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CISNES [XR@IN@} Uma hist6ria da Revolta da Chibata Mario Maestri Mario Maestri Doutor em Historia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Professor da Universidade de Caxias do Sul. Professor do Programa de Pés-graduacao em Historia da Universidade de Passo Fundo. CISNES INineites Uma histéria da Revolta da Chibata 1? edicdo EDITORA MODERNA pe COORDENACO EDTORIAL: Jose Carlos de Castro EDICAO E PREPARACAO DE TEXTO: Lellis Assessoria Editorial ‘COORDENACAO DA REVISHO: Estevam Vii Lédo Je. REVSAO: Jraci Miyul Kishi GERENCIA DE PRODUCAO GRAFICA: Wilson Teodoro Garcia EDICAODE ARTE: Edlimion Carvalho Viiea CAPA: tule Femando Rubio Fats: Joo Ginddo le deereo da anita, Revol da Chiba, 1910 © Iconogrophia; Eneouragado Potemkin © Fulton Get, Jove, ‘Candido e marnheiros rcbeldes nos momentos finals da Revoka da Chibats © lconographia, Marinheiros rebeldes no encouragado ‘Minas Gerais wand da Revota da Chibata © Teonographia, Desemburque de Joio Cindido a0 fim dt Revolt = Reprodugio FESQUISAICONOGRAFICA: Mario Macs As imagens ideifeadas com sigh CID forum fornecidas pelo Cento de Infomago e Documenta dt Eitora Meera. DIAGRAMACKO: Flavia Maria Susi CARTOGRARA: Aden Malaquias de Almeida TRATAMENTO DE IMAGENS: Evaldo de Alnieda,Ideruldo Araujo ce Melo SAIDADE RIMES: Helio Pde Souza Filho, Luz A da Siva CCOORDENACAO DO FCP: Fernando Dalton Began IMPRESSAO E ACABAMENTO: anira Geifica © Euitora Lid. Dados internacionais de Catelogasio na Pu (CAmare Brasileira de Livro, SP, Bras Macsti, Miri, 1648- Cisnes negros uma historia da Revolta da Chibata / Mario Maesti. — S30 Paulo : Modema, 2000. — (Colesao polemics) Inclui suplemento diditieo pars o professor. Bibliogafa, ‘Brasil. Marina ~ Historia 2. Brasil — Uistéria ~ Revolta da Bsqoadra, 1910 3, Brasil — Historia naval. Ttlo. 1. Titulo: Una h dda Revolta da Chibats. I, Série 9-8293 CDD981.056 Indies por catélogo sistemético: 1. evola dt Cian ral sts 8.056 2. Revd ada Bras = Hii ‘e156 4 Revol de Jodo Cando: Hal: Miia Sal ose 4, Revol dot Mannios, 1910 Bra sow 91058 ISBN 85-16-02563-2 produo probida.An.164 do Cédigo Penal Lei 9.610 de 19 de loverero do 1988, Todos os divelis reservados Eprrora Moperna Lrpa. Rua Padre Adetino, 758 - Belenzinho Sa0 Paulo - SP - Brasil - CEP 03303-904 Vendas © Atendimento: Tel. (0-11) 6090-1500 w (0-11) 6090-1501 ‘www moderna com br 2000 Impresso no Brasil 13579 0 8 6 4 2 NY WD nw BWP Introdugao — Uma luta por cidadania... 6 Brasil, 1910: ricos e pobres num mundo rural .. i 10 Navegando em bons mares, 11; Primeiros passos, 12; Sem Deus, sem patria, sem patrées, 15; Crime e vagabundagem, 16 A campanha civilista e a divisdo das elites ... 18 O marechal e a 4guia, 19; Despertando esperancas, 21 A triste vida dos marinheiros brasileiros Voluntarios sem prémios, 25; Como bons pais, 27 Modernizagao e anacronismo na Armada = Apenas velas, 31; Poténcia naval, 32; Arrolados a forca, 33; Os de cima e os de baixo, 35 Armada brasileira: uma das mais modernas do mundo.. 36 Matando-se a disténcia, 37; Navios poderosos, 39; Consciéncia cidada, 41 Potemkin: os marinheiros russos contra a Armada A vida por um prato de sopa, 44; Poder nascente, 46; Barril de pélvora, 48 Marinheiros e operdrios: uni-vos! Morte na escadaria, 53; O prego da indecisao, 5: 57; Como em um desfile, 58; Momentos finais, Em mar aberto, 9 10 11 12 13 14 15 16 Os marinheiros negros conspiram 61 Viagem maldita, 63; A mao da revolta, 64; Qualquer governo, 6 Por duas garrafas de pinga, 66; Ferindo a alma, 67 A noite em que o clarim pediu combate .... 68 As regras do jogo, 70; Tudo ou nada, 71; Brincando com a morte, 72; Sem saber por qué, 72; Navio-escola, 73 O contra-ataque impossivel .. we 75 ‘Aqui e agora, 76; Fogo em palha, 77; Cabegas de combate, 78 O governo decide-se pelo didlogo.... . 80 Prova viva, 81; Dignidade da forga, 82; Porta-vor das elites, 83: Cheiro de povo, 84; Telegrama educado, 85 A vitéria da revolta.. .. 87 Honra perdida, 88; Senhores do alto-mar, 88; Desconfianga pro- fética, 89 A anistia e 0 comego da traigao . 91 Preparando o golpe, 92; Voz isolada, 93; Apertando o lago, 93 Armadilha fatal: a segunda revolta .. 95 Batalhdo naval, 96; Servindo de exemplo, 97; Revolta desarma- da, 99; A razao do lobo, 100 Vinganga feroz . : Gigante negro, 103; Navio tumbeiro, 103; Martirio sem fim, 104 A vitéria dos marinheiros negros Cronologia Gl drio.. Bibliografia ... INTRODUCAO — Uma Luta por CipADANIA Rio de Janeiro, noite de 22 de novembro de 1910. O mar estd calmo, 0 tempo, sereno. Do cais avistam-se os vultos ameagadores dos barcos de guerra da Armada, reunidos para a posse do presidente da Reptiblica, rea- lizada h4 uma semana. A calma é absoluta na capital brasileira, uma das maiores cidades da América Atlantica. Boa parte da populagdo dorme. Apenas alguns traba- Ihadores retardatérios voltam cansados para casa. Aqui e ali, um marinhei- ro, um bo€mio ou uma prostituta vagam pelo cais. No elegante Clube da Tijuca, a nata da sociedade carioca participa com © recém-empossado presidente da Reptiblica, o marechal Hermes da Fonse- ca, de uma luxuosa recepgao. Na época, a Repdblica Velha (1889-1930) vivia alguns dos seus mais radiosos anos. O Brasil exportava, a pregos elevados, imensas quantidades de café, borracha e cacau, entre outras mercadorias, Subitamente, as 22h55min, como o estampido de um raio em céu sereno, um disparo de canho soou na bafa. A