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Capitulo 1 ACRIANGA, 0 ADOLESCENTE E 0 PEDIATRA: POR UMA RELAGAO ETICA Hi poucas semethangas entre a pritica médica de décadas passadas ¢ a de hoje. Houve mudancas estru- turais, da atuagéo centrada no médico para a atuagdo da equipe de saide, da relagio interpessoal para o uso macico ¢ massivo da tecnologia, interpondo-se entre © paciente e 0s profissionais de saide, da postura de devocio e confianca cega do paciente a0 comporta- mento critico e desconfiado do usuirio dos servicos de satide. Varios fatores contribuem para isso: tecno- logia cada vez mais sofisticada ¢ envelhecimento pro- gressivo da populagio, demandando cada vez. mais cuidados de satide, por necessidade, pelo avancar da idade, por desejos estimulados por uma sociedade cada vez mais consumista e mais vigilincia dos ci- dadios sobre os atos dos profissionais de satide, pela mudanca da relagio médico-paciente para o de pres- tador de servigo de satide-cliente e pela ampliacio das alternativas terapeuticas € acesso répido e fécil a informagdes pela internet ¢ midias sociais. Nio se pode pensar o século XXI uiilizando-se metros € pesos do século XX. Novas tecnologias, cada vez mais sofisticadas, criam, constantemente, novas éreas de atuagao profissional ¢ tiovos dilemas ticos € técnicos. As informagées sio progressiva- ‘mente mais disseminadas, deixam de ser privilégio os peritos e especialistas, as pessoas se emnpoderam, 4 competicio entre os profssionais da drea de satide se aguca. O perfil epidemiolégico das doencas muda JOAQUIM ANTONIO CESAR MOTA EDISON JOSE CORREA ENNIO LEAO MARCOS BORATO VIANA ‘MARCOS CARVALHO DE VASCONCELOS mais répido que o previsto, morre-se menos, nasce-se ‘menos ainda, envelhecemo-nos todos. E as doencas, biol6gica, social, econdmica e culturalmente criadas, também tém histria, razdo pela qual elas se modifi- cam, Vive-se uma nova fase, com a diminuigao das doengas infecciosas e da desnutri¢ao como causas de morte ¢ © surgimento de doencas cténicas e dege- nerativas - hipertensio, diabetes, cdnceres, aciden- tes vasculares encefilicos -, elevando a expectativa de vida, com forte impacto no perfil de servigos de saiide requeridos. Entie os adolescentes morte-se predontinantemente de causas externas - acidentes, violéncia e suicidio. ‘Num mundo em mudancas constantes ¢ com fre- nético ritmo de incorporagées tecnol6gicas, o papel dos profissionais de satide também ‘muda. Novas tecnologias geram novos processos de trabalho e de gestio da clinica; novas dreas de conhecimento sio incorporadas. Fragmenta-se o-cuidado & satide, € 0s limites de atengio e dé responsabilidade de cada profissional de satide tornain:se difusos. Com as mudangas sociais, demograficas e Culturais aliadas a essas incorporagdes tecnolégicas e as mudancas no processo de trabalho, velhas ddengas e problemas desaparecem Ou se tornam menos importantes ¢ sur- ‘gem novos problemas e prioridades para a saide in- dividual e coleti iui o impacto das doengas infecciosas e nutricionais, e situagdes tais como tris? =e Scanned with CamScanner teza, angustia e déficit de atengao passam a ser con- sideradas doengas, além de surgirem novas enfermi- dades tais como bulimia-aniorexia ¢ obesidade. Nio se pode deixar 0 cresciménto € 0 desenvolvimento das criangas e dos adolescentes apenas nas mios do acaso. Queremos - porque podemos - intervir nes- se cendrio. E necessario, porém, colocar um terceiro verbo nessa equacio, devemos fazer tudo que quere- mos e podemos? A profissio que era essencialmen- te curativa torna-se também preventiva e, cada vez mais, preditiva, com a capacidade de interferir, para obeme para o mal. Experimentamos sofrimentos antes desconhe- cidos ou