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Capitulo 1 FILOSOFIA, CIENCIA E DIREITO “Quia studium philosophiae non est ad hoc, quod sciatur quid homines senserint, sed qualiter se habeat veritas rerum” [“O estudo da filosofia nao visa saber o que os homens pensaram, mas como se apresenta a verdade das coisas”) (Tomas pe Aquino, Comentérios ao De Caelo et Mundo, Livro I, Cap. X, Ligo XI, 8) “A filosofia chega sempre muito tarde, Como pensamento do mundo, s6 aparece quando a realidade efetuoue completou o processo de sua formagao. (.. Quando: a filosofia chega coma sua luz crepuscular a um mundo jé a anoitecer, é quando uma manifestagao de vida esté prestes a findar. Nao vem a filosofia para a reju- cair é que levanta 0 yoo o passaro de Minerva.’ ir 2 | CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO - José Reinaldo de Lima Lopes metédico (conceitual e procedimentalmente definido), ou “gramaticado”. Eciénciano sentido amplo, e aqui pode ser incluida a ciéncia do direito* HempEL, por exemple, filésofo da ciéncia do século XX, divide as ciéncias em empiricas e nao empiricas (HEMPEL, 1966). Para ele, e para muitos, as empiricas so ou naturais (biologia, quimica, fisica) ou sociais (antropologia, economia, ciéncia po- litica, ciéncias sociais). As ciéncias nao empiricas seriam a légica e a matematica. As afirmagées das ciéncias naturais, diz ele, s6 podem ser aceitas se forem apoiadas por evidéncias empiricas, obtidas pela experimentacao, observasao sistematica, entrevistas ou pesquisas (surveys), testes psicologicos ou clinicos, exame de vestigios arqueolégicose assim por diante (HEMPEL, 1966, p. 1). F duvidoso quea definicéo de Hempst se aplique completamente as ciéncias sociais, sobretudo levando em conta o cardter interpretativo e nao preditivo de tais disciplinas, como sugerido tanto por WincH (2008) quanto por Maclnryre (1984)*. Mas pode bem ser que seja adequada as ciéncias naturais. Quadro1 Divisio das ciéncias segundo HeMPEL. Ciéncias empiricas Ciéncias no empiricas Ciéncias naturais Légica, matemética Ciéncias sociais O debate filosfico em torno da natureza das ciéncias, de métodos e de sua dife- renga com relagao as pseudociéncias continua importante, na medida em que distinguir ciéncias de nao ciéncias ainda interessa a varios campos intelectuais'. ‘Sabemos que na universidade contemporanea existem muitas 4reas cujo modelo de conhecimento nao equivaleao das ciéncias no sentido estrito apontado por HEMPEL, como se da nas assim chamadas humanidades. * Cf.a definicdo de W. Dimey: “Por ‘ciéncia’ queremos indicar, ordinariamente, um complexo de proposigées (1) cujos elementos sao conceitos completamente definidos, i.e., validos permanente e universalmente dentro do sistema légico geral, (2) cujas ee fundamentadas, e (3) no qual as partes, finalmente, estao ligadas em um todo ‘comunicacao" Wilhelm Ditrner, Introduction to the human sciences, ed. R.. ‘Markkreel eF-R 4 | CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO ~ José Reinaldo de Lima Lopes mesma. Sao cientistas mesmos que refletem sobre o que fazem e oferecem explicagdes flloséficas de sua prépria pratica. Também acontece de alguns cientistas fazerem tal revolugéo nos métodos, nas pesquisas e na concepcéo de um campo do saber, que seu trabalho se torna o ponto de partida de outros trabalhos. Nesses casos, eles passam a ser os definidores da ciéncia em questdo. Seus trabalhos tornam-se filoséficos, Pois redefinem e reconceituam nao alguns fatos ou fenémenos, mas 0 campo inteiro, A no- vidade de seu trabalho passa a ser propriamente filos6fica. Exemplo disso foram Galileu Gaitet e Charles Darwin. Galileu matematizou as relagdes dos corpos, de modo que suas descri¢des dos fendmenos nao poderiam mais ser feitas em termos sensoriais apenas. DARWIN transformou a hist6ria natural de seu tempo ao propor que as espécies evoluiam, de modo que o trabalho do cientista nao poderia mais ser apenas o de classificar os seres vivos, mas também o de explicar como as espécies mudavam naturalmente (selecao natural, dird ele), Eles fizeram mais do que dar sequéncia ao que faziam outros antes deles: eles reformularam nossa maneira de pensar sobre seus respectivos campos (a astronomia, a biologia). E assim fazendo, apresentaram uma concepgio diferente do que é 0 mundo. Ora, uma concepgao geral do mundo da um fundamento propriamente filos6fico a maneira de fazer ciéncia, ou de desenvolver conhecimento num certo setor. Trata-se da inovagao tedrica a que se refere Thomas Kun ao falar das revolucées cientificas’, ODIREITO NAO E CIENCIA NO SENTIDO ESTRITO EMODERNO E obvio, portanto, que no sentido estrito o direito (e muitas outras disciplinas so- ciais, inclusive a economia) ndo é uma ciéncia’, E bastante compreensivel que HEMPEL, citado acima, nao o inclua entre as ciéncias (nem mesmo as sociais) propriamente ditas, pois o direito nao visa Prever eventos futuros, nem refutar por meio de testes uma explicagao ou justificacdo de um agente (um contratante, um réu, um juiz), nem pretende ou pode explicar o mundo empirico por meio de leis sem excegao. Nada disso se faz. com o instrumental tedrico e conceitual do direito. O “direito” - enquanto objeto de estudo entendido como ordenamento, sistema Conjunto de normas, ou enquanto disciplina, ciéncia, campo do saber ~ nao tema preten- so de descrever fendmenos, nem prever ocorréncias futuras, Uma norma juridica OU mmm uma doutrina ndo prevé ago alguma. Nem uma nem outra sio verificaveis, ou testaveis: no sentido usado nas ciéncias stricto sensu. Com o direito pretendemos qualificar nao prevé-las. O direito e os juristas nao se desinteressam pelas explicagdes nem pels Uma revolucdo cientifica afasta-se da ciéncia normal, porque esta acumiula muito mento, mas. nao descobre propriamente novidades fatuais ( a nem tedricas (pois vale-se de ui Sobre o mundo, digamos), Cf. Thomas Kun, A estrutura das: B.V. Boeira e N. Boeira (S30 Paulo: Perspectiva, 2001). Capitulo 1 - FILOSOFIA, CIENCIAEDIRETO | 5 previsdes, mas seu aparato conceitual ea “gramtica” de seu saber nao Ihes permitem isso. Quando alguém se dirige a um jurista pedindo alguma ideia de como os tribunais podem considerar certo caso, ele nao consulta uma tabela estatistica de probabilidades. Consulta, sim, o direito vigente, a lei (na maioria dos casos do direito moderno), a boa doutrina e a pratica reiterada dos tribunais. Sua resposta resulta de uma interpretacao do direito vigente (lei, doutrina, jurisprudéncia) e das circunstancias especificas do caso. De certo modo, todos eles sao “dados” que ele recolhe porque nao sao produzidos por ele pessoalmente. Mas ele nao prevé uma decisdo, nem prevé que seu cliente fara ou deixara de fazer um contrato ou negécio. Sua resposta sera mais ou menos assim: “se o juiz ou 0 tribunal se ativer ao que € 0 direito vigente (a lei, interpretada pela ju- risprudéncia ‘mansa e pacifica’ e pela ‘boa doutrina), decidira em tal ou qual sentido” “se voce quiser realizar um negécio vilido, deverd fazé-lo da seguinte maneira” Pode ser que as circunstancias do caso permitam que um juiz decida diferentemente, pois alei refere-se a tipos, nao a casos concretos. E no caso concreto pode ser que se descubram elementos que permitem uma decisao diferente. Também as partes podem introduzir clausulas novas no contrato de modo que se alterem as condigées dele. O direito como objeto, 0 direito objetivo de que se fala, tem naturalmente certo cariter de “dado”, E, em primeiro lugar, como disse, a lei, Mas a lei nunca est sozinha. Para que ela entre na pratica, precisa da doutrina, a qual equivale a um primeiro nivel de abstracao, em cuja esfera encontramos 0s termos operacionais dos muitos ramos do direito: os contratos, os negdcios, os bens, as pessoas, e assim por diante. Trata-se de conceitos, de modo que a doutrina jé exige ou pressupde um minimo de esforgo filos6- fico, porque conceitual. O estudo do jurista para responder a um caso concreto, como juiz ou advogado, convoca esse direito objetivo e junto com ele o aparato conceitual da doutrina. Mas qualquer resposta se subordina as circunstancias particulares do caso, as quais necessariamente tornam a resposta € 0 direito objetivo invocado sujeitos a uma clausula coeteris paribus. A ciéncia, ou saber, que conhece esse conjunto de dados, 0 direito objetivo, nao o trata como um ‘objeto a descreves jue se pretende é para orientar uma acao, Nesses termos, 0 conhecimento do objeto difere muito da sim- ples observacao das ciéncias naturais. Como veremos mais adiante, podemos observar anatureza “de fora’ mas nao é possivel observar