger, in Die iffentliche Verwaltung, 1982, p. 257 ss (5) Cir. Hartmut MAURER, Allgemeines Verwaltungsrecht, Mirnchen, 1995, p. 435. (6) Cft. Antonio CAPUTO, Tecnica detinformazione nella pubblica antsinistrazione, Padova, 1989, p. 46, ()A primeira e mais importante aplicagio da informatica juridica teve por objecto a memorizagio » a procura das fontes (Ge cognigdo e de producio) do direito: alegislagao, a jurisprudéncia e a doutrina; Hr. Guido ALPA, L’applicacone delle tecnotogie informetiche nel campo del diritto, in I Dirito dell'Informazione > dell'informatica, 19%, p. 6 O ACTO ADMINISTRATIVO INFORMATICO 49 uma capacidade de aceder com rapidez as informagées previamente armazendas num suporte informético. Esta documentagéo on-line desempenha uma relevante fungao na “gestao do trabalho adminis- trativo” pré-decisério, colocando o funcionério em posigéo de pon- derar o contetido da decisdo em fungao de todos os dados relevantes. Uma segunda aplicagao da automagao administrativa ¢ a que se realiza mediante a “delegagao” no computador da tarefa deciséria, sendo, por isso mesmo, a aplicagéo que nos interessa para este trabalho; aqui, a informatica nao apoia o processo decisério, fornece a decis4o, dispensando o funciondrio dessa tarefa (8) - 6 0 que se passa com decisdes de liquidagdo de impostos ou de taxas, de aplicagdo de sangées, de atribuicao de salérios, subsidios e pensdes, de regulacao do trafego (9), ou seja, das decisées tomadas em sec- tores em que a actuacio administrativa se realiza de modo massificado e repetitivo (10). 1.2. Vantagens e inconvenientes Certamente, ninguém questiona algumas das enormes vanta- gens que o uso das tecnologias de tratamento da informacio repre- senta para a Administracéo Publica, esté generalizada a opiniao de que a informética adquiriu um estatuto de indispensabilidade para 0 correcto e esclarecido exercicio da funcgao administrativa: pela quan- tidade de informagées de acesso imediato que podem acolher, bem como pelas projecgdes e simulagdes que esse amplo lastro informa- ‘© permite, os computadores sao, na verdade, instrumentos indis- pensaveis para quem toma decisées (11). Apresentam-se, no elenco das vantagens da automacao admi- nistrativa, argumentos associados: a racionalizag@o e a modernizagao (6) Passa-se assim da fase do “computador-arquivo” para a do “computador-funcionério”; cfr, neste sentide, Alfonso MASUCCI, Liatto amministratica informatico (yimi tineamenti di una ricostruzione), Napoli, 1993, p. 13. (9) Com base num critério orientade para os tipos de matérias, verifica-se existirem aplicagdes informéticas nos sectores da estatstica, da contabilidade, do pessoal, da seguranga social, da administra- «Bo fiscal, financeira e patrimorial, no fornecimento de servighs aos cidadaos (bancos de dados, arquivos), ra planificagio, no controlo de fendmenos naturais, na gestdo do aprovisionamento, ete. - eft. CAPUTO, cit, p. 160, (10) Neste sentido, cfr. Hans J. WOLFF /Otto BACHOF /Rolf STOBER, Verwaitungsreckt, Miinchen, 1, 1994, p. 54; no mesmo sentido, cfr. MAURER, cit, p. 438, que, a propésito do uso da informatica no Ambito da decisio administrativa, diz. que a Administragio se serve dos computadores quando tem de emitir um grande néimero de actos administratives iguais ou idénticos (11) Cir, HADAS-LEBEL, Linforntatique dans Administration francaise, Paris, 1973, p- 58. 