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As evidéncias do cotidiano Em nossa vida eotidiana, afirmamos, nega- mos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situages, Fazemos perguntas como “que horas so?” ou “que dia € hoje?”. Dizemos frases como “ele esté sonhando”, ou “ela ficou malu- , Fazemos afirmagSes como “onde ha furaga, hiyfogo”, ou “nfo saia na chuva para nio se Fes- ‘frtax”, Avaliamos coisas pessoas, dizendo, por exemplo, “esta casa é mais bonita do que a outra @ "Maria est mais jovem do que Glorinks ‘Numa disputa, quandoos dnimos esto exal- tados, um dos contendores pode gritar a0 outro: ‘“Mentiroso! Eu estava Ide nfo foi isso 0 que acon- teceu”, ¢ alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: “Vamos ser objetivos, cada um diga 0 que yiu e vamos nos entender” ‘Também € comum ouvirmos pais ¢ amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto € 0 namorado ou a namorada, Freqlentemente, quando ‘aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pes- soa “é legal”. ‘Vejamos um pouco mais de perto co que dizemos em nosso cotidiano, Quando pergunto “que horas si?” ou “que dia € hoje?", minha Quadro A persisténcia da meméra, do ‘pintor surealista Salvador Dal (1904-1989), ‘0 alaito dasss representapéo nao seria tao intigante se nao acetassemos tacitamente {que 0 tempo existe e que o reldgio marca ‘sua passagem. expectativa € a de que alguém, tendo um rel6gio ‘ou um calendéio, me dé a resposta exata. Em que acredito quando fago a pergunta e aceito a res- posta? Acredito que o tempo existe, que ele pas sa, pode ser medido em horas e dias, que 0 que ja passou é diferente de agora e o que viré também hd de ser diferente deste momento, que 0 passado pode ser lembrado ou esquecido, e 0 futuro, de- sejado ou temido, Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, varias crengas nfio ques- tionadas por nds. Quando digo “ele est sonhando”, referindo- me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossivel ou improvével, tenho igualmen- te muitas crengas silenciosas: acredito que sonhar 6 diferente de estar acordado, que, no sonho, 0 impossivel e 0 improvavel se apresentam como possvel e proviivel, e também que 0 sonho se re- laciona com o irreal, enquanto a vigiia se relacio- na com o que existe realmente, Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebé-la e conhecé-la tal como 6, sei diferenciar realidade de ilusio. A frase “ela ficou maluca” contém essas mes~ mas crengas ¢ mais uma: a de que sabemos dife- renciar razdo de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente s6 para cla. As- sim, ao acreditar que sei distinguir razio de lou- cura, acredito também que a razao se refere a uma realidade que a mesma para todos, ainda que no gostemos das mesmas coisas. Quando alguém diz “onde ha fumaga, hd fogo’ ‘ou “nfo saia na chuva para nio se resfriar”, afirma silenciosamente muitas crengas: acredita que exis- tem relagées de causa ¢ efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve urna cau- sa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma ‘oulra (0 fogo causa a fumaga como efeito, a chuva causa 0 resfriado como efeito). Acreditamos, as- sim, que a realidade é feta de causalidades, que as coisas, 0s fatos, as situagdes se encadeiam em rela~ ges catsais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida. Quando avaliamos que uma casa é mais bo- nita do que a outra, ou que Maria esté mais jo- vem do que Glorinha, acreditamos que as coi- sas, as pessoas, as situagdes, os fatos podem ser comparados ¢ avaliados, julgados pela qualida- de (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, {que a qualidade e a quantidade existem, que po- demos conhecé-las e usé-las em nossa vida Se, por exemplo, dissermos que “o Sol é maior do que o vemos”, também estamos acreditande que nossa percepgao alcanga as coisas de modos dife- rentes, ora tais como sfio em si mesmas, ora tais ‘como nos aparecem, dependendo da distancia, de nossas condigdes de visibitidade ou da localizago e do movimento dos objetos. Acreditamos, portanto, que © espago existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) & quantidades, podendo ser medido (comprimento, Jargura, altura). No exemplo do Sol, também se