o direito “de fora” da mesma maneira. Quadro2 Derrotabilidade: excegSes do caso concrete, Hoje, ouve-se “derrotabilidade” dalei. A expresso vem do ingles, defeasibility, ¢ foi usada por ‘Herbert Harr num artigo: de 1948, “The ascription of responsibility and rights” Significa que ciscunstancias especiais podem impedir a aplic - gio da norma a um caso que & primeira vist (prima facie) se-enquadcaria na. sua previsto. A. 6 | CURSO DEFILOSOFIA DO DIREITO — José Reinaldo de Lima Lopes | rnos interessa é sua afirmagio de que a expressio “exceto se..” é um componente essenciald juizo de aplicagdo da lei, O problema do juizo juridico de aplicagio nao esté apenas em q ‘0s conceitos (“contrato”, “ocupagao”) sejam vagos, mas principalmente em que as normas aplicadas sempre com a clausula “exceto se.” (HAR, 1948-1949, p, 174). Bla equivale ao et ea-_ cetera quando damos exemplos. Deve-se, contudo, notar que o tema é conhecido dos juristas hi muitos séculos. Encontra-se jé em ARistOTeLEs, quando diz que os legisladores nunca p prever todos os casos (v. Arte retorica, Livro I, 13, 1374a, 25-32, 35, 1374b, 1-5): “B introduzir numa discussio as préprias coisas discutidas: em lugar delas usamos os seus ‘como simbolos e, por conseguinte, supomos que as consequéncias que decorrem dos também decorram das préprias coisas, assim como aqueles que fazem calculos supdem em relagao is pedrinhas que usam para esse fim. Mas os dois casos (nomes € coisas) semelhantes, pois os nomes sao finitos, como também o é a soma total das formulas, ‘as coisas so infinitas em ntimero. F inevitavel, portanto, que a mesma formula ¢ tenham diferentes significados” (AntsToTELES, Dos argumentos sofisticos, trad. L. G, Bornheim [Sao Paulo: Abril Cultural, 1973], p. 161). O jurista romano J que leges, neque senatusconsulta ita scribi possunt, ut omnes casus, qui qu comprehendantur; sed sufficit [et] ea quae plerumque accidunt contineri” [“Nem. VasconceLtos, 2017)]. Em resumo, nao se pode redigir leis sendo referi que acontece na maioria das vezes, nao a casos que ocorrem vez ou outra: as _ fades conser ques rgr get nfo € apc ¢afaiace one | tipos nalei a em Capitulo 1 - FILOSOFIA, CIENCIA € DIREITO Disso querem concluir que a funcao da ciéncia do direito seria prover andlises sobre tais dados, proferindo juizos probabilisticos sobre o comportamento futuro de certos agentes no meio juridico. Devemos notar quea coleta de tais dados, seu processamento e sua interpretacao estatistica e probabilistica nao sao exatamente juridicos. Sao uma forma possivel de conhecimento sobre comportamentos, mas nao uma qualificacdo, um juizo sobre a corregao do comportamento. Naturalmente, na coleta ena interpretagao dos dados, o jurista tem e tera um papel importante, pois ele detém os principios do campo dentro do qual os sujeitos expressam decisdes e agem. Ele, endo um engenheiro de sistemas ou um programador, é quem conhece a relagao de sentido entre os diversos elementos de uma aco, ato ou negécio juridicos (contrato, sentenga, lei etc.): ele domina a gramatica desses atos (textos) e pode fornecer elementos para outros “cientistas”, mas isso nao altera o essencial, pois a coleta de dados brutos, em si mesma, nao é algo que se faga por meios disponiveis ao saber juridico. A consideragao dessa natureza do direito levou os juristas a explicarem seu saber de muitas formas ao longo da historia. Alguns procuraram fazer do direito ciéncia empirica, especialmente ciéncia social empirica, mas terminaram em certos equivo- cos. A maioria dos grandes juristas de nossa tradig4o reconhece que seu saber nao & ciéncia empirica. No final do século XVII, Samuel Purenporr (1632-1694) indicava uma espécie de “seres” no mundo que nao eram fruto de “criagao’, ou seja, da natu- reza, mas frutos da “imposicao”*. Para ele, esses eram “seres” morais (entia moralia). Creio que se pode entender melhor o objeto de preocupacéo de Purenponr dizendo que se tratava de “sentidos” morais, ou sentidos juridicos das ey eae existem. E existem na medida em que os impomos ao Tees ee juridico no inicio do século XVII foi Gottfried Wilhelm Lerantz. (1646-1716), também ele atento ao caréter ndo empirico da ciéncia “nao depende de experimentos mas de definigoes’, ou seja, uma ; Se tivermos os conceitos Scene neesesees spon dentro do.cempeiridiea 9) oa aia ee deu bem conta de que 0 objeto da “ciéncia : 0s métodos das ciéncias naturais sio completamente inadequados, (1881-1973), Ele afirmou expressamente que sua Teoria pura do dieito* ” “a norma [juridica] funciona teoria da interpretagdo” € que na we interpretagao” (KELSEN, 1979, P- 20)! 8 | CURSO DEFILOSOFIA DO DIREITO - José Reinaldo de Lima Lopes Quadro3 Causalidade e imputacdo. KeLseN distingue causalidade e imputacao como dois aplicaveis a ieee de conhecimento, duas familias de ciéncias, distintas entre si, A ¢ salidade é o principio pelo qual as ciéncias da natureza descrevem seus objetos. A imput aquela pelo qual aciénciajuridica opera, O cientista natural percebe e expressa relagbes dec ‘eefeito entre dois fendmenos. Essa é sua explicacao do mundo, O jurista percebe a ligacao um ato (ilicito) e uma pena, mas essa ligac4o nao existe naturalmente, mas por “uma ‘estabelecida pela autoridade juridica” (KELSEN, 1979, p. 119-120). dos corpos humanos, nem 0 fato psicoldgico, neuroldgico ou psiquidtrico das instintos e paixdes. Os autores acima referidos, dois jusnaturalistas e um po concordam nisso: a disciplina ou a ciéncia do direito nao tem por objeto fenémenos empiricos e, portanto, ndo pode ter como método de conh métodos empiricos. AFILOSOFIA TAMBEM NAO E UMA CIENCIA 10 | CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO — José Reinaldo de Lima Lopes que sao negadas aos outros. A filosofia nao trata do conhecimento, entendimento, vale dizer, de se organizar 0 que se conhece (KENNy, 2008, No mesmo sentido, Peter WiNcH nos lembra que o cientista investiga “a; causas e efeitos de coisas e processos reais e especificos’, enquanto “o filésofo -se com a natureza do real enquanto real e em geral’. A pergunta “o que é “o que € 0 real?” nao se responde, acrescenta ele, com métodos experi ; obseryagao, porque é uma pergunta conceitual, nao empirica (WINCH, 2008, p, Em terceiro lugar, pode-se dizer, com PrePer, que “filosofar consisteem u na qual o mundo do trabalho ¢ ultrapassado” (PrEePER, 2007, p. 8). O mundo. tho é 0 mundo cotidiano, das utilidades, “o mundo da fome e do modo de: atividade titil cujo fim é determinado e cujo termo é a satisfagao de uma A filosofia rompe, ou “transcende” este mundo, que provoca questées do tipo se pode adquirir esta ou aquela coisa necessaria para a existéncia cotidian modo adquirimos isso? Onde existe tal produto?” A pergunta filoséfica, € de outra espécie. Um exemplo disso é a pergunta “Por que existe sobre nao antes o nada?” E uma pergunta com relacao ao todo, por isso nao é d nem pode ser respondida de maneira definitiva; pode, contudo, ser semp (Preper, 2007, p. 11). Hannah AreNpr chama nossa atengao para transcende 0 cotidiano: “Pensar sempre est fora do lugar, interr dades ordinarias, e é por elas interrompido” (ARENDT, 1978, p. 197). Dessa maneira, sea filosofia é uma espécie de reflex cujo propé causalmente o mundo (assunto que pertence as ciéncias), ela ou recesso do: ‘esté A mio" (ARENDT, 1978, p, 199). Trata-se de um Capitulo 1 - FILOSOFIA, CIENCIA E DIREITO A filosofia esclarece e pée ordem no pensamento Como podea filosofia por ordem no pensamento, sem acrescentar conhecimento sobre algum objeto em particular, ou sobre um campo em particular? Primeiramente, pela explora¢ao daquilo que chamamos conceitos. Ela explora os conceitos (as ideias, digamos assim), as definigdes (a expresso linguistica dos conceitos) ¢ a articulagao entre eles". Em resume, a filosofia é fundamental para o pensamento claro, mas nao € de seu Ambito fornecer informagées sobre o mundo, o que pertence 4s muitas ciéncias particulares. A filosofia classica diz-nos que os conceitos sio apreendidos, nao sao de- monstrados'*. Ora, essa capacidade de apreender conceitos, de pensar abstratamente, chama-se inteligéncia, intelec¢ao (intellectus). Na filosofia moderna, particularmente em Kant, chama-se entendimento. Eoque esclarece Saicavo, ao explicara distingao kantiana entre juizos analiticos e juizos sinté- ticos:"S40 0s julzos analiticos que podem ser formulados independentemente da experiencia, isto é, a priori. Dai o problema: os juizos empiricos sao sintéticos, aumentam o conhecimento, mas nao s8o necessarios nem universais, raz40 por que nao podem expressar as leis das