seguir, outros. Em terra, nada se sabe. Ninguém imagina 0 que ocorre, Logo as primeiras frenéticas mensagens telegrdficas so recebidas e os primeiros oficiais e suboficiais desembarcam no cais, assustados. Ninguém acredita no que é contado. Os marinheiros lutam, com as armas & mao, pelo dominio dos encouragados. Nos combates morreram diversos marinheiros e oficiais. E nao hé mais dividas — a vit6ria sorriu aos marujos. Os barcos esto em suas maos. O presidente da Repiiblica abandona a festa ao ser informado de que os marinheiros controlam os navios. A noticia paralisa os altos funciona- trios do Estado, do Exército e sobretudo da Armada, — E agora, 0 que fazer? — perguntam-se politicos e oficiais repu- blicanos. A Armada acabara de ser aparelhada com as mais modernas armas de guerra. Dois poderosos dreadnoughis (espécie de encoura ado pesado) encontravam-se entre os navios comprados na Inglaterra, a peso de ouro, € recém-chegados ao Brasil: verdadeiras fortalezas navais, a mais terrfvel arma entio existente sobre os mares. Possuem intimeros canhées de gran- de alcance e de imenso poder destrutivo. So raros os paises europeus que contam com esses magnificos e custosos navios. — Mas 0 que querem os marinheiros, rompendo com a disciplina e chantageando o poder constituido? — clamam as autoridades da Reptiblica. — Quais as reivindicagées do inaceitével movimento? — todos que- rem saber. Os marinheiros da Marinha de Guerra, senhores dos poderosos na- vios, exigiam ser tratados como seres humanos. Exigiam simplesmente a cidadania republicana. Pediam soldo justo, condigées de trabalho mais dig- nas. Exigiam, sobretudo, o fim dos castigos fisicos. Vinte e dois anos apés a abolig&o da escravatura e vinte e um depois da proclamagao da Reptiblica, os marujos brasileiros eram chicoteados barbaramente, como se fossem cativos fujdes dos tristes tempos do Impé- tio! Havia poucos dias, um marinheiro fora condenado a 250 chicotadas e retalhado, como uma tainha, diante dos olhos aténitos dos companheiros de trabalho. O castigo dofa no corpo e na alma. Sobretudo porque os marinheiros revoltados, que levantavam bandeiras vermelhas nos mastros dos navios, eram negros e mulatos, em imensa maioria. Venceriam ou morreriam! Mas nunca mais seriam tratados como seus antepassados! RRR Raros acontecimentos brilham tao intensamente no periodo republi- cano brasileiro como a revolta dos marinheiros negros, também conhecida como Revolta da Chibata. Raros acontecimentos modificaram tao profun- damente a organizagao de uma corporagao militar, dividindo a histéria de nossa Marinha de Guerra em antes e depois de 1910. Contraditoriamente, raros acontecimentos foram tio pouco estudados pela historiografia brasileira como a revolta dos marujos negros, Apesar de ter sido uma das maiores rebelides de todas as armadas de guerra modernas, esses fatos sao quase desconhecidos fora do Brasil. , Sobre a revolta temos apenas alguns escritos de circulagao limitada e confiabilidade relativa, de oficiais envolvidos nos acontecimentos, So- mente 0 magnifico trabalho de Edmar Morel — A Revolta da Chibata de 1963, e estudos mais recentes resgatam do esquecimento a saga de Joao Candido, de Francisco Dias Martins e de seus companheiros. Muitos aspectos da revolta sao ainda ignorados. Em 1988, a edi aio de uma historia da rebelido, do vice-almirante Hélio Leéncio Martins Bo ow ampliou significativamente nossos conhecimentos. Em geral retomou do- cumentos conhecidos e repetiu — com outro contetido — explicagdes de- senvolvidas anteriormente. Porém, j4 contamos atualmente com trabalhos académicos sobre as condiges de vida na Armada, antes da revolta, o que amplia, consideravelmente, nossos conhecimentos sobre os fatos. O movimento de 1910 exige investigacao detida que esclareca mui- tas perguntas ainda sem respostas; necessita de um trabalho de félego que integre os acontecimentos a histdria politica e social do inicio do século. Muito esta por ser escrito. Momentos essenciais da revolta sero possivel- mente reconsiderados. Pouco conhecemos sobre as primeiras discussées dos conspiradores, ocorridas ainda nos estaleiros navais britanicos, quando da construgao dos novos navios da Armada brasileira. E escassa também nossa informagao sobre os acontecimentos e as deliberacdes no interior dos barcos, nos qua- tro dias da rebeliao. Conhecemos as reivindicagdes dos marujos, mas ignoramos as in- fluéncias politicas e ideolégicas que inspiraram as liderangas dos mari- nheiros revoltados. Nao sabemos se eram comuns os contatos dos marujos nacionais com marinheiros de outras nagées. A revolta na Marinha de Guerra russa, de 1905, imortalizada pelo cineasta Sergei Eisenstein em O encouragado Potemkin, de 1925, ocor- reu cinco anos antes do movimento brasileiro. Os marinheiros teriam comegado a conspirar nos estaleiros ingleses apenas um ano ap6és aque- les acontecimentos. Diversos atos e comportamentos dos marujos brasileiros indicam que foram influenciados pela Revolta do Potemkin. O movimento dos mari- nheiros russos do mar Negro sugere, por analogia, possiveis explicacdes para acontecimentos internos do movimento brasileiro. Sobretudo por isso analisaremos brevemente a revolta na esquadra russa. Nao conhecemos ainda suficientemente os movimentos, as intengdes e as dissidéncias exatas dos diversos setores do governo, do Congresso e das Forgas Armadas. Nao foi igualmente esclarecido 0 sentido preciso da segunda revolta