menos valorizados: mal-estares, afligdes, depressio, angistias. Queixas de contornos pouco nitidos, muito diferentes dos sintomas bem delimi- tados ¢ bem definidos da sdlida modernidade. Ao se aproximar de uma crianga ¢ de sua familia no aten- dimento a satde, é importante levar isso em conta. Com a maior proporgao de sobrevida em crian- as e adolescentes com doengas antes incuraveis ou fatais, novos problemas surgem. O sofrimento gera- do por uma doenca grave e crénica que culmina,na morte é, sempre, uma experiéncia dolorosae incom- preensivel. Em sociedades que celebram, a poténcia ilimitada do dinheiro ¢ da tecnologia ~ que juntos podem realizar todos os desejos - de mais inteligen- ia, pela ritalina’; de mais felicidade, pelo prozac’; de mais poténcia sexual, pelo viagra’, de corpos perfei- tos, pela cirurgia plastica, xenical’, botox" -, tende-se a considerar que a Medicina seja capaz, de resolyer todos os problemas, inclusive a cura de algo, inevi- tavel, como a morte. Os limites terapéuticos passam a ser vistos como fracassos terapéuticos ea morte, como algo evitavel. Devido ao avango tecnolégico, a cada ano um nd- mero cada vez maior de criangas entra em estagios fi- nais de doencas, especialmente as oncolgicas, ao se adotarem medidas paliativas que controlam os seus sintomas. Os dois, sintomas mais relatados nessas criangas sio a dor ea fadiga. Outros, nausea, yomitos € constipacdo intestinal, so, principalmente, rela- cionados aos tratamentos realizados, especialmente quimioterapia e radioterapia. Outros mais, tais como alteragées de humor, ansiedade ¢ irritabilidade, sio mais dependentes das caracteristicas de desesperan- 6 quanto ao prognéstico, das hospitalizades e das limitagées impostas a crianga e 4 sua famflia durante © processo, muitas vezes longo, de adoecimento e de morte. Se hoje analgésicos nio esteroides, opioides'e seus adjuvantes (corticosteroides, sedativos, tranqui- lizantes, entre outros) s4o usados mais amplamente, os sintomas de origem psicolégica, tals como a ansie- dade ¢ a itritabilidade, ainda sao subestimados. Nesse mundo fascinado pela tecnologia - capaz no imaginério coletivo de solucionar todos os pro- blemas, bastando haver recursos para tal -, alguns principios devem ser respeitados. O primeiro é da primazia do bem-estar do paciente, isto é, dedicar- -se a atender aos melhores interesses do paciente, 9 que inclui tanto cumprir 0 preceito de nao fazer-Ihe ‘0 mal como 0 de fazer-Ihe o bem. O segundo é 0 de respeitar a autonomia do paciente, a sua autodeter- minacio, direito inerente a liberdade de cada indi- viduo. Para isso, € necessario ser honesto e prestar informacées e esclarecimentos de maneira clara objetiva, permitindo ao paciente tomar decisdes au- tonomas. O terceiro principio ¢ 9 da justica distribu. tiva, £ papel do profissional de satide contribuir para que haja distribuigdo justa e equanime dos recursos destinados & satide, evitando qualquer tipo de discri- minagio,- racial, de género, socioecondmica, étnica, religiosa, etc, - nos cuidados a satide,,..., ,Além do respeito a esses principios, o profissional de satide tem a obrigacéo, de ser,competente, man- tendo-se,atualizado, e reciclando-se periodicamen- te, de respeitar,a confidencialidade do paciente, de contribuir, para a distribuicao equitativa dos;recur- sos, usando escrupulosamente procedimentos, testes ¢ tratamentos, associando eficdcia a economicidade = 0 paciente est sempre,pagando pela assisténcia & satide, direta ou indiretamente por meio de planos de satide privados ou do Sistema Unico de Satide (SUS), Na atenco a crianga e ao adolescente, 0, médico deve trabalhar em,consondncia com a familia e com 98 outros profissionais da area de satide. Deve