ciéncias matematica ou da fisica pura. Os Julzos analiticos, embora a priori, em nada podem contribuir para o conhecimento, porque sdo simples explicagées do sujeito’. Joaquim Carlos SaucAd0, A ideia de justica em Kant (Belo Horizonte: UFMG, 1995), p. 85. Em outras palavras, existem as“explicacdes’ da filosofia, que tendem a ser esclarecimentos, eas“explicacdes" das ciéncias, que acrescentam conhecimento. ah Cf.a interpretagdo de Oswaldo Porchat Pereira: “descreve-nos a dialética como: tuma pro ciéncias ‘filoséficas’ em geral, isto é, 4s que o s4o no sentido’ 0 inaliticos, como um método que conduz (...) & ap soascipaie ie cia nis: verdades | noe de examinar, de por ap FIA DO DIREITO ~José Reinaldo de Lima Lopes 2 | CURSO DE FILOSO! Quadro5S Virtude significa habito desenvolvido, habilidade adquirida. Ninguém é virtuoso nasceu assim, ndo se trata de algo inato. A virtude é, como o nome indica, apenas po sje, virtual. Uma vez desenvolvida, a pessoa passa a ter (deter habitualmente) a vi ‘la ser chamada de disposigao permanente, ou habitus, o que se tem por ter sido adquir ‘irtudes, na filosofia clissica, eram morais ou intelectuais. As virtudes morais referem-se dem, eas intelectuaisao pensar bem. Para compreendermos bem o que sao as virtudes, p Jembrar-nos de habitos que temose, quando exercidos, mostram-se como habilidades, Jingua (sua lingua materna ou lingua estrangeira) ¢ uma habilidade adquirida, assim com ‘um automével. Uma vez desenvolvidas e aprendidas, somos capazes de fazer essas melhor. Igualmente as virtudes intelectuais: quem nunca exercitou 0 pensamento abs no consegue pensar bem em certas coisas. Nas virtudes morais também: qu / | citou na justica, na coragem ou na temperanga, nao saber, no momento oportuno, || atos daquelas virtudes. Assim como quem nunca dirigiu ow nao se exercita na direg |} automével ndo saber o que fazer na hora do “aperto’. Uma vez exercitado, porém zero melhor movimento ou tomar a melhor decisao quase “sem pensar’ au nte, como diziam os classicos. Cf. Capitulo 3. Capitulo 1 - FILOSOFIA, CIENCIA EDIRETO | 13 Quadro6 [ Pensar, conceituar, falar. “Locutio est proprium opus rationis’ (I, 91, 3 ad 3), ‘falar’ - diz Toms ~ ‘¢ operacao propria da inteligencia’ Ora, entre a realidade designada pela linguagem e © som da palavra proferida ha um terceiro elemento, essencial na linguagem, que ¢ 0 conceptus, © conceito, a palavra interior (verbum interius), que se forma no espirito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audivel (0 conceit, por sua vez, tem sua |. origem na realidade). Mas, se a palavra sonora é um signo convencional (a agua pode chamar- | -se agua, water, eau ete.), 0 conceito, pelo contratio, é um signo necessario da coisa designada: nossos conceitos se formam por adequagao a realidade. Pois a realidade, cada coisa real, tem um. contetido inteligivel, um significado, um ‘qué, uma verdade que por um lado faz.com quea coisa seja aquilo que é, e, por outro, a torna cognoscivel para a inteligéncia humana. f precisamente isso que se designa por ratio. Assim, indagar ‘o que é isto?’ (‘O que é uma arvore?; ‘O que €0 homem®’) significa, afinal de contas, perguntar pelo ser, pelo ‘que’ (quidditas, whatness, quidi- dade), pela ratio, pela estruturagao interna de um ente que faz.com que ele seja aquilo que é (..) Eesta ratio que estrutura, que plasma um ente, é a mesma que se oferece & inteligéncia humana para formar 0 conceito” (LAUAND; ‘SPROVIERO, 1999, p. 53). Nao devemos confundir conceitos com palavras. Palavras sao a expressio linguis- tica, verbal, dos conceitos. Palavras sao os termos. Podemos ter conceitos expressos por diferentes palavras, diferentes termos. Assim, quando traduzimos, usamos termos diferentes das diferentes linguas para nos referirmos a um mesmo conceito. Nisto, ali- 4s, consiste a traducao propriamente: transferir as ideias (ou melhor, os sentidos) para diferentes palavras em diferentes linguas. Para traduzirmos de uma lingua para outra, precisamos dominar os conceitos do assunto que estamos traduzindo, pois cada assunto tem sua linguagem, ou seja, seu proprio conjunto de conceitos. Traduzir é expressar 0 ‘mesmo sentido ¢ os mesmos conceitos com diferentes termos. Na mesma lingua pode haver um 36 termo para designar conceitos distintos, caso em que falamos da ambiguidade ou equivocagio (do latim, equi-vocatio, ou seja, chamar coisas diferentes pelo mesmo nome ~ equi, igual), Por exemplo: falamos de mesa tanto para falar de um mével doméstico ou industrial (a mesa de jantar, a mesa de trabalho) quanto para falar de um conjunto de pessoas que se dispoem a discorrer sobre um assunto (a mesa cientifica). Em casa temos uma mesa; contudo, num congresso académico, temos diversas mesas discutindo assuntos cientificos. Se nao dominamosas diferentes linguagens, ou os diferentes jargoes, ¢ 0s diferentes campos em que a mesma palavra serve para designar diferentes ‘conceitos, teremos seguramente problemas de mal-entendidos, Nossa mesa doméstica diz-se table em inglés, mas a mesa cientifica diz-se panel. Os termos ou piel e et Sep ae contexto lingua natural (o portugués, 0 mandarim, castelhano) ae tanto 0 da I ninada atividade ou campo do conhecimento (a lin- 44 | CURSO DEFILOSOFIA DO DIREITO - José Reinaldo de Lima Lopes apenas as palavras. Tomando apenas a Igua usada cotidianamente em fam © contexto de uma palavra, podemos pensar, por exemplo, que em po distingue de cadeira; mas se tomamos como contexto 0 discurso ou 0 ci ‘corre e nos colocamos num ambiente académico, mesa se opée a co ula, ou a outras formas de comunicagao verbal e publica. O conceito de retomado no Capitulo 3. Quadro7 Palavras e conceitos. Dou um exemplo de confusio gerada pela falta de dominio dos. ‘num campo determinado. Neil MacCormcx publicou Legal reasoning and legal t Oxford University Press, 1978, republicado com correcdes em 1995). O tituloem p Raciocinio juridico e teoria do direito. No entanto, apareceu como Argumentacao) do direito (Sao Paulo: Martins Fontes, 2006). Existe um exemplo claro de confu | da traducdo. Em inglés, “The requirement of consistency and the problem of ir 16 | CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO ~ José Reinaldo de Lima Lopes a filosofia, contudo, esclarece'’. Assim, por exemplo, usamos verbos como “¢ speber” ¢ “existir” € parece que todos, por serem verbos, podem referir-se da mesma maneira. Mas fica evidente que isso nao é assim quando ‘os diferentes usos desses yerbos. Podemos sensatamente perguntar: “Quantas | no comem carne ou nao bebem alcool na Universidade?”. Seria, porém, perguntar: “Quantas pessoas na Universidade nao existem?” (HACKER, Osverbos comere existir“funcionam” na linguagem de modos diferentes. nas respostas para as perguntas, mas a distingao tem a ver com a natureza pergunta. Falamos de comer € beber de um jeito diferente de existir, ‘os trés como verbos. Esse esclarecimento, a diferenga entre comer (uma (um estado), nao se d por meio da ciéncia, mas por um esclarecimento Perguntas da filosofia (sobre o existir) ndo podem ser respondidas f método experimental ou hipotético-dedutivo das ciéncias (sobre quem Ao mesmo tempo ninguém pode dizer que por isso a filosofia nao seja' 18 | CURSO DE FILOSOFIA DO. DIREITO - José Reinaldo de Lima Lopes apenas subjetivament te suficiente ¢ se considera ao mesmo tempo que € objet ‘entio sera chamado crenga. Finalmente, quando considerar algo verdadeiro for wuanto objetivamente suficiente, entao sera chamado saber. A suficiéncia subjetiy ae (para mim mesmo), suficiéncia objetiva, certeza (para qualquer um)” (Kas ‘A823/B851, p. 686) (grifos no original). Entendimento, opiniao, ciéncia em Tomas de Aquino. Entendimento (intellectus) timento inquestiondvel com base na evidéncia. O assentimento provisério € ‘opiniio (opinio). A suspensio do assentimento ou juizo ¢ a davida (dubitatio). O ‘com base em razbes ¢ conhecimento (scientia). Assentimento inquestionavel sem {8 ou crenga (fides, credere) (Kenny, 1994, p. 49). Essa natureza conceitual das questées diz respeito ao pensamer confunde com a psicologia, nem com a neurociéncia, nem com a trata de explicar como um individuo particular ‘pensa, constrangido ‘empirico, ou por fatores externos a si, Sao questées légicas, nao ‘modos de pensar em geral, nao de eventos de pensamento ou Capitulo 1 + FILOSOFIA, CIENCIA E DIREITO | 2 do estudo for as agdes boas e justas. Elas nao podem ser as mesmas que a perseguida em outros campos, como no conhecimento da natureza bruta ou organica, ou nas técnicas de producao de artefatos (EN, I, 3, 1094b, 15-20). Esses pontos de partida