dos marinheiros, de 10 de dezembro de 1910. Acredita-se que ela tenha sido um movimento, se nao dirigido, ao menos insuflado por setores opostos aos marinheiros. Na época sugeriu-se que se tratou de uma provocagao policial. A revolta dos marinheiros negros merece estudo de félego. Esse es- tudo teria que se basear no que resta da meméria dos marinheiros revolta- dos. Teria que consultar os papéis de Hermes da Fonseca e dos politicos da €época. Sobretudo, teria que analisar a documentagao detida pela Mari- nha de Guerra brasileira. Para a compreensdo exata desse movimento, é necessdrio o estudo das pequenas revoltas ocorridas nos navios da Armada nacional antes de 1910. Me 8 Em 1979 realizamos um primeiro levantamento, no Arquivo da Ma- rinha, no Rio de Janeiro, sobre 0 movimento dos marinheiros. Boa parte da documentagio referente a revolta fora recolhida, informou-nos 0 re: ponsdvel pelo centro de documentagao. Por exemplo, ndo tivemos acesso aos livros de castigos dos navios envolvidos na rebelido. Disseram-nos que eles nao mais existiam. Alguns anos mais tarde, ao visitarmos 0 mesmo arquivo, parte da documentagao que haviamos estudado sobre a revolta nao mais se encontrava 14. Este livro se destina ao ptiblico da Colegao Polémica, da Editora Moderna. Com ele, procuramos realizar uma reportagem sobre os aconte- cimentos, discutir alguns pontos e interpretacdes sobre a rebelido, ajudar a divulgar um momento de tamanho brilho de nosso passado. Para escrevé- lo, trabalhamos sobretudo com os livros e documentos publicados e com a documentagao obtida no Arquivo da Marinha, no Rio de Janeiro. Devido as caracteristicas da Colegio Polémica, nao utilizamos notas e referéncias eruditas. As afirmagées e propostas defendidas no trabalho apdiam-se es- sencialmente na documentacao apresentada na bibliografia final. Neste livro desenvolvemos a tese de que 0 grande estopim da revolta foi a contradi¢éo entre o desenvolvimento tecnolégico da nova Marinha de Guerra e 0 tratamento semi-servil dispensado aos marinheiros. Defen- demos a importancia que as relagdes raciais desempenharam nesse movi- mento social e popular que eclodiu apenas 22 anos apos a aboligio da es- cravidao no Brasil. A saga dos marinheiros negros tem um contetido extremamente atual. Diz respeito a uma das mais essenciais questdes da sociedade brasileira. A revolta de 1910 nao foi apenas um confronto, entre marinheiros e oficiais, por reivindicagoes profissionais. Foi muito mais. Foi sobretudo a luta de um dos setores mais subalternizados da sociedade da época pelo reconhe- cimento de seus direitos de cidadaos. Noventa anos apés os fatos, milhdes de brasileiros — em boa parte negros € mulatos como os marujos rebeldes — esperam ainda que seus direitos civis minimos sejam respeitados. Esta nao € uma histéria “imparcial” dos acontecimentos de 1910. Procuramos relatar os fatos do ponto de vista das classes subalternas e, portanto, dos préprios marinheiros. Isso, acreditamos, aproximou-nos da verdade histérica, Em 1910, nas lutas e nas reivindicagdes dos marinhei- ros da Armada encontravam-se o fermento de um Brasil mais justo, mais humano e mais democratico. Mais verdadeiro, enfim. Brasil, 1910: Ricos E Posres NUM Munpo Rura O Brasil vivia um momento particularmente importante quando a populagéo do pais acompanhou atonita a revolta de novembro de 1910. Vinte e dois anos antes, em 1888, conclufra-se a Gnica verda- deira revolugio socieconémica vi- vida pela nagéo — a aboligdo da escravatura. O pais ultrapassara a produgo escravista e organizara-se a partir do trabalho livre. No ano seguinte, em 1889, proclamava-se a Republica. Na época da revolta dos marinheiros, as primeiras forgas da industrializagéo desenvolviam-se no pais. Timidamente, as classes trabalhadoras urbanas ingressavam na arena politica e social. O mesmo fazia a classe média, até entio com escasso papel politico. Em muitos aspectos, o pafs nao se modificara em relacdo aos Ultimos anos do Império. O campo continuava sendo 0 centro das ati- vidades produtivas. O café era a principal riqueza da nagio — ou melhor, das elites da nagdo. Para alguns poucos — os cafeicultores — o café significava grandes rique- zas. Para milhares de trabalhadores nacionais e de imigrantes, signifi- cava apenas muito trabalho e pouca remuneragao. No Brasil, 0 latiftindio conti- nuava dominando. Apenas nas ter- ras que nao serviam para a grande plantagao e criagao, desde 1824 mi- nusculas colénias agricolas foram doadas e, a seguir, vendidas para imigrantes. As propostas de refor- ma legislativa em favor da pequena propriedade rural tinham sido rece- bidas com cara amarrada pelos de- putados nacionais, representantes dos ricos proprietdrios de terra. No Brasil, praticamente eram desco- nhecidos os impostos sobre a pro- priedade da terra. Em 1910, a populagao do pais era estimada em 23 milhdes de ha- bitantes. A populacao urbana era pequena. Estudo realizado dez anos mais tarde assinalava que 70% dos habitantes do Brasil viviam no in- terior, num universo rural que pro- duzia principalmente para a expor- tagao. Tratava-se de uma realidade muito diferente da atual. Hoje, mais Jo Brasit, 1910: Ricos & Popres num Munpo RurAL de 80% dos brasileiros vivem n: cidades. Nos campos, fora 0 agticare a carne, pouco se produzia para o mercado interno. Desde 0 inicio do século 19, colonos estrangeiros fo- ram chamados para aliviar a carén- cia dos géneros alimenticios, fun- dando