50 SCIENTIA IVRIDICA administrativas, assinalando-se que 0 tratamento rapido da informa- ao aumenta a produtividade (12) e desvia para a maquina compor- tamentos monoténos e repetitivos, descarregando os funciondrios de tarefas pouco significativas (13); a factores econémicos, chamando-se a atengdo para o facto de a automatizacao comportar aprecidveis vantagens financeiras, na medida em que fomenta a dim nuigao de funciondrios, com a consequente diminuigéo de despesas de pesso- al (14); & melhoria da eficiéncia e da eficicia da actuagao da maquina administrativa (15); & melhoria da qualidade do trabalho dos functonarios, que tém acesso facil a todas as informagées de que necessitam para basear boas decisdes (16); as exigéncias de uma actuagto administra- tiva uniforme e ndo discriminatéria, apreseatando a automacio, neste Ambito, uma vantagem normalizadora (17); finalmente, a automacao apresenta a vantagem de colocar a organizagao administrativa a par da sociedade de informacao, em condigdes de responder a uma dina- mica de intenso trdfico informativo, contribuindo, ao mesmo tempo, para diminuir a “distancia” entre cidadao e Administragao (18). A evidéncia de algumas destas vantagens nao ilude, contudo, muitos Autores, que nao se privam de chamar a atengio para alguns grandes inconvenientes que a automagao administrativa pode repre- sentar para os cidadaos, bem assim como no préprio interior da organizagao administrativa. Alguns desses inconvenientes nao serao sequer analisdveis com autonomia, de modo a poderem ser ponderadas em face dos bene- ficios descritos; muitos deles resultam simplesmente de nao estarem correctamente formulados os beneficios associados ao uso da informatica pela Administragao ou de, pura e simplesmente, se tratar de benefi- cios inexistentes. Compreende-se assim que se considere a existéncia de alguns “perigos da automacdo administrativa” (Gefahren der Verwaltungs- automation) ou que se fale nos seus “effetti perversi”, que serao visiveis no crescente fortalecimento do poder da Administragao, em aplicagao do principio de que “quem é poderoso tende a ficar mais poderoso”, no acréscimo dos custos da gestao administrativa, resultantes, (12) dem (13) Cir. Ralf-Michael POLOMSKY, Der Automatisierte Verwaltuangsakt ~ Die Verwultung an der Scheele sow der Automation Zur Informations-und Kommrnikationstenit, Berlin, 198, p. 38. (14) Cir. GRIMMER, cit, p.262, POLOMSKY, cit, p. 3. {05) Cir, neste sentido, Peter BADURA, Das Veroultunngsvefiren, in Hans-Uwe Erichsen, Allgemeines Verwaltungsreeht, 1995, p. 433. (16) Cit. GRIMMER, cit, p. 261 (17) Iden (18) Cfr. POLOMSKY, ct, p. 44 O ACTO ADMINISTRATIVO INFORMATICO 51 por um lado, de um aumento de investimento (em maquinas) desacompanhado de uma diminuicao de despesas (ao contrario do que se verifica no sector privado, a automatizacao administrativa nao liberta pessoal) (19), e, por outro, daquilo que alguns designam uma “espiral da automagao”, que exige uma actualizacao tecnolégica permanente em fungao de rapidas obsoléncias (20); perigos ou des- vantagens da automagao serao ainda os que decorrem de um aumento da dependéncia da Administragao em relagio & mdquina (0 uso do com- putador dé lugar a um funciondrio dependente, nao criativo, sem capacidade de reagir, que se resigna diante da “obstinagio da maquina”), de a organizagéo acabar por perder ou subaproveitar os “bons funciondrios” que nao se adaptam as novas tecnologias (apesar dos programas “user friendly”), da deslocacéo de “custos administrati- vos” para os cidadaos, que tém de adquirir formulérios apropriados, cuja linguagem tende, de resto, a complexificar-se (a pretexto de uma “simplificagao” para efeitos de leitura informatica); ainda do ponto de vista do cidadao, importa considerar que a automagao vai, muitas vezes, deixd-lo sem interlocutor, diante de uma organizacado anénima e desumanizada, que, no entanto, dispde de amplas informagées a seu respeito(21); finalmente, a automagio provoca uma perda de flexibilidade da actuacao administrativa, que tem de ceder perante imperativos de “estandardizagao” e de “normalizagao”, originando decis6es administrativas que realizam uma “concretizagao esquema- ‘izada”. 