intelectuais, ou principios, sao 0 que da 1 inteligibilida- de a determinado campo ou atividade. Inteligibilidade significa aqui sentido. Esses Principios dao sentido aos diversos campos. Eles mesmos nao séo descobertos pelas cigncias particulares, mas as precedem. E nessa esfera que nos encontramos quando fazemos as discussdes filoséficas que dao base a cada uma das ciéncias, campos do saber, atividades ou praticas. Nesse ambito da investigagao filoséfica, portanto, fica evidente o elemento essencial da capacidade humana de usar a linguagem, e mais especificamente ainda a capacidade semantica”, ou capacidade de simbolizagao, de colocar certas coisas (signos) no lugar de outras coisas. A linguagem depende dessa habilidade de colocar § ignos no lugar de outras coisas. Nomear ¢ fazer isso, ¢ colocar o nome no lugar da propria coisa. Podemos falar de Maria ou de José sem apontar para eles, sem que eles estejam presentes. Basta nomed-los. Ao nomear, tornamos presente aquele que de fato estd ausente. Usar os nomes é uma das formas basicas de semAntica, ou seja, de atribuir significado. Os sons que emitimos chamam, invocam, nomeiam um ser existente (uma pessoa, por exemplo), e assim podemos falar desse ser, mesmo que ele esteja ausente. Essa capacidade humana nos permite andar no tempo de forma original entre todos os animais, que muitas vezes sao semelhantes a nés em quase tudo o mais. Ao nomear, trazemos pessoas, coisas, fendmenos, eventos do passado para o presente, Igualmente, podemos nomear pessoas, coisas, fendmenos que ainda nao estao aqui, mas no futu- To. Assim, vamos do passado ao futuro: pela linguagem libertamo-nos do presente. O mundo nao é para nds um eterno presente. Esse ato elementar de nomear ¢ 0 ato abstrato de conceituar, ou seja, de nomear nao ser especifico, mas uma rela¢do, de modo tal que possamos nos entender com outros humanos, Assim, podemos usar a palavra causa e nos entendermos com outros seres nanos sobre o que causou isto ou aquilo. O uso da palavra equivale ao dominio de um Vamos ao médico, ele nos dé um diagnéstico de nossa satide e perguntamos a r r aera ea Dia estan atl alenido de ideias comp se Boater TO ~ José Reinaldo de Lima Lopes 2s | ‘CURSO DE FILOSOFIA DO DIRE! ; My que & fisica2”; “quais 580 05 objetos possive; tem uma dimensio filoséfica (“o que ie Ossiveis che +r squais sao os métodos adequados de estudo da fisica?”), assim também parg ‘mesma esfera. Bee Peart de algumas das questdes que se encontram nessa esfera ‘as mais importantes a meu ver no contexto em que nos achamos. Esse contexto inclyj ‘a cultura juridica contemporanea e€ as instituigbes nas quais vivemos, een Sejam as faculdades de direito, os tribunais, as instituigBes de poder, e assim por diante. Elas podem ser divididas em duas grandes classes: questdes relativas 4 natureza mesma do direito e questes relativas a sua aplicacio. As primeiras envolvem nosso entendimento do que € 0 direito: o fendmeno social da vida sob um ordenamento juridico, a natureza de um ordenamento juridico e em seguida as relagdes entre 0 ordenamento juridico e outras instancias normativas que compéem a sociedade, particularmente a moral, mas também da natureza do conhecimento do direito, da “ciéncia” do direito, da disciplina intelectual chamada direito. Em termos filosdficos, podemos dizer que passaremos pelo campo da metafisica ou ontologia do direito (isto é, a andlise ¢ reflexao sobre o ser, dai ontologia ou meta- fisica), para avangar em dire¢ao 4 epistemologia e a moral. Dada nossa concepgao do direito, como aprendé-lo, ensiné-lo, desenvolvé-lo? No campo da aplicacao, aparecem ainda as relacdes entre o direito e a moral, ou seja, 0 outro campo normativo que de- termina a constituicao da sociedade humana. A filosofia do direito ocupa-se dessas trés questdes ou esferas. Quadro 12 ‘Objeto da filosofia do direito. A filosofia do direito ocupa-se da “explicagao racional ou da interpretacao da natureza do direito” e tem por objeto a teoria, nao diretamente os materiais dos quais 0s juristas se ocupam (Oakeshott, 2007, p. 154). No curso de direito, ela é mais ou menos an6mala, diz MacCorMick, porque, de um lado, seu ensino ndo tem, como um curso de direito ‘das obrigagdes, um objeto limitado ¢ bem definido, e, de outro, ela pretende simultaneamente Fac aematbalnetntamento do dito nti esp to critico: ao mesmo tempo que Oque €0 direito, alerta para o que pode ser dubitavel, historico e penetrado Politicos e morais no proprio direito (MacConmtc, 1975, passim). ; FIosoFIA 00 DIREITO José Reinaldo de Lime Lopes 28 | CURSO DE Pode-se assim compreender melhor © objeto da filosofia do direito, confunde com a “ciéncia do direito”, a doutrina, a teoria geral do direito coarrroy eomam cbamar de “dogmatica juridica Como filosoia, ela - aaoarrvsbe as condicbes de possbilidade einteligiblidade do peneamentill Estamos fazendo filosofia do direito quando tentamos dar sentido o1 a fampo deatividade ou uma “ciéncia” chamada direto. Enquan sonal ae ; cia” cdireito: quanto a filosofia do: ipa dessas quest6es, uma ciéncia do direito interessa-se apena i positivo em particular (Reale, 2002, p. 17). 9 4 a ‘A necessidade dessa reflexio coloca-se es| i -se especialmente jul ry eee em geral seguem 0 direito, ou seja, Sten esa least a tum ordenamento juridico sem precisarem ind: i a n lagar muito s 4 precisarem fazer perguntas filos6ficas explicitas eae ° bea a ae mesmo operadora do direito, profissional exclusi iicte a direito e outros saberes (finangas, administ Pea hea ee os crn pact pola vanes nel ; Higa ubli gente ae 0 direito, que realiza atos e aa a oe Saka ae Le i se ast naliza relacées juridicas diaria fazer perguntas juridicas. Estao im i a PEN GA reiseiri En i : ersas na pratica e a prati quanto nao precisarem tomar decis6 ee repetitivos, estio perfeitamente preparadas para agi! pe on ae Bee eet tease ate Vee at norinas como “azdes exc ne eerie excep) dan OFEnAS Como ‘razdes excludentes”” de ou amore ite da situa¢ao rotineira. ‘tae arotina nao bastar, entao sera preci “e eats Renae aren ae ciso dar um outro passo. Imagin feta seca de ninguém, Mas no he Bi cin thei a - situacio nova, ou uma emergéncia as ease houver necessidade d Porque ate tes sh Sepa alguns se sairao n 4 fe aan fora dos casos rotineird ‘oque enfrentar essas Novas si ando ? que fizeram e por que o fizeram, vao dar sry S razGes gerais para sua. Capitulo 1 + FILOSOFIA, CIENCIA E DIRETTO | 29 de aplicagao do direito”. Assim forma-se uma teoria dos contratos, dos negécios, dos bens. A palavra “teoria” equivale aqui a doutrina, um conjunto de conceitos articulados, No se trata de modelos semelhantes ao das ciéncias modernas. A doutrina permite a aplicagao do direito, ou seja, 0 uso pelas partes, aconselhadas por seus advogados, e 0 uso pelas autoridades judiciais, na decisio de conflitos. Mas a doutrina também esté presente na atividade legislativa, pois os legisladores usam os conceitos € categoria definidas pelos doutrinadores para fazer leis, Um exemplo disso encontra-se no Cédigo ‘Tributario Nacional (CTN) brasileiro. Seu art. 110 diz que “a lei tributaria nao pode alterar a definicdo, 0 contetido e 0 alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituigao Federal, pelas Cons- tituigdes dos Estados, ou pelas Leis Organicas do Distrito Federal ou dos Municipios, para definir ou limitar competéncias tributarias” Ou seja, o legislador tributrio deve adequar-se aos “institutos e conceitos” elaborados pela doutrina juridica*'. A filosofia do direito 6, portanto, a aplicacao da filosofia sobre o direito, ou seja, colocamos ao direito as questées filosdficas mais gerais, dentro naturalmente da tradicao filoséfica do Ocidente. Assim, a pergunta pela natureza do direito, ou seja, “oque € 0 direito?”, é uma questao de ontologia, ou de metafisica, no sentido classico da metafisica®. ™ Para um esclarecimento preciso das funcGes da dogmitica juridica ver Christian ‘Counns, “Bl juego de los juristas’, em Observar la ley (Madrid: Trotta, 2006), p. 105-156. #1 José Afonso da Siva chama a atencdo para o fato de a ciéncia do direito depender de esclarecimentos conceituais por meio do discurso. "O problema da linguagem constitui o grande drama da metodologia juridica. A busca do termo proprio, a especificacdo do sentido ‘em que uma palavra esta sendo empregada, so tarefas que colocam como preliminares, especialmente para o publicista, a quem nao fica mal possuir a neurose do termo certo, da Precisao técnica’ José Afonso da Suva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 2. ed. (S40 Paulo: Revista dos Tribunais, 