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Ligdo 4 DIREITO E POLITICA SuMAio: 1. Politica e assuntos politicos —2. O direito da politica—3.A politica do direito - 4, Conclusao. Sabemos que as leis so criadas pelo Poder Legislativo. Ora, o Poder Legis- lativo € exercido por pessoas que se ocupam da politica de modo profissional e sio legitimados pelo voto da maioria dos eleitores. Se amanha o povo eleger politicos que pertencam a outros partidos, estes poderdo realizar profundas mu- dancas no dircito, de acordo com as suas opcées e interesses. Por isso podemos afirmar que a criacdo do direito € um assunto exclusiva- mente politico. Todas as decisdes sobre a oportunidade de criar ou de modificar uma norma juridica dependem de avaliagdes politicas, de ideologias ¢ interesses expressos pelos partidos politicos. Nesse sentido, o direito ¢ um produto da politica. Ha uma conexao genética que se resume na seguinte regra: quem nao possui poder politico nao pode criar direi- to, Esse dado deve ser ressaltado para evitar um erro muito comum entre alunos do direito. A misao do operador do direito nao € técnica ou cientifica. E principal- mente politica, porque consiste na execucao da vontade politica dos legisladores. Mas esta colocacdo nao esgota o tema da relagdo entre o direito e a politica. Ouvimos todos os dias reclamacées sobre o desinteresse, a incapacidade ou até mesmo corrup¢ao dos politicos, que nao cuidam dos interesses da sociedade, € sim do proprio poder e enriquecimento e do favorecimento da classe dominante. Jais reclamaces indicam um outro aspecto da relacdo entre 0 direito e a politica. Deixam claro que o direito deve limitar a politica. Os politicos deve- riam respeitar o direito, que impée o principio da probidade na administracao do dinheiro publico, pune a corrupcao e obriga a cuidar do bem-estar de todos. Dessa forma, o direito aparece como um instrumento mais poderoso do que a vontade politica. Aqui devemos fazer uma observacdo. Poucos manuais de introducdo ao direito estudam as relagées entre o direito ¢ a politica’ e, alguns negam o cardter 1, Entre dezenas de manuais consultados encontramos os seguintes; Wietholter, 1968; Wesel, 1993, p. 198-201; Jestaz, 2002, p. 25-29; Venosa, 2004, p. 259-268; Braun, DIREITO £ POLITICA 69 politico do direito. Mesmo obras que prometem examinar essa relacdo evitam aprofundar o estudo (Guerra Filho, 2000). O siléncio da maioria dos doutrinadores € devido a visio apologética que adotam (Lido 1, 4.1). Os estudiosos preferem discorrer sobre as relaces entre odireito, a moral ea justica, que “enobrecem” o direito vinculando-o a ideais, o que nao ocorre ao examinar as caracteristicas politicas do direito. Quem decide tratar deste ultimo tema deve relacionar os regulamentos juridicos a controvér- sias e lutas sociais, a interesses de determinados grupos, a pressdes e compro- missos que apresentam o direito sob um Angulo menos vantajoso. Os criticos do direito (Lido 1, 4.2) fazem uma opgao contraria aquela dos partidarios da visto apologética, Colocam no centro de seu interesse a andlise da relacao entre direito e politica, considerando que as ligagdes do direito com a moral e a justica sao ideolégicas. Segundo os criticos, a referencia a moral e a justica objetiva ocultar a natureza politica do direito. Com efeito, estudar sua re- lacdo com a politica significa analisar o direito como fenémeno que decorre das relacoes de poder entre os dominantes e os dominados, como meio de manu- tencao do poder, longe do mito de um direito neutro a servico do “bem comum” (Sabadell, 2010, p. 154-166, 218-223). Ha mesmo criticos que consideram im- possivel distinguir entre o direito e a politica, pois todas as decisées juridicas tém carater politico, colocando-se a servigo de determinados interesses sociais. Quais sido, porém, as relacdes exatas entre o direito e a politica? Para res- ponder devemos seguir o mesmo caminho escolhido para a andlise das relagées entre o direito ¢ a moral. Em primeiro lugar, devemos dar uma definigao da poli- tica para depois examinarmos seu relacionamento com o ordenamento juridico. 