1.3. Potenciacio da automacéo administrativa A tendéncia para uma crescente automagao administrativa tem originado a criagéo de entidades com fungées de potenciar e de racionalizar o uso da informatica na Administracao, assim como tem determinado a sujeic&o de certas actuagdes administrativas a pro- cedimentos especialmente organizados em funcao das especificidades e das exigéncias que a automacao coloca. Por outro lado, tem-se chamado também a atencdo para a necessidade de adequar 0 pro- cesso e a técnica de elaboracdo das leis, com vista a permitir e facilitar a expansao da automacdo administrativa (19) Cir. FROSINL cit, p. 493, @0) Cir. POLOMSKY, ‘cit, p. 4. @1) Cir. GRINMER, cit., p. 258. 52 SCIENTIA IVRIDICA Vejamos mais de perto os termos e 0 estado destas manifes- tages de potenciacao da automagao administrativa. 1.3.1. Criagdo de entidades e previsao de procedimentos destinados @ permitir um uso racional e coordenado da informatica na Administragho Piiblica Em face da importancia crescente, tanto em termos quantitativos como qualitativos, da utilizagao da informatica pelas administragoes publicas, 0 legislador tem vindo a regular alguns aspectos relacio- nados com aquela utilizagao, criando instrumentos e definindo orien- tagdes que visam essencialmente incrementar 0 uso racional e co- ordenado da automacao administrativa. Neste contexto, assume particular relevancia 0 Instituto da Informatica, um instituto ptiblico que, nos termos do artigo 20/1 do Decreto-Regulamentar n.° 29/87, de 24 de Abril, “tem por finalidade especifica promover © tratamento automatico de informagoes corres- pondentes as funcdes da Administragao Publica (...) e prestar apoio técnico & ampliagao da utilizagéo da informatica”. Qutra organizagéo administrativa, criada para coordenar e racionalizar o uso da informatica, é a Comissao Intersectorial a que se refere 0 Decreto-Lei n.° 64/94, de 28 de Fevereiro, a qual compete (a) analisar todos os problemas que de um modo geral afectem ou possam vir a afectar a utilizacdo de tecnologias de informagao na ‘Administracao Publica e (b) formular recomendagées de carcter geral que contribuam para a definicdo de politicas sectoriais global- mente coerentes (artigo 2.°) (22). ‘As necessidades de programar, de planificar, de estudar e de conceber novas possibilidades de aplicagao da informética na Ad- ministragao nao podem iludir ou colocar em segundo plano as exigéncias de uma racionalizacéo imediata e permanente; ¢ por isso mesmo que, além de criar organizages com atribuigdes no estudo do desenvolvimento da informética, o legislador se preocupa tam- bém por ditar regras que tornem possivel uma utilizagao racional dos meios de tratamento da informagao: é esse 0 objectivo do diploma (22) Também em Itélia existe uma organizagio com atribuigdes nas dreas do planeamento ¢ da racionalizagio do uso da informatica na Administracdo; trata-se da Autorita per Uinformatica nella publica amministrazione, criada em 1993 ~ cfr. Francesco CARDARALLI, L'Autorita per Tinformatica nella pubblice amministrazione. Natura giuridica, funzioni e poteri in materia contrattuale, in Diritto dell informazione & deilinformatica, 1994, p. 235. © ACTO ADMINISTRATIVO INFORMATICO 53 legal referido, onde, nos seus proprios termos, sdo fixados os “prin- cipios gerais para a coordenagao da utilizagao das tecnologias na Administragao Publica”, estabelecendo “regras especificas para a aquisicao ou locacao, sob qualquer regime, de bens ou servigos de informatica a efectuar pelo Estado ou outras pessoas colecivas de direito publico, com excepgio das autarquias locais e das empresas ptiblicas” (23). 