nota que acreditamos que nossa visdo pode ver as. coisas diferentemente do que elas so, mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos. InTRCDUCKO, Na briga, quando alguém chama 0 outro de mentiroso porque nfo estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, esté presente a nossa erenga de que ha diferenca entre verdade e mentira. A primeira diz. as coisas tais como so, enquanto a segunda faz exatamente © contrétio, distorcendo a realidade. No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhiador, (© louco € 0 que erra se iludem involuntariamente, ‘enquanto o mentiroso decide voluntariamente de- formar a realidade ¢ os fatos. Com isso, acreditamos que o erro ea mentira silo falsidades, mas diferentes porque somente na ‘mentira hd a decisio de falsear. ‘Ao diferenciarmos erro de mentira, conside- rando 0 primeiro uma ilusio ou um engano involuntérios ¢ a segunda uma deciséo volunté~ ria, manifestamos silenciosamente a crenga de que somos sores dotados de vontade e que dela de- pende dizer a verdade ou a mentira. Aomesmo tempo, porém, nem sempre avalia- ‘mos a mentira como alguma coisa ruim: no gos- tamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E nfo so mentira? E que também acredi- tamos que quando alguém nos avisa que est men- tindo, a mentira é aceitavel, néo seria uma mentira “no duro”, “pra valer”. Quando distinguimos entre verdade e menti- rae distinguimos mentiras inaceitaveis de menti ras aceitdveis, ndo estamos apenas nos referindo 0 conhecimento ou desconhecimento da reali- dade, mas também ao cardter da pessoa, & sua ‘moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para ‘bem ou para o mal Na briga, quando uma terceira pessoa pede &s outras duas para que sejam “objetivas” ou quando falamos dos namorados como sendo “muito sub- jélivos”, também estamos cheios de crengas silen- ciosas. Acreditamos que quando alguém quer de~ fender muito intensamente um ponto de vista, uma preferéncia, uma opiniao, até brigando por isso, ou ‘quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém “perde” a objetividade, ficando “mui- to subjetivo” c uma com dade senti Assit subje ques realic Junta ’ osm desp des, oss avic eso. seme mas ticos segu valo cord dita ais. tod cita que pag qua: dade ren elas Tiber dec gun a ee Su OES nk Te er ns atro de 5 fatos sente a dade e 10 so, tréio, ferente nnhador, mente, te de- nentira cente na onside sngano olunté- de que ela de- walia- dio gos- ssistira acredi ‘imen- snentira menti menti (erindo reali A sua essoas, vrais ow > para o pede as quando ito sub- ss silen- er de- uma isso, ou pessoa, Com isso, acreditamos que a objetividade & uma atitude imparcial que alcanga as coisas tais, como séo verdadeiramente, enquanto a subjetivi- dade é uma atitude parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, édio, medo, desejo). Assim, niio 36 acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como ainda actedifamos que sfo diferentes e que a primeira nio deforma a realidade, enquanto a segunda, voluntaria ou invo- luntariamente, a deforma. ‘Ao dizermos que alguém "é legal” porque tem ‘os mesmos gostos, as mesmas idéias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nés ¢ tem atitu- des, hibitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas — familia, amigos, escola, trabalho, sociedade, politica — nos faz semelhantes ou diferentes em decorréncia de nor- ‘mas e valores morais, politicos, religiosos e artis- ticos, regras de conduta, finalidades de vida. Achando ébvio que todos os seres humanos seguem regras € normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, politicos, artisticos, vive na companhia de seus semelhantes e pro- uram distanciar-se dos diferentes dos quais dis- cordam e com os quais entram em conflito, acre ditamos que somos seres sociais, morais e racio- nais, pois regras, normas, valores, finalidades 6 podem ser estabelecidos por seres conscientes € dotados de raciocinio. ‘Como se pode notar, nossa vida cotidiana & toda feita de crencas silenciosas, da aceitagao té- cita de evidéncias que nunca questionamos por- que nos parecem naturais, ébvias. Cremos no es- ago, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferenga entre real