1. Politica e assuntos politicos A politica pode ser definida como um processo social que possui quatro ca- racterfsticas principais: sua sede é€ 0 Estado; influencia a tomada de decisées por meio de acdes coletivas; objetiva transformar as relacoes sociais; constitui uma atividade racional e, em geral, pacifica, mas sem excluir o confronto e a violéncia. Em primeiro lugar, a politica possui uma sede institucional. Trata-se do Es- tado, cujos rgios decidem sobre as. questées politicas. Disto decorre que a poli- tica é limitada na extensdo e nos meios utilizados. Todos podem fazer politica ha rua, na sala de aula, na propria casa. Entretanto, os particulares possuem 2007, p. 96-109; Terré, 2009, p. 29-30. Para uma apresentacao dos posicionamentos de juristas ¢ filésofos sobre a relagao entre direito e politica, ef. D'Auria e Venier, 2005. 2, Luno, 1997, p, 105-148; Chorao, 2000, p. 209-214. 70 MANUAL DE INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO poucas possibilidades de influir sobre as decis6es politicas. Na maioria dos casos, a politica que se discute fora de sua sede institucional é um simples refle- xo da politica do Estado. Os particulares e as organizagdes nao governamentais comentam as acGes dos politicos, votam nas eleicdes que os politicos organi- zam, querem mudar as politicas publicas definidas pelo Estado etc, Em outras palavras, a politica gira em torno do Estado.> Em segundo lugar, a politica tem um mecanismo de funcionamento. Fazer politica significa tentar influenciar a tomada de decisées nos assuntos que, em. cada momento histérico, sao considerados politicos mediante uma acdo coleti- va. Fazer politica pressup6e ter um minimo de organizacao coletiva que permita exercer pressio sobre a tomada de decisoes publicas. Sabemos que o protesto de uma pessoa pode ter um significado polftico. Temos, no Brasil, o exemplo do ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros, que, em 2005, ateou fogo em seu proprio corpo, na cidade de Campo Grande, protestando contra a politica governamental de implantar usinas no Pantanal, Esse ato individual tinha um profundo significado politico. Mas isso sé ocorreu porque existe um movimento de opinido e organizagées que lutam em favor da preservacao ambiental contra os projetos de expansdo capitalista. Sem essa organizac3o e mobilizacdo coletiva nenhum ato individual pode adqui- tir natureza politica. Em terceiro lugar, a politica possui uma clara finalidade: transformar as ins- tituicdes e as relacdes sociais. Se todos concordam que o saldrio-minimo estabe- lecido pelo governo é satisfatério, nao tem sentido fazer uma discussao politica, porque nao ha vontade de mudanca. Na politica formam-se sempre dois campos principais: os conservadores, que querem manter a situacao atual, e os contes- tadores, que objetivam uma mudanca mais ou menos radical (modernizadores, teformistas, progressistas, revoluciondrios). Em quarto lugar, a politica é uma atividade social de tipo ractonal. Por tal razao, o meio principal da comunicagao politica ¢ a discussdo entre pessoas que discordam. Tentamos utilizar argumentos para convencer os demais. Mas isso nao exclui as tentativas de manipulacdo, muito frequentes, por exemplo, nas campanhas eleitorais que querem impressionar o eleitor com métodos de propaganda comercial e nao convencé-lo racionalmente sobre as virtudes de um candidato. Nao falta também na politica o emprego da violéncia para vencer a resisténcia de adversarios, quando seus interesses sdo tao contrarios, a ponto de inexistir possibilidade de discussao racional. Os mais poderosos dispoem de um. 3. Essa limitacio € criticdvel. Quando a politica est nas maos das autoridades estatais, estas acabam privilegiando os grupos sociais mais poderosos. Em outras palavras, a limitagao da politica ao Estado