uma agricultura de pequenos proprietarios policultores nas pro- ximidades das capitais. Porém, a grande criag&o e a plantacio lati- fundidrias eram o centro das ativi- dades rurais. O café imperava nesse uni- verso rtistico. Na segunda metade do século 19, a maior parte das ren- das nacionais provinha das expor- tagdes do café produzido nas fazen- das fluminenses. Desde anos antes da proclamagao da Reptiblica, devi- do ao esgotamento da fertilidade das terras do Rio de Janeiro, 0 co- ragaio da produgdo cafeicultora transferira-se para a provincia de Fazenda cafeicutora escravista no Sao Paulo. Outros dois produtos: enchiam os cofres dos grandes pro- prietarios, comerciantes e banquei- ros da Reptiblica Velha — 0 cacau ea borracha. Navecanpo Em Bons Mares Em 1910, a economia expor- tadora vivia verdadeira euforia. Os velhos e novos ricos nao conse- guiam esconder os dentes, de alegres. O pais sentira, até 1906, a crise mundial de 1896. Entretanto, agora, em 1910, ela era coisa do passado. As mas recordagdes, que os ventos as levem... O governo praticava a politica de sustentagao das cotagGes do café. Ou seja, obti- nha empréstimos internacionais e, com eles, comprava, retirava do mercado € estocava grandes quan- tidades de café. Isso fazia os pregos subirem. Portanto, tudo corria bem. Cisnes Necros - Uma Hisroris pA REVOLTA DA CHIBATA Ao menos nesses anos... Ndo se conheciam — ou nao se queria co- nhecer — os tristes resultados que essa medida, que incentivava a su- perprodugao, determinaria ao prin- cipal produto nacional. Os produtores de borracha es- tavam igualmente euféricos. A ri- queza amaz6nica dera seus primei- TOs passos no mercado internacio- nal no distante ano de 1827. Mais tarde, seu consumo explodira quan- do a borracha comegara a ser usada nas rodas dos automéveis. Em 1910, os produtores brasileiros con- trolavam 75% do mercado interna- cional. Na época, pagavam-se altos pregos pela tonelada de borracha, nas bolsas de valores. A valiosa mercadoria representava quase 30% das exportages brasileiras. O cacau era fonte de grandes alegrias para os produtores baianos. Eles dominavam também o merca- do nacional e nao conheciam — ainda — sérios concorrentes no ex- terior. O melhor: a produgio brasi- leira e a mundial nao cobriam a crescente demanda do mercado in- ternacional. As cotagdes do cacau subiam em flecha. S6 que os “bons ventos” eco- nOmicos nao escondiam 0 atraso e as limitagSes da organizagao social e politica do pais. Os bancos eram ra- ros. O capital financeiro, reduzido. O mercado interno, raquitico, As ex- portagoes limitavam-se aos produtos primarios. A industria nacional engatinhava. A maior parte dos ma- nufaturados consumidos vinha, a elevados precos, da Europa e dos Estados Unidos. As rendas nacionais produzidas duramente por milhdes de trabalhadores rurais escorriam por entre os dedos esbanjadores das elites e terminavam no exterior. No campo e nas cidades, a maior parte da populagao trabalha- dora conhecia diffceis condigdes de existéncia. Mesmo nas capitais, 0 abastecimento de Agua e os ser- vigos de esgoto eram escassos. As moradias e a infra-estrutura sanité- ria da populagdo eram precérias. Isso nao impedia, no entanto, que os grandes proprietdrios vivessem, no campo e nas cidades, em micro- mundos dourados, como em um conto de fadas que acreditavam ser eterno e imutavel. A grande maioria dos traba- Ihadores vivia nos campos, em mi- Ihares de fazendas e centros produ- tores de café, acgticar, borracha, ca- cau, mate, algod4o, couro, fumo, charque etc. Os trabalhadores rurais brasileiros nao eram uma forga so- cial homogénea e organizada. Vi- viam isolados pela distancia e, so- bretudo, por diferentes formas de producdo. Eram assalariados, mora- dores, colonos, parceiros, meeiros, agregados. Eram separados igual- mente por diferengas culturais, ét- nicas ¢ lingiifsticas, Havia trabalha- dores afro-brasileiros, caboclos, portugueses, espanhdis, alemaes, italianos Primeiros Passos O proletariado acabara de nascer como classe social estrutu- rada. Em uma populacaio estimada Brasit, 1910: Ricos £ Popres NuM Munpo RuraL em 23 milhdes de habitantes, os trabalhadores fabris nao ultrapas- savam os 160 mil. Nem mesmo 1%! E também eles, como os tra- balhadores rurais, encontravam-se relativamente dispersos. No Nor- deste, os principais centros indus- triais eram Bahia e Pernambuco; no Centro-Sul, Rio de Janeiro e Sao Paulo. Mesmo em cada um dos Estados, podia ser grande a disper- sao da produgao fabril. No Rio Grande do Sul, os pélos operdrios localizavam-se na grande Porto Alegre, em Pelotas, em Rio Gran- de e em Caxias. Esse primeiro mo- mento da industrializagao nacional apoiou-se na producao de bens de consumo nao-durdveis — tecidos, alimentos, méveis etc. ey Bonde paulista puxado por burros, no comeco do século 20. O elevado custo do transporte, as taxas interestaduai sobre a circu- lagdo de mercadorias e a baixa acu- mulagao de capitais eram os respon- sdveis pela dispersao da nascente in- diistria nacional. O Rio de Janeiro, capital da Reptiblica e maior centro financeiro do pais, constitufa o prin- cipal nicleo urbano nacional, com aproximadamente | milhao de habi- tantes. Era uma das maiores cidades das Américas. Na época possuia 0 15° porto mundial, quanto ao movi- mento de carga e de passageiros. No Rio de Janeiro, em geral, os trabalhadores urbanos eram es- trangeiros — portugueses, espa- nhdis, italianos