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OS SENHORES DO LITORAL Conquista Portuguesa e Agonia Tupinambéd no Litoral Brasileiro © SECULO 16) é ESRC Cre MORE COO Con meme CCRC eM ORC ames} CUCU GE Com weet ORS Seen R CRC tte tod OS eee Scien ete as Ca tara SRC Cee nn COR ec etc at DORVECOO Memon Bsc ecg ROT Oe TeL Le SCC Me oa Cole La So Corti ONES! Laos ee eee cree Cabral. Pc rele Range ea ear a desse comego, € na compreensio OR ee COR eC Co eR iy PO me ce EOS NNR eco oa Se Ue eR CRC Cet. emcee on Con pen OR CRC eena ts Geto eet oS ce CO Cc Mer aC guiu foi crucl ¢ de exterminio, ¢, CO ccs Pre eee CCR Ooi ee me may Pe occa ene ct Universidade Federal do Rio Grande do Sul Reitor Hélgio Trindade Vice Reitor Sergio Nicolaiewsky Pro-Reitora de Extensio Maria de Mattos Guimaraes EDITORA DA UNIVERSIDADE iretor Sergius Gonzaga CONSELHO EDITORIAL Dina Celeste Aradjo Barberena Homero Dewes. Irion Nolasco Luiz Osvaldo Leite Maria da Gloria Bordini Newton Braga Rosa, Renato Paulo Saul, Ricardo Schneiders da Silva Romulo Krafta Zita Catarina Prates de Oliveira ‘Sergius Gonzaga, presidente Editora da Universidade / UFRGS * Av. Jodo Pessoa, 415 * 90040-000 - Porto Alegre, RS Fone: (051) 224-8821 ¢ Fax: (051) 227-2295 OS SENHORES DO LITORAI Conquista Portuguesa e Agonia Tupinambé no Litoral Brasileir MARIO MAESTRI SEGUNDA EDICAO Editora Esta publicagao contou com o patrocinio do Programa Nacional de Apoio as Ecditoras Universitirias - PROED/ SESwMEC © de Mario Macstri T* edigio: 1994 Direitos reservados desta edicio: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa e planejamento grifico: Carla M. Luzzatto Editora Geraldo F. Huff. Revisio: Maria da Graca Storti Féres Maria da Gléria dos Santos Editoracdo eletrdnica: Fernando Piccinini Schmitt Administragao: Julio Cesar de Souza Dias Mario Maestri doutorou-se pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Lecionou na Fundagio Universidade de Rio Grande e nos cursos de pés-graduagao em Histéria na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Pontificia Universidade Catdlica do Rio Graitde do Sul. De € ao estudo da Histéria do Brasil e da escravidio colonial. Publicou, entre outros: O escravo gaticho: resisténcia ¢ trabalho. (2.ed. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1993); Lo schiavo coloniale: lavoro e resistenza nel Brasile schiavista (Palermo: Sellerio, 1989); L’Esclavage au Brésil (Paris: Karthala, 1992); Storia del Brasile (Milano: Xenia, 1991). O escravismo no Brasil. (Si0 Paulo: Atual, 1994). E professor de Hist6ria do Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereco para correspondéncia com o autor. C.P. 10220 - CEP 90,001-970 - Porto Alegre, RS. Fax (051) 228-6117. M186s — Maestri, Mario Os senhores do litoral: conquista portuguesa ¢ agonia tupinamba no litoral brasileiro. 2.ed. rev. e ampl. / Mario Maestri. — Porto Ale- gre: Editora da Universidade/UFRGS, 1995. 1, Histéria do Brasil — Conquista portuguesa. 2. Histéria do Bra- sil — Escravizagio — Tupinambis. I. Titulo CDU 981.01 Catalogagio na publicagio: ISBN 85-7025-341-9 {6nica Ballejo Canto. CRB 10/1023 “Naqueles paises tal multidao de gente encontramos que ninguém, enumerar poderia, como se Ié no Apocalipse; gente, digo, mansa ¢ trativel.” ‘Américo Vespiicio - Mundus Novus. (1503) ¢[...] e eram tantos os desta casta que parecia impossivel poderem-se extinguir [...].” Padre Fernio Cardim S.J. - Tratados da terra e gente do Brasil. (1584) “De tais povos na infancia nao ha historia: hé s6 etnografia.” FA. de Varnhagen (1816-1878). Historia geral do Brasil. Para os amigos Wladimir Araijo, Nara Machado © Robert Ponge Para os colegas Rémulo Andrade, Emesto Cassol © Théo Lobarinhos Pifeiro. O presente trabalho contou com o apoio de uma bolsa, concedida pela CAPES, durante ano de 1990, Uma bolsa de pés-doutoramento, do CNPq, permitiu-nos realizar pesquisas complementares, no primeiro semestre de 1991, nas bibliotecas belgas. ‘Traduzimos para 0 portugués as citagdes em espanhol, francés, inglés e italiano. Modernizamos a ortografia das citagdes em portugués arcaio e, quando necessério, para um melhor entendimento, as pontuamos. Nas citagSes, so nossas as interpolagdes entre colchetes. “- INTRODUGAO Brass - Um povo sem hist6ria CAPITULO 1 América ou os erros do navegador CAPITULO 2. As maravilhas do Novo Mundo CAPITULO 3. Pobre América, rica Europa .......... CAPITULO. Conquista portuguesa da Africa CAPITULO ‘Uma descoberta de pouca importancia . CAPITULO 6 Tupinambis - Os senhores do litoral . CAPITULO 7 Familia, residéncia, aldeia CAPITULO 8 Sodomiltas ¢ luxuriosos . CAPITULO 9 O mais delicioso prato Tupinamba CAPITULO Alimento proibido CAPITULO 11 Nos tempos do pau-brasil CAPITULO 12 Machado de ferro, machado de pedra..... CAPITULO. ‘Um Brasil para os colonos......... CAPITULO 14. Escravidao de indios : CAPITULO 15 Cativos aldedes e escravos coloniais, CAPITULO. Bafa - Um genocidio anunciado . CAPITULO 17 Pela vontade do deus lusitano CAPITULO 18 Jesuitas - Pastores de canibais CAPITULO Acruze aespada.... CAPITULO 20. Ultima cartada - Aldeias de indios CAPITULO 21 Controle total do recéncavo .... CAPITULO 22 Aum passo do fim 7 CAPITULO 23. Descimento - A agonia final CONCLUSAO 0 discurso dos vencidos...... BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .. REE Ee eee SSRURREBRES cwuauaunn 8 Introducao oma Brasis Um povo sem histéria Os marinheiros que o capitao-mor Pedro Alva- res Cabral mandou a terra, em 23 de abril de 1500, encontraram facilmente um grupo de duas dezenas de espantados ¢ curiosos nativos. Os primeiros con- tatos entre brasis ¢ lusitanos foram tranqiiilos e cor- diais. Tupinambés e portugueses trocaram gestos ¢ presentes - um barrete, uma carapuca e um chapéu por um cocar de penas ¢ uma fileira de contas bran- cas. Os europeus registraram a elegincia ¢ a beleza fisica dos americanos. Nao temos informagées segu- ras sobre a impressio causada pelos europeus aos autéctones. io foi obra do acaso terem os portugueses en- contrado to prontamente comunidades americanas ‘em um imenso litoral. A facilidade com que também os franceses contatavam as populagdes nativas nao passa despercebida ao leitor do livro Viagem a terra do Brasil, de Jean de Léry, editado por primeira vez em 1578, Em diversos pontos da costa, os navegantes franceses disparavam os canhées dos navios € os tu- pinambas apareciam nas praias oferecendo toras de pau-brasil e outros produtos. Ao contririo do que ocorria na Africa, a costa brasilica oferecia melhores condigSes para a ocupa- go humana do que os sertes. A enldo exuberante Mata Atlantica cobria grande parte da faixa litora- nea, do cabo de Sao Roque, no Rio Grande do Norte, 20 Rio Grande do Sul. Com pequenas interrupcées, sua ubérrima vegetacao dominava as planicies lito- raneas ¢ as encostas dos planaltos do interior. Esta faixa costeira, pluviosa, com clima ameno e abun- dantes matas e rios, era prdpria a agricultura e rica em caga ¢ pesca. Ela estendia-se ao longo do litoral com uma largura média de duzentos quilémetros. No inicio do século 16, os povos tupinambés (subcultura tupi-guarani) senhoreavam o privilegia- do territ6rio litoraneo. Apés aparecerem, ha mil anos, na desembocadura do rio Amazonas, provenientes do médio curso do grande rio, evolufram rapidamente, ao longo do litoral, em direcdo ao sul, combatendo e expulsando com ferocidade povos cacadores-cole- tores menos aparelhados que ali se encontravam. Quando os lusitanos chegaram as costas brasilicas, 8 tupinambés haviam alcancado as imediacbes da ilha de Cananéia, no atual litoral paulista. Estas comunidades de lingua tupi-guarani pra- ticavam uma horticultura tropical e subtropical de subsisténcia baseada no milho, na batata-doce, nas vagens ¢, principalmente, na mandioca - tubérculo, talvez, originério do litoral tropical brasileiro. (SEB/ 1, 1987: 69.) Elas expandiam-se com rapidez ocu- pando sobretudo as varzeas e os vales arborizados 9 dos grandes rios. Tais ecossistemas permitiam uma horticultura que desconhecia a adubacio sistematica € os instrumentos de ferro e favoreciam as ativida- des coletoras e cacadoras. Estima-se que, no m: mo, seiscentos mil brasis vivessem na relativamente fértil costa litordnea no alvorecer do século 16. (FAUSTO, 1992: 383.) Em parte, a alta densidade demogrifica relativa destas regides explica a facili- dade com que os europeus contataram as populacdes autdctones e estabeleceram-se nas novas col6nias. Os lusitanos desembarcaram em uma terra habi- tada e domesticada. Em forma geral, eles contaram com 0 apoio inicial da numerosa populagio nativa. Nos primeiros tempos, os tupinambas empregaram-se voluntariamente na produgio de pau-brasil e de ou- tros géneros americanos. Ajudaram na construgao das Povoacées, rocas, plantagdes ¢ engenhos curopeus. Cederam caga, pesca ¢ alimentos. Tudo em troca dos apreciados objetos e ferramentas dos recém-chegados, Em boa medida, os portugueses apenas potenciaram a colonizagio do litoral realizada, nos séculos anterio- res, pela onda expansionista tupinambé, BONS PROFESSORES Os brasis introduziram os colonos no conheci- mento das coisas do Novo Mundo. Ensinaram-nos a cagar e a pescar nestas regides; a plantar milho, 0 fumo, a batata-doce, a mandioca; a conhecer as plan- tas e os animais da terra. Revelaram-lhes 0 comple- Xo processo da transformacao da mandioca-brava de planta venenosa em versétil fonte alimentar. Enfim, ensinaram-nos a viver em um meio geoecolégico desconhecido. Fizeram mais. Defenderam-nos dos. aut6ctones hostis e receberam-nos em suas moradias. coletivas, entregando-lhes tempordria ou permanen- temente suas irmas ¢ filhas. Em verdade, conduzi- ram pela mao os lusitanos no desbravamento do lito- ral e dos sertées. O historiador portugués Jaime Cortesao lembra, com pertinéncia, que, dentre os tra- gos culturais dos tupi-guaranis, destacavam-se “o 10 sentido excepcional de orientacao, os conhecimentos topogriificos, a capacidade para representa por for- ma grifica 0 espago percorrido [...]”