1982), p. 106. E prossegue: "A palavra principio ou principios é ‘equivoca. (..) Quando falamos em normas definidoras de principio institutivo, a palavra prin- Cipio se apresenta na acep¢ao propria de come¢o OU inicio, (..) como da exemplo o art. 3° da ligdo Federal:'A criacao de Estados e Territorios dependera de lei complementar. Pees tore a oatucncls tk pcs goals os eas oseri normas fundamentais| Capitulo 1 FILOSOFIA, CIENCIAE DIREITO | 31 cos ~ Ou seria inutil? ~ como dizem os menos esclarecidos, os anti-intelectuais que se encontram em toda parte, mesmo entre 0s juristas, Sim, essa perspectiva é fundamental porque sendo 0 direito, como veremos adiante, um “fenémeno” de natureza pratica, ou seja, do mundo da ago ~ que nao se trata de um fendmeno da natureza bruta, nem do conhecimento meramente formal (matematica, légica) —, a ideia que fazemos dele & determinante de como procedemos quando estamos NO seu campo. Avango apenas com a seguinte ideia: como o direito tem uma existéncia nao “bruta’, aquilo que pensamos que o direito determina o modo como realizamos o direito™. Quadro 14 Aconsciéncia determina a vida? Numa célebre ‘passage de A ideologia alema, Marx e ENGELS afirmam que “nao ¢a consciéncia que determina a vida, mas a vida que determina a consciéncia” (Manx; ENcxts, 1979, p. 37). Sera que dizer que o que pensamos do direito determina 0 que fazemos com o direito é uma forma extrema e inaceitavel de idealismo? Claro que nao. Trata- vse de reconhecer que o direito, justamente porque existe como condicao geral de interagSes sociais, $6 pode existir institucionalmente. ‘Trata-se de estarmos atentos para uma dialética lembrada no mesmo texto, segundo a qual a producao material da propria vida e da vida alheia {procriagao) adquire na espécie humana uma dupla relagdo: natural (orginica, dos fatos brutos) ¢ social (relacional, social, “ligada a um determinado modo de cooperacao”) (MARX; ENGFLS, 1979, p. 42) e, portanto, determinada por como concebemos essa relagdo, Conceber nao quer dizer imaginar, fantasiar,iludir-se. Quando me refiro ao “pensar”, nao quero dizer o que cada um pensa em parti- cular, porém 0 que compartilhamos como ideia. O que pensamos sobre uma Arvore nao cria a arvore, nem o que pensamos sobre os astros cria o universo sideral. Aquilo que pensamos em comum sobre o que é um hospital determinard, porém, aquilo que faremos quando usarmos um hospital, como médicos, pacientes ou servidores dele. Em outras palavras, s6 podemos fazer uso de um hospital, e 6 podemos criar um hospital, 32 | CURSO DEFILOSOFIA DO DIREITO —José Reinaldo de Lima Lopes Igualmente, aquilo que pensamos a respeito do direito determinara 0 que farem quando estivermos no campo do diteto. Sends, como uristas,imaginarmosqueo dey pode ser interpretado por cada um em particular conforme suas convice®es, ou qu oy juizes tém a liberdade de seguir ou néo seguir os precedentes, ou que no direto nada ¢ certo, mas tudo pode ser dito e desdito, viveremos sob um regime determinado, Se ‘pen- sarmos diferente, viveremos em outro regime. Essa, alids, ¢ a questao posta e esclarecida por Ronald Dwonknw em seu O império do direito, ao dizer que assim como importa 9 modo pelo qual os juizes decidem os casos, “importa também o que eles pensam que¢ © direito, e quando discordam a esse respeito, importa que espécie de desacordo existe entre eles” (DWORKIN, 1986, p. 3). Assim como 0 que acreditamos ser uma boa pega de teatro, uma boa mtisica, uma boa partida de futebol, determina como realizamos cada uma dessas coisas, o que acreditamos ser 0 direito determina como 0 realizamos. Aciéncia moderna ea filosofia do direito Voltemos a distingao entre a ciéncia e a filosofia. As ciéncias modernas pressu- poem que a natureza nao tem: intencionalidade. No maximo os elementos da nature- za se relacionam de forma funcional, ou seja, quando articulados de certa maneira, produzem consequéncias ou resultados. Além de nao intencionais, os elementos da natureza seguem certos padroes de intera¢ao, e tais padroes sao necessarios. Isso seria aleida natureza. As ciéncias, portanto, deveriam ser capazes de predicao, quando suas +hipéteses fossem confirmadas e transformadas em asser¢des de tipo causal (leis). Caso no se confirmassem as previs6es, a hipotese teria que ser revista, ¢ 0 conhecimento baseado naquela hipétese deveria ser abandonado. Quadro 15 do direito. O que chamamos de filosofia do direito comegou propriamen: moderno, uma te6ri 4 cesclarecia ¢ j Capitulo 1 « FILOSOFIA, CIENCIAE DIREITO | 33 uma disciplina? Por que ela se torna necessiria? Do que ela trata? Como chegamos a ela? O tempo em que ela se converte em disciplina é bem marcado pelo advento da modernidade. E nesta, existem dois momentos determinantes. Em Kann, comeca a filosofia do direito propriamente dita, j4 independente do direito natural ensinado antes dele. J4 vimos antes seu prefacio 4 Fundamentagao da metafisica dos costumes: toda ciéncia tem uma parte empirica e uma parte racional’s, ‘No caso do direito, que também ¢ uma ciéncia, ou saber, existem a parte empirica ea parte racional. A primeira responde a pergunta “qual o direito neste caso2”, “o que é de direito neste caso?” (quid iuris?), enquanto a segunda responde a pergunta “o que 0 direito?” (quid ius?). A primeira responde-se com as leis de determinado lugar ou tem- po; segunda, “com os principios da raz4o somente””. Em Kanr, a filosofia do direito adquire, portanto, um qué de epistemologia, se teoria doconhecmento (ouconcepeéo} Keele fl do que € 0 direito em si, independentemente dos diversos sistemas juridicos positivos. erp Saat c. Quadro 16 Entendimento, razao, juizo. A faculdade de conhecer conceitos chama-se entendimento, na filosofia de Kant: trata-se da faculdade, como ele a chama, de aprender 0 mundo pela razao. | Apreendemos o mundo pela razdo, isto é, conceitualmente (por meio de conceitos) e por isso ‘dela passamos a conhecer. Este conhecimento tanto do mundo natural quanto daquele que os _seres humanos criam para si por meio de suas agdes (mundo da pratica, que pode ser técnica ~ quando dirigida a coisas -, ou moral - quando dirigida a siea seus semelhantes) ¢ fruto da razio. | Entre esse conhecimento (uso da razdo) e os conceitos (entendimento) com que entendemos 0 |] mundo situa-se, na filosofia kantiana, a faculdade de julgar, ou faculdade de juizo. A faculdade regra, o principio, a lei) ser dado, a faculdade do juizo (..) & determinante.(..) Porém, se ar for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, entio a faculdade de juizo ente reflexiva” (KANT, 1995, p. 23). 34 | CURSO DEFILOSOFIA DO DIREITO — José Reinaldo de Lima Lopes abordados. Pode-se dizer ainda que a disciplina filosofia do dir eito Procede momentos de ruptura, ambos ligados 4 mudanga mais geral do ded Quadro dos saber. beress Quadro 17 Ciéncia do direito e filosofia: elaboragio e uso de conceitos, Ur do saber juridico é conceituar. Sem 05 conceitos nao conseguimo: do ea vida ao nosso redor. Alguns exemplos mais ou menos re a importancia da conceituagao no direito e, por meio dela, ma das mais importantes tan observa ogee centes podem ajudar arelag filosofia de esclarecer o pensamento, ¢ a funcio do saber juridic redor. © primeiro exemplo € o de conceito de consumidor. As relagies juridicas dae essoas no mercado eram suficientemente bem concebidas sob a forma dos contratos previsos ne Céadigo Givilde 1916? Coma mudanga da estrutura social ocorrida, ficou cada vez mais evidente que no” AAs compras e vendas entre individuos privados nem sempre se parecia com a compra e Venda do Cédigo Civil, pois de um lado estava um profisional, de outro tum consumidor. Maso conceito de consumidor era corrente na economia, nao no direito. Foi preciso conceber de m as relacdes de mercado, eos juristas tiveram que elabora ‘elagio de consumo etc. De forma semelhante, a prestagdo de servicos entre particulaes jdnio obeidecia aos dois grandes modelosherdados no Brasil. a escravidao (serviddo),o trabalho domés- co (Famulos) ou a prestagio de servigos. Foi preciso criarconceitualmente arelagao de trabalho, dentro da qual edisiplinaram os contratos de trabalho. Outro exemplo, um poucorms antigo fo aelaboragio do conceito de empresa e de estabelecimento. A empresa nio 60 empresirio (o sujeito aatividade), nem oagregado de bens dos quai isse tema disponibilidade (como proprietério oude Outra forma). Os jurstastiveram que elaborar um novo conceito para dar conta de neves relagies®, mun. , 4 perceber io intrinseca entre afungio dy 0 de ordenar o mundo a0 nosso naneira nova i novos conceitos: consumidor, produtor, Po. Foucautr fala em’cédigos fundamentais de uma cultura, aqueles queregem Sua linguagem, assim como de uma “regio” fundamental, arcaice e sslids que ele pretende Gesvelar. Essa analise, diz ele, nao ¢ historia das ideias, nem descricao de um progressona di tecao da objetividade, mas“o que se quer é trazer 4 luz um campo epistemoldgico, a epistémé onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer crterioreferente seu valor acional U 2 suas formas objetivas enraizam sua positividade e manifestarn assim uma historia quenaoé a de sua perfeicao crescente, mas, antes, a de suas Mais quede Palavra, trata-se de uma’arqueologia” Michel Foca As palavras eas coisas, trad. Salma T, Muchail (Sao Paulo: Martins Fontes, 2002), p. xvi-xix. N40 Serlam esses ‘cédigos fundamentais” longinquamente aparentados com os ‘jogos de lingua. gem’? Afinal.o préprioWincenstenosalerta que esses, jogos nao séo nada fxos,massurgeme Sn noN9s tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como pecerannceaess ascem € outros envelhecem e sao. esquecidos”. Ludwig Wirrcensteny, Investigacoes filosof 1123. Jo8o C. Bruni (Sao Paulo: Nova Cultural, 1991), p. 1SUP:§ 23), do assim como 05 pioneiros da area, incl todos pela absorese consumidorouseja,peloconcetencamies scsecooqualo29e Capitulo 1 « FILOSOFIA, CIENCIAE DIREITO | 35, Esses conceitos no se encontram no mundo, nao sao resultado de achados empiricos. O processo de elaboragio dos conceitos nao ¢ nada facil e nada garantido para o futuro. “Omnis definitio in jure civili periculosa est: parum est enim ut non subverti possit” (“Toda definicao ¢ perigosa em direito civil, pois é rara a que nao se pode subverter”], advertia-nos o jurista [AVOLENO (D. 50, 17, 202). Mas o fato de ser dificil, ou perigoso, dar definigdes néo elimina a necessidade de ‘0s juristas determinarem sentidos e dar & luz conceitos. A origem dessa concepgao, que limita nossa ideia de raz4o, pode-se encontrar na filosofia empirista de David Hume (1711-1776), segundo Anscomp. A certa altura de sua Investigacdo sobre o entendimento humano, diz ele que existem apenas duas es- pécies de uso adequado da razio: aquele em que se dao relagdes entre ideias, e aquele em que se constatam relacdes entre fatos. O primeiro é o campo das ciéncias formais, da ldgica e das matemiticas. As relacdes ali sao, de certo modo, causais, ou seja, uma ideia implica a outra: as implicagdes sdio uma forma de causalidade. O segundo campo 0 das relagdes causais que percebemos entre fatos, eventos, coisas. Para ele, portanto, ‘chamamos racional ou a implicagao entre termos (Iégica), ou a regularidade causal observavel. Tudo o que foge disso nao pode ser considerado propriamente racional. No campo da ldgica e das matematicas temos certezas, e no campo da experimentagao ‘eda causalidade empirica temos probabilidades. A razio diz respeito apenas a isso. Quando percorremos as bibliotecas convencidos destes principios, que devas- tacao nao devemos provocar? Se pegarmos qualquer volume de teologia ou de metafisica escolastica, por exemplo, perguntemos: Ele contém algum raciocinio -abstrato relativo a quantidade ou niimero? Nao. Ele contém algum raciocinio ex- mM perimental relativo a fato ou existéncia? Nao. Lance-o as chamas, pois nao | conter sendo sofismas e ilusio (Hume, 1990, p. 430). f ‘CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO ~ José Reinaldo de Lima Lopes 8) _Primeiro, nele se desenham as novas ciéncias, as quais terio no din equivalente no direito natural racional. Basta citar 0s nomes dos er a filésofos do tempo: Galileu Gatitet (1564-1642), Johannes Kepiep is} 1630), Francis BACON (1561-1626), René Descartes (1596-1650), Tho a Hoses (1588-1679), Francisco SuARez (1548-1617), Hugo Grécio (sey, 1645), Samuel PurENDORE (1632-1694), Gottfried Wilhelm Leraxrz ‘acal 1716), Isaac Newrow (1643-1727), Blaise Pascat (1623-1662). Alguns dele dedicaram-se expressamente ao estudo da vida politica, as ciéncias morais como se dizia, ao direito propriamente dito, como Francisco SuARez, Hy Grécto, Thomas Hopnes e Samuel PuFENDORE. O primeiro ponto, oad novas ciéncias, consiste, pois, em novo olhar sobre o mundo. Suspende-se ‘oexame das causas aristotélicas, as famosas quatro causas (material, formal, eficiente ¢ final), e vai-se reduzindo a ciéncia ao exame da causa eficiente a relagao necessdria de antecedente ¢ consequente. Essa causa deve ser submetida a matematizagio. Natradigao aristotélica, as “causas dos seres” nao se reduziam a essa causa eficiente, ‘Tratava-se antes das dimensdes e da esséncia dos seres (ou de sua natureza). As causas na filosofia aristotélica respondiam a pergunta “o que é isto”. Tudo 0 que existe, na Perspectiva das causasaristotélicas, pode ser compreendido e explicado por sua materia ( Por sua estrutura (causa formal), por sua origem (causa eficiente) ¢ peru ae (causa final). Essas s4o as causas dos seres, elas dao, em conjunto, ‘a “razio de ser” de alguma coisa. Por exemplo: um objeto como um automoével tem certa matéria, mas 6 é aquele automével porque o material foi disposto de certo modo, _temumaestrutura, um desenho, digamos. Tem, portanto, matéria e forma. O que pea matéria ea forma do automével juntas é seu fabricante (causa eficiente). Mas a matéria a forma do automével se unificam para que ele realize algum fim ou fungao (causa ) r 7 Capitulo - FILOSOFIA, CIENCIAE DiREITO | 37 giewpenocurat usta finalidade externa para liao jure cxastris: Basta conhecer sua matéria e sua forma intrinseca, Em seguida explico suas telagdes com os outros corpos e seu espago por meio de formulas matematizadas e mecénicas. O sucesso da ciéncia moderna foi imenso na explicagao dos fenémenos naturais, Permitindo previsoes cada vez mais precisas, experimentacdes que reproduzem os fendmenos e uma forma de dominio sobre a natureza de modo mais eficaz e eficiente para os seres humanos. Aeexplicagao das ciéncias torna-se o melhor exemplo de como conhecer 0 mundo; para muitos torna-se o tinico exemplo de conhecimento e de racionalidade. b) Segundo ponto a destacar no século XVII: a necessidade de um ceticismo met6dico e metodoldgico. Colocar tudo em ditvida, de forma radical. O re- Presentante exemplar dessa perspectiva é René Descartes. De que posso ter certeza? A resposta cartesiana é também radical: a unica certeza de que disponho ¢ de minha propria existéncia, e de minha propria consciéncia de que existo. Cogito, ergo sum. Penso, logo existo: para mim mesmo tenho certeza de que nao sou uma ilusio. Sou eu mesmo. A diivida radical é respondida pelo radical subjetivismo. O sujeito s6 pode ter certeza de suas ideias. E essas ideias sao inatas. ¢) Outro ponto fundamental, o terceiro, foi o abandono progressivo da reflexao a respeito da acdo humana e sua transformag4o em movimento. Veremos isso melhor no préximo capitulo, Basta, por ora, dizer que esse abandono transforma o estudo da sociedade, da politica e do direito. O representante mais exemplar desse esforgo é Thomas Hossss. A metéfora que ele usa na introducao do Leviata é sugestiva: examine-se o ser humano e a sociedade % como um artefato mecdnico, Cada parte desempenha um papel dentro de um. #pecanismo: aux imagem da sociedude macinica, Loge, aquilo que gigs eram as agGes € as interagOes agora, para fins de anélise e conhecimento, __ Conyerte-se em movimentos®. Trata-se da adogao de um modelo zeinaldo de Lima Lopes se | cunso 0€ FiLOSOFIA DO DIREITO ~ José Renaldo ocial nio se pode ter certera. Pode-se ter certeza apenas =~ i a ca ade. ra a manutencio da vida orginica de cada individuo. 