peitar a natureza complexa da relaco pais-filhos, a dependéncia ¢ a vulnerabilidade da crianga e sua ca- Pacidade, crescente de acordo com.o seu desenvolvi mento, de tomar decisbes autonomas. Qs beneficios € maleficios de cada decisio devem ser ponderados, lembrando, que os efeitos de cada decisio afetam a sviancaje a familia, gerando responsabilidades mi- tuas. Embora os interesses de todos os familiares se- e res- Scanned with CamScanner jam relevantes devam influenciar as decis6es, 0s in- teresses da crianga e do adolescente séo prioritirios. Estes tém nos pais ou responsdveis legais pessoas com o dever de cuidar de seus melhores interesses. Entretanto, esse dever parental nio dé o direito de decidir, arbitrariamente, a respeito dos interesses da crianga e do adolescente, Nem sempre os pais bus- cam o melhor para os seus filhos, como no caso dos maus-tratos domésticos. A construgio de uma histéria clinica e a realiza- do de um exame clinico sio essenciais na escuta do paciente e sua familia. Na abordagem, o mais impor- tante é ouvire “ouvir, mais do estar disposto, é estar exposto”, Estar exposto € estar mais disposto a escu- tar do que a falar, é prestar atengio, 0 que exige des- viar a atengo de si e centré-la no paciente. No livro de Jé, ele, cansado de palavras consoladoras de seus amigos, exclamou: “Jé estou cansado de ouvir tudo isso! Até quando continuardo atormentando-me e afligindo-me com seu palavrério? Oxalé houvesse a0 ‘menos um capaz de escutar. Prestem atengo ao que eu digo, seja pelo menos este 0 consolo que me dio” £ fundamental escutar e prestar atengdo nas palavras ‘nos gestos da crianca e de sua familia. ‘As histérias ajudam as pessoas em busca do en- tendimento, separando o relevante do irrelevante. A fungio da anamnese é selecionar, incluir excluindo e iluminar langando sombras. A escuta durante a consulta é um proceso de escolha, escolher entre as queixas, sinais e sintomas 0 que esclarecer e 0 que ‘manter na obscuridade. Ao fazer escolhas, tornamo- -nos responsiveis por elas. Assim, ao reconstruir, junto com a crianga e sua familia, uma historia de sua doenca, 0 médico também é responsavel por ela. Além da disposigo de escutar 0 paciente enquan- to este constréi a sua histéria - etimologicamente, anamnese significa lembrar de novo ~ devem ser res- peitados os limites da crianga e de seus familiares, evitando ou minimizando procedimentos dolorosos ou incémodos ¢, tao importantes quanto, respeitar também 0 que a crianga e sua familia querem deixar na obscuridade, Nada mais antiético que conduzir uma anamnese como se fosse um inquérito policial, em que tudo ¢ importante e deve ser esclarecido, ‘Algumas questoes, antes escondidas, hoje surgem no dia a dia do profissional de satide que cuida das criancas e dos adolescentes, como a violéncia. Na histéria humana, desde sempre aparece o fendmeno da violencia. £ a desmedida que torna a violencia perturbadora, pois assimilada a0 imprevisivel. Por ser imprevisivel, transgressora de regras e normas € exercida pelos que detém a forga, as suas vitimas s sempre, as mais vulneraveis. Ao cuidar da sadde das eriangas e dos adolescentes, ficar atento a sinais de ‘violencia é um dever ético. A violencia doméstica - abusos fisicos e sexuais, abandono =, a urbana ~ drogas, exploragio sexual, discriminagao, trabalho infantil, acidentes de transi- to, agressdes, criangas sem lares ¢ falta de politicas de protecio e de inclusio ~ e a entre pares ~ bullying = fazem parte, lamentavelmente, do universo das ctiangas e dos adolescentes. A epidemia de violéncia infantil substituiu a das doencas infecciosas preveni- das pela imunizacéo. Epidemia silenciosa e insidiosa, porém tio ot mais devastadora que aquelas. O desa- fio