dade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferenga entre cla e a subjetividade, na existéncia da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade. Aatitude filoséfica * Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma. decisio muito estranha e comegasse a fazer per- guntas inesperadas. Em vez de "que horas so?” ‘ou “que dia € hoje?”, perguntasse: O que ¢ 0 tem- po? Em ver de dizer “esté sonhando” ou “ficou ‘maluca”, quisesse saber: O que é 0 sonho? A lou- cura? A razio? Se essa pessoa fosse substituindo sucessiva- mente suas perguntas, suas afirmagSes por outras: “Onde ha fumaiga, hé fogo”, ou “nao saia na chu- va para nio ficar resfriado”, por: O que é causa? O que éefeito?; ‘seja objetivo”, ou “eles so muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que aoutra", por: Oque é "mais"? Oque é “menos”? O que é 0 belo? Em ver de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é ofalso? O que é 0 erro? O que €a mentira? Quando existe verdade e por qué? Quando existe ilusiio e por qué? Se, em vez de falar na subjetividade dos na- morados, inquirisse: O que é 0 amor? O que é 0 desejo? O que sao os sentimentos? Se, em lugar de discorrer trangiiilamente so- bre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, re- solvesse investigar: O que é a quantidade? O que 6a qualidade? E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gos- tos, as mesmas preferéncias ¢ os mesmos valo- res, preferisse analisar: O que é um valor? O que um valor moral? O que é wm valor artistico? O que €a moral? O que éa vontade? O que éa liber- dade? Alguém que tomasse essa decisao estaria to- ‘mando disténcia da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar 0 que sio as crengas ¢ os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nos- sa existéncia, ‘Ao tomar essa distancia, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no {que cremos, por que sentimos 0 que sentimos ¢ 0 ‘que so nossas erengas e nossos sentimentos. Esse alguém estaria comegando a adotar 0 que chama- mos de atitude filoséfica. Assim, uma primeira resposta & pergunta “O que & filosofia?” poderia ser: A deciséo de nao aceitar como ébvias ¢ evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situagdes, os valores, os comporta- mentos de nossa existéncia cotidiana; jamais aceiti-los sem antes havé-los investigado € com- preendido. Perguntaram, certa vez, a um fildsofo: “Para {que filosofia?”. E ele respondeu: “Para nao dar- mos nossa aceitagio imediata ds coisas, sem maio- res consideragses”. A atitude critica A primeira caractertstica da atitude filoséfica E negativa, isto é, um dizer nao ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-jufzos, aos fatos € as idéias da experiéncia cotidiana, ao que “todo mun- do diz.e pensa”, ao estabelecido. ‘A segunda caracteristica da atitude filoséfica € positiva, isto é, uma interrogagiio sobre 0 que fio as coisas, as idéias, 05 fatos, as situagdes, os comportamentos, os valores, nés mesmos. E tam- ‘bém uma interrogagio sobre o porqué disso tudo ¢ de nés, e uma interrogaca0 sobre como tudo isso é assim e nfo de outra maneira. O que é? Por que €? Como é? Essas sio as indagagdes funda- mentais da atitude filos6fica. ‘A face negativa e a face positiva da atitude filoséfica constituem o que chamamos de atitu- de critica e pensamento critico, A filosofia comega dizendo nfo as crengas ‘aos preconceitos do senso comum e, portanto, comeca dizendo que ndo sabemos o que imagi- navamos saber; por isso, 0 patrono da filosofia, o grego Sécrates, afirmava que a primeira e fun- damental verdade filos6fica € dizer: nada sei”, Para o discipulo de Sécrates, o filéso- fo grego Plato, a filosofia comeca com a ad ragdo; j4 0 discipulo de Platio, o filésofo Aristételes, acreditava que a filosofia comeca com 0 espanto. ‘Admiragao © espanto significam: tomamos distancia do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca 0 tivéssemos visto antes, como se ndo tivéssemos tido familia, amigos, professores, livros e outros, ‘meios de comunicagiio que nos tivessem dito 0 {que 0 mundo ; como se estivéssemos acabando de nascer para 0 mundo € para nés mesmos e pre- INTRODUGKO, cisdssemos perguntar o que & por que € e como (© mundo, e precisassemos perguntar também o ue somos, por que somos € como somos. ~ Para que filosofia? Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afi- nal, para que filosofia? uma pergunta interessante, Nao vernos nem ‘ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemitica ou fisica, para que geografia ou geolo- aia, para que histéria ou sociologia, para que bio- Jogia ou psicologia, para que astronomia ou qui- mica, para que pintura, literatura, mdsica ou dan- ¢a. Mas todo mundo acha muito natural perguntar Para que filosofia? Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irdnica, conhecida dos estudantes de fi- Josofia: “A filosofia é uma ciéncia com a qual ¢ sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a filosofia nfo serve para nada. Por isso, se costuma chamar de “fildsofo” alguém sempre dis- traido, com a cabeca no mundo da Lua, pensando ¢ dizendo coisas que ninguém entende ¢ que sto perfeitamente imiteis. Essa pergunta, “Para que filosofia? razio de ser. “temasua Em nossa cultura e em nossa sociedade, cos- tumamos considerar que alguma coisa s6 tem 0 direito de existir se tiver alguma finalidade prt ca, muito visivel e de utilidade imediata. Porisso, ninguém pergunta para que as cign pois todo mundo imagina ver a utilidade das cién- cias nos produtos da técnica, isto €, na aplicagio cientifica & realidade. ‘Todo mundo também imagina vera utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte quanto porque nossa cultura vé os artistas como génios que merecem set valorizados para 0 logio da humanidade, Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a filosofia, donde dizer-se: nao serve para coisa alguma. ias, Parece, porém, que 0 senso comum no en- xerga algo que os cientistas saber muito bem. As ciéncias pretendem ser conhecimentos verdadei- Alas por pen ata ten rigi sup: dew san teor que par: clés det: soli oe spe como nbém © vs afi- vos nem, vara que sand ue so nasua temo prati- i lic idedas + obras, urtistas segue ce: no ‘Ala central do Museu D'Orsay, na Franga, Seria inconcebivel construe um espace arquittonico como esse 3@ as obras de arte al expostas nao fossem reconhecidas or nossa cultura 108, obtidos gragas a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pre- tendem fazer progressos nos conhecimentos, cor- rigindo-os ¢ aumentando-os, + Om, todas essas pretenses das cignctas pres- supSem que elas acréditam na existéncia da verda- de, de procedimentos corretos para bem usar 6 pen samento, na tecnologia como aplicagio pratica de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, por- que podem ser cortigidos e aperteigoados ‘Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relagio entre teoria e pritica, corregio € actimulo de saberes: tudo isso niio € cigncia, so questdes filoséficas, O cientista parte delas como quesides jf respondidas, mas € a filo- sofia que as formula e busca respostas para elas. Assim, o trabalho das ciéncias pressupde, ‘Como condigao, 0 trabalho da filosofia, mesmo que © cientista no seja fil6sofo. No entanto, como apenas os cientistase flésofos sabem disso, 0 sen- Kile so comum continua afirmando que a filosofia ndio serve para nada, Para dar alguma utilidade filosofia, muitos consideram que, de fato, a filosofia nao serviria para nada se “servir” fosse entendido como a possibili- dade de fazer usos técnicos dos produtos filoséfi- cos ou dar-lhes utilidade econdmica, obtendo lu- ‘eros com eles; consideram também que filosofia nada teria a ver com a ciéncia e a técnica, Para quem pensa dessa forma, o principal para a filosofia nfo seriam os conhecimentos (que fi- ‘cam por conta da ciéncia) nem as aplicagdes de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas © ensinamento moral ou ético. A filosofia seria a arte do bem-viver. Estudando as paixdes e os vicios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a ca~ pacidade de nossa razo para impor limites 20s nos- sos desejos ¢ paixdes, ensinando-nos a viver de ‘modo honesto ¢ justo na companhia dos outros se~ res humanos, a filosofia teria como finalidade en- sinar-nos a virtude, que 0 principio do bem-viver. Essa definigo da filosofia, porém, nao nos ajuda muito, De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a filo- sofia continua fazendo suas perguntas descon- certantes