1.3.2. Adequacdo da técnica iegisiativa Outra vertente da potenciagdo da automagao administrativa traduz-se na adopgao de processos e de técnicas de elaboracéo de leis administrativas funcionalizados para uma aplicagéo informatica deciséria; esta agora em causa uma “preparacao cientifica da deci- s4o", mediante a modificago do sentido da produgao normativa, que reduza ou limite a parte da subjectividade que € inerente ao processo decisério (24). Tais processos passam pela adopgao de leis (“leis sobre leis” (25)) que fixem os canones a observar para a redaccao escrita das leis (“formalizacao” ou “normalizagao” da linguagem legal (26)), entre outros, com o fim de expurgar as ambiguidades sintéticas, as indeterminacées e imprecisées linguisticas, as expres- ses obscuras, etc. Como é evidente, trata-se de processos complexos, (23) A despeito dagnilo que consta como seu objecto (artigo 1.°), deve dizer-se que o Decreto-Lei n° 64/94 6 essencialmente um diploma sobre o procedimento d: aquisicao de bens ou servigos informéticos, que fixa um “regime especial” relativamente ao regime de aquisigfo de bens ¢ servigos, constante do Decrsto-Lei n.° 55195, de 29 de Marco (cfr. artigo 109.°), Sendo bastante contido quanto 2 fixacao de principios para a coordenagao da utilizagdo das tecnologias ~ aids, o lezislador esta consciente disso, como 0 prova © prsimbulo do Decrete-Lzi n.° 78/96, de 20 de Junho, onde se afiema que o Decree-Lei 64/94 “carece de ampla revisdo, no quatro da modernizacio administrativa que a emergente sociedade de informagso irmplica” Relativamente ao regime geral de aquisicao de bens eservigos pela Administracao, 0 diploma de 1994 estabelece algumas exiggncias procedimentais suplemenlares ~ sujeigao das decisGes sobre aquisigoes ou locagSes de bens ou servigos de informatica a parecer obrigatério do Instituto de Informatica ou de uma entidade de coordenacao sectorial Sobre os “contraivs informaticos” (ié, aqueles que tém como objecto a aquisigo ou locacio de bens ou de servigos informaticos) celebrados pela Administracac, cfr. por entre a abundante literatura em Kingua italiana, GUIDO ALPA, I contratti informatici della pa. Note sul D.tgs. x. 39 del 1993, im Diritto dellinformazione € dellinformatica, 1993, p. 627 ss., ¢ Giusella FINOCCHIARO, Informatica ¢ pubblica amministrazione, Bologna, 1991 (24) Cir. Jacques CHEVALLIER, 4 racionatizagmo da producto juridica, in Legislagao ~ Cadernos de Ciéncia de Legislagao (INA), n.° 3, 1982, p. 9 5s (25) Cir., sobre isto, Vittorio FROSINI, Tecniche givridhe, in Enciclopedia del Diritto, XLIV, p. 38 ss. (40). (26) Sobre a normalizagao da linguagem legal, cfr. Luce NIVARRA, Come enormalizzares il linguaggio legate, in Contratto e mpresa, 1987, p. 256, que define a normslizag3o como um processo de tornar visivel 1a relagio de condicionalidade entre as partes constitutivas de um preceito normative (274). 54 SCIENTIA IVRIDICA que, porventura na maior parte dos casos, se revelam impraticdveis (na medida em que em muitos casos é impossfvel substituir 0 conceito legal indeterminado — v.g,, utilidade publica, interesse publico, urgéncia) e perigosos (jé que acabam por retirar ao legislador o poder de delegar no decisor a tarefa de encontrar a melhor decisao para as especificidades de cada caso concreto) (27). Nao obstante os perigos referidos, a funcionalizacao da técnica legislativa para a aplicagao informatica é reclamada por muitos, existindo nalguns ordenamentos iniciativas legislativas e mesmo leis produzidas com essa finalidade (28). 