etc. Em 1900, mais de 210 mil nao-brasileiros viviam na capital da Reptiblica. Os estrangei- ros eram valorizados como trabalhadores. Mes- MO Os eX-escravos que co- nheciam oficios eram dis- criminados quando da contratagao. Eles e seus descendentes trabalhavam nas tarefas mais ingratas, entre as quais se encontra- vam a carga e descarga de mercadorias no porto. Era comum que operarios de diferentes nacionalidades — sobretudo brasileiros e portugueses em confronto, Como os meios de transporte eram deficien- les © seus custos, eleva- dos, a produgao fabril e manufatureira trabalhava Para os limitados merca- dos locais. Por isso, a in- - entrassem Cisnes NeGros — Uma Historta pa Revovra pa Caipata dustria carioca privilegiava-se de seu relativamente amplo mercado regional. Entretanto, mesmo no Rio de Janeiro, eram poucas as usin Fora excecdes, as pequenas fabri- cas dominavam. Elas produziam sobretudo materiais de construgao, vestudrio, alimentos, tecidos, mé- veis etc. As condigées de trabalho eram duras e os salarios, miserdveis. Homens, mulheres ¢ criangas trabalhavam até dezoito horas did- rias, sem repouso semanal remune- rado. As jornadas das mulheres e das criangas eram comumente mais longas do que a dos operdrios adul- tos do sexo masculino. Os mais fr4- gel io sempre os mais explora- dos. Mulheres e criangas limpavam 08 locais de trabalho, apés a longa jornada didria tida como normal. Criangas eram obrigadas a limpar, com as pequeninas e 4geis maozi- nhas, maquinas em funcionamento. Acidentes mortais e amputacgées eram comuns e nao se indenizavam os acidentados. Operdrios trabalha- vam aos domingos e dormiam nos locais de trabalho. Nenhuma legislagao social li- mitava a explorag&o. Os patroes e os mestres ditavam o hordrio, as condigGes e a remuneragiio do tra- balho. Mestres e gerentes castiga- vam fisicamente trabalhadores e trabalhadoras. Na Estrada de Ferro Central do Brasil e em outras em- presas, os operdrios faltosos eram encarcerados em prisdes privadas. Os patrées confeccionavam “listas negras” de trabalhadores combati- vos. Estes eram despedidos e di' cilmente encontravam emprego em outras empresas. A policia era uti- lizada para acabar com a resistén- cia operaria. A questao social era tida como um caso de policia. Como os antigos escravistas, 0 nas- cente empresariado nacional consi- derava que o trabalho de seus ope- rarios fosse um dever e a remunera- gio, um privilégio. Sem Deus, sem PATRIA, SEM Patroes Apenas no final do século 19, com grandes dificuldades, os traba- Thadores nacionais fundaram as pri- meiras organizagoes sindicais e po- liticas. Inicialmente surgiram as as- sociagGes mutualistas, dedicadas ao mutuo auxilio — em caso de doen- ga, de desemprego, de acidentes etc. Elas absorveram algumas fungdes assistenciais das antigas irmandades religiosas — profissionais ou étnicas — dos tempos do Império. No int- cio do século 20, os anarquistas e anarco-sindicalistas conquistaram a diregao do novo e fragil movimento operario brasileiro. O perfil da clas- se operdria de entéo — artifices e operarios de pequenas e médias ma- nufaturas — facilitava as propostas associativas e individualistas. Os anarquistas chamavam os trabalhadores a se mobilizarem contra a religiao, o Estado e 0 capi- tal. Eles propunham uma sociedade libertdria, sem Estado e sem gover- no, baseada na solidariedade dos trabalhadores independentes. Na Europa, com o desenvolvimento da industrializagao e das organizagoes sindicais, parte do movimento anar- quista evoluiu de posigdes anarco- individualistas para anarco-sindica- listas. Ou seja, da agdo individual, propria do artifice e do operario da pequena oficina, ja que ambos tra- balhavam sozinhos ou com alguns poucos companheiros, evoluiu-se para a agdo realizada no interior ou com 0 apoio de grandes associagées Brasit, 1910: Ricos e Popres NuM Munpo Rurav profissionais de trabalhadores. Os anarco-sindicalistas defendiam a organizagao dos operdrios em sin- dicatos revolucionarios. Estes tlti- mos derrotariam 0 governo do ca- pital e poriam fim a propriedade privada com a greve geral insurre- cional. A nova ordem — a anarquia — nasceria da colaboragio dos di- versos sindicatos confederados. Os anarco-sindicalistas domi- navam o movimento operdrio do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século 20. Eles se declaravam materialistas, deterministas ¢ ateus e desenvolviam uma ativa propa ganda contra o militarismo, a reli- giao e qualquer participagao dos operarios na vida politica oficial. Eles lutavam pela educagao da clas- se operdria. Mais tarde, apds a vité- tia da Revolugio Russa, em 1917, seus principais militantes particip: ram da organizagao do Partido Co- munista do Brasil, em 1922. Em 1906, no Rio de Janeiro, realizou-se o 1° Congresso Operd- tio Brasileiro, com a Participacgao de 38 associagGes profissionais, al- gumas delas de outros Estados da Federagao — associagdes de chape- leiros, de marmoristas, de carpin- teiros, de pedreiros, de ladrilheiros, de pintores, de sapateiros... As te- ses anarco-sindicalistas dominaram © congresso. Na ocasifio, a luta pe- las oito horas didrias de trabalho foi definida como a principal reivindi- cagao operdria nacional. Nesses anos existia no pais uma boa quan- tidade de jornais Operdrios, de ten- déncia anarquista, sobretudo — Fo- tha do Povo, Germinal, A Vida, La 15 Cisnes Negros — Uma Historia DA REVOLTA DA CHIBATA Lotta Proletaria, Il