daqueles que cuidam da satide das criancas e dos adolescentes & construir defesas eficazes contra essa epidemia do século XXI, pois a maior violencia é a indiferenca frente a ela. Ha indicios de relagao en- tre inadequados cuidados primérios, tais como nao manter 0 calendério vacinal atualizado e maus-tra- tos as criangas, assim comio entre o uso de alcool ¢ abuso e violencia doméstica. O alcoolismo familiar é sempre um sinal de alerta para'a presenga de violén- cia contra.os familiares mais vulnerdveis, mulheres e criangas. Portanto, & necessério, na atengdo & sai: de da crianga e do adolescente, procurar identificar situagdes de risco para todas essas\violéncias.e ter atitude propositiva na sua prevengao ou eliminagio. Como raramente uma lesio em uma crianga é patog- noménica de taus-tratos, conhecer 0: desenvolvi- ‘mento infantil normal é importante para se suspeitar se umia lésio é compativel com as habilidades moto- as da idade. Outro sinal de alerta éa auséncia de his* t6ria de trauma que ocasionow a lesio ou uma hist6- ria cambiante ou fantasiosa. O papel'do profissional de satide nao ¢ ter certeza se uma lesio é resultado de ‘maus-tratos e quem a causou ~ isso é funcao policial especifica - mas 0 de estabelecer razoavel suspeigao de que uma crianga sofreu maus-tratos. Entre os tipos de violéncia; vale destacar os maus- -tratos entre pares (bullying). E uma violéncia multi- facetéria: desigualdade de poder, exercido de forma intimidante ao mais fraco com a intengao de,causar CAP.1 * ACRIANCA, O ADOLESCENTE E 0 PEDIATRA: POR UMA RELACAO ETICA 3 Scanned with CamScanner dano’e que é realizada recorrentemente. A agres- sio pode ser direta (isica, verbal ou por gestos) e indireta (mediante a exclusio social, fofocas, etc.). Atualmente, surgiu uma nova modalidade, o eyber- -bullying, utilizando os recursos da Internet. Alguns dos sinais de vitimizacao sio: a crianga ou o adolescente aparecem com roupas ou materiais escolares danificados, lesdes de pele inexpliciveis, cefaleia, dor abdominal ou outros sintomas vagos, dificuldades para dormir, tristeza ou depressio. A vi- tima conversa pouco, tem poucos amigos, apresenta ‘queda inexplicavel do rendimento escolar e procura faltat & escola. Sea agressio se prolonga, pode surgi ideacio suicida. Os agressores = geralmente alunos fisicamente mais fortes, dominantes, impulsivos, ‘com dificuldade em respeitar normas e regras ¢ com baixa tolerancia & frustragio ~ também necessitam ser-abordados por profissionais de satide, pois ha entre eles acentuada incidéncia de outros desajustes sociais ~ vandalismo, alcoolismo e uso de drogas ili- citas e crimes contra o patriménio. Cabe ao profis- sional de sauide estar atento a esse tipo de maus-tra- tos, composto de trés grupos de atores: as vitimas, os agressores ¢ as testemunhas, participantes passivos ¢ ‘que dio poder aos intimidadores. Duas outras formas de violéncia séo as sindro- mes do bebé sacudido (shaken baby syndrome) ea de Minchausen por procuragio. A sindrome de ‘Miinchatsen por procuracao ocorre quando um cui- dador, quase sempre a mae, dé forma persistente ot intermitente, produz ou simula sintomas de maneira consciente, intencional e premeditada em seu filho, colocando-o em risco e gerando demanda de investi- ga¢io.e tratamento. A atitude de produzir ou simular tais sintomas parece ser uma ecessidade compulsi- va de assumir 0 papel da pessoa-que cuida de um filho doente, Os sintomias sio de longa duragao e & comuim que outros filhos da mesma familia sofram, também, esse'tipo de abuso. Coma progressio da dade, hd tendéncia de a crianga participar ativamen- te dd simulacéo ou produgdo dos sintomas, mostran- do que éa\diade familia-crianca que esta doente. Os