. (CORTESAO: 1975, I: 20.) Conhecimentos dos quais os Iusitanos serviram-se abundantemente. A importancia ¢ 0 sentido das relagdes estabelecidas entre europeus ¢ nativos constituem nexos explicativos essenciais da histéria brasileira dos séculos 16 ¢ 17. Nao acreditamos, como afirmou © socidlogo Florestan Fernandes, que 0 “herofsmo” € a “coragem” tupinambis - ou seja, a resisténcia destas comunidades diante do movimento coloniza- dor portugués -, por terem sido vencidos, “nao movi- mentaram a hist6ria, perdendo-se irremediavelmen- te com a destruigio do mundo em que viviam”. (FERNANDES, 1963: 72.) Ao contrério, concorda- mos com o mesmo autor quando, no mesmo artigo, assinala que a resisténcia, a acomodagio e a fuga dos tupis diante do colono invasor contribuiram “para modelar os contornos assumidos pela civilizacdo luso-brasileira”. (FERNANDES, 1963: 85.) Pouco compreenderemos do que ocorreu nos primeiros anos do passado nacional se desconhecer- mos 0 real sentido dos contatos estabelecidos entre portugueses ¢ brasis. Entretanto, esta nao foi uma historia edificante. Nesta espécie de jogo de posi- ges, os homens do Velho Mundo - ei forma rara- mente explicita - sempre ditaram as regras e embara- Iharam as cartas. Da colaboragio pacifica e voluntéria inicial entre portugueses ¢ brasis, os lusitanos evolu- fram & luta pelo controle territorial da faixa costeira € da forga de trabalho americana, Os nativos foram combatidos, iludidos, escorracados, aculturados, re~ duzidos a escravidio, dizimados. Em menos de um século, desapareciam as numerosas comunidades tupinambas senhoras do litoral no momento do achamento cabralino. Até 0 inicio do século 17, as rocas, plantacdes € engenhos luso-brasileiros funcionaram sobretudo a partir do esforco do brago americano feitorizado. A seguir, o brasil (‘negro da terra’), apesar de supe- rado numericamente pelo africano (‘negro da Guiné”), continuou desempenhando um papel acessério, como mio-de-obra servil, sobretudo nas zonas coloniais de economia mais fragil. Na plantacio acucareira e na mineragio, 0 brasil escravizado serviu como uma espécie de capital originario que permitiu o inicio da produgio ¢ uma primeira acumulagao de riquezas. A ir, esta tiltima financiou a importacio de grande quantidade dos mais custosos cativos africanos. Com ‘ar dos anos, estes iltimos substituiram maci- amente os brasis como mio-de-obra servil As priticas escravistas e coloniais européias de- ram origem a vis6es preconceituosas das sociedades, americanas. Mesmo quando dominou a colaboracao, nao foi neutro o olhar portugués sobre o Novo Mun- do. Os lusitanos estavam inseridos em uma tradicao mercantilista e expansionista que fazia tabula rasa das culturas com que entravam em contato antagénico. Nos primeiros tempos da descoberta colombiana, a pala- vra ‘indio” designou o habitante de territ6rios consi- derados erroneamente como as costas extremo-orien- tais das Indias. Nasceu, portanto como um substantivo pitrio gerado pelos enganos ¢ ilusdes geograficas de Cristévaio Colombo (1451-1506) e de seus companhei- ros. Rapidamente, a palavra tornou-se um esteredtipo € passou a definir homens tidos como atrasados, ingé- nuos e preguigosos. Homens inferiores, enfim. LUTA IDEOLOGIA Os brasis do litoral nomeavam e individualiza- vam suas comunidades - tupinambés, tupiniquins, caetés, etc. O nomear e o individualizar eram tidos pelos europeus como atributos do ‘homem civiliza- do’. (NEVES, 1978: 45.) Sobretudo com a designa- gio genérica ‘indio’, os europeus homogenizaram € reduziram as incémodas diversidades ¢ individual dades das comunidades americanas. Foi também ide- oldgica a violenta luta entre europeus ¢ tupinambis pelo controle do litoral. Tal visio do homem ameri- cano continua influindo as ciéncias sociais contem- porineas. Entre os principais sindnimos de ‘indio’ estio ‘selvagem’ ¢ ‘silvicola’. Ou seja, ‘habitantes das selvas’ A categoria ‘indio’ ¢ imprépria para designar-se comunidades domésticas aldeds - como as tupinambas - nas quais a horticultura assumia j4 um cardter do- minante. (MEILLASSOUX, 1977: 64.) A categoria ‘indio’ ressalta as praticas cagadoras, guerreiras e némades dessas comunidades em detrimento das ati- vidades horticultoras. Ela termina estabelecendo uma analogia inconsciente entre aqueles atos humanos e as priticas cagadoras, a agressividade ¢ 0 padrio de deslocamento dos grandes animais predadores. Apresentando-se 0 tupinamba como “indio’, dilui-se o fato de que ele era, antes de tudo, um pro- dutor aldedo. Que o trabalho era o principal media dor de suas relagdes com os outros homens e com a natureza. Até inicios de nossa era, comunidades ger- minicas assentaram essencialmente sua subsisténcia material em uma horticultura itinerante semelhante & conhecida pelos tupinambas. (CHILDE, 1964: 71.) A historiografia do Velho Mundo certamente se escan- dalizaria se tratassemos tais populagoes como ‘indi- os’ europeus. ‘Com a categoria ‘indio’ tem-se designado acriti- camente 0 homem americano. Ou seja, 0 cacador- coletor, o horticultor de plantacdo-enxertia e, até mes- ‘mo, oagricultor cerealffero que construiu Tenoxtitlan. As ciéncias sociais - sobretudo a Antropologia - apro- priaram-se de muitos destes esterestipos coloniais ¢, com eles, construiram boa parte do aparato categorial utilizado no estudo das sociedades pré-classistas niio- européias. Categorias como ‘tribo”e “Indio” - porexem- plo trazem incrustadas sugest6es valorativas que com- prometem os prdprios contetidos essenciais das narra- tivas contempordneas sobre as comunidades domés- ticas aldeds americanas. Em forma geral, os cientistas sociais que tra- tam os primeiros tempos da colonizagio dividem-se em duas grandes correntes. Para a primeira, as col6- nias teriam sido fundadas em territ6rios semidesa- bitados, ocupados por algumas poucas comunidades, selvagens, nomades e atrasadas. Transcorridas algu- tas décadas, nao se sabe muito bem como e por que, estes grupos humanos teriam desaparecido do cen: tio histérico, praticamente sem resisténcia. Antes da chegada do civilizador portugués, 0 ‘Brasil’ seria uma espécie de mata virgem de povoagio rarefeita. O historiador Manuel Rodriguez Lapuente, Teferindo-se a hist6ria fbero-americana, chegou a questionar a pertinancia da categoria ‘conquista’ Segundo ele, “a imensa maioria das terras america- nas foram ocupadas pacificamente, ou porque os na- tivos ndo opuseram resistancia, ou, simplesmente, Porque eram terras desabitadas”. (LAPUENTE, 197: 16.) No relativo ao Brasil, tal visdo tem como expo- ente maximo o patrono da historiografia nacional, Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878). Para ele, 0 ‘indio’ seria um aci- dente de percurso da colonizacio, rapidamente su- perado pelo processo ‘civilizat6rio’. POVO SEM HISTORIA Formalmente opostos a esta escola, estudos an- tropol6gicos mais recentes, de vocacio culturalista, funcionalista e estruturalista, descrevem o desapare- cimento dos povos tupinambas como um drama hist5- tico motivado pelo confronto - imediato e linear - de “dois povos cujos sistemas econdmicos ¢ visdes de mundo nao poderiam ser mais opostos”. (SCHWARTZ, 1988: 42.) Negando o cariter unitério ¢ hist6rico do ‘género humano e defendendo a incompatibilidade es- sencial da civilizagao européia (hist6rica ¢ econdmi- ca) e da americana (natural ¢ a-econ6mica), estas lei- turas sugerem como inevitavel a destruicéo destes povos ‘naturais’ pelo avanco civilizatério europeu. ‘Tratar-se-ia de uma tragédia, até certo ponto, justifi- vel, pois inelutavel. E um quase corolario de tal vi- so a impossibilidade de uma hist6ria destes contatos. (LEVI-STRAUSS, 1970: 231-52.) Estes grupos humanos “sem hist6ria” poderiam ser descritos apenas a partir de uma ética sincrénica. No maximo, terfamos para relatar a reacdo ‘im6- 2 vel’ do ‘indigena’ diante do Homo economicus eu- ropeu, ao qual 0 americano nao se poderia adaptar ou compreender. Em verdade, a reagio destes po- vos € vista como natural, desesperada, instintiva, repetitiva ¢ refratéria a qualquer modificagao. O sistema organizativo das comunidades americanas possuiria a tal ponto “um padrio de equilibrio in- terno relativamente indiferenciado e rigido” que Ihes cra impossivel se “reajustar a situagoes novas, im- postas pelo contato com o invasor branco”. (FER- NANDES, 1963: 80.) Tratar-se-ia de um comporta- mento social quase protozoarico. A hist6ria do embate das comunidades tupinambis com 0 avanco colonizador se assemelharia & do choque dos bisées com os cagadores brancos, nas pradarias norte- americanas. Ambas leituras contribuem para que, cinco séculos apés a viagem de Cabral, nao exista uma histéria - digna do nome - da interagao/ absor- ¢ao/ destruico dos povos nativos pela sociedade ‘brasileira’. Alexander