2. Da informatica documental 4 informatica decisdéria Ja acima nos referimos a existéncia de dois ambitos da automagao administrativa. Interessa agora perceber que esses dois ambitos correspondem as duas funcdes que a informatica juridica pode oferece: uma aplicacdo documental, que tende a recolher, seleccionar e orga- nizar informagées, e uma aplicagdo metadocumental ou deciséria, que supera 0 momento meramente informativo, e realiza uma funcao deciséria (29). Ainda que ndo se circunscreva af, a questao da “inteligéncia artificial” esté prevalentemente associada as possibilidades da apli- cagio deciséria da informatica; nesse sentido, a questao liga-se directamente aos “sistemas periciais ou inteligentes” (expert systems), caracterizados por possuirem um mecanismo (motor inferencial) que, interagindo e relacionando informacées disponiveis na médquina, efectua operacdes légicas utilizadas na decisao jurfdica (deducées, inferéncias, indugdes, generalizacées, analogias), elabora ele préprio os algoritmos necessérios para solucionar um caso (30), fornecendo respostas para questdes colocadas; ou seja, o sistema faz escolhas sem ter os dados todos organizados numa sequéncia rigidamente 27) Sobre os limites da producao legislativa “funzionale ad un‘applicazione automatizzaia”, cfr. Alessandro USA Le prospetice di eufomazione dele decision wamiztistratice in un sistema di teleamninistrazione, in Diritto delinformazione e dellnformatica, 1993, p. 163 ss, (166), ¢ MASUCCI, cit, p. 19 ss (28) Cfr, FROSINL Tecntche, cit, p. 40 (29) Sobre ist, eft. Enrico FERRI Giovanni GIACOBBE/G. Taddei ELML, Informatica e ordinamento siuridico, Milano, 1988, p. 13 ss. (G0) Cir. Gianfranco CARIDI Silvano PELLECCHIA, Un modelo opeativ per automazione di procedure givridiche, in Rivista Internazionale di Filosofia del Dirito, 1985, p. 378 s. O ACTO ADMINISTRATIVO INFORMATICO 55 pré-estabelecida e em presenga de um ntimero incompleto de infor- magoes (31). Se o tema da informatica decis6ria nos atrai para a problematica dos expert systems, a verdade é que, mesmo sem esses sistemas e na base da légica bindria que os computadores realizam (verdadeiro- -faiso, zero-um, sim-ndo), j& & possivel uma aplicacao deciséria da informatica; para que essa aplicac4o possa ter lugar, essencial 6 que nao esteja excluida uma programacao da decisto (administrativa) mediante um processo de algoritmizagio (32). A informatica na decisdo administrativa Antes de se indagarem os termos de admissibilidade da automacao da decisao administrativa, importa perceber as condicionantes de natureza técnica desta aplicagdo da informatica na Administracao Publica Neste ambito, 0 primeiro factor que importa salientar, que, como veremos, anula eventuais restri¢gdes ou limitagdes de natureza técnica do processo de automagao, prende-se com a circunstancia de as decisdes administrativas serem decisées programadas, que consti- tuem “proposigées destinadas a alcanger uma finalidade heterono- mamente definida”, que nao cabe ao decisor escolher (33). As de- cisdes administrativas sao sempre jufzos sub lege, distintos dos juizos ad finem (como sao, por exemplo, os juizos econémicos ou politi- cos) (34). A vinculagao a esse factor finalistico, que, como se sabe, resulta para a Administracao dos principios da prossecugdo do interesse public e da legalidade {artigo 266.° da Constituigéo), nao revela, porém, sempre a mesma intensidade. A programacio legal da actividade administrativa pode indicar de modo preciso os fins da decisao, através de uma descrigao objectiva dos pressupostos, fixando com igual intensidade os meios de que 0 GI) Clr. M. ROSCO, Formazione ¢ informatica nella Pubic Amministrazions, Roma, 1989, p. 105, € CHEVALIER, cit, p. 12 2) Cie. FERRI/GIACOBBE/ELML, cit, p. 92 ss, bem como USAL, cit, p173 Segundo BORRUSO, Computer ¢ ditto, apud MASUCCI, cit, p. 25, n.12, 0 algoritmo € uma “sucesso finita de passos cade um dos quais definido e exequivel, que, operando sobre dados, produz resultados" (G3) Cfr, sobre isto, BARBOSA de MELO, Curso de Ciéncin dx Admuinistragéo (1985-86) — suntarios & notas, Universidade Catélica, Curso de Direito do Porto, 1986 (policop), p. 23 56 (GH) Neste sentido, eft. FROSINL, Techiche, p. 44. 