quadros clinicos observados ‘sio muito va- riados, envolvendo qualquer érgio ou sistema, As ‘mianifestagdés da sindrome dé Miinchausen por pro- curacao incliem hospitalizacdes frequentes e muitas vezes prolongadas = para-as quais, quase sempre, nio se chega & um diagnéstico definitivo -,sintomas inexplicdveis que desaparecem na auséncia do cui- dador e nio correlagio entre sintomas e 0s exames complementares. Sua abordagem é complexa ¢ deve envolver toda a equipe de saiide, incluindo especia- listas das 4reas dos sintomas mais preponderantes, além de assistentes sociais, conselhos tutelares e pro- motoria de defesa da etianga e do adolescénte. ‘A sindrome do bebé sacudido (shaken baby syn- drome) refere-se a lesGes que acontecem quando um lactente é sacudido violentamente, ocasionando he- morragias intracranianas e intraoculares que podem causar a morte, fraturas de vértebras ¢ erinio e lesdes oculares que chegam a provocar lesbes neurolégicas ou oculares irteversiveis. Lesdes cerebrais trauméti- cas, hemorragias na retina, cegueira, fraturas cervi- cais ¢ cranianas, convulsées, paralisias ¢ morte sio manifestagdes associadas a essa sindrome. Os adolescentes tém peculiaridades que devem ser ressaltadas., No »Brasily-aproximadamente um ‘quinto de nossa populagio é de adolescentes, pes- soas vulneriveis fisicamente ~ por éstarem em fase de crescimento e de desenvolvimento -,emocional- mente ~ em fase de construgéoide uma identidade pessoal ~ ¢ psiquicamente ~ fase'de grande instabili- dade de humore de estado de animo. Por ser vulneravel ea estrutura familiar essencial para ele, adolescente, a familia deve ser incluida ‘no processo dé atencdo sua satide, tendo-se 0 ctiidado de, que essa inélusio nao prevaleca sobre a relacio entre o profissional de satide ¢ 0 adolescente. Ene- cessirio haver 0 momento de contato do profissional com a familia e o momento exclusivo do adolescente ¢, sempre que possivel, 0 atendimento deve constar dessas duas etapas. » sLegalmente, 0 adolescente néo possui autonomia; mas do ponto de vista ético, a0 consideré-lo um su- jeito pleno de direitos, ha de ser respeitada a sua au- tonomia, mesmo que limitada em algumas sitisagdes. Garantir a ele privacidade, confidencialidade e sigilo das ihformagoes ¢ dever do profissional de satde. 8 seu direito no ter suas informagies confidenciais reveladas sem seu consentimentoa alguém, nem a seus pais, desde que tenha‘o discernimento de se conduzir e as condigies de solucionar o seu proble- ma ¢ que o sigilo nao lhe traga danos ou maleficios. (O julgamento sobre a capacidade de o menor tomar 32 PEDIATRIA ANBULATORIAL Scanned with CamScanner decis6es ¢ subjetivo, Por isso, deve ser feito com pru- déncia e com a participagao de todos os profissio- nais que cuidam de sua satde. © adolescente tem 0 direito de optar sobre procedimentos propedéuticos, terapéuticos ou profiliticos. Hé algumas situagdes de conflito entre o preceito legal € 0s estatutos de protecio ao adolescente, que s6 podem ser analisadas casuisticamente, no Ambito da situagao posta. Exemplificando, ¢ tipificada como crime de estupro a relacdo sexual com menores de 15 anos, mesmo se consensual. Entretanto, significatl- vva parcela de adolescentes abaixo de 15 anos ja tem atividade sexual, a maioria sem o conhecimento dos pais. O mesmo conflito entre o legal e o ético sur- ‘ge no caso de uso de drogas ilicitas. De um lado, ha de ser respeitado 0 direito do adolescente de exercer sua autonomia; ¢ do outro, o dever de todos nés de protegio aos vulnerdveis; garantindo sua integridade fisica, psiquica e moral. Dilema ético, sem decisio a priori, desejavelmente partilhada por todos aqueles que cuidam da satide do adolescente. Um aspecto que, com a