Marchant publicou, em inglés, um breve e brilhante ensaio que foi traduzido e editado, em portugués, em 1943, com 0 titulo Do escambo & escravidao: as relagdes econdmicas de portugueses ¢ indios na colonizagio do Brasil. (1500-1580). A par- tir de uma atilada andlise da documentagio quinhen- tista ento conhecida, o historiador norte-americano estabeleceu uma convincente periodizacdo dos conta- tos de europeus e brasis no século 16, Num primeiro momento - 0 do escambo -, trocas voluntarias e pro- veitosas entre europeus e tupinambés, Num segundo tempo, com a ocupagio territorial e os primeiros en- genhos e plantagoes, a importincia decrescente da eco- nomia de trocas e 0 conflito interétnico pelo controle da terra e da forca de trabalho americana. Apesar de alguns poucos deslizes precon- ceituosos, Do escambo a escravidao revela socieda- des brasilicas que estabelecem relagdes sociais, cultu- rais, econémicas e politicas com os recém-chegados. Ocontato entre as duas comunidades assume raz6es ¢ contetidos claramente hist6ricos e portanto compre- ensiveis. O autéctone se humaniza e perde sua supos- 1 esséncia natural. Deis de ser ‘indio’ para reassumir a sua identidade tupinamba objetiva. O drama destes grupos humanos io é mais visto como patética e ine- lutavel dissolugio de povos naturais diante do avanco da civilizagio econémica. Ele assume seu verdadeiro sentido no devenir da formacio da sociedade de clas- ses no Brasil. A agonia dos povos tupinambés ganha o status de importante pagina da histéria da exploracio mercantil da forga-de-trabalho no Brasil. Este brilhante ensaio nao fez. escola. A socie- dade tupinamba tem permanecido uma espécie de ‘teserva de caga’ da Etnologia ¢ da Antropologia. Nao sio muitos os estudos que resgatam a dimen- (o hist6rica do drama vivido pelas comunidades americanas, no século 16, no litoral brasileiro. A. historiografia brasileira sofre muito devido a esta lacuna. A feitorizagio dos brasis 6 uma espécie de longa e dolorosa primeira pagina da historia da e cravidio negra. Cremos que esta tiltima constitua, alé 1888, o nexo essencial da sociedade brasileira, Para a imensa maioria dos atuais brasileiros, 0 ‘indio’ permanece um ser, talvez simpatico, mas ‘es- trangeiro’ ¢, portanto, estranho & nossa ‘civilizacao’. Com maior facilidade se mantém encobertos os meca- nismos que regem essencialmente a hist6ria passada e presente da sociedade brasileira. Com Os senhores do itoral procuramos contribuir & necesséria releitura do verdadeiro sentido do etnocidio tupinamba praticado pelos senhores luso-brasileiros, quando da luta pelo dominio do litoral brasilico. Uma versao paradidatica e abreviada deste tra- balho foi publicada, sob o titulo Terra do Brasil, pela Editora Moderna, de Sao Paulo, no primeiro semes- tre de 1993. ‘A primeira edicio de Os senhores do litoral 1c, poucos meses apés seu lancamento. Agra- 4 Editora da Universidade que nos permitiu corrigir e ampliar esta segunda edicao. B Car pitulo 1 = América ou Os erros Nao foi uma casualidade ter sido a descoberta do genovés Cristévio Colombo batizada com o nome do flotentino Américo Vespticio (1454-1512). A obs- tinagio no erro de avaliamento que permitiu a Colombo devassar 0 mar Tenebroso ¢ descobrir um mundo novo contribuiu para que ele, até 0 momento de sua morte, ainda acreditasse ter chegado as costas das Indias. (LAPUENTE, 1975: 111.) Patético para- doxo. Por ter errado os calculos e descoberto um con- tinente, € nao um caminho atlantico até os mercados das especiarias, Cristévio Colombo morreu num semi-ostracismo © passou para a histéria como 0 maior dos navegadores. Em verdade, o essencial de Sua aventura apoiava-se em graves e vulgares erros de apreciagao. Os espiritos mais licidos da Antiguidade - Pitdgoras, Sécrates, Platao, Aristételes, etc. - havi am desvelado 0 cardter esférico da Terra. Os prépri- 65 eclipses comprovavam o fato a0 refletir 0 perli da Terra sobre a Lua. O gedgrafo alexandrino Cléu- io Ptolomeu (cerca 90 - cerca 168), que introduzira “na cultura medieval o habito de relacionar a Terra com a esfera terrestre ¢ as preocupacées sobre 0 pro- bblema das dimensdes do globo e da posicio geogré- fica”, construira globos terrestres. Desde os anos 800, 08 cartégrafos islamicos construfam mapas e globos do navegador bascados na consciéncia do cardcter esférico do pla- neta. Mais tarde, obras como 0 Tratado da esfera, de Sacrobosco, de meados do século 13, e o Imago mundi, do cardeal d*Ailly (1350-1420), difundiram largamente estas idéias na Europa crista. (CORTE- SAO, 1975/1: 246; 1990/3: 661; KUPCIK, 1989: 27.) Em 1492, no mesmo ano da descoberta da América por Colombo, o gedgrafo Martin Behaim (cerca 1459-1507), de Nuremberg, que servira por Jongos anos a dom Joao Il, e que explorara, por or- dem do soberano, a costa da Guiné (1485-86), cons- ‘rufa, na Alemanha, o mais antigo globo terrestre que chegou até nés. Martin Behaim era apaixonado pela ia da possibilidade de se chegar a india viajando pelo Ocidente. No seu globo, ele reproduz os erros de Ptolomeu ¢ Toscanelli sobre a proximidade da China da Europa e, sintomaticamente, nio indica, sobre 0 oceano Atlantico, a existéncia de nenhum continente desconhecido. (KUPCIK, 1989: 34. Nenhum cosmégrafo, cartografo, capitéo ou marinheiro de longo curso - cristéo ou muculmano-, digno do nome, daria crédito aos mits da planicidade da Terra, de despenhadeiros maritimos e outras cren- gas populares de entao. Era de dominio comum a consciéncia da possibilidade teorica de se chegar as Indias, viajando para o Ocidente, pelo Atlantico. 15 A Antiguidade européia foi essencialmente mediterrinica. A exploragio das vastiddes do ocea- NO Atlntico jamais se colocara como uma real pre- cisio, Com a expansao econémica medieval, cres- ceuanecessidade de estabelecer contatos diretos com © Oriente. Desde 1245, missionarios ¢ comerciantes Visitavam com freqiiéncia, por terra, a China, man- tendo contatos com a dinastia mongol. Por estas €po- cas, 0 oceano Atlantico passou a despertar 0 interes- Se © a curiosidade européia. Um pouco antes da Teconquista cristi de Lisboa, em 1147, ‘aventurei- tos’ muculmanos lisboetas teriam aportado nas Canérias ¢ nas costas da Berbéria. (CORTESAO, 1975/ 1: 63.) E crivel que os préprios genoveses tenham tentado a aventura transatlantic. ‘A partir dos anos 1270, anualmente, galeras genovesas partiam para a Inglaterra, para os Paises Baixos e para as costas atlanticas do Marrocos. Em maio de 1291, os irmios Ugolino © Vadino Vivaldi deixaram Génova, a bordo de duas galeras, Allegranza © Sant’Antonio, venceram o estreito de Gibraltar, dirigiram-se para o sul, até as proximidades das ilhas Canérias - as ilhas Fortunadas da Antiguidade -, perderam-se no mar Oceano, Nao se sabe se pretendi- am atravessar a Africa, navegando pelo rio Senegal, transpor o Atlantico ou circunavegar o Continente Negro. (CORTESAO, 1975/1: 275.) Os anais genoveses de 1291 assinalam que a expedicio portava dois fra- des franciscanos e se dirigia “3s partes da {ndias” para de lé trazer “mercadorias iteis”. Anos depois, um fi- Tho de Ugolino perdeu-se no mar Oceano procurando © pai € 0 tio. (GIUCCI, 1992: 47) Apés estas viagens, outras tentativas teriam sido feitas. As ilhas Canarias talvez tenham servido como escala destas tentativas. Elas teriam sido redescobertas, pelo genovés Lancellotto Malocello, acredita-se que em 1312. Em 1348, a grande Peste Negra, trazida possi- -velmente por ratos transportados, do Préximo Orien- te, ao porto de Marselha, langaria uma Europa - sobrecarregada por um populacio que alimentava com dificuldade - em uma profunda depressio demografica ¢ econémica, Estima-se que, em impor- 16 antes regides da Europa Ocidental, de 10 a 50% da populagio teria sucumbido devido a epidemia. Vinte anos mais tarde, em 1368, a dinastia mongélica dos Yuen seria substituida pelos senhores Ming. A tudo isto, se sobrepés a expansio do poder muculmano. Interrompia-se de vez os contatos diretos do mundo cristo com o Oriente e as expedigdes genovesas no allantico. (GODINHO, 1984: 16 et seq; CORTESAO, 1975/1: 123; HOLMES, 1984: 94.) TENTANDO NOVAMENTE O projeto de travessia transocefinica em dire- io as Indias teria ressurgido, naturalmente, na men- te de muitos humanistas e comerciantes, no momen- to em que a economia européia retomou vigor renasceu, ainda mais forte, a necessidade de furtar- a0 monopélio dos mugulmanos e venezianos do co- mércio oriental. Necessidade que se tornou ainda mais imperiosa apés os turcos otomanos apoderarem-s de Constantinopla e do Bésforo, em maio de 1453, asfixiando as colénias genovesas do mar Negro. A pretensa idéia revolucionaria do navegador genovés = “0 ovo de Colombo” - é mais uma das lendas apologéticas que envolvem a sua vida e a sua obra. Tratando-se de uma viagem a ser realizada inteira- mente no Hemisfério Norte, nem mesmo a orienta- Gao astral era uma grande dificuldade. Um grande ¢ prosaico motivo impedia que se tentasse chegar as Indias atravessando 0 occano Atlantico. Os melhores cosmégrafos dos fins do sé- culo 15 tinham consciéncia da inviabilidade de tal aventura, Na Antiguidade, gedgrafos gregos haviam dividido o globo terrestre em 360 graus e calculado, com singular aproximagao, a circunferéncia da Ter- ra, Entre outros, Aristételes (384 a.C. -322a.C.) pra- ticamente chegara ao resultado correto - quarenta mil quilmetros. Considerando-se os