Meridionale, Ecos da Caserna, A Liberdade, O Lutador, A Voz do Povo, A Voz do Trabalhador, Il Ribelle etc. Parte dessa literatura era escrita em ita- liano e espanhol. O ativismo sindical, a im- prensa operdria e a importante reu- nido sindical de 1906 nao nos de- vem iludir. No Brasil, a producao rural dominava soberana e em ne- nhum momento as elites perderam o controle da situag4o social e po- litica. Em breve, a repressao aba- teria-se, duramente, sobre 0 ativis- mo operdrio, com a prisao, expul- sao e morte de militantes, o fecha- mento de jornais etc. Em verdade, num Brasil rural apenas se insinu- ava, lentamente, um apéndice fa- bril urbano. Em 1910, no momen- to da rebeliao dos marinheiros, 0 KANO 8 NUM.1 (Janes 30 de Has dt EPRODUGAO Periédico anarquista do Rio de Janeiro de 1914. movimento operdrio organizado ainda se recuperava da repressao que acabara de viver. Crime £ VAGABUNDAGEM O perfil da classe operdria ur- bana brasileira era indefinido. Os operdrios viviam em bairros popula- res, entre uma grande multidao de citadinos que vegetava 4 margem das atividades produtivas. Esses po- pulares eram descendentes de escra- vos, de homens livres, mas pobres, do Império e de imigrantes que fra- cassaram na aventura americana. Vastos setores urbanos nacionais de humilde origem — desorganizados pela ideologia escravista que tinha horror ao trabalho manual; barrados no acesso 4 pequena propriedade; incapazes de se inserir no reduzido mercado de trabalho — ocupavam- se em uma economia de subsistén- cia ou sobreviviam do crime e na va- gabundagem. Entretanto, nio eram marginais. Eram apenas populares, dos dois sexos, marginalizados por uma ordem social despreocupada com a sorte dos setores sociais tidos como inferiores. O Rio de Janeiro possufa uma grande populagio urbana que vivia precariamente, nos poros de uma so- ciedade de classe que se formava com dificuldade — eram biscateiros, mendigos, vendedores ambulantes, prostitutas, funileiros, capoeiristas, amoladores de tesouras, assaltantes, compradores de garrafas vazias, em- purradores de cargas, ciganos etc. Os trabalhadores fabris temiam per- 16 Brasit, 1910: Ricos & Popres Num Munpo Rura der seus empregos e terminar fazen- do parte dessa massa de desocupa- dos, que era mobilizada com facili- dade contra a prépria classe operd- tia. Os dedos-duros, os policiais su- balternos ou, simplesmente, os fura- greves eram recrutados entre essa popula¢&o sem perfil definido. Até o comego do século, a frdgil classe média vivera A mar- gem das decisées politicas e soci- ais. Porém, na época da revolta dos marinheiros, ela se fortalecera, re- lativamente, e se encontrava no Exército, na administrago publica, nas profissdes liberais, no pequeno comércio, entre o clero. Entretanto. continuavam limitadas as possibil dades de progresso dos setores in- termedidrios. Fora um bom e raro casamento; dificilmente um mem- bro dessas “classes médias” podia sonhar com uma real ascensao so- cial. Apenas no final da década de 1910, com 0 tenentismo — movi- mento da jovem oficialidade do Exército em favor da reforma das instituigdes republicanas classes médias passaram a di penhar um papel politico, digno do nome, no cendrio nacional. Também 0 mundo das elites era estratificado. Os grandes pro- prietarios agrarios, principalmente os plantadores de café, encontra- vam-se no topo da piramide social. Eles dominavam 0 poder politico da nagiio, desde o perfodo presidencial de Prudente de Morais (1894- 1898). Efetivamente, a Republica pusera fim & ordem monarquica — profundamente autoritéria e centra- lizadora. Apds a conclusao do go- verno dos dois primeiros presiden- tes militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, as oligarquias do Centro-Sul apoderaram-se plena- mente do governo nacional. Em 1910, os grandes proprie- tarios agrérios controlavam a na- gio. Subordinados e associados a eles encontravam-se os financistas, os grandes comerciantes, os nas- centes industrialistas. Todo um mundo que resplandecia, esplendo- rosamente. Porém, esse brilho ful- gurante nao conseguia esconder as enormes fissuras que atravessavam até mesmo a vida politica das elites nacionais. No préximo capitulo, ve- remos que eram profundas as dispu- tas entre os senhores da nagao. Es- sas divergéncias muito contribui- ram para a génese do movimento dos marinheiros de 1910. Industriais brasileiros no comeco do século 20. 17 A CampaNua CIVILISTA E A Divisio As ELttEs Devemos compreender a re- volta dos marinheiros no contexto politico da época. Quando teve inicio a rebeliao, em novembro de 1910, o presidente Hermes da Fonseca acabava de assumir 0 go- verno. Sentiam-se ainda os refle- xos da dura campanha presidencial que dividira 0 pafs em hermistas e civilistas. Como nos pleitos ante- riores, a disputa eleitoral dera-se entre os setores da oligarquia agréria nacional. Porém, dessa vez, a eleigao presidencial desper- tara também 0 interesse da popu- lagéo comum. O ex-presidente Rodrigues Alves (1902-1906) elegera-se com © apoio de trés dos principais Es- tados da Federagio — Sao Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Apesar da economia viver uma boa fase, seu governo fora agita- do. Ele manteve firmes as rédeas do poder, mesmo com diversos so- bressaltos. Uma das principais di- ficuldades de seu governo fora a revolta popular, em novembro de 1904, contra a vacina obrigatéria, no Rio de Janeiro. A Revolta da Vacina expres- sou