contraria o ideal democratico. DIREITO E POLITICA 71 enorme potencial de violéncia organizada que, em caso de necessidade, € empre- gado para fortalecer o regime atual. Quais sdo os objetos da politica, ou seja, quais sao os assuntos politicos? Aqui a resposta nao é simples. Decidir se um assunto é politico nao é uma afirmacdo objetiva, tal como dizer se um livro é vermelho ou azul. A definigio de algo como “politico” depende da opinido de cada um sobre 0 que deve ser considerado politico. Exemplo: na visdo do movimento feminista, a violéncia doméstica, cujas principais vitimas s4o as mulheres, é um problema politico porque decorre da dominagao que os homens exercem sobre as mulheres, sendo necessaria uma luta politica para mudar a situacdo. Para muitos homens a violéncia doméstica é, ao contrério, um assunto privado, que se refere as relacdes intimas, nao de- vendo haver intromissao de estranhos nesse tipo de assunto. Isso indica que a determinagao dos assuntos politicos € extremamente {lui- da e depende da postura da sociedade perante cada tema. Assuntos politicos sao aqueles que constituem objeto de controvérsias publicas em determinado mo- mento histérico. Em outras palavras, s4o politicas as quest6es publicamente dis- cutidas e consideradas como dependentes de uma decisao coletiva. Nao é politico aquilo que, em determinado momento, depende da decisao dos particulares. O campo de atuagao da politica é constituido pelos assuntos que podem ser decididos por meio de uma escolha publica entre varias opcdes possiveis. Exem- plo: a sattde publica é um assunto politico, j4 que a sociedade e as autoridades do Estado discutem e decidem sobre a melhor estratégia para a prevencdo € a cura de doengas, o orgamento destinado ao setor da saude etc. Ao contrario, a deciséo sobre o tratamento que deve seguir um paciente nao ¢ politica: depende de sua vontade e dos conselhos de seus médicos, nao podendo o Estado ou a sociedade interferir sobre essa decisao. Essa € uma definicdo realista da politica. Indica aquilo que é efetivamente considerado como assunto politico em determinado momento, e nao aquilo que Nés queriamos que fosse politico. Assuntos que hoje nao sao considerados poli- ticos podem, no futuro, entrar na cena politica, se um grupo conseguir impor 0 reconhecimento de sua relevancia politica (politictdade). Basta lembrar 0 exem- plo dos sindicatos dos trabalhadores, que conseguiram impor a politicidade das condigées e da remuneracao do trabalho, assuntos estes que, até finais do século XIX, eram considerados privados, Em decorréncia disto, as negociacdes entre empregador ¢ empregado eram privadas sem interferéncia do Estado, sendo, inclusive, proibida a greve e qualquer outra agao coletiva dos trabalhadores. Essas mudangas indicam que nao existe uma esséncia da politica, nem assuntos naturalmente politicos para todo lugar e tempo. Aquilo que hoje é publico era, em outras épocas, privado e vice-versa, Assim, por exemplo, a de- 72 MANUAL DE INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO gradacdo ambiental tornou-se, nas tiltimas décadas, assunto politico, uma vez que antes era considerado como decisdo particular dos proprietarios de terras € dos empresarios. De forma contraria, os assuntos religiosos eram considerados politicos em séculos passados, como indica o poder politico da Igreja Catolica ¢ as intimeras guerras por motivos religiosos. Em nossos dias, a postura do individuo perante a religido é vista como assunto particular e muitos Estados assumem uma pos- tura de completa neutralidade perante as varias religioes, garantindo a liberdade de consciéncia e crenca de cada individuo.