navios da época e 0s problemas de abastecimento, a viagem era materi- almente impossivel de ser realizada com sucesso. E mesmo se 0 fosse, seria um fracasso, do ponto de vista econdmico, devido a 10 custo/beneficio, Pouquissima carga seria trazida de tais distancias. A primeira viagem até as ilhas Molucas, rico centro de especiarias das Indias ida pelo Ocidente, ini- ciada por Ferndo de Magalhaes, em 1519, compro- vou a inviabilidade econdmica desta rota, Os apologetas de Cristévio Colombo pouco destaque dio ao fato de que ele formou-se como na- vegador oceanico em Portugal. O genovés, que pos- sivelmente se ocupara em viagens mediterranicas ¢ viajara a ilha da Madeira, teria chegado a Portugal, em 1476-77, onde se encontrava estabelecido seu i mio Bartolomeo, segundo parece, proprietirio de um atelier de cartografia. Naquela época, Lisboa era 0 grande centro das navegagées atlinticas. A cidade possuia uma importante colénia genovesa ¢ cram antigos os contatos entre a Ligiria ¢ os principais portos maritimos do Reino. Os primeiros navegado- Tes genoveses estabeleceram-se em Lisboa, a partir de 1317, chamados pelo rei dom Dinis (1261-1325), para o servirem -na guerra e na paz - e para difundi- rem no reino as técnicas maritimas mediterranicas. Acredita-se que tenham sido os genoveses a introdu- zit as cartas de marear em Portugal. (HERS, 198]: 74; SERGIO, 1977:23, MARQUES, 1987: 41; COR- TESAO, 1975/1: 248.) __ Um ou dois anos apés sua chegada a Portugal, Cristévao Colombo casou-se com dona Felipa Moniz. Perestrello, filha do navegador de origem italiana Bartolomeu Perestrello, ja falecido, que servira & coroa lusitana, na descoberta e ocupagio do arquipé- lago da Madeira, nos anos 1420. Por parte de mac, dona Felipa pertencia a uma familia aristocratica portuguesa ligada as descobertas e a0 comércio oce- nico. Na ocasitio, 0s Moniz Perestrello navegariam em uma situagio econémica nio muito brilhante. Recém-casado, o genovés foi viver na pequena ilha de Porto Santo, donataria da familia e, a seguir, trans- feriu residéncia para Funchal, na préxima ilha da Madeira. Em 1481 ou 1482, Colombo voltaria para Lisboa, onde estabeleceu residéncia. (HEERS, 1981: 85; CORTESAO, 1975/2: 365.) s sua chegada a Portugal, Crist6vao Colombo participou de viagens mediterrinicas atlinticas. No inicio dos anos 1480, a participagio em uma expedigao portuguesa até o longinquo cas- telo de Sao Jorge da Mina, no golfo da Guiné, de- sempenharia um importante papel em sua educagao como navegador. Como veremos, nestes anos, a aber- ura de uma rota maritima para as Indias preocupava novamente importantes interesses europeus, entre cles Génova, que “sonhava clidir 0 poderio turco, e, por inddstria ou forca, atingir diretamente os centros pro- dutores do Oriente”. (CORTESAO, 1975/1: 97.) Foi por estas épocas que Crist6vao Colombo madurou sua proposta de viajar, pelo Atlantico, para o Oci- dente, para chegar aos mercados do Oriente. Este projeto refletia uma real mas difusa corrente de pen- samento da época. (HEERS, 1981: 90-94.) Desde a Antiguidade, a deduzida ou intuida vastidao do oceano Atlantico fora povoada, aleato- riamente, pelos cartégrafos, com intimeras ilhas continentes. Quando os europeus comecaram a aventurar-se nas aguas atlanticas e, sobretudo, apés inicio da conquista do litoral africano, reais ou $ noticias de rapidas visitas ou fugazes apercebimentos de ilhas misteriosas ¢ fantasticas corroboravam estes dados fantasiosos. Eram muito difundidos os mitos da itha das Sete Cidades - po- voagées fundadas e perdidas por bispos ibéricos fu- gidos da invaso muculmana -; da Antilha, ilha ou ilhas que, no Atlantico, ‘contrabalancavam’ o Ve- ho Mundo; da ilha dos Satanazes, etc. A ilha de Sio Antao era outro antigo e difundido mito medi- eval. O relato da viagem do abade irlandés - Navi- gatio Sancti Brendani Abbatis -, em um Atlantico povoado de ilhas imaginérias, entre os séculos 5 6, até entrever o paraiso e de la voltar carregado de tiquezas, incorporava a hagiografia crista reminis- céncias de viagens celtas no Atlantico norte. A par- tir do século 13, ilhas de Sao Antao foram Jangadas ‘nos mapas-mtindi, aleatoriamente ou fundindo a tra- digdo com as descobertas geograficas. (GIUCCI, 1992: 35-41.) "7 ILHAS MISTERIOSAS Eram também fortes os indicios de existéncia de ilhas e de terra firme no Atlintico Ocidental. Os ‘Ventos ¢ as correntes maritimas traziam - a0s arqui- pélagos dos Acores, das Candrias, e da Madeira - fru- tos, plantas e madeiras originarios provavelmente do Novo Mundo e desconhecidos na Europa. Desde 1450, os portugueses avistaram, ou criam avistar, de relance, ilhas no Atlintico Ocidental, tidas como a Antilha ou a ilha das Sete Cidades. Ha igualmente sérios indicios de viagens de exploracoes ¢ fugazes descobertas portuguesas nestas regides. (CORTESAO, 1975/2: 622.) A existéncia de ilhas e de um ou mais conti- nentes no Atlantico era aceita pelos melhores cosmégrafos de entao. Entretanto, portugueses ¢ cu- Topeus no se interessavam sobremaneira por eve! tuais terras distantes, provavelmente inabitadas e di- ficilmente desfrutaveis. A curiosidade geogratfica, as nayegagies ¢ as descobertas eram orientadas pelos interesses € pelas necessidades econdmicas da épo- ca. Na relagio de um contemporineo a uma das pri- meiras expedigdes is Canarias, de meados do século 14, registrou-se a desilusio causada pela aventur “Parece, todavia, que estas ilhas no sao ricas, pois 0s navegantes mal puderam recuperar as despesas da viagem.” (CORTESAO, 1975/1: 280.) Cristévao Colombo leria estes indicios em um sentido radicalmente oposto. Eram as indias que se encontrariam apenas a umas trés ou quatro semanas de viagem atlantica de Portugal. Inflamado pela idéia, © genovés dedicou-se a comprovar sua exdtica afir~ magao. Como vimos, desde a Antiguidade, se discu- tia e divergia sobre a extensio da circunferéncia do Globo Terrestre. Cristévao Colombo reteve os céil- culos do matematico arabe Al-Farghani, que defini- ra, com boa precisio, 360 graus de 56 1/3 milhas para aquela medida. Entretanto, o genovés confundiria milhas érabes (122,6 quilémetros) com romanas (83 quil6metros). O que Ihe deu apenas 30 mil quilome- tros para o perimetro da Terra. Menos 10 mil quil6- 18 metros do cilculo certo! (HERS, 1981: 158.) Na época, estimava-se a distincia que separava a China de Portugal, pelo Atlintico e pelo Ocidente, di- minuindo, da circunferéncia do Globo, « mesma distin- cia, por terra e pelo Oriente. Antes ¢ depois da viagem de Marco Pélo, em 1271-95, diversos missionarios ¢ nes europeus Viajaram, por terra, até a China, parte das Indias de entio. Os franciscanos Giovanni da upino ¢ Guilherme de Rubruck, enviados, res- pectivamente, & corte dos mongéis, pelo papa Inocente IV c por Luis IX, rei da Franga, em 1245-47 ¢ 125 deixaram relatos sobre as viagens. O francis no Carpino 1a Historia dos mongéis; 0 flamengo Rubruck, seu Jtinerdrio, (CORTESAO, 1975/ 1: 109; 116; 122; FAVIER, 1991: 183.) Um outro viajante, 0 mercador florentino Francesco Balducci Pegolotti escreveu, pelos anos 1340, a célebre Pratica della mercatura, com deta- Ihadas descrigdes dos pesos, medidas, produtos, vias e meios de transportes, do Egito & China. Na capital chinesa dos mangéis existiam verdadeiras colénias deestrangeiros - alemaes, htingaros, russos, arménios, ete. (CORTESAO, 1975/1: 109; 116; 122; FAVIER, 1991: 174.) Abundavam estimativas - em verdade, bastante imprecisas - sobre a distancia terrestre entre Portugal ¢ a China. Em geral, tendia-se a superesti- mar esta distancia, pois superavaliava-se a extensio da superficie da Asia. Crist6v0 Colombo optou pela estimativa mais extremada. Subestimando a extensdo da circunferén- cia da Terra e superestimando a superficie da Asia, a distncia entre Portugal ¢ o Japio encolheu comoda- mente para apenas 4.440 quilémetros. Ou seja, qua- tro vezes menos que sua real extensio - 19.600! Em fins do século 15, a navegacio atlintica de alto-mat fora jd dominada pelos portugueses. Qualquer caravela venceria tal viagem - efetuada totalmente no Hemisfério Norte -, sem problemas, em umas qua- tro ou cinco semanas de travessia atlantica, se os ven- tos e as correntes maritimas no se opusessem. Cristévio Colombo completava seus célculos estapafiirdios e a sua defesa da estreiteza do Atlanti- co com provas ainda mais exdticas e medievais. En- tre clas, o fato de que a Biblia afirmara que o mundo fora criado com seis sétimos de Terra ¢ apenas um ssétimo de oceanos. Afinal de contas, o Criador certa- mente privilegiaria as terras, destinadas a vida hu- mana ... Desculpam 0 genovés o fato de que imbrogli mateméticos, cartogrificos ¢ criacionistas fossem defendidos por importantes humanistas. En- tre outros, o grande gedgrafo Ptolomeu, que teve sua Geografia impressa em 1475, ensinara que a circun- feréncia da terra media 32 mil quilmetros e que o oceano Indico era um mar interior ... (HEERS, 1981: 160; KUPCIK, 1989: 25.) NAVEGANDO NA FANTASIA Hoje é praticamente fora de dtividas que Cris- {v0 Colombo teve conhecimento dos célculos in- corretos do humanista Paolo dal Pozzo Toscanelli (1397-1482), que defendia, no minimo desde 1474, a grande proximidade entre as costas asitticas ¢ curo- péias. E também provavel que 0 genovés tenha man- {ido correspondéncia com o florentino, que The teria fornecido, em 1480/2, uma eépia do mapa enviado a dom Afonso V (1438-81), em 1474, no qual assina- lara incorretamente as costas do Japio e da China, precisamente onde se encontrava o continente ame- rican desconhecido. (CIMO, 1992: 38-45.) Galvanizado pela idéia ¢ contando com 0 apoio de individuos e de grupos conquistados e interessa- dos no projeto, Colombo arranjou-se para ser recebi- doe apresentar, seus calculos e planos, a dom Joao IT (1481-95), na primavera ou no verdo de 1484. 