a oposi¢do da populacao da ca- pital da Repdblica contra medidas sanitérias e urbanfsticas impostas, de cima para baixo, apoiadas na autoridade e na violéncia, sem maiores justificativas. O governo de Rodrigues Alves promovera uma ampla “modernizagio” do centro da capital. Para tal, expul- sara, sem ceriménias, para a peri- feria, os humildes habitantes dos velhos sobrados das estreitas ruas do centro da cidade. As antigas re- sidéncias coloniais foram abatidas, sem misericérdia, para dar lugar a pretensiosas avenidas tragadas se- gundo 0 modelo urbanistico racio- nalista europeu. a O mineiro Afonso Pena (1906-1909) sucedera o paulista Rodrigues Alves. Ambos represen- tavam as mesmas forgas oligarqui- cas dominantes. Portanto, prosse- guiu apoiando a politica de valori- zagao do café e de depreciagao da 18 PEDAGOGIA DE GUARAT! A Campanna Civiista E A Divis eceueceerere Gabinete de Afonso Pena. Em Miguel Calmon. moeda nacional em relagdo as mo- edas fortes internacionais, sobretu- do a libra inglesa. Essa politica de desvalorizagao da moeda brasilei- ra encarecia as importagdes e o custo de vida da populagdo, mas favorecia os plantadores e expor- tadores de café, que eram pagos em moedas estrangeiras fortes. A politic seu curso normal: os grandes pro- nacional seguia prietdrios governavam 0 pais se- gundo seus interesses, sem a inter- vengao das classes populares. Po- rém, houve uma pequena tempes- tade naquele céu quase sereno. O presidente Afonso Pena teimou em “fazer” seu sucessor, 0 que era malvisto pelos grupos oligarquicos pé (esq. p/ dir.): Alexandrino de Alencar, Hermes da Fonseca e Tavares de lira. Sentades (no mesmo sentido): David Campista, Bardo do Rio Branco e 0 DAS ELITES estaduais. Essa de- cis&o, caso fosse concretizada. for- taleceria o regime presidencialista ¢ debilitaria as eli- tes proprietidrias estaduais. O candidato de Afonso Pena era David Campis- ta. Apesar das ma- nobras do presi- dente em seu fa- vor, ele terminou isolado, ° apoio decidido de nenhuma forga po- litica estadual sig- nificativa, O es- trondoso fracasso da candidatura de David Campista permitiu que se fortalecesse a can- didatura de Hermes da Fonseca. sem O Marecuat € a Acuia O marechal gaticho alcangara algum prestigio como ministro da Guerra do governo de Rodrigues Al- ves. Ele reformara 0 Exército, man tivera limpos os quartéis, fizera as tropas desfilarem em ordem. Her- mes da Fonseca construfra-se um perfil de civilista © legalista. Nessa €poca, muitos militares sonhavam ainda com a volta dos tempos da di- tadura presidencialista de Floriano Peixoto (1891-1894), o Marechal de Ferro. O ministro Hermes da Fon- 19 Cisnes Necros — Uma Historia pA REVOLTA DA CHIBATA seca soubera conquistar 0 apoio da jovem oficialidade. Nenhuma grande forga politi- ca civil participou inicialmente do langamento de Hermes da Fonseca & Presidéncia. Os principais interessa- dos em sua candidatura eram os ofi- ciais, afastados do poder desde os tempos de Floriano Peixoto. O Par- tido Republicano Paulista — repre- sentante da cafeicultura do Estado de Sao Paulo — via com maus olhos uma candidatura que podia arrancar- Ihe 0 governo das maos. A candidatura de David Cam- pista foi retirada. A desfeita ao seu candidato teria acelerado a morte do presidente Afonso Pena, ja doente. Com ela, assumiu 0 vice-presidente, © fluminense Nilo Peganha (1909- Senador Rui Barbosa. 1910). Ele era prd-marechal. A can- didatura de Hermes da Fonseca re- cebeu um outro forte apoio: o do po- litico republicano Pinheiro Macha- do, que arrastava atrds de si os Esta- dos do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e de Pernambuco. O senador gaticho seria, posteriormente, 0 ho- mem forte do governo de Hermes da Fonseca. Os oligarcas paulistas te- miam a alianga da alta oficialidade do Exército com as oligarquias do Rio Grande do Sul e de Minas Ge- rais, dois poderosos Estados. Os paulistas contra-atacaram com o langamento da candidatura de Rui Barbosa a Presidéncia. O polfti- co baiano era um homem pitiblico de prestigio. Ele fora ministro da Fazen- da do primeiro governo republicano € sonhava, havia muito tempo, com a magistratura suprema da nag¢io. Rui Barbosa contava, lo- gicamente, com 0 apoio de seu grande Estado. Porém, desde fins do Império, o poder politi- co da Bahia — um dos Estados mais populosos da Federagiio — diminuira com a profunda crise econ6mica pela qual pas- sava. Apenas a boa situagaio das exportagdes do cacau ameniza- va a decadéncia da Bahia. Nao havia diferencas so- ciais ou politicas profundas en- tre as duas candidaturas. Ambas Tepresentavam os setores agi rios e oligdrquicos dominantes. Porém, Rui Barbosa era um po- litico mais abrangente do que o marechal Hermes. Era um inte- lectual de valor, reconhecido na- cionalmente. Apds sua atuagaio A Cameanna Crvivista £ a Divisdo pas Evires como delegado brasileiro na impor- tante reuniao diplomitica internacio- nal de Haia, na Holanda, em 1907, seu prestigio ultrapassara as frontei- ras brasileiras. Rui Barbosa era também mais sensivel aos nascentes interesses in- dustrialistas e urbanos. Sua desastra- da atuagao no Ministério da Fazen- da, quando a Reptiblica conheceu seu primeiro grande surto inflacio- nario, devido a uma grande emissaio de papel-moeda — 0 encilhamento —, devera-se, em boa parte, 4 sua vontade de apoiar a nascente produ- gao fabril nacional. Rui Barbosa, fi- Iho de uma familia de poucas pos- ses, tivera