* 2. O direito da politica O direito foi caracterizado como “instrumento de dominacao” (Wesel, 1993, p. 198). Efetivamente, a criacao ¢ aplicagdo de normas juridicas permitem aos detentores do poder limitar e controlar a atuacdo de individuos e grupos. Dissemos que o direito nasce por decisdes politicas. O poder constituinte origi- nario é a suprema manifestacdo da visdo politica vencedora que consegue impor algumas regras fundamentais como juridicas. O legislador ordinario também cria normas para impor sua vontade politica e por isso cada governo legisla de forma diferente. Aatuacao dos érgios do Estado que executam as leis é também determinada pela politica. Analisaremos os amplos espacos de discricionariedade que conferem as normas programaticas e de competéncia normativa as autoridades estatais (Li- co 6, 3.2.8). Isso significa que a concretizacao do direito € questao politica: entre as varias escolhas, igualmente legais, que resultam de tais normas, as autoridades estatais optam por aquela que consideram politicamente mais oportuna. Finalmente, mesmo o exercicio de muitos direitos fundamentais por parte dos cidadaos € de natureza politica. O modo de exercicio do direito de participar em reunides, de criar associacdes, de manifestar o pensamento, de votar ¢ ser votado nas cleigdes depende de escolhas politicas, determinadas pelas opinides de quem exerce o direito. Nessa esteira, o direito foi considerado produto, finalidade e instrumento da politica (Grimm, 1969). J4 sabemos que o diretto € produto da politica, uma vez que decorre de decisées politicas. O direito constitui também finalidade da poli- tica, porque os detentores do poder criam um ordenamento juridico para fixar as 4. Certos assuntos podem se politizar facilmente. Sao aqueles relacionados ao governo (poder politico) ¢ ao sistema de produgao (poder econdmico). Assuntos que se referem 20 modo de vida de cada um e as relacées familiares sao, ao contrario, dificilmente politizaveis. Constatamos aqui uma diferenca estrutural no potencial politico dos varios setores da vida social. DIREITO E POLITICA 73 regtas do regime politico e para legitimar suas posicées, ja que aquilo que é legal acaba sendo aceito pela maioria da populacao. O direito funciona, finalmente, como instrumento da politica porque, por meio de sua aplicacao, as autoridades do Estado exprimem escolhas politicas, tornando-as legalmente vinculantes. Isso permite falar em direito da politica. O direito pertence a politica, tal como a casa pertence ao proprietario. O carater politico (politicidade) do di- reito € parcialmente contestado na doutrina. Muitos autores sustentam que ha normas juridicas sem carater politico. Como tais, sao apontadas as normas que disciplinam matérias “técnicas” ou tutelam o interesse de todos. Como consi- derar politicas as regras que limitam a velocidade ou as normas que tutelam o direito a vida? Alega-se, assim, que existe, no sistema juridico, uma regido técnica ao lado da regiao politica. Em outras palavras, considera-se que o direito e a politica sao duas esferas secantes, existindo uma parte do direito que permanece fora da politica. Essa opiniao nao convence. Todas as regras juridicas, mesmo aquelas de aparéncia técnica, sao resultado de um processo politico. O direito decorre da manifestacdo de uma vontade politica que conseguiu impor-se sobre as vonta- des contrarias. Aquilo que um grupo de poder deseja, decide e impée nao deve ser considerado como exclusivamente técnico. A limitagao de velocidade nao faz parte dos assuntos claramente politicos. Devemos, porém, pensar que nao € possivel alcancar um consenso geral sobre a necessidade de limitar a velocidade e o limite adequado. Existem fortes in- teresses da industria automobilistica e também de uma parte da populagado no sentido de abolir a limitagao da velocidade. Na Alemanha, por exemplo, nio ha timite de velocidade nas rodovias, porque as indiistrias e as associagdes de “amigos do automével” pressionam nesse sentido, reivindicando o que chamam “caminho livre para cidadaos livres”. No entanto, basta que o motorista alemao cruze a fronteira, entrando na Suica, para deparar-se com um limite de velocida- de (até 120 km/h em todas as rodovias). Podemos dizer que a decisao relativa ao controle de