0 so- berano indeferiu a proposta colombiana. Nio teria sido dificil para os gedgrafos e expertos néuticos a servico de Portugal desvelarem os erros grosseiros do genovés. Eles lembrariam a0 rei que 0 Japio se encontrava bem mais ao Oriente, que no seria pos- sivel levar viveres suficientes para uma tio demora- da travessia € que as tripulacées, no minimo, deses- Perariam, navegando, por longos meses, num mar oceano desconhecido. (COLOMBO, 1989, I: 9.) Nao conseguindo conquistar 0 apoio portugués, Cristévio Colombo transferiu-se, possivelmente em 1485, para a Espanha, onde, em abril do mesmo ano, apresentou sua proposta a Isabel (1474-1504), senho- ra de Castela ¢, portanto, das costas atlantica da panha, a principal regio interessada no trafico oceiinico. Ainda envolvida na guerra contra Grana- da, como o soberno portugués, Isabel entregou a de- licada questao a um comité de cosmégrafos, mate- miticos ¢ tedlogos que, certamente pouco enfronhado nas quest6es das descobertas maritimas, nao se apres- sou a depositar um parecer sobre a consulta. (GODI- NHO, 1969: 46.) Por esses anos, dom Joao Il fazia avancar 0 assalto final das costas africanas. Em 1483, © grande navegador portugués Diogo Cao ultrapas- sava a foz do rio Zaire, na Africa Central. Por algum tempo, os portugueses acreditaram encontrar no rio uma passagem em direcdo as Indias Diante da demora da resposta espanhola, ¢ pr sentindo que os lusitanos resolveriam, logo, & sua ‘maneira, a charada, Colombo voltou-se, de novo, para © soberano portugués, que recebeu o genovés, mais uma vez, € recusou, novamente, 0 apoio & aventura. Em dezembro de 1488, em Lisboa, Colombo assistiu 4 volta triunfal de Bartolomeu Dias. O navegador portugués, apés partir de Lisboa em agosto do ano anterior, no comando de duas caravelas e uma nave de abastecimento, contornara no extremo da Africa Meridional, o por ele denominado cabo Tormentoso (das Tormentas). O acidente geografico seria rebatizado por dom Joao como cabo da Boa Espe- ranca. Especialistas sugerem que, nestas épocas, os portugueses tivessem indicios seguros da existéncia de terras entre a Asia e a Africa. De volta Espanha, Cristévao Colombo rece- beu 0 veredito negativo do conselho reunido por Isa- bel. Honra a comissio espanhola ter desaconselhado a operagio pelas mesmas sdbias razdes avangadas pe- los conselheiros portugueses. Em 1488, talvez ciente do pouco interesse espanhol, Bartolomeu Colombo partiu para a Inglaterra, onde apresentou, em nome do 19 irmio, a Henrique VI, com o mesmo resultado, 0 pro- jeto transatlintico. Faria o mesmo, a seguir, sem st- Cesso, na Franga, onde receberia, mais tarde, a noticia do descobrimento de Cristévaio Colombo. A definitiva vitéria sobre o Reino de Granada ~ ‘que daria a Isabel e a Fernando o titulo de Reis Cat6li- os, concedido por Alexandre VI (1492-1503) -, em Janeiro de 1492, mudaria a conjuntura na peninsula Thérica. Em inicios do mesmo ano, Isabel de Castela desconheceria a opinifo de seus conselheiros ¢ daria instrugdes para que fossem discutidas com Cristéviio Colombo as condigdes da aventura, que resultaram nas Capitulagdes de Santa Fé, assinadas em 17 de abril de 1492, Nao foram ainda desveladas a contento zes de tal decisio intempestiv enirea vonade de recuperao tempo perdido no AUan- tico e os 0s conheci castelhana expliquem 0 apoio a uma iniciativa sobre a qual os especialistas conflufam na acertada opiniio de apontar 0s grosseiros desacertos. Capitulo 2 = As maravilhas do Novo Mundo Problemas internos ¢ externos - sobretudo a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) - haviam afasta- doa Franca e a Inglaterra das primeiras grandes con- quistas maritimas. O mesmo ocorrera com a Espanha. Apenas em janeiro de 1492, os Reis Catdlicos un cavam 0 pais, 20 derrotar Granada, o tiltimo reino mugulmano da Peninsula. Apesar de contar com um extenso litoral maritimo, a Espanha era uma nacéo sobretudo agriria. Ela dispunha ainda de um vasto interior para ser colonizado. Com importantes e di- namicas portas para o Atlintico - Galiza, Astirias, Pais Basco, Andaluzia - a vocagio maritima espa- nhola fora, até fins do Quatrocentos, principalmente mediterranica. Literalmente debrugada sobre 0 norte da Africa, tudo indicava que as grandes forcas eco- némicas ¢ militares, postas em tensio pela Recon- quista ¢ liberadas pela derrota de Granada, seriam reorientadas para a conquista do norte da Africa. No século 13, a confederagio aragoneza se transformara em uma das maiores poténcias navais do Mediterrdineo. No século 14, os marinheiros da Andaluzia, da Catalunha ¢ de Majorca tinham fre- qiientado assiduamente as costas do Marrocos. Nos anos 1475-80, durante a Guerra da Sucessio, quan- do Afonso V pretendera a Coroa espanhola, em res- posta, Castela promovera e apoiara operagdes no atlantico africano, com relativo sucesso. Entretanto, com 0 Tratado de Alcdcovas, de setembro de 1479, que pusera fim na guerra dinéstica, a Espanha fora obrigada a retirar-se dessas aguas e a reconhecer 0 monop6lio lusitano sobre as navegacdes e terras a0 sul das Canérias, que o diploma cedia a Espanha. (CORTESAO, 1990/3: 495, 549, 559; 1975/2: 319.) No fim do século, a Espanha observava ciumen- ta os sucessos africanos de Portugal. Boa parte dos calivos aprisionados pelos portugueses na Africa era vendida, com 6timos lucros, nos mercados espanhéis. Com a vitoria sobre Granada, os Reis Catélicos rea- lizavam a unidade nacional e pacificavam o pais. Criavam-se as condicées minimas para um expan- sionismo extrafronteira. Mantinha-se entretanto 0 atraso, em relacio a Portugal, no que diz respeito as grandes navegacdes. (GODINHO, 1969: 45.) A férrea unio entre catolicismo, nobreza feu- dal e Coroa permitira a unificacao da quase totalids- de da Peninsula sob a égide do Estado espanhol. Sob aretérica despiedada da Inquisic4o, a mesma alianca implementaria uma ininterrupta luta contra as débeis classes burguesas e mercantis. O Estado espanhol poria igualmente, em uma verdadeira camisa-de-forca escolistica, as ciéncias e os espiritos mais inquietos, que haviam recebido o influxo do importante desen- a Volvimento cultural e cientifico mugulmano. Vanguar~ Gas da cigncia e do capitalismo nascente, os judeus ¢ s muculmanos espanhéis foram reprimidos, expul- Sos € massacrados. No mesmo ano em que Colombo descobria a América, Abraio Zacut, o grande cosmégrafo judeu de Salamanca, partiria para Lis boa, fugindo das perseguicao anti-hebraica decreta- das pelo Edito de Expulsio. O atraso cicntifico ¢ cul- tural da Corte espanhola parece ter contribuido para a descoberta da América, resultado inesperado da aventura colombiana. _ Abusca de um caminho atlantico-ocidental para as Indias expressava os interesses de grupos comer- ciais prejudicados pelo monopélio mugulmano e veneziano das especiarias. Entre estes interesses se encontravam os genoveses. A cabeca de uma peque- na frota de trés caravelas - Nifia, Pinta e Santa Mat =, Crist6vo Colombo partiu, em agosto de 1492, do porto de Palos, para terminar descobrindo, ap6s pou- co mais de quatro semanas de viagem atlantica, um continente total e completamente desconhecido, onde acreditava encontrariam-se as Indias SUCESSO DE DIVULGAGAO O continente com que Colombo deparou salvou-o de voltar sem ter chegado as Indias ou de, pior ainda, perder-se em uma inesperada imensidade oceiinica. Em verdade, Colombo descobriu, para os europeus, por mero acaso, um continente exatamen- te onde acreditava que se encontrassem as Indias. Ou seja, para a geografia da época, nas vastas costas da Asia que se estendem do Japao ao golfo Pérsico. Razao tinham 0s cosmégrafos e cart6grafos a servi- ¢0 de Portugal ao desaconselharem dom Joao TI, em 1484 ¢ em 1488, a financiar a viagem transatlantica. Como acreditavam os portugueses, a verdadeira rota atlantica das especiarias contornava a Africa. Américo Vespiicio foi o primeiro navegador a revelar ao grande piiblico culto europeu o verdadei- ro sentido do achamento colombiano. Acreditam os, “a especialistas que o florentino tenha participado de quatro expedigdes transatlanticas - duas espanholas € duas portuguesas. Ainda em jullio de 1500, de vol- ta de sua segunda viagem (1499-1500), como Colombo, Vespiicio acreditava serem as terras des cobertas “confins da Asia pela regio do oriente, ¢ 0 principio, pela regiio do ocidente”. (VESPUCIO, 1984: 57; CIMO, 1992: 144.) Uma apreciagio que mudou radicalmente quando de sua terceira viagem - a primeira, sob bandeira lus Residindo em Espanha desde 1492, Vespticio abandonou a teoria ica’ defendida por Colombo somente apés par- ticipar de uma expedicio portuguesa as terras recém-descobertas. (HCPB, Il: 184.) Ao escrever a Pier de Medici, falou peremptério de um “Novo Mundo”, habitado por povos ¢ animais diferentes aos da Europa, Asia ou Africa. (VESPUCIO, 1984: 89.) Apenas chegava das longas viagens ocednicas, como era habito na época, Américo Vespticio escrevia detalhadas cartas a eminentes