dificuldades econdmicas para terminar seus estudos univers tdrios e estabelecer-se como advoga- do. Ele estava em melhores condi- gdes do que o marechal Hermes para interpretar 0 ainda difuso desgosto das classes médias e dos setores po- pulares urbanos com a situag4o po- litica, econdmica e social brasileira. Despertano EsPERANCAS Os setores oligérquicos que apoiaram Rui Barbosa imprimiram um perfil democratico e radical & sua campanha: apresentaram o senador baiano como 0 candidato civilista contra 0 perigo militarista; propuse- ram a reviséo da Constituigio, a di- minuigdo do poder das oligarqui reforma da Justiga, 0 apoio 4 educa- ¢4o, uma reforma eleitoral, 0 voto se- creto, a estabilidade cambial, 0 incen- tivo 4 imigragado. Efetivamente, tra- tava-se de um programa politico bem mais avangado do que o defendido pelo marechal Hermes da Fonseca. A campanha civilista invadiu as pragas das grandes cidades. A po- pulosa cidade do Rio de Janeiro foi o principal palco do combate entre ci- vilistas e militaristas. A fratura poli- tica entre as elites determinara que a candidatura mais frdgil tentasse con- quistar 0 apoio da opiniao publica, como instrumento de pressio. De certo modo, a politica nacional dei- xava de ser um assunto apenas das elites e envolvia a populagaio. O que era perigoso. As simpatias populares ficaram com Rui Barbosa. O escritor mulato Lima Barreto, que apoiaria a Revolu- go Russa, em 1917, sentiu-se na obrigagaio de expressar, em carta aberta, sob o pseud6nimo de seu per- sonagem Isaias Caminha, sua adesao a candidatura de Rui Barbosa e sua oposi¢ao ao militarismo representado pelo marechal Hermes da Fonseca. As condigées de vida e de tra- balho dos soldados e dos marinheiros eram péssimas. Uma das principais reivindicagGes do nascente movimen- to operdrio era a extingao do servigo militar obrigatério, aprovado em lei de 1908. Em todo 0 Brasil, o alista- mento militar era usado comumente contra os inimigos politicos do gover- no. Rui Barbosa acolheu parcialmen- te as reivindicagdes dos setores subal- ternos das Forgas Armadas ao lem- brar, durante sua campanha, a nec sidade urgente de melhorar as condi- gGes de vida e de trabalho no Exérei- to — melhores salarios, treinamento, escola. Foram feitas promes: marinheiros da Armada nacional. aos 21 Cisnes NeGros - Uma Hist6rra pA RevoLta DA CHIBATA O marechal Hermes da Fonse- ca venceu sem dificuldades a disputa eleitoral. Nao contava com 0 apoio popular, mas recebia 0 apoio das oli- garquias de mais Estados e do presi- dente em exercicio, 0 que era essen- cial. O voto popular valia pouco nas decisdes politicas da Republica Ve- lha. Numa época em que nao existia a Justiga eleitoral, 0 voto de cabresto apenas registrava a vontade das oli- garquias mais poderosas. Nas fazen- das e cidadezinhas do interior era normal que trabalhadores, dependen- les, agregados e parentes votassem nos candidatos dos grandes proprie- tarios. Contara igualmente na dispu- ta o fato de que, para as elites, 0 ma- rechal Hermes da Fonseca, sob a di- regio do caudilho Pinheiro Machado, era um politico mais confidvel do que 0 intelectual Rui Barbosa. Para os politicos e para os gru- pos politicos e econdmicos que apoi- avam a candidatura civilista, as criti- cas ao militarismo e a oligarquia eram parte do jogo eleitoral. Os poli- ticos derrotados nao tinham diver- géncias essenciais com os vencedo- res, Nao havia barreira intransponfvel entre vencedores e vencidos. Outras batalhas ocorreriam, com diferentes combinagées polfticas. Os inimigos de hoje seriam os aliados de amanha. Afinal, Marechal ou Aguia de Haia, no governo, tudo continuaria, como dizia a populacdo, “como dantes, no quartel de Abrantes”. Entretanto, o debate politico e a demagogia civilista tinham agitado a populagao sofrida. Um grupo pri fissional escutara ansioso as criticas levantadas e as promessas feitas. Para os marinheiros da Armada, submeti- dos a desumanas condigdes de exis- téncia, o discurso antimilitarista tinha um sentido real — nao eram apenas palavras de ocasiao. Ele reforgava a certeza na justiga de suas reivindica- g6es. A divisio entre as elites, quan- do da disputa eleitoral, permitiu que os marinheiros levantassem, mais fa- cilmente, a cabega. O oficial da Marinha de Guer- ra Pereira da Cunha participou dire- tamente dos acontecimentos de 1910. Ele escreveria, mais tarde, um livro parcial sobre os combates, no qual reconhece os efeitos da campa- nha civilista sobre a maruja brasi- leira: “(...) a grande agitag&o causa- da por essa campanha, das que mais exaltaram os 4nimos em nosso pais e que teve também sua dose de res- ponsabilidade nas tristes ocorréncias de 1910. Dividida a Nagao em pré e contra militares, foram assacadas [langadas] contra estes todas as tor- pezas possiveis, isso trouxe bastante abalo a disciplina (...)”. A campanha civilista no criou arevolta de 1910. Porém, deu-lhe um bom empurrao. Um outro aconteci- mento contribuiu significativamente para a génese do movimento — a im- portante modernizagdo da Armada brasileira, decidida em 1906. Ela tor- naria ainda mais insustent4veis as condigées de existéncia vividas pelos marinheiros da Armada. Nos trés proximos capftulos, veremos, com mais detalhes, como eram as condi- gGes de vida dos marinheiros na épo- ca da revolta e as importantes modi- ficagdes que a esquadra nacional aca- bara de conhecer. 22 PS

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