velocidade é exclusivamente técnica? Evidentemente, nao. Por outro lado, os temas de interesse geral também sao de natureza politi- ca, Como constatamos (Li¢do 3, 3), o aleance da protecao da vida humana é um assunto fortemente controvertido e também nao ha acordo sobre as penalidades indicadas. Basta pensar no interminavel debate politico em torno da pena de morte e da prisdo perpétua para se convencer de que, no direito, nao ha norma de comum aceitacao e situada fora dos conflitos politicos. Por fim, sustenta-se que o direito privado é de natureza nio politica, pois Permite que os individuos tomem decisdes de mancira autonoma, conforme preferéncias pessoais e acordos entre interessados, sem interferéncia do Estado 74 MANUAL DE INTRODUCAO AO ESTUDO DO DIREITO. e de suas finalidades politicas (Braun, 2007, p. 104). Esse argumento €¢ falacio- -so. Quem decidiu que temas de grande relevancia social devern ser deixados nas méaos de particulares? Quem decidiu, por exemplo, que os proprietarios de uma grande empresa podem demitir milhares de funciondrios, prejudicando suas vidas 0 futuro de suas familias? A decisdo de “privatizar” assuntos de interesse geral é politica, sendo uma decisao estatal que amplia a liberdade dos particulares. Concluindo: mesmo as questdes juridicas aparentemente técnicas, paci- ficas ou privadas sao objeto de uma decisdo politica, que poe fim a uma contro- vérsia publica sobre a oportunidade de criagdo de certos regulamentos. O direito sempre pertence a politica. Mesmo quando a politicidade é latente ou fraca, uma anidlise cuidadosa pode demonstrar o carater politico das normas juridicas. Mas isso nao significa que a politica sé se faz por intermédio do direito. O ordenamento juridico é um subconjunto da politica, que € também exercida de forma ilegal e persegue finalidades ilegais. Tanto o Estado como os cidadaos podem agir politicamente para impor transformagées sociais além dos limites ¢ dos métodos que impée o ordenamento juridico. Para entender as manifesta- oes ilegais da politica, devemos examinar um segundo tépico: sua posicao no ambito do ordenamento juridico. 3. A politica do direito Aqui invertemos a perspectiva, analisando a politica a partir do ponto de vista juridico. Perceberemos que o direito funciona como critério e limite da po- litica (Grimm, 1969); é uma “forma particular de politica” (Maller, 1997, p. 35), pois tenta controlar e coibir as demais expressdes da politica, que trata como ilegais. Aqui o ordenamento juridico passa a ser o “senhor” da politica. Isso coloca a questao das formas de atuacdo politica com base no direito, ou seja, 0 problema da politica do direito. Em primeiro lugar, as normas juridicas estabelecem critérios para a tomada de decisées politicas. Os governantes nao podem decidir segundo a prépria vonta- de, nem basear-se exclusivamente na legitimidade do voto popular para justificar suas decisdes. Qualquer decisao politica deve levar em consideracdo os critérios fixados pelas normas juridicas programaticas, respeitando também as regras que estabelecem a competéncia e o procedimento para elaborar determinada decisao. Exemplo: a politica tributaria € estabelecida pelo legislador. Este deve, po- rém, levar em consideragdo critérios como a proporcionalidade da tributa¢4o, a proibicao de impostos retroativos, o tratamento igual de contribuintes em iguais condigdes e os demais parametros constitucionais da politica tributaria. Alem disso, o legislador deve respeitar as regras sobre a aprovacdo das leis tributarias DIREITO E POLITICA 75 a reparticdo de competéncias tributdrias entre os entes da Federagao (arts. 145- 152 da Constituicao Federal). Em segundo lugar, a importancia da orientacdo juridica da politica revela- -se plenamente se consideramos a fungao do direito enquanto limite da politi- ca. As normas juridicas desenham um quadro normativo dentro do qual deve mover-se a politica. Como veremos ao analisar o Estado de direito (Ligdo 5, 