personalidades euro- péias. Algumas dessas missivas - Mundus Novus e La Lettera - foram reeditadas, diversas vezes, ainda du- ante a vida do autor. Essa literatura alcangou grande sucesso de piiblico e registrou magistralmente o pri- meiro olhar maravilhado do europeu renascentista so- breo continente apenas achado. Lendo-as, compreen- demos sem dificuldade o impacto causado pelo conhecimento do “Novo Mundo” entre as populagdes européias. Deve-se a ampla difusio dessas paginas ter sido a “quarta parte da terra” batizada com o nome do célebre florentino. Sem lugar a dividas, a continen- talidade do Novo Mundo era do conhecimento dos navegadores lusitanos desde 1501, como 0 comprova © planistério portugués dito de Cantino (1502), Expedicdes ocednicas nao cram novidades para a 6poca. Havia mais de meio século que os navega- dores portugueses avangavam, passo a passo, no périplo africano. Apesar de os lusitanos guardarem, a sete chaves, os objetivos ¢ os resultados das nave- gages atliinticas, espides das cortes européias ¢ so- bretudo das cidades maritimas italianas, manti- nham-nas informadas sobre as conquistas portuguesas na Arica. través do século 15, 0 avanco lusitano dera-se ao longo de uma costa - em boa parte - inds- pila, insalubre ¢ pouco habitada. A partir de um cer- fo momento, o destino final ¢ os abjetivos dos navegantes portugueses - se no cram propalados ¢ram, a0 menos, largamente intufdos: as costas das Indias ¢ 0 comércio que ali se efetuava. Para realizar o périplo africano, os portugueses foram obrigados a dominar a navegacao de alto mar. Em mais de um ponto do litoral do Continente Ne gro, baixios ou uma navegacio dificil obrigavam os nautas a perderem de visla as costas ¢ a aventuri rom-se em mar largo. O aperfeigoamento do astro- labio - instrumento de uso comum entre os arabes - permitia medir a localizacio de um navio em alto mar. Ele fora alcangado pelos lusitanos devido, so- bretudo, a contribuigio de sibios judeus. Apesar desses progressos cientificos, a navegacao das des- cobertas era ainda uma aventura que se baseava, em boa parte, em conhecimentos néuticos ¢ maritimos empiricos. (LIPINER, 1987: 48 et seq.) DESCOBERTA FANTASTICA Cristéviio Colombo, que navegara sob a ban- deira lusitana, propusera-se a atravessar 0 mar sem-fim da Antiguidade, Queria “buscar 0 Levante pelo Ponente”. Os principios da navegacio de alto mar tinham sido dominados pelos portugueses ¢ a esferidade da terra nao era posta em diivida. Entre- tanto, a viagem transatlintica era uma experiéncia que jamais fora tentada voluntariamente, ao menos nessa época. E com razio. J4 assinalamos que ape- nas 0 Novo Mundo salvou a expedicao colombiana de perder-se numa vastiddo ocefnica que muitos cosmégrafos haviam intufdo ou deduzido. Um quar- tocontinente era uma descoberta revoluciondria para © homem europeu. Baseada em observacées empiricas, céilculos ‘matematicos, dedugSes, analogias, etc., a cosmografia antiga defendera que o mundo era redondo, dividido em cinco zonas climiticas - duas polares, duas tem- peraturas € uma t6rrida - e que possuia, necessaria- mente, no hemisfério sul, um quarto continente, contrabalanceando os setentrionais. Marcos Tilio Cicero (106-43 a.C.) expusera essa tradicho em O sono de Cipido e assinalara a impossibilidade dos antipodos de comunicarem-se, devido ao calor calcinante da zona torrida. Seu trabalho foi discuti- do ¢ difundido, no século 5, por Ambrésio T. Macrobio, em seu Comentdrio ao sonho de Cipiao. Na mesma época, em Casamento de filologia e Mer- ctirio, Marciano Capella reafirmou a divisio do mun- do em cinco zonas, mas referia-se a navegacdes ja ocorridas entre o Atlantico, o Mediterraneo ¢ 0 Indic Terras habitaveis ¢ habitadas na anti mundo conhecido eram ina i momedieval. A Biblia defendia a monogénese adimica da espécie humana. E Mateus afirmara, exp] tc. “E sera pregado este Evangelho no reino por todoo mundo, em testemunho a todas as nagoes. E ento vird 0 fim [dos tempos].” (24: 24.) Menos catastréfico, Si0 Paulo propunha que a palavra divina ja fora divulgada entre todos os povos: “Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, € as suas palavras até os confins do mundo”. (Romanos, 10: 18.) s grandes doutores da Igreja medieval se opu- nham a teoria dos antipodas. O evangelho jé fora ou seria conhecido por todos os seres humanos, necessa- riamente. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, suge- riu a existéncia de um continente submerso, no hemis- fério sul. E, se assim nao fosse, teriamos apenas terras desabitadas e inacessiveis. Doutrina sustentada por Santo Isidoro de Sevilha, em Etimologias, em meados do século 7. Na época, quem defendesse 0 contrario pecava por heresia. (GIUCCI, 1992: 54-60.) A tradicio biblica garantira que a palavra divina seria difundida através de todo o mundo - Europa, Asia ¢ Africa. Gedgrafos da Antiguidade afirmavam ser impossivel ao homem viver ao sul da Linha Equinocial. (RAMUSIO, 1613: I, 129-30.) Como enquadrar as cer- tezas biblicas e a confianca nos antigos a descoberta de antipodas mantidos & margem da palavra divina e B vivendo em regides tidas como inabitiveis? O conti- nente “descoberto’ colocava estes ¢ outros dolorosos paradoxes. Afinal, para que fora ele ‘encoberto”? Com © Novo Mundo nascia igualmente um Homem Novo. ‘Tradicionais certezas da Antiguidade comecavam a Tomper-se. A descoberta transallantica contribufa que a tradicio desmaiasse como critério de verdade, Entretanto, as justificativas européias da colonizacio americana seriam construidas sobretudo com as combalidas concepgbes escolisticas medie Espanh6is, lusitanos, franceses, etc., criam que a providéncia divina negara aos antigos 0 conheci- mento da quarta porcio do globo e reservara-Ihes 0 destino de ‘descobri-la’ e cristianizé-la. Os espanhdis acreditavam que a América Ihes fora revelada como prémio divino pela expulsio dos ‘infiéis’ da Peni sula, Em 1612, 0 franciscano Claude d’ Abbeville participou da tentativa de fundagao de uma col6nia francesa no Maranhdo, sobre a qual redigiu uma in- teressante crénica. Ao desembarcar na regifio, escre- veria: “Mas quantos louvores ages de gracas nao Ihe rendemos por ter 2 Sua Divina Majestade se dig- nado escolher-nos entre tantos povos para plantar suas armas nos arraiais dos que até entao se julgavam re- beldes as suas santas leis e onde jamais pessoa algu- ‘ma empreendera (ao pelo menos conseguira) erguer echantar esse sinal triunfante [a cruz].” (ABBEVILLE, 1975: 73.) O submetimento ¢ a colonizacio do Novo Mundo dar-se-iam sob a justificativa de uma cruza- da pela difusdo do cristianismo entre os ‘gentios’. Durante as semanas de viagem através do caos atlantico, Crist6vao Colombo tentara esconder de sua tripulago o quao distante avangavam para 0 Ociden- te. Diariamente, subtrafa algumas milhas ao registrar no livro de bordo as distancias percorridas. (COLOM- BO, 1990: 102.) Estratagema pueril. A tripulagio agitava-se e apresentava fundadas preocupagoes. O medo nao provinha de lendas medievais de despe- nhadeiros infinitos nos fins dos oceanos, como ainda acreditam alguns autores. (TODOROV, 1982: 14.) Nao se temiam igualmente terriveis monstros marinhos.. ‘A causa da inquietacio era mais prosaica. Os ventos is. mt alisios, que sopram todo 0 ano, do Oriente ao Oci- dente, nas regidcs tropicais, empurravam, com segu- rana e rapidez, as tres pequenas caravelas, para 0 Ocidente desconhecido. Os marinheiros pergunta- vam-se se existiriam ventos e correntes que os levas- sem, de volta, 3 Espanha. ‘A primeira travessia transocedinica dera-se em um contexto psicolégico em que se embaralhavam ainda, parcialmente, o real, o maravilhoso, 0 mistico € 0 religioso. Apés algumas semanas de navegagio, aexpedicio entrara em uma regio de ar ‘duleissimo’, apesar dela viajar no hemisfério norte. Corria 0 ou- tono curopeu eo ar parecia o de ‘abril em Sevilha’ (COLOMBO, 1984: 42.) Em 12 de outubro de 1492, avistou-se terra, E que terra! Praias de areias bran- cas; Aguas azuladas; vegetagio exuberante. Colombo registrou sem detenga o verdecer da vegetacio, em pleno outubro. (COLOMBO, 1984: 44.) Mais tarde, siado, Américo Vespticio referiu-se ao “cheiro suave” e “ao verdor” das drvores que “ja- mais” perderiam “as folhas”. (VESPUCIO, 1984: 50.) Um verdadeiro sonho dourado para homens que so- friam anualmente as agruras dos longos e rigorosos invernos da Europa. OLHAR MARAVILHADO O olhar dos europeus recafa 20 mesmo tempo sobre a terra e seus habitantes. Segundo a primeira impresso de Colombo, os nativos eram ‘bem-feitos’, ‘de corpos muito bonitos’ ¢ nenhum teria barriga, ‘a nao ser, muito bem-feita’. (COLOMBO, 1984: 45-6.) Vespticio era da mesma opiniao. Considerou-os ‘bem proporcionados’ ¢ fez. questio de assinalar ser diffcil ver ‘as tetas caidas numa mulher’ (VESPUCIO, 1984: 108; 110.) Pero Vaz de Caminha (cerca 1450-1500) integrou, como futuro escrivao da feitoria de Calecute, aexpedicao portuguesa de 1500 que, enviada ao Indico, terminou descobrindo e visitando rapidamente as cos- tas brasilicas. Ele relataria ao seu rei, em 1° de maio daquele ano, sobre os natives: “Andam nus, sem ne- nhuma cobertura [.. inocéneia como tém e E esto acerca disso com tanta mostrar 0 rosto”. 