e embaragosas: Q que € 0 homem? O que é a vontade? O que é a paixdo? O que é a Fazio? O que € o vicio? O que € a virtude? O que € a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade ¢ a virtude sdo valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimen- tos e as ages humanas? Assim, mesmo se disséssemos que 0 objeto da filosofia nfo é 0 conhecimento da realidade, nem 0 conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que 0 objeto da filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim o estilo filosdfico e a atitude filoséfica permaneceriam os :meesmos, pois as perguntas filoséficas —o que, por que e como — permanecem. Atitude filoséfica: indagar Se, portanto, deixarmos de lado, por enquan- to, os objetos com os quais a filosofia se ocupa, ‘eremos que a atitude filoséfica possui algumas caracteristicas que sao as mesmas, independente- mente do contetido investigado, Essas caracterfs- ticas sio: 7 perguntar 0 que a coisa, ou o valor, ou a idéia, €.A filosofia pergunta qual é a realidade ou natu. reza e qual € a significago de alguma coisa, nio importa qual; ¥ perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, 6. A filosofia indaga qual é a estrutura e quais sao as relagdes que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor; Y perguntar por que a coisa, a idéia ou 0 valor existe € € como é, A filosofia pergunta pela ori- ‘gem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de uum valor. A atitude filos6fica inicia-se dirigindo essas indagagées a0 mundo que nos rodeia e as rela- ges que mantemos com ele, Pouco a pouco, po- rém, descobre que essas questées se referem, afi- nal, & nossa capacidade de conhecer, & nossa ca- pacidade de pensat. Por isso, pouco a pouco, as perguntas da filo- sofia se dirigem ao préprio pensamento: o que é pensar, como € pensar, por que hé 0 pensar? A filosofia torna-se, entio, o pensamento interrogan- do-se a si mesmo, Por ser uma volta que o pensa- ‘mento realiza sobre si mesmo, a filosofia se reali- za como reflexiio, Areflexao filosofica Reflex significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexio € o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo. A reflexio filoséfica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mes- mo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como € possivel o préprio pensamento, INTRODUCAD Nao somos, porém, somente seres pensantes, Somos também seres que agem no mundo, que se elacionam com os outros seres humanos, cori os animais, as plantas, as coisas, 0s fatos © aconteci- ‘mentos, eexprimimos essas relagdes tanto por meio a linguagem quanto por meio de gestos e agdes, A reflexio filos6fica também se volta para essas relagdes que mantemos com a realidade circundante, ara 0 que dizemos e para as ages que realizamos nessas relagoes. A reflexio filos6fica organiza-se em torno de trés grandes conjuntos de perguntas ou ques- tes: 1, Por que pensamos 0 que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto 6, quais os motivos, as razées e as causas para pen. sarmos 0 que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos 0 que fazemos? 2. O que queremos pensar quando pensamos, 0 que queremos dizer quando falamos, o que que- Temos fazer quando agimos? Isto é, qual & 0 contetido ou o sentido do que pensamos, dize- mos ou fazemos? 3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos 0 que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual € a intengio ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? Essas trés questées podem ser resumidas em: O que 6 pensar, falar e agir? E elas pressupdem a seguinte pergunta: Nossas crengas cotidianas so ou ndo um saber verdadeiro, um conhecimento? Como vimos, a atitude filos6fica inicia-se in- dagando: O que €?, Como 62, Por que é?, dirigi do-se a0 mundo que nos rodeia e aos seres hurma- nos que nele vive e com ele se relacionam. Sio erguntas sobre a essncia, a significagio ou a estrutura ¢ a origem de todas as coisas. Jia reflexao filos6fica indaga: Por qué?, O ‘qué?, Para qué?, ditigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexiio. Sao perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir. mass: prefer pag A sisten Q Ss cindo tos 16 ceitos mons nossa nides Nao» der a