crescente judicializa das atividades profissionais, assume relevancia cada ‘vez maior, é a das anotacées clinicas. A passagem de anotagées esporddicas e ndo sistematizadas para prontuérios e arquivos informatizados e disponiveis on-line cria novos desafios éticos e legais, varios de- les ainda sem resposta consensual. Quem produz ¢ armazena esses arquivos tem o dever de fazé-los da maneira mais clara e facilmente utilizavel. Ha o inte- resse do paciente em ter seus dados clinicos adequa- damente colhidos, anotados e bem conservados. Ha 0 interesse coletivo do avanco cientifico e a identifi- cagio de situag6es que impliquem o estabelecimento de uma politica especifica de satide. Ha, também, 0 interesse do médico, para sua seguranca profissional em situagdes de confronto na relagio médico-pa- ciente, em manter anotados todos os procedimentos realizados. O prontuatio clinico ¢ todo 0 acervo do- cumental, ordenado e preciso dos cuidados de satide prestados, tais como anamnese, ocorréncias clinicas, anotacGes de enfermagem, relatérios de cirurgia ¢ anestesia e resultados de exames complementares. Deve conter todos os dados necessérios dispostos de maneira clara, legivel e de facil acesso. Um prontué- rio malfeito traz prejuizos imediatos para o paciente, mediatos para a coletividade e eventuais para o pré- prio médico, O prontuério pertence ao paciente, que tem direito a acesso ilimitado a ele. Cabem aos mé- dicos ou as chefias das instituigdes de satide a guarda € a responsabilidade de sua utilizagio. Receitar de forma ilegivel ou usando siglas e abreviaturas abu- sivamente é negligéncia profissional, podendo o mé- dico, ainda, quando essa negliggncia causar dano 20 paclente, responder a agbes civis ou penais por culpa profissional. O uso indiscriminado de siglas, abrevia- turas e jargées de especialidades profissionais é fa- tor indutor de erros terapéuticos, pela interpretacio errdnea de quem executa a prescri¢lo. Além disso, desrespeita 0 direito do paciente de ter informagées claras e objetivas sobre seus problemas de saide. Es- creve-se pouco e comunica-se menos ainda. ‘Outro aspecto a ser considerado ¢ o do sigilo dos dados obtidos na relagéo médico-paciente. Entende- -se por segredo médico 0 siléncio que 0 profissional de satide esté obrigado a manter sobre fatos de que tomou conhecimento no exercicio de seu trabalho € que nio seja imperativo revelar. Uma questao intrin= secamente ligada a0 segredo profissional é 0 arma- zenamento informatizado crescente dos dados cole- tados. Quanto mais alto 0 mimero de informagoes ‘manipuladas num programa de computador, mais elevado seré 0 risco da quebra do sigilo de fatos que devem ser preservados. Para agir corretamente, é necessdria competén- cia técnica e € preciso agir profissionalmente, res- peitando a familia, o paciente e a equipe de satide, construindo uma relacdo entre todos. A relagio ética sempre se desenvolve “entre nés’; e s6 quando esses “nds” sio cidadios, isto é, pessoas com plenitude e igualdade de direitos e deveres, essa relagio se con- solida. Deve ser lembrado que 0s cidadaos esto em diferentes situagdes de vulnerabilidade; se, por um lado a equipe de satide detém o.conhecimento téc- nico, por outro, especialmente em caso de agravo a satide, a crianga ou 0 adolescente ¢ a sua familia, ficam mais vulnerdveis -fisica, psiquica ou emocio- nalmente -, necessitando, portanto, de proteco, Por ser uma relagao entre pessoas com necessidades, de- sejos e valores miiltiplos e diversos, este é um cami- tho a ser construido enquanto se caminha, Em uma sociedade do bem-estar que busca ofe- recer ampla protecdo ao cidadao nos campos da saii- de, educacio € servicos sociais, o médico cumpre 0 CAP 1 * ACRIANGA, O