3m sua carta, Pero Vaz. de Caminha assumiria um tom bastante galante ao descrever as mulheres da terra: “Ali andavam, entre eles, trés ou quatro mo- ‘cas, bem mogas e bem gentis, com cabelos mui pre- tos, compridos, pelas espaduas; e suas vergonhas t altas ¢ {a0 garradinhas ¢ to limpas das cabeleiras que de as nds muito bem olharmos nao tinhamos ne- nhuma vergonha”. (CAMINHA, 1983: 247, 250.) Um reconhecimento inconsciente de que a libidinagem encontrava-se no ser que olha e nio no corpo olhado, Era compreensivel o agradavel espanto. Homens e mulheres de porte altivo ¢ corpos bem-torneados em vez dos ciclopes, sitiros, trogloditas, faunos, liliputianos e animais antropomorfos e deformes que habitariam o além-mar, segundo a geografia miticae fantéstica medieval. A nudez inocente e elegante do habitante das descobertas nio podia deixar de surpreender e arre- batar 0 europeu, imerso em uma tradi¢ao judaico-cris ta que idealizava o espirito ¢ abominava / demonizava © corpo, tido como a grande causa da concupiscén- cia. Ao referir-se 4 sua primeira viagem a0 Novo Mundo, Américo Vespticio escreveria sobre os nati- vos: “Em conclusio, néo tém vergonha das suas ver- gonhas, nao de outro modo que nés temos em mos- trar o nariz € a boca [...]”. (VESPUCIO, 1984: 110.) Como vimos, & gente encontrada foi dado o substan- tivo patrio ‘indio’, Eles seriam os habitantes menos civilizados das ricas regides extremo-orientais das Indias. Marco Polo nao se referira a nativos de Sumatra ¢ de outras regides extremamente atrasados ¢ ‘selvagens”? (POLO, II, 1989: 413 et passim.) Praias idflicas, vero eterno, frutos e animais exéticos, homens e mulheres pacfficos, de corpos harmoniosos ¢ desconhecedores do pecado original ¢, portanto, da vergonha. A descrigao literal do Eden, para o curopeu renascentista ainda embebido das es biblicas ¢ criacionistas. Em 19 de outu- sobre Crooked Island: “Eveio um cheiro tao bom e suave das flores e drvores, que eraa coisa mais doce do mundo”. (COLOMBO, 1984: 52.) A analogia era quase inevitével. Américo Vespiicio registraria sobre as terras descobertas: suas frvores so de tanta beleza e de tanta suavidade que pensivamos estar no Paraiso terrestre (VESPUCIO, 1984: 53.) ft Durante sua terceira viagem as ‘Indias’, maravi- Ihado com a cleméncia do clima ¢ com 0 volume de gua doce que o rio Orenoco deitava ao mar, Crist6- vio Colombo nio se conteve. Escreveu aos soberanos espanhdis sugerindo que 0 caudaloso rio nasceria nada menos de que no ... Paraiso. Uma apreciacio até certo ponto em conformidade com o espitito da época. Em verdade, o Paraiso Terrestre encontrava-se localizado sobre todos os chamados mapas circulares da Idade Média, desprovidos de preocupacdes geogréficas ¢ concebidos segundo a ideologia mistica crista da épo- ca. (KUPCIK, 1989: 32.) Isidoro de Sevilha (cerca 560-636) -arcebispo, fil6sofo e santo catdlico - escrevera que o Jardim do Eden se encontrava no Oriente € possufa uma exube- rante vegetagao. Ali, nao faria “frio nem calor” mas sim uma “eterna primavera”. (DUVIOLS, 1985: 20). Era tido igualmente como certo que o rio que regava © Paraiso Terreal dividia-se em quatro troncos fluvi- ais. Para Colombo, o rio Orenoco seria um deles. (HOLANDA, 1969: 8.) Referindo-se 4 costa da Venezuela, o genovés escreveu na ocasiao: “[...] es- tou convicto de que 1é em baixo se encontra o Parai- so terrestre, ¢ logo que possivel, enviarei o meu mio [...] para desvendar mais estas regies”. (MAHN-LOT, 1985: Capitulo 3 — Pobre América, rica Europa As descrig6es paradisiacas do Novo Mundo re- fletiam apenas uma vertente do imaginario quinhen- tista europeu. Havia outra, muito mais forte. Fora precisamente ela que fizera os aventureiros europeus desbravarem mares até entio desconhecidos. Ou seja, a inabalavel certeza de que as terras exéticas ¢ dis- tantes escondiam, sempre, tesouros inimagindveis minas inesgotaveis. O grego Claudio Ptolomeu es- creveu uma célebre Geografia, em cito livros, que manteve sua autoridade até as grandes descobertas ocednicas. Ela teria sido redigida, pelos anos 1604.C. e redescoberta, pelos europeus, através de uma tra dugio latina do original grego, feita nos anos 1406-10, por Manuel Chrysoloras ¢ Jacobus Angelus. (ARNOLD, 1983: 13; PERES, 1982: 32; KUPCIK, 1989: 91.) Nela, Ptolomeu lembrava que 0 ouro nas- cia e crescia em terras “t6rridas, distantes e perigo- sas”. (GRANZOTTO, 1985: 13.) Uma convicgio con- firmada pelo fluxo do metal precioso que, por séculos, chegava, i Europa, dos sertées quentes da Africa semidesconhecida, através do Sara, Em 1612, o franciscano Claude d’Abbeville referia-se as riqueza do Maranhio: “E como as pe- dras mais preciosas se encontram na zona t6rrida, ¢ © Brasil se situa quase no meio dela e préximo a Linha Equinocial, é de crer-se que receba influéncia dos astros pelo menos igual & que recebem outros paises, e em especial a influéncia do sol, gerador do ouro, que ai passa duas vezes pelo zénite. O que me levaa dar crédito ao que dizem os franceses e indios [...], de por af existirem muitas minas de ouro e pedras preciosas e muitos viveiros de pérolas”. (ABBEVILLE, 1975: 163.) Numa terra ensolarada, era s6 chegar, achar as minas, extrair as riquezas ... No inicio dos tempos modernos, a busca febril de ouro ¢ outras riquezas exdticas refletia processos econdmicos e sociais muito mais profundos. Por pri- meira vez na histéria da humanidade, o desenvol mento dos meios de transporte, a acumulagao de ca- pitais mercantis e a génese de um amplo mercado internacional de mercadorias viabilizavam a explo- ragio sistemética e intensiva de vastas e distantes tegides do Globo. Na Europa, para o plebeu pobre € para o nobre sem fortuna, a acumulacio ilimitada de riquezas nao-patrimoniais apresentava-se como a chave de uma ascensdo social quase ilimitada. A grande maioria dos aventureiros que arrisca- ram a sorte nas novas possessdes americanas nao con- cretizou seus sonhos. Entretanto, sobretudo os casos singulares de sucesso fulgurante alimentaram as espe- tangas ¢ as ilusdes daqueles que se preparavam para partir e colocavam suas esperangas nas descobertas. a Como nao extasiar-se com o sucesso de um Hern Cortés, Membro da pequena nobreza espanhola, apés conquistare saquear o México, cle foi elevado ao rango de marqués e se casou com dona Juana de Zuniga - filha de um conde e neta de um duque -, associando-se, assim, a uma das mais importantes familias da época. (CORTES, 1990/3: 11.) A posse do ouro enriquecia ¢ enobrecia, Nao havendo limites para a acumulagio de Tiquezas, abria-se uma fase da hist6ria em que nado haveria limites para a rapacidade e cupidez humanas, fenémeno que tanto impressionou as comunidades americanas, conhecedoras de economias ¢ sociedades essencialmente naturais. TIGRES FAMINTOS Nenhum problema ético ou de consciéncia levantava-se entre os europeus ¢ as riquezas america- nas. Portugal monopolizara e arrendara 0 comércio com a Africa Negra e estabelecera-se nas costas da- quele continente sem preocupar-se com a vontade e ‘comos direitos dos povos nativos. A Espanha, a Fran- a, a Inglaterra, os Paises Baixos seguiriam 0 mesmo caminho. A expansio da ‘verdadeira fé’ e da ‘civiliza- do crista’ serviu de pretexto universalista para a expoliagio das comunidades extra-européias, quando da expansao maritima ¢ territorial do Velho Mundo. A ‘lei do mais forte’ foi o verdadeiro argu- mento das casas reais, das classes mercantis, dos colonos e dos aventureiros de todo tipo, quando da conquista da quarta parte do mundo. Apenas desem- barcado, na presenga de autéctones completamente ignorantes do sentido da ceriménia, em nome dos reis de Espanha, Colombo tomou posse das terras ‘descobertas’. (COLOMBO, 1990: 115. .) Como lo- bos magros famintos das pradarias geladas, almi- antes, pilotos, nobres, marinheiros, soldados, pedes, frades e grumetes atravessavam os oceanos, desem- barcavam nas praias, embrenhavam-se nas flores- tas, superavam montanhas, venciam desertos e rios 4 procura das minas que os cobririam, na Europa, 28 de indescritiveis riquezas ¢ distingdes. Os atrativos ¢ virtudes das terras e dos homens americanos diluiam-se diante dos miticos tesouros prometidos pelas descobertas. Passados os prim Tos momentos, as exuberantes florestas ¢ os serros € montanhas verdejantes empalideciam e perdiam in- teresse. Mctamorfoseavam-se nos miiltiplos obsti- culos que separavam os recém-chegados das hipoté. ticas minas de ouro, prata e pedras pre importante nao era descobrir e conhecer um mundo até entao de todo desconhecido. A grande preocupa- Gio era dominar as novas terras para desventré-las de suas riquezas, rapidamente. Em relacgio aos nativos, foi também radical a metamorfose do comportamento curopeu. Toda e qualquer simpatia do colonizador para com o ameri- cano desapareceu como num passe de magica. Ali onde ouro ¢ prata foram enconirados, estes tesouros pertenciam as populacdes americanas ou deviam ser arrancadas do solo, duramente. Nos dois casos, os nativos sofreram as conseqiiéncias. Foram combati- dos, subjugados, escravizados. Tiveram que ceder os metais preciosos ¢ labutaram, como animais de car- ga, em velhas e novas minas. Pesadas naus ¢ lentos. galedes partiam para a Espanha com os pordes pejados de minerais preciosos. As novas terras enco- briam os ossos brancos de milhdes de americanos estragalhados pelo esforgo minerador sobre-humano. PRIMEIRO GENOCIDIO No Caribe, nos territérios dos impérios asteca ¢ inca e em outras regides da América densamente po- voadas, a exploracao e 0 massacre do homem autécto- ne foram