2), acriagdo das normas juridicas leva a autolimitagao do Estado, configurando um campo de aco dentro do qual deve permanecer no futuro. Exemplo: o Presidente da Republica pode considerar necessario decretar de imediato 0 estado de sitio em caso de guerra, ordenando medidas excepcio- nais e suspendendo direitos fundamentais. Tal declaragdo nao pode, porém, ser feita sem respeitar certos requisitos e, em particular, sem solicitacdo prévia de autorizacao do Congresso Nacional, segundo o art. 137 da Constituigao Fede- ral. Aqui os 6rgaos estatais nao podem atuar segundo sua opiniao politica pes- soal; deve seguir as regras fixadas na Constituicao com a finalidade de limitar a acao politica dos detentores do poder. O direito funciona como limite da politica também em relacao aos cidadaos. Todo cidadao possui o direito de lutar para impor suas convic¢ses politicas, parti- cipando em debate politico e nas eleigdes, fazendo propaganda e critica. Mas nem toda atividade politica € juridicamente permitida. Pensemos em um cidadao anar- quista, que tem como objetivo a aboli¢ao do poder e da propriedade privada ¢ ten- ta convencer os demais a realizar seu projeto de sociedade. Sua atividade politica é legalmente proibida. Segundo a legislacdo em vigor, quem “incitar & subversdo da ordem politica ou social” comete um delito e incorre em pena de reclusao de um a quatro anos (art. 23, I, da Lei 7.170, de 14.12.1983). As proibicées politicas podem ser mais ou menos extensas, dependendo do grau de “abertura” do regime. Um regime liberal e democratico sé protbe acdes extremistas que colocam em perigo os fundamentos da organizacao social,’ es- tabelecendo os regimes autoritarios proibicdes politicas muito amplas.® Mas, em todos os casos, os ordenamentos juridicos separam as atividades politicas legais € permitidas daquelas legalmente proibidas (ilegais, subversivas). 5. Segundo a Constituicao Federal, o funcionamento dos partidos politicos ¢ livre, sendo, porém, proibido desrespeitar a soberania nacional, o regime democratico, o pluriparti- darismo e os direitos fundamentais (art. 17, caput). 6. Exemplo: no Brasil, durante a ditadura militar, o Ato Institucional 5, de 13.12.1968, conferiu ao Presidente da Republica o poder de “suspender os direitos politicos de quaisquer cidadaos pelo prazo de 10 anos ¢ cassar mandatos” quando isso estivesse “no interesse de preservar a Revolugao” (os militares denominavam a ditadura de “Revolugao"). 76 MANUAL DE INTRODUGAO AO ESTUDO DO DIREITO O Professor Marcelo Neves (1957-), ao realizar uma leitura sociolégica e historica dos ordenamentos juridicos, sustentou que a fungdo do direito como limite da politica nao ¢ cumprida nos paises da periferia do capitalismo, mar- cados pela inferioridade econémica, nos quais incluiu o Brasil.” Nesses paises ocorre, segundo essa viséo, a constante intromissao de interesses politicos e econdémicos nas decisdes juridicas. Os interesses de grupos de poder “coloni- zam” o sistema juridico, abolindo sua autonomia de acdo, isto é, sua capacidade de regulamentar a vida independentemente de interesses alheios ao direito, Os poderosos “sobrecidadaos” manipulam o direito vigente, enquanto os “sub-ci- dadaos” das classes populares sao submetidos a repressdo “legal”. Em sintese, ha “subordinacao imediata do sistema juridico ao cédigo do poder”* Essa tese ndo convence por trés razGes. Primeiro, porque é necessaria sua confirmagao empfrica, mediante estudo de casos, que, até hoje, nao foi feito. Essa verificacao enfrentaria grandes dificuldades. A decisao juridica sempre tem justificativa legal. Como descobrir em quais casos essa justificativa € sincera e em quais foi o resultado da submissao da autoridade a imperativos politicos? Segundo, a leitura dos jornais mostra que nos paises do “centro” capitalista s4o continuos os escandalos que envolvem a manipulacao do sistema juridico por elites politicas e econémicas. Porque considerar essa manipulacao peculiaridade dos