o telect obter exige em se deira: idéias trada: Q losofi ano” E filose idea case} pios easy fan N it isantes. que se com os onteci- ormeio ayes, dante, amos, + torno tques- ra pen- zemos, nos, 0 ve que- ral € 0 dize- ‘nos 0 S qual samos, asem: vem a nas io vento? se ine irigin- huma- n, So ooua 182, 0 0s untas 's para Filosofia: um pensamento sistematico Essas indagagdes fundamentais néo se real zam ao acaso, segundo preferéncias e opiniGes de cada um de nés. A filosofia nfo € um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Nao é pesquisa de opi- nigo & maneira dos meios de comunicagao de ‘massa, Nao é pesquisa de mercado para conhecer preferéncias dos consumidores e montar uma pro- paganda. As indagagées filos6ficas se realizam de modo sistemstico. Que significa isso? Significa que a filosofia trabalha com enun- ciados precisos e rigorosos, busca encadeamen- tos légicos entre os enunciados, opera com con- ceitos ou idéias obtidos por procedimentos de de- monstragio e prova, exige a fundamentagdo racional do que € enunciado e pensado. Somente assim a reflexfo filos6fica pode fazer com que nossa experiéncia cotidiana, nossas crengas ¢ opi- niges alcancem uma visdo eritica de si mesmas. Nifo se trata de dizer “eu acho que”, mas de po- der afirmar “eu penso que”, 0 conhecimento filos6fico & um trabalho i telectual. E sistemdtico porque nao se contentaem. obier respostas para as questOes colocadas, mas exige que as proprias questdes sejam vilidas e, em segundo lugar, que-as respostas sejam verda- deiras, estejam relacionadas entre si, esclaregam tumas as outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significagées, sejam provadas e demons- tradas racionalmente. Quando o senso comum diz “esta é minha fi- losofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fu- Jano", engana-se e nfo se engana Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coi- ‘sas e pessoas, bem como ter um conjunto de prinét- pos mais ou menos coerentes para julgar as coisas € as pessoas, “Minha filosofia” ou a “filosofia de falano” ficam no plano de um “eu acho” coerente. ‘Mas 0 senso comum no se engana ao usar ‘essas expresses porque percebe, ainda que mui- i to confusamente, que ha uma caracteristica nas idéias e nos principios que nos leva a dizer que so uma filosofia: a coeréncia, as relagdes entre as idéias e entre 0s princfpios. Ou seja, 0 senso comum pressente que a filosofia opera sistemati- camente, com coeréncia e légica, que a filosofia tem uma vocagio para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa ex- periéncia cotidiana, Em busca de uma definicdo da filosofia Quando comegamos a estudar filosofia, so- mos logo levados a buscar 0 que ela é. Noss primeira surpresa surge ao descobrirmos que nao hé apenas uma definigio da filosofia, mas varias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de varias, as definigdes parecem con- tradizer-se. Eis por que muitos, cheios de per- plexidade, indagam: afinal, 0 que € a filosofia que nem sequer consegue dizer o que ela é? Uma primeira aproximagio nos mostra pelo ‘menos quatro definigdes gerais do que seria a fi- losofia 1. Visio de mundo de um povo, de uma civiliza- go ou de uma cultura, Filosofia corresponde, de ‘modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores € praticas pelos quais uma sociedade apreende compreende o mundo ea si mesma, definindo para si 0 tempo € 0 espago, o sagrado e 0 profano, ‘bom e 0 mau, justo € o injusto, 0 belo e 0 feio, 0 verdadeiro e 0 falso, o possivel e o impossfvel, 0 contingente e o necessétio. Qual o problema dessa definigdo? Ela € tio sgenérica e tio ampla que ndo permite, por exem- plo, distinguir filosofia de religiao, filosofia de arte, filosofia de ciéneia, Na verdade, essa defi- nigdo identifica filosofia e cultura, pois esta é uma visdo de mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e préticas de uma sociedade. A definiclo, portanto, nfo consegue acercar- se da especificidade do trabalho filos6fico e por isso no podemos aceité-. e: ntRopUGO ~ 2, Sabedoria de vida. Aqui, a filosofia € idemtificada com a definigio ¢ a ago de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedican- do-se 3 contemplagio do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo Alico e sdbio. A filosofia seria uma contemplagio do mu do e dos homens para nos conduzir a uma vida justa, sabia e feliz, ensinando-nos o dominio so- ‘bre nds mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixes, E nesse sentido que se fala, por exern- plo, numa filosofia do budismo. 