0 esfoy. daquilo que fice que nao seja discutivel ¢ semelhante a0 esforso de pensar sobre jinar um u i : de imaginal da qual nao se pode duvidar, O bem que nao se pode discutir se encontra uma verdade da qi individualismo de partida, ou, como se diz hoje, um ie cada ser humano, um i oe a ' maras jusnaturalistas vo assumir a seguinte perspectiva:og i égico. Os individualismo metodoldgico. Seeley seres humanos individuais tém, cada um deles, seu prop: ; ente em vive e sobreviver. Isso é evidente. A partir dai podemos tratar cada ser a como uma peca autonoma. O individuo humano € logicamente eee © ponto de partida, ele a unidade basica e elementar, A sociedade propriamente dita ¢ logicamente posterior aos seres humanos: é uma constru¢4o, como um mecanismo, em ou artefato, um contrato, e nesses termos tem algo de artificial. “Os pactos e a alianga Pelos quais as partes do corpo politico foram primeiramentefeitas, montadas ¢ unidas assemelham-se Aquele Fiat ou facamos 0 homem, pronunciado por Deus na cria¢4o” (Hoses, 1985, p. 81-82). Os pactos e contratos sao 0 meio mecanico pelo qual se fazem as relagoes sociais. Natural mesmo € 0 individuo humano. A sociedade comega a parecer-se com um acréscimo ao ser humano individual. Esse passo essencial é dado pelo jusnaturalismo moderno. E 0 jusnaturalismo vai tornar-se a filosofia de base, o fundamento teérico para o direito. Grandes juristas do século XVII passam a ver o mundo desta maneira, Seria muito mais complicado falar de cada um deles, pois as diferencas sao marcantes também, mas podemos usar essa simplificacao. Sobre os bens da vidi Segundo momento: do iluminismo para o Positivismo Um segundo momento, de grande consequéncia, é 0 século XVIII, especialmente 0 fim do,século XVII, € 0 inicio do século XIX. A bem dizer, esse é 0 momento em que nasce o direito moderno, sintetizado no movimento de codificagao, e a ciéncia moderna do direito, ou dogmética juridica, exemplificada na teoria geral proposta re um SaviGny, bem como a filosofia do direito Propriamente dita, expressa tanto na pe — uanto na de HeGer. (ver quadro 15, supra). Como se vé, tomei como — ae x Ea eo de lingua alemi, mas 0 esforco é geral no ambito euro- eset re ae poe mas também na Inglaterra de Jeremy BENTHAM € ra * USTIN comeca @ ensinar direito (e teoria do direito) na 3 Londres. Nao precisamos fazer uma historia completa Para os elementos mais estruturais e propriamente Capitulo 1 - FILOSOFIA, CIENCIA E DIREITO | 39 Se comparada com a longa histéria do estudo Superior do direito, a autonomia 0 surgimento da filosofia do direito como disciplina parecem ter acontecido ontem. Sabemos que no tardo império romano ¢ durante o principado de JustiNtano havia escolas de direito em algumas das mais importantes cidades, como Constantinopla ou Beirute. Bolonha, na Itélia, contava com estudos de direito desde 0 século XI, ea institucionalizacao da escola de jurisprudéncia pode ser tracada desde o século XII. A filosofia do direito, contudo, Surge com este nome apenas no século XIX, quando estava em curso o processo de mudanga generalizado dentro da civilizagio de matriz europeia ocidental. Ela substitui o direito natural como disciplina de base. Essa mudan¢a provinha da grande revolucao cientifica operada nos séculos an- teriores ¢, naquela altura, atingia em cheio a propria instituicao universitaria. Nas trés ultimas décadas do século XVIII, via-se em toda Parte o movimento de reforma das universidades no qual convergiam varios movimentos. Em primeiro lugar, a seculariza- Ao crescente e o afastamento do modelo de escola confessional vigente desde o século XVI, quando as guerras de religido, a inquisigao ¢ a Reforma protestante haviam dado as universidades importante papel de drgao de Estado capaz de garantir alguma uni- dade ideolégico-cultural. Em seguida, as reformas pretendiam incorporar finalmente a nova ciéncia, cujo desenvolvimento havia ocorrido fora dos curriculos tradicionais. Nesse embate, 0 papel do direito como disciplina superior estava também em jogo. Hoje dispomos ja de importante historiografia sobre as reformas universitarias do século XVIIL Por outro lado, a Revolucdo Francesa levara de roldao juristas e faculdades de direito. Por alguns anos, até que Napoleao as restaurasse em 1804, as faculdades de di- Teito ficaram fechadas. Quando reabertas, apresentaram nova face e seu curriculo havia sido transformado. O direito patrio positivo transformara-se em centro de gravitacao do novo curso“, Nesse ambiente de reviravolta cultural, a filosofia do direito faz sua entrada e sintetiza grandes tradigdes que a precederam: a grande escola do direito na- tural moderno, chamado de jusracionalista ea filosofia critico-transcendental kantiana. ‘Talvez pudéssemos acrescentar a filosofia do direito de HeGEL, uma espécie de resposta ‘aambas as tradigdes que dominavam o cenério intelectual da Alemanha. 5 eile A filosofia do direito, portanto, é forjada entre os séculos XVII, XVIII e XIX, o direito toma a forma que hoje adotamos: legislado mais do que costumeiro, 3 elec coccinea _ °° & & & 440 | CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO - José Reinaldo de Lima Lopes dizer que 0 direito ea filosofia vio nascendo juntos. Sem essa ligagdo, 0 direito nag teria sobrevivido como disciplina superior, universitaria. Diante de um direito legislado, positivo e abrangente, ¢ no ambiente de renovacag dia propria ideta de ciéncia e razo, apareceu uma reflexdo nao apenas geral (como dogmatica geral), as filosdfica. Um dos elementos mais caracteristicos dessa reflexig 60 papel enorme que o problema da legitimidade representa: por que obedecer? Essa pergunta nao pode ser respondida de dentro da dogmatica geral do direito. CIENCIA DO DIREITO Para finalizar esta introdugao, vamos falar da “ciéncia do direito’. A filosofia do direito precede logicamente - nao cronologicamente - a ciéncia do direito, ou seja, para fazer ciéncia do direito deve-se ter uma ideia do que seja 0 direito mesmo e essa ideia é propriamente filos6fica. Mesmo que raramente se fale de filosofia do direito, ‘ou que 0s juristas facam filosofia do direito sem o saber - como Monsieur Jourdain, 9 burgués da peca de Mouidne, O burgués fidalgo, que falava em prosa sem saber -, 05 juristas fazem sua ciéncia do direito. Sea filosofia ¢ “esclarecimento’, enquanto a ciéncia propriamente dita é “conhe- ‘cimento’, pode-se dizer que a ciéncia do direito nos faz conhecer 0 direito, a pratica juridica e seus componentes normativos proprios. “Costuma-se (...) entender a Ciéncia do Direito como um ‘sistema’ de conhecimentos sobrea ‘realidade juridica” (FERRAZJR, 1980, p.9). Assim como 0 direito, digamos, o direito-objeto', mudou ao longo da his- ig ‘0 conhecimento, o direito-ciéncia, mudou. Uma das teses deste livro -€ que no caso do direito, por sua natureza ~ que sera explorada no capitulo seguinte =a maneira de conceber o objeto determina o préprio objeto, como jé foi dito acin no universo das instituiges que nao existem sendo pela acio humana, E ‘0 mais adequado para o conhecimento do direito também direito mesmo, no seu ensino, sua transmissao e sua prat do direito, o cientista (quem 0 conhece) ¢ 0 agente (0 oper confundem, na medida em (agen Capitulo « FLOSOFIA.CIENCIAE MEO | 41 A ciéncia do direito, ou dogmitica juridi: desempenha al; tarefas, diz Christian Courris”. Pamdeaeiei ie tarefa expr oie at que descreve um conjunto de normas do diteito positivo, como arranja a matéria sob certa classificacio e expoe as relagdes entre suas partes. Trata-se de uma tarefa de lege lata, pois a solucéo se encontra na lei. Depois, (b) uma tarefa de erientacao, a0 explicar e justificar certas. Possibilidades de decisao, Segundo Courtis, essa tarefa tem um lado descritivo, pois se refere a possibilidades reconhecidas como existentes no ordenamento positivo, mas também tem um lado prescritivo, pois recomenda certas solugdes como melhores que outras. A ciéncia do direito também desempenha (c) uma critico-prescritiva, conhecida como de lege ferenda, pois nesse caso 0 jurista reco- mhece que a solugao que propoe nao esta atualmente contemplada pelo direito positivo. Em todos os casos, a ciéncia do direito depende de seu carater discursivo, pois deve determinar sentidos e interpretacées possiveis Para os casos. Como diz Courtis, ela lida com problemas de indeterminagao linguistica, questdes légicas (incompletudes, lacunas, antinomias, contradigdes, inconsisténcias, redundancias), determinacao de finalidades, fung6es e bens, problemas relacionados 4 estrutura escalonada e hierdr- quica dos ordenamentos e de relacdes entre ordenamentos (conflitos de leis, conflitos de sistemas juridicos). Em muitos casos, contudo, depende de conhecimentos vindos de outras areas do saber. Quando defendia o projeto de cédigo civil francés diante do Corpo Legislativo em 1804, Jean-Etienne-Marie Porras alertava para essa mescla _ de conhecimento por evidéncia légica interna ao direito com conhecimentos vindos _ de outras areas. Por exemplo, dizia ele, nao preciso de nenhum conhecimento de agri- cultura para saber que uma sociedade na qual um dos sécios é totalmente excluido los lucros é inaceitavel. Mas para determinar a abusividade do preco de um produto me bastam conceitos juridicos®. O que pode ocorrer com a ciéncia do direito, e que de fato ocorreu ao longo dos Lopes — José Reinaldo de Lima a2 | ‘CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO eca cheia de conceitos e com uma enorme e sofis iit rabors com 00 azes de elaborar de forma auttg 5 fic aac * Fete -patticn do direito’, se é que a domin; Sead eae cen atIS. odiscurso. O