paises economicamente fracos ou dotados de grandes desigualdades sociais? Terceiro, quando o direito de um pais sofre constante manipulacéo por in- teresses extrajuridicos, isso ndo afeta a necessidade de aplicar sancées. Tal como o aumento da taxa de homicidios ou da sonegagdo fiscal nao afeta a vigencia das normas que proibem tais condutas e o dever de perseguir os responsaveis, a “colonizacao” do direito pelos poderosos nao apaga a ilegalidade de sua conduta ea obrigacao de fazer valer as previsdes legais. Isso mostra que, mesmo quando o direito tem baixa eficdcia social, permanece vigente, pretendendo submeter a vida real aos seus imperativos, limitando o poder politico. Ha uma segunda forma de questionar a fungdo do direito como limite da politica. Sabemos que o direito tenta impor a todos wma visdo ideal sobre a orga- nizacdo da sociedade e sobre os limites da mudanga politica (direito contrafatico — Ligdo 6, 2.3). Mas nao sao raros os casos em que os ativistas politicos ndo sé evitam a punicdo por acdes politicas ilegais, mas também conseguem impor-se politicamente. A maior prova disso é 0 modo de criacdo das Constitui¢gdes. O po- der constituinte originario que cria uma nova Constituicao ¢ sempre ilegal, j4 que sua intengao é abolir a Constitui¢do anterior, ou seja, o texto juridico supremo. 7. Essa andlise encontra-se em varias publicagdes do autor. Cf., resumidamente, Neves, 2007, p. 164-189. 8. Neves, 2007, p. 179, DIREITO E POLITICA 77 Assim sendo, o direito que pretende limitar a politica revela-se como pro- duto de atos politicos que contrariam o sistema juridico vigente. Se conseguir se impor na pratica, a politica ilegal cria um novo direito, podendo, inclusive, criar uma nova Constituigao. A independéncia do Brasil era um ato ilegal para o regime colonial. A Proclamacao da Republica violou a legalidade do Império e¢ todas as sucessivas mudangas de regime expressaram vontades politicas igual- mente ilegais em rela¢ao ao direito entao vigente. Essas constatagées nao afetam a pretensao (e a capacidade) do direito de limitar a politica ¢ ordenar a sociedade. Mas mostram que, em ultima instancia, a politica é o polo forte da relacao e os interesses politicos predominantes aca- -bam se impondo, apesar das proibicoes legais. 4. Conclusio O direito segue a politica e necessita do poder politico para ser aplicado. Mas, ao mesmo tempo, o direito funciona como instrumento de critica do poder politico (Mastronardi, 2001, p. 84): tenta limitar a politica, submetendo-a a pro- cedimentos ¢ fixando suas finalidades gerais. Essa funcao limitadora do direito nao deve ser desprezada. O direito prevé uma série de garantias que permitem aos grupos politicos da oposi¢ao fiscalizar a atuacao da maioria e possibilitam a defesa dos espacos de liberdade dos individuos contra intrusdes do poder estatal, Basta pensar nas Comissdes Parlamentares de Inquérito (art. 58, § 3.°, da Constituicaéo Federal) e na garantia do habeas corpus (art. 5.°, LXVIII, da Constituicdo Federal), Em outras palavras, o direito desempenha um importan- te papel garantista tentando civilizar os conflitos politicos e proteger os direitos dos mais fracos. Os limites contidos nas normas juridicas sdo, porém, frageis, podendo ser derrubados por movimentos politicos ¢ até substituidos por um novo direito, con- forme uma vontade politica radicalmente diferente. No binémio direito/politica, a politica ¢ 0 fator ativo e determinante. Esta cria o direito e consegue alterd-lo. Para aprofundar 0 conhecimento Atienza, 2003, p. 115-143; Beck, 1993, Bercovici, 2003, p. 103-138; Di- moulis, 1996, p. 454-461; Frankenberg, 2003, p. 13-45; Grimm, 1969 e 2006, p. 3-20; Guerra Filho, 2000; Luhmann, 1997, p. 407-439; Neves, 2007; Pawlo- wski, 1999, p. 262-271; Rosenfeld, 1998, p. 74-83; Ryffel, 1972; Schmitt, 1992, Vilanova, 2003; Viola e Zaccaria, 2001, p. 73-85; Voigt, 1989; Wesel, 1993, p. 198-201.

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