1a definigdo, porém, nos diz, de modo ‘ago, 0 que se espeta da filosofia (2 sabedoria interior), mas nao o que eo que faz.a filosofia ¢, por isso, também ndo podemos aceiti-Ia. 43, Esforgo racional para conceber 0 Universo ‘como uma totalidade ordenada e dotada de sentido. Neste caso, comeca-se distinguindo en tre filosofia e religifi e até mesmo opondo uma 8 outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (com- preender o Universo), mas a primeira 0 faz atra- vvés do esforgo racional, enquanto a segunda, por confianga (fé) numa revelagio divina. (Ou seja, a filosofia procura discutir até o fim co sentido e 0 fundamento da realidade, enquanto 1 consciéncia religiosa se baseia num dado pri- meiro e inquestiondvel, que € a revelagdo divina indemonstrével. Pela {6a eligido aceita principios indermons- trdveis e até mesmo aqueles que podem ser con- siderados irracionais pelo pensamento, enquan- to a filosofia nao admite indemonstrabilidade € irracionalidade. Pelo contrério, a consciéncia fi- loséfica procura explicar e compreender 0 que parece ser irracional e inquestionével. No entanto, esta definigao também é proble- atica, porque dé & filosofia a tarefa de oferecer ‘uma explicagao ¢ uma compreensio totais sobre ‘0 Universo, elaborando um sistema universal ou tum sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa € impossivel. Ha pelo menos duas limitagdes prineipais a esta pretensio totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicagio sobre a realidade também € ferecida pelas ciéncias e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das ciéncias) € para a expressdo (no caso das artes), jf nfo sen~ do pensével uma tinica disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimen- tos; em segundo lugar, porque a propria filosofia jj ndo admite que seja possivel um sistema de ppensamento tinico que oferega uma nica expli- cago para o todo da realidade. Por isso, esta definigao também nao pode ser aceita. 4, Fundamentagio teérica e erftica dos conhe- cimentos e das priiticas. A filosofia, cada ver. mais, ocupa-se com as condig6es e os prinefpios do conhecimento que pretenda ‘ser racional € vyerdadeiro; com a origem, a forma ¢ 0 conteiido dos valores éticos, politicos, artisticos ¢ cultu- rais; com a compreensiio das causas ¢ das for- ‘mas da ilusfo e do preconceito no plano indi- vidual e coletivo; com as transformagGes histé- ricas dos conceitos, das idéias e dos valores. ‘A filosofia volta-se, também, para 0 estudo daconsciéncia em suas virias modalidades: per- cepcao, imaginagao, meméria, linguagem, in- teligéncia, experiéncia, reflexio, comportamen- to, vontade, desejo e paixdes, procurando des- crever as formas e os contetidos dessas modali- dades de relagio entre o ser humano € 0 mun- do, do ser humano consigo mesmo € com os outros. Finalmente, a filosofia visa ao estudo & 2} interpretagdo de idéias ow significagdes ge- rais como: realidade, mundo, natureza, cultura, hist6ria, subjetividade, objetividade, diferenga, repetisao, semelhanga, conflito, contradigio, mudanga, ete. ‘Sem abandonar as questées sobre a esséncia da realidade, a filosofia procura diferenciat-se das iéncias ¢ das artes, dirigindo a investigacio so- bre o mundo natural e © mundo histérico (ou hu- ‘mano) num momento muito preciso: quando pet- ‘demos nossas certezas cotidianas e quando as cién- Glas ¢ as artes ainda nao ofereceram outras certe- zas para substituir as que perdemos. {Em outras palavras, a filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mun ddo das coisas) ¢ a histérica (0 mundo dos homens) tomam-se estranhas, espantosas, incompreensfveis cenigi oque) io s Es ceapta : ci€ncic xiio (is conhe: mento ilusdes das tes cas), Dest we hum loso) realide que si de int sere A ca sob Naoé gens e uma it mas, d Thoart a inter métod tica, © sobre Nao ¢ acont ‘comp: cimen conhe: cfpios gadas que es indti € inst spo da ias)e wdesse imen- rsofia na de onhe- a vex ‘pios mal e tedido cultue s for- indi- hhisté- studo per- a, ine men. des vdali- mun- m os udoe hur, enga, igo, Shei e das 10 80" uhu- per eign erte- apor num c enigmiticas, quando o senso comum ja ndo sabe que pensar e dizer e as cincias e as artes ainda niio sabem o que pensar e dizer. Esta diltima descrigio da atividade filos6fica capta a filosofia como anélise (das condigdes da cigneia, da religigo, da arte, da moral), como refle- xiio (isto é, volta da consciéneia para si mesm para conhecer-se enquanto capacidade para 0 conheci- ‘mento, o sentimento ¢ a ago) e como eritien (das ilusées e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias ¢ praticas cientificas, politicas e artisti- cas), essas ts atividades (andlise, reflexdo e criti- ca) estando orientadas pela elaboragao filoséfica de significagdes gerais sobre a realidade ¢ os seres humanos. Além de andlise, reflexo e critica, a fi- losofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas miiltiplas formas, indagando 0 ‘que sto, qual sua permanéncia ¢ qual a necessida- de interna que as transforma em outras. O que € 0 ser e 0 aparecer—desaparecer dos seres? {A filosofia nao é ciéncia: é uma reflexao criti- ea sobre os procedimentos e conceitos cientificos Nio é religido: é uma reflexdo erftica sobre as ori- gens e formas das crengas religiosas. Nao é arte: & ‘uma interpretagio critica dos contetidos, das for- ‘mas, das signifieagdes das obras de arte ¢ do waba- Thoartaico, N3bé sociologia nem plcologia, mas a interpretagio e avaliagdo critica dos conceitos & métodos da sociologia e da psicologia. Nao é poli- a, mas intexpretagao, compreensio ¢ reflexo sobre a origem, a.natureza e as formas do poder. Nao € historia, mas interpretagiio do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo ¢ compreensiio do que seja o préprio tempo. Combe cimento do conhecimento ¢ da ago humanos, conhecimento da transformagao temporal dos prin cfpios do saber e do agir, conhecimento da mudan- ga das formas do real ou dos seres, a filosofia sabe que esti na Historia e que possui uma hist6ria, Inuatil? Util? O primeiro ensinamento filos6fico é pergun- tar: O que 0 util? Para que e para quem algo é itil? O que € o indtil? Por que e para quem algo € initil? senso comum de nossa sociedade consi- dera ttil o que dé prestigio, poder, fama e rique- za. Julga titil pelos resultados vistveis das ¢ sas e das ages, identificando utilidade ¢ a fa- ‘mosa expressio “evar vantagem em tudo” Des- se ponto de vista, a filosofia é inteiramente int: til e defende o direito de ser intitil Nao poderfamos, porém, definir o util de uma outra maneira? Platio definia a filosofia como um saber ver- dadeiro que deve ser usado em beneficio dos se- res humanos. Descartes dizia que a filosofia € 0 estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas'as coi- sas que 0s humanos podem alcangar para 0 uso da vida, a conservagao da side e a invengdo das técnicas e das artes. Kant afirmou que filosofia é 0 conhecimen- to que a razio adquire de si mesma para saber 0 que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade humana, Marx declarou que a filosofia havia passado _muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecé-lo para transformd- lo, transformagiio que traria justiga, abundancia e felicidade para todos. Merleau-Ponty escreveu que a filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo. Espinosa afirmou que a filosofia é um cami- ho drduo e dificil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade ¢ a feli cidade. Qual seria, entdo, a utilidade da filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconcei- tos do senso comum for til; se ndo se deixar guiar pela submissao as idéias dominantes ¢ aos pode- res estabelecidos for ttl; se buscar compreender a significagdo do mundo, da cultura, da hist6ria for itil; se conhecer 0 sentido das criagdes hume- nas nas artes, nas ciéncias e na politica for Wil se dar a cada um de nés e & nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ages numa pritica que deseja a liberdade e a felicidade para todos for til, entéo podemos dizer que a flosofia é 6 mais ttl de todos os saberes de que os seres hu- manos sio capazes.

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