resultado disto teve pelo meng Pet ioe a re sgeneralizada da ineficacia do estudo, muito dis aif Beatie: todos os trabalhos juridicos do mesmo estilo de “many pee aas eeiidetits © sentimento de que afinal de contas pode-se dj qualquer coisa e que qualquer coisa pode finalmente valer no direito. Quadro 18 :pordneasao conceito moderno de ciéncia, A insatisfacdo com a perspectiva; Becca conduziu'a uma série de controvérsias dentro da teoria geral do direito aolon doséculoXX. A primeira mudanga dé-se na obra de Herbert Harr; O conceito de direito,na qual lee refere ao direito como prdtica sacial, Publicado em 1960, 6 livro teve enorme reperc {que se pode encontrar na obra de Ronald Dworx:w, em Neil MacCormick, Klaus Gi «Robert ALExx, para ficar nos mais populares. O livro de Harr reflete um movimento que ‘se dava na filosofia inglesa e do qual se deve destacar tanto Peter Winct (1926-1997), autor d ‘The idea ofa social science and its relation to philosophy (2. ed., London: Routledge, 2008 (1958) ‘quanto Elizabeth ANscomse (1919-2001) e seu Intention: (2.ed., Cambridge: Harvard U1 Press, 2000 (1957), sem falar em Richard Hare (1919-2002) e seu A linguagem da moral ( Paulo: Martins Fontes, 1996 [1956]). No ambito da filosofia, hd muitos outros nomes, destacs -Se,a meu ver, Karl-Otto Avex, (ética do discurso), Ernst TuGENDHAT (retomada da teoria d Virtudes), Charles Tarton (a ago humana, human agency), e herdeiros da filosofia analit como Bernard WILLIAMS. A reflexio sobre a razio prética inclui hoje uma legio de pen Capitulo 1 + FILOSOFIA, CIENCIA EDIREITO | 43 gramatica e se tem uma ideia mais geral das fungdes da linguagem, ser provavelmente mais capaz de entender estilos, géneros, discursos diferentes, de perceber as diferengas entre eles e pelo menos tentar elaborar coisas criativas. Logo, hd niveis de menor ou maior “competéncia linguistica’, como ha niveis de maior ou menor dominio de um sistema juridico. Aprende-se a falar de maneira “natural”: o uso da lingua, como uma necessidade baisica de inser¢ao social, é aprendido em casa e na infancia™. Trata-se da aprendizagem de um artefato profundamente sofisticado este da lingua, mas as criangas o aprendem relativamente cedo. Quando aprendem uma lingua, aprendem a fazer discursos: assim, aprender uma lingua e aprender a fazer discursos sio a mesma coisa, Nao se pode dizer que alguém aprendeu uma lingua se esta pessoa nao ¢ capaz de “falar” (fazer discurso, discorrer) naquela lingua. Depois de aprender a lingua, as criangas vao a escola e ali sao instruidas em gra- mitica. A gramatica “aperfeicoa’ a lingua que as criangas ja falam. Quando elas passam a dominar a gramitica, elas mesmas “se corrigem” e usam a chamada “norma culta’: sao capazes de conversar tanto em nivel coloquial, intimo, usando expressées tipicas de sua hist6ria familiar, de sua vizinhanga, de seus pares e seus amigos, quanto de falar _ coma correcdo que as torna compreendidas por outros grupos, mais distantes de sua histéria pessoal, de seu local de nascimento ou convivéncia. Pode ser que elas parem por ai, mas pode ser que elas avancem no estudo da gramitica: e ai tomam 0 caminho la gramatica comparada e da gramatica histérica. Aprendem e pesquisam como o 0 castelhano, o catalo, o sardo, o italiano podem ser comparados (suas por exemplo) entre si, ou com outras linguas que ttm menos em comum: o holandés, o inglés, ou qui¢d o japonés, 0 arabe, o chinés. Reinaldo de Lima Lopes popirerro -Jos¢ (cuRso DEFILOSOFIA i ia geral da lingua, determina (¢ pressupje) 4, a = : ica, como uma pets: no nivel fonético, no nivel semang ico” articula-se €! bes queo fendmeno da lingua pode Ser apreen, a| palavras vulgares, ilo e géneros literarios (discursos, explicacg didlogos le oa cS, Finalmente, ha um nivel i } ec 0 da lingua, no qual se encontram as regras mais basicas eg a ee semAntica), regras fonéticas (quais as diferencas fonéticas q ce diecocs semanticas), ¢ assim por diante. Una lingua s6 se man viva por meio de discursos, que por sua vez s6 podem ser compreendidos a partir de sistema geral de regras que permitem sua identificagao. ‘A analogia é ainda mais esclarecedora quando tomamos o clissico Curso d linguistica geral de Saussure (1972) ¢ atentamos para algumas caracteristicas da li -guagem humana que ele destaca: A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossivel co ‘um sem 0 outro. Finalmente: a cada instante, a linguagem implica ao m "tempo um sistema estabelecido e uma evolugao: a cada instante ela é uma in __tnigo atual e um produto do passado, (..) Hé, segundo nos parece, uma solu : BN east Cnecenitio colocar-me primeiramente no ter _—_dalinguae tomé-Ia como norma de todas as outras manifestacées da li (-) Mas que € lingua? (..) E um produto social da faculdade da linguagem conjunt ‘de convengdes necessérias, adotadas pelo corpo social, para P dessa faculdade nos individuos (SaussuRe, 1972, p. 16-1 © hi uma tensio entre o sistema da lingua ¢ a re ‘da fala. A tensao significa que o sistema Capitulo 1 - FILOSOFIA, CIENCIA E DIREITO concretos de falantes, e nenhum discurso ¢ i “oncreto é compreensivel i pecninedy Smt P sem a referéncia Para melhor esclarecer, retomo aqui uma série de distingées feitas por Paul RicoeuR entre lingua e discurso. Em resumo, ele nos alerta para o seguinte: a lingua é¢ atemporal; nao tem sujeito; nela os signos se definem por sua telacao reciproca, quer dizer, ela “nao tem mundo”, Tudo isto se inverte no caso dos discursos: todo dlscurio € pronunciado em um momento; todo discurso é Pronunciado por um sujeito; nos discursos, os signos tém um mundo ao qual se referem, conhecido - real ow poten- cialmente ~ pelo falante e seu auditério, ou interlocutor”, E justamente isto esté em jogo também no caso do direito: pode-se falar do “direito” como um sistema, isto é, como uma lingua. Assim, pode-se falar do “direito brasileiro”, ou “direito argentino’, ou “direito chinés’; pode-se da mesma forma falar de “direito civil’, “direito admi- nistrativo’, “direito do consumidor”. Da mesma maneira que reconheco alguém que “conhece” uma lingua (sistema) nao quando ele descreve aquela lingua, mas quando afala (pronuncia discursos), assim também reconhe¢o quem sabe direito nao quando. “descreve” ou “reproduz palavras e conceitos’, mas quando aplica (usa) o direito (sis- tema). Naturalmente, alguém é capaz de pronunciar 0 discurso (falar) em uma lingua, sob a condi¢ao de dominar o sistema e ter o que dizer. Analogamente, alguém sabe direito quando, dominando o sistema’, decide alguma coisa em um sentido ou outro. Para decidir, precisa dominar o sistema em termos de justificagao e aplicacao, claro esta, mas isto ja nos levaria muito longe — para a atual teoria da decisao juridica -, 0 que nao vem a calhar para os modestos propésitos deste curso. Creio que isto 6 um comego para entender 0 direito, ja que, assim como a lingua, odireito éao mesmo um sistema de regras que permite discursos (0 direito como objeto de uma teoria geral ou de uma dogmitica juridica) ea Mow discarsce mesmos (0 direito como pritica ou aplicagao das regras aos casos concretos, por decisao dos tribunais, respostas a consultas, e assim por diante). Boe ee er ae eee sociolinguistica, 46 | ‘CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO ~ José Reinaldo de Lima Lopes contririo, pressupde que o estudioso ja saiba falar uma lingua, isto é, lingua que deseja estudar. Conhecero direito é saber tomar decis6es juridicas, ou seja, um sal © direito, Nao digo que seja um know-how, para nao cair no perigo di fim nao esta necessariamente dad como a moral ea politica, éuma disciplina que organiza, ordena, sistematizaa tomada frceisoes também com relagdo a08 fins, De que maneira quero vivr mina vid? que maneira, como sociedade, queremos viver coletivamente? © que ¢ justo fazer hestas circunstancias? Estas nao sio Perguntas pelos meios, mas, de certa forma, sio Perguntas pelo fim, ou pelo sentido a ser dado a uma ago que ainda nio se realizou. Para onde ir? Essa a questo, O que fazer? Nestes termos, conhecer direito ou saber direito é, como diz mesmo WiITTGENSTEI, um saber fazer, um poder, um dominar uma pritica, mas diferente do puro saber instrumental ou tecnolGgico. O direitos é certa se € assim que desejamos viver, devemos Por isso mesmo, saber aplicar uma regra e saber interpretar uma regre -espécies muito determinadas de saber, Quando a ciéncia do direito esquece ‘ramatica de uma lingua, do Hf conhes JOO nao sao o devemos dispor dos meiosade- érelativamente fechada, embora ‘ica:

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