56 SCIENTIA IVRIDICA decisor pode dispor para realizar aqueles fins; nestes casos, em que temos uma programagio condicional, a norma, estruturalmente rigida ou fechada, reconduzir-se-d a formula “se A, entao B” (35). Sucede que nem sempre se verifica uma vinculagao adminis- trativa tao rigida (36); as mais das vezes, a norma juridica dirigida ao decisor abre “espacos de avaliagao discricionaria”, nao dispen- sando portanto 0 seu empenho criativo na concretizacao do direito. Nestes casos, a vinculacao do decisor estdé atenuada, embora nao excluida: 6 que a norma deixou-lhe um espaco de liberdade para solucionar 0 caso concreto, na crenga de que a situacdo real é melhor reguldvel mediante uma percepgao concreta da sua dimensdo do que através de uma previsio abstracta dos seus contornos; porém, a norma nao abandona ao decisor a tarefa de determinar isoladamente 0 interesse publico, pelo que a deciso que ele venha a tomar tem ainda de se enquadrar no interesse ptiblico que a norma pretendeu ver prosseguido. Fala-se, para estes casos, de decisdes finalisticamente programadas. Tratando-se (sempre) de decisies programadas, parece poder concluir- -se portanto que todas as decisdes administrativas sao programdveis para efeitos da respectiva automagio (37). Todavia, a intuiggo logo nos avisa de que uma resposta con- veniente ao problema da automagao das decisdes administrativas nao pode iludir a diferenca essencial entre as programagoes decisrias condicionais e as programacoes decisérias finalisticas (38). Essa diferenga, que se reporta a exclusao ou ao reconhecimento de uma margem de autodeterminagao do decisor quanto a construgao do contetido concreto da decisao, implica a necessidade de uma andlise separada @5) As decisdes estritamente condicionadas provocam uma desvalorizagiio efectiva do papel do decisor, que é neutralizado enquanto factor (nto w-determinante dz decisto (neste sentido, eff. Niklas LUHMANN, Recht und Automation in der affentichen Verwaltung (eine verwaltungswissenschafltiche Untersuchuxg), Berlin, 1966, p. 43) (35) E que, como afirma Danitle BOURCIER, Intégration et décision, réflexions sur des nouveaux concepts en informatique juridique, in Revue Francaise d’ Administration Publique, n” 37, p. 58 ss., “o jurista trabalha com uma linguagem em que as palavras sio frequentemente indeterminadas e flufdas. A quali- ficaydo do facto € uma operagio cognoscitiva que €, em si mesma, um raciocinio”. (37) Considerando que a programacao de computadores (Programmierung von Computern) & equivalente programacao das decsées ad ministrativas (Programmierung von Verwaltungsentscheidungen), cfr. Walter SCHMIDT, Die Programmicrung von Veranitungsentscheidungen, in Archiv des 6ffentlichen Rechts 1971, p. 321 ss, (352), (G8) Considerando que a distingdo entre sistemas de decisio se toma imprescindivel “na progra- magio de decisdes que hajam de ser executadas mediante a automagio electronica (computadores)”, cf BARBOSA de MELO, cit, p. 30. O ACTO ADMINISTRATIVO INFORMATICO. 57 da automagao da decisao vinculada e da automagao da decisao com avaliacao discricionria (39). 