ADOLESCENTE E 0 PEDIATRA: POR UMA RELAGAO ETICA 3 Scanned with CamScanner Papel de técnico altamente especializado, a servico das institui¢des sanitdrias para satisfazer todas as de- ‘mandas de uma populagdo cada vez mais exigente. HA busca pelo estado perfeito de satide e de felici de. As doengas ¢ a morte sio vistas como fracassos terapéuticos, e ndo como componentes essenciais da vida humana. O médico passa a exercer a chamada medicina da complacéncia, com agies cada vez de custo mais elevado e de beneficios escassos. Outro. lado desse paradigma ¢ 0 estimulo a pritica da medi- ina defensiva. O médico faz tudo e mais alguma coi- sa para satisfazer as demandas dos usudrios da saiide. ‘A mudanga do padrio de morbimortalidade, de uma mottalidade precoce para uma morbidade crénica, demanda nova abordagem do médico que, Preparado para atuar em eventos agudos, vé-se fren- teacondigdes crdnicas, ante as quais tem de exercer tengo continua ¢ integral em lugar da atengio frag- mentada ¢ descontinua, caracteristicas dos nossos sistemas sanitérios. Além disso, situagdes tradicio- nalmente vistas como condigées fisioldgicas - me- nopausa, cansaco, tristeza, estresse, baixa estatura, entre outras - passam a ser consideradas problemas de satide, com propostas diagndsticas e terapéuticas. O médico, para atender aos novos desafios ~ tratar doentes ¢ nao doengas -, deve reconhecer a assime- tria da relacio entre ele e a familia. Manter atitudes REFERENCIAS titicas, sabendo-se mover na ambiguidade e na in. certeza, utilizando as bondades do método cientifico, mas sabendo que para além do paradigma fitico ¢ positivista ele deve saber se mover no mundo dos va- lores - que dio sentido a vida e & doenca do paciente, Ser comunicador e empatico, evitando colher apenas as informagées “duras’, obtidas mediante os procedi. mentos diagndsticos e saber tirar proveito das infor. mages “brandas’, obtidas pela relagio dialogal com © paciente e sua familia. Preocupar-se tanto'em ser afetivo quanto efetivo. Ser capaz de conciliar 0 racio. nal com o relacional ~ © racional sozinho é ma me. dicina e 0 relacional, apenas, nao é sequer medicina, Ser responsavel, individual e socialmente, e procurar tomar boas decisées para 0 paciente ¢ para o sistema sanitério, sabendo atuar em um panorama de recur. 50s limitados, sendo de um Jado agente regulador de recursos e, de outro, assumindo o papel de advogado dos melhores interesses do’ sew paciente. Ser capa de liderar a equipe assistencial, delegando fuunges.e trabalhando em equipe: Comprometer-se.com o pa- ciente e com a instituig4o ¢ o sistema de satide nos quais exerce a profissao, pois determinados compo- nentes da gestio sao consubstanciais ao exercicio da Mediciria. Enfim, agir como um cidadao, responsé- vel por construir uma sociedade mais justa e iguali- taria para todos. Beretta, Polastr D, Clerici CA, Casanova M, Cefalo G, Ferrari A, et al. End of life in children with cancer: experience atthe Pediatric Oncology Departament of the Instituto Nazionale Tumori in Milan. Pediatr Blood Cancer. 2010; 54:88-91. Gual A, Oriol-bosch A, Pardell H, El médico del futuro. Méd Clin (Barc).,2010;134(8):363-8. ‘Mckinlay J, Marceau L. Where there is no doctor: reasons for the disappearance of primary care physicians in the US during the early 21st century. Social Science & Medicine.2008;67:1481-91. Sege RD, Flaherty EG. Forty years later: inconsistencies in reporting of child abuse. Arch Dis Child. 2008;93:822-4. Segre M, Cohen C. Bioética. Sao Paulo: Edusp; 1995. 173 p. Walsh KE, Gurwitz JH. Medical abbreviations: writing litlle and comunicating less. Arch’ Dis Child. 2008;93:816-7. Scanned with CamScanner

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