3.1. Decisées vinculadas Ao excluir a criatividade do decisor, mediante a pré-figuracao rigida do fim e do contetido da decisao administrativa, a programagiio decis6ria condicional facilita a automacao da decisao: para cada caso importa saber se se verificam ou nao determinados pressupostos objectivamente definidos (sim-ndo, zero-um); se se verificam, a solu- ¢ao s6 pode ser uma, se nao se verificam a solugao s6 pode ser a oposta (40). Ou seja, a programagao deciséria desta natureza, que da lugar a uma aplicacao silogistica da lei, suporta-se numa légica algoritmica, que é justamente aquela que suporta a operatividade dos sistemas informdaticos decisérios “tradicionais”( 41). 3.2. Decis6es com avaliacao discriciondria Mais dificil parece a automacao das decisées em que, nos termos da outorga efectuada pela norma programadora, o agente deve elaborar a deciséo com alguma margem de liberdade. Para colocar a questao no terreno dos meros condicionamentos técnicos ou externos, importante é procurar saber se a norma, nao obstante ser discriciondria, admite a algoritmizagio, ou seja, se ela pode ser configurada como norma de tipo condicional (se, entio). Ao equacionarmos a resposta & questao colocada, somos ime- diatamente tentados a considerar a existéncia de uma incompatibi- 9) Nao curamos, para ja, de saber se, de um ponto de vista juridice, pode aceitar-se a automaca0 nna tea da discricionaridade; equacionamos apenas a questio de saber se a existéncia de uma norma atributiva de poderes discricionarios € um obsticulo tecnico 3 automago da decisio. © facto de s6 poderem ser transpostos pare um computador os processos de deciséo juridica convertiveis em algoritmos (estruturaveis numa sequéncia deciséria bindria) ~ além dos Autores jé citados, cfr. Herbert FIEDLER, Asfomatisierung im Recht und juristische Informatik, in Juristische Schulung, 1970, 432 5. (553), que se referira 8 algoritmizagao como uma condicionante metédica da automagio (metédica que no seria propria para a decisio juridica; cfr. Hansgeorg, FROHN. Subsumtion; Information; Konamunikalion; Automation. Zur Computrisierbarkeit juristischen Arbeitens, in Archiv far Rechts-und Sozialphilosophie, 1984, p. 204 ss. (217)) ~ conduz muitos Autores a excluir 2 informatizagao das decisdes administrativas discricionérias. (40) Por exemplo uma norma que estabelece que “os individuos que se casem tém direito a. um subsidio no valor X": se hé casamento, hé subsidio; se ndo hé casamento, ndo hé subsidio. (41) O que determina que as normas dessa natureza sejam especialmente aptas para a automati- zagio (“automationsgeeignet”}, nesse sentido, eff. POLOMSKY, cit, p. 55. 58 SCIENTIA IVRIDICA lidade (técnica) entre a norma discricionéria e a |6gica do funcio- namento da programagao informatica: a norma atributiva do poder discriciondrio concede uma “liberdade” ao decisor; a programagao informatica, determinando rigidamente o sentido da decisao, nao admite um exercicio concreto de discricionaridade (42). Porém, se nos desprendermos das evidéncias da sugestao, concluimos exactamente o contrario, i.é, passamos a admitir que a discricionaridade administrativa nao exclui a automacao da decisa € que, mesmo ai, a algoritmizacdo da norma discriciondria nao é impossivel; basta para tal que se efectue uma (re)programacao anulatoria da discricionaridade, determinando especificamemte as varias hipéte- ses que, em abstracto, a abertura discriciondria pode contemplar - suponha-se por exemplo a norma: “as empresas em situagao eco- némica diffcil podem requerer ao 6rgao A a adopcao de medidas que evitem a faléncia”; a partir de uma norma assim estruturada podem ser previstas, primeiro, varias hipéteses de empresas em situagéo econémica dificil, e, depois, para cada hipétese, pode ser prevista uma medida adequada para evitar a faléncia. Neste caso, a abertura discricionaria que consta da norma legal desaparece, e as decisdes concretas sao baseadas numa légica bindria (sim-nio), pelo que a automacao da decisao é tecnicamente possi- vel (43). Por outro lado, se se entender que a norma discriciondria nao considera a qualidade do decisor, é sustentével que, na base de um “sistema inteligente”, 0 exercicio da discricionaridade seja delegado no computador (44). Agora, ja ndo existe reprogramacdo anulatéria de uma discricionaridade inicialmente prevista, uma vez que 0 pro- grama a elaborar assume a sua abertura discriciondria, nao organi- zando os dados essenciais para a decisio numa sequéncia rigida e determinista. Sucede que a “liberdade de decidir” pertencera & maquina (45). (42) Cir, supra, nota, 39. (43) Cir. POLOMSKY, cit, p. 57. (48) Assim, 08 sistemas periciais ou inteligentes asseguram também a automacio das decisdes discricionérias, j4 que o computador pode realizar a actividade decis6ria, mediante a individualiza¢3o os algoritmos necessarios - cfr. MASUCCI, cit, p35, e USAL, cit, p 173. 43) Como afirmam alguns Autores, a aplicag3o da informética $6 estara tecnicamente exelutéa no Ambito de algumas “actividades irracionais”, que s80 6 humanas (cfr. USAL, cit, p. 166), ou naquelas em que € significative 0 componente intuitivo e subjectivo (cfr. Herbert FIEDLER. Rechenautamaten in Recht und Verwaltung, in Jurisienzeitung, 1966, 689 ss. (693)). O ACTO ADMINISTRATIVO INFORMATICO 59 4. O acto administrativo informatico 4.1. “Produto” ou acto administrativo? A primeira elaboracao tedrica da tematica relativa 4 automacao da decisdo administrativa deve-se a Karl ZEIDLER, que, em 1959, publicou um estudo sobre a influéncia das novas tecnologias na Administragao Puiblica (46). Para basear a sua original tese, 0 Autor comega por chamar a atencgéo para o facto de o direito administrativo pressupor, per definitionem, pessoas na Administracao, invocando a esse propésito formulagGes lapidares da mais significativa doutrina (Walter JELLINEK: “os Orgaos do Estado sao pessoas, toda a actividade do Estado é uma actividade de pessoas”; Hans PETERS: “a Administracao manifesta- -se sempre numa actividade de pessoas”); como ilustragao disso mesmo, apresenta as decisGes discriciondrias (que implicam “ava- liagdo” e “mérito”), 0 sistema de responsabilidade da Administracao (organizado de acordo com um “principio de culpa” e de “incum- primento de deveres funcionais”) e o acto administrativo, cuja definicao aponta para um indubitavel componente humano ou pessoal (“mens- chliche Komponente”), como, alias, o demonstra a teoria dos vicios, que esta organizada em funcao de categorias s6 referencidveis a uma actividade humana (conforme 4 lei ou ilegal): o sinal “stop” do policia sinaleiro pode ser ilegal; 0 mesmo nao podera dizer-se j4 do “vermelho” do seméforo (47). Num sentido convencional ou tradicional, 0 acto administrativo Ppressup6e, portanto, uma actividade humana (do titular de um 6rgdo) voluntdria, que, unitariamente, realiza uma operagao de subsungao de um caso concreto numa hip6tese prevista na lei, e que, na sequéncia, produz um resultado, a tomada da decisio; as duas operagées, subsungio e decisdo (légica ou teoricamente separaveis), s&o efectuadas e controladas pela “vontade” de uma pessoa (48). O uso de maquinas neste dominio vai implicar a falta do controlo humano sobre uma relevante fase do processo de decisao adminis- trativa e, consequentemente, a impossibilidade de imputar a uma pessoa os efeitos resultantes dessa fase; o Autor refere-se, entao, a (46) Trata-se da obra Uer die Technisierung der Verwultung, Karlsruhe, 1959; sobre 0 assunto, 0 Autor publicou ainda, na Deutsche Verwaltungsblatter, dois artigos: Verwaltungsfabrikat und Gefilrntungshafiung (1959) e Zar

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