imediatos a chegada dos europeus. Obrigada a trabalhar infernalmente, mal-alimentada, violenta- da, golpeada por enfermidades até entio desconheci- das, em poucos decénios a populacio americana encontrar-se-ia radicalmente dizimada. Colonizacao e © maior genocidio até hoje conhecido tornavam-se assim dois componentes de um mesmo movimento. Quase como se tal sintese resultasse da natureza das coisas e nao da agio eda vonlade dos homens. Em 1552, na Brevissima relagdo da destruigao das Indias, o frei Bartolomé de Las Casas (1475-1566) explicava as causas do acelerado despovoamento de grande parte das Antilhas: “[..] a maior parte foi mor- ta ou tirada dali para trabalhar nas minas da ilha Espa nhola onde nio havia ficado nenhum dos naturais”. Era pouco lisonjeiro o perfil que o bom sacerdote tra- ava dos seus patricios: “[...] os espanhdis se arremes- saram [...] [sobre os nativos]; e como lobos, como ledes e tigres cruéis, hd muito tempo esfaimados, de qua- renta anos para c4, ¢ ainda hoje em dia, outra cousa nao fazem ali sendo despedacar, matar, afligir, ator- mentar e destruir esse povo [...)” Naquele entio, nfo havia diividas sobre os ob- giversacdes, Las Casas anotava as raz6es de tama- nha sanha ibérica: “A causa pela qual os espanh destrufram tal infinidade de almas foi unicamente no erem outta finalidade iltima senio 0 ouro”. (LAS CASAS, 1984: 29-30.) Marco Pélo descrevera, no Livro da India, os tetos ¢ as paredes, “cobertos de ouro fino”, do palacio real de Cipango, 0 nosso Ja- pao. (POLO, II, 1989: 397.) O cosmégrafo Paolo dal Pozzo Toscanelli prometera a Colombo que, a0 che- gar as ‘Indias’, ele encontraria ‘reinos potentes’ e terras ‘riquissimas’, sobretudo em ‘especiarias’ e “ge- mas’. (COLOMBO, 1990; 69; COMO, 1991: 38 - 45.) No dia seguinte da descoberta do Novo Mun- do, Colombo anotaria a sua esperanca de encontrar ouro, rapidamente. O seu diério registra o patético Ziguezague por ele cumprido, durante o resto da via- gem, entre ilhas que julgava encontrar ao longo das costas da Asia. O essencial era alcangar as riquezas prometidas por Marco Pélo. Eram profundos e sao universalmente conhecidos 0 misticismo escolastico earetérica cristianizadora e messianica de Colombo. Eles se fortaleceriam ainda mais 1 medida que se evidenciava seu erro de avaliagio geogrifica e que a imensidade da descoberta determinava inexoravel- ‘mente sua marginalizacao da empresa colonial espa- nhola. (GIUCCI, 1992: 54-60.) Estes substratos cul- turais ¢ psicolégicos néo nos devem enganar. grande objetivo das viagens ao Novo Mundo de Colombo ¢ de seus acompanhantes era buscar ¢ encontrar ouro ¢ outras mercadorias exéticas. Para tal 0s reis espanh6is haviam apoiado a sua aventura. E sintomatico que a expedicio de 1492 nao possuis- se nem mesmo um capelao. Em 1533, ap6s saquear o Peru, Francisco Pizarro (cerca 1475-1541), oriundo de uma familia camponesa pobre, fora claro ao de- clarar, sem rodeios: “Vim aqui para arranjar ouro, ¢ nao para trabalhar a terra como um camponés”. (ARNOLD, 1983: 38.) TEMPOS DE TROCA Em regides desprovidas de metais preciosos, os curopeus arranjaram-se para rentabilizar a explora- Gio destes territérios, onde aportavam episodicamente ou se estabeleciam sem delongas. No primeiro caso, encontraram-se as longas costas brasilicas. No ini- cio, elas foram apenas visitadas por navegantes ¢ mercadores - sobretudo portugueses ¢ franceses - que trocavam, nas praias € em risticas ¢ provisérias feitorias, manufaturados europeus por bens america- nos - pau-brasil, peles, papagaios, etc. De um modo geral, esta foi uma época de contatos cordiais e pro- ficuos entre europeus ¢ americanos. Em diversas re- gides da costa, tais préticas mantiveram-se além mes- mo do inicio da colonizacao. Possuimos o registro da apreciacio positiva, sobre este escambo, de uma comunidade brasilica que o vivera e 0 praticara. Em 1612, um velho tupinamba verbalizaria a opinido americana sobre as décadas dominadas pelo escambo: “Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vés o fizestes somente para traficar. Como os pero [portugueses}, nao recu- siveis tomar nossas filhas € n6s nos julgivamos feli- zes quando elas tinham filhos. Nessa época, no falveis em aqui vos fixar; apenas vos contentaveis com visitar-nos uma vez por ano, permanecendo en- eo) tre nds somente durante quatro ou cinco Tuas [me- ses]. Regressaveis entio a vosso pais, levando os Rossos géneros para trocé-los com aquilo de que ¢ Teciamos”. (ABBEVILLE, 1975: 115.) A seguir, nestes territérios inicialmente apenas Visitados pelos europeus, o escambo cedeu lugar & ocupagao colonial e territorial. A economia das troc: foi sobrepujada pela economia da plantagio. Ou seja, Passou-se 4 luta pelo controle do litoral e da forca de trabalho dos povos americanos. Na costa brasilica, por muito tempo, a produgio do agticar faria com que os minerais preciosos - que teimavam emnio se revelar ~ caissem quase no esquecimento. Ali, 0 ouro era bran- co, Para 6 homem americano, 0 canavial nao se mos- traria menos lelal do que as minas argentiferas andinas, Deste proceso resultou a réipida destruigio/absorgio das comunidades americanas do litoral. Como veremos a seguir, a dissociagio inicial destes dois primeiros momentos dos contatos entre europeus ¢ brasi - permite uma compreensio mais profunda da esséncia da co- Jonizacio do Novo Mundo. Inicialmente, antes de abordarmos este momento hist6rico, tentaremos re~ construir, em suas grandes linhas, o processo que le~ vou 4 chamada descoberta do Brasil e aos primeiros contatos entre lusitanos ¢ brasis. Capitulo 4 Conquista portuguesa da Africa A descoberta do Brasil foi um acontecimento menor na busca lusitana de um caminho maritimo até as Indias, projeto concebido, em scus detalhes, no reino de dom Joao II. Em verdade, este soberano se encontrava envolvido nos negécios da Africa, por delegacao de seu pai, no minimo, desde 1471. (COR- TESAO, 1990/3: 469 et seq.) O ambicioso projeto de circunavegacio da Africa aproximava-se de um final feliz, quando, no inicio de margo de 1493, Crist6vao Colombo, navegando ao servico de Castela, passou por Lisboa, de volta do Novo Mundo, afirmando, orgulhoso, ter aportado nas Indias. Como prova, tra- zia habitantes daquelas regiGes para serem mostra- dos aos reis cat6licos. (COLOMBO, 1990: 154.) Se fosse verdade, a expedicio espanhola tornaria obso- Ieta a rota portuguesa das especiarias, no momento mesmo que estava para ser aberta. A viagem transatlantica de Colombo efetuara-se em algumas semanas. A circunavegacio da Africa exigiria, no melhor dos casos, longos meses. Fora em vio o grande esforgo lusitano? O fato de que, anos antes, 0 genovés oferecera-se a dom Joio, em 1484 ¢ 1488, para atravessar 0 Atlantico e assim che- gar as Indias, angustiaria ainda mais a Corte portu- guesa. Os cosmégrafos e carlégrafos a servico de Portugal haviam desaconselhado a aventura. Certa- mente teriam afirmado que Colombo se enganava ao crer que as costas orientais da Asia se encontrassem apenas a quatro ou cinco semanas de travessia tran- satlantica. Agora, o Almirante chegava triunfante com provas que pareceriam irrefutaveis! ‘Aaventura maritima portuguesa comegara m tos anos antes. No Trezentos, a Europa continuava sendo revolucionada pela acao das forcas que deslo- caram 0 eixo do desenvolvimento econdmico-social da bacia do Mediterraneo para o noroeste do conti- nente. Por esta época, a Europa Ocidental vivia mo- mento de grande prosperidade, sobretudo ao “longo de uma faixa que se estendia através do continente, desde o Sudeste inglés até o Norte da Italia”. Cresci- am as populacGes, aumentavam as terras cultivadas, desenvolvia-se 0 comércio de longa distancia (HOLMES, 1984: 9.) No Mediterraneo, imperavam soberanas as ci- dades mercantis italianas. No outro extrema desta faixa de prosperidade, a 1a inglesa e os teares de Flandres (Bruges, Bruxelas, Gante, Ypres) e da Franca (Douai e Arras) fortaleciam um novo e dinimico pélo produtivo. Ento, um rico intercambio comercial, maritimoe terrestre uniu a Europa do Noroeste a baci do Mediterraneo. Apesar destas transformages ra- dicais, o Mundo Antigo continuava pesando sobre 0 31 que nascia. As principais rotas do comércio curopeu de longa distancia eram controladas pelo consércio italo-mugulmano. Ele tributava pesadamente as vali- ‘sas mercadorias chegadas da Africa ¢ do Oriente, Nos entrepostos mugulmanos do Mediterra- neo, mercadores de Venez, Genova, Florenca e Pisa importavam ouro, marfim, escravos - provenientes da Africa Negra -, especiarias, corantes, tecidos Vinhos finos, etc. - chegados dos mercados orien- tais, Estes produtos eram pagos com minérios, | couros, vinhos, azeites, frutas, pratas ¢ outros g@- neros europeus. Como o transporte maritimo era sig nificativamente mais barato do que 0 terrestre, pe~ sadas e lentas galeras mediterranicas ultrapassavam © estreito de Gibraltar ¢ ingressavam no Atlantico. Navegando rente 3s costas, chegavam aos merca- dos da Europa do Noroeste. Devido a localizagio geogréfica, os principais portos lusitanos eram es- calas quase obrigatdrias desta nova ¢ importante rota maritima. Em fins do século 13, os contatos mariti- mos entre o Mediterraneo ¢ Atlantico Norte fortaleceram-se ainda mais devido a pertubacdes politicas ¢ militares na Champgane ¢ em parte da Flandres. (DIAS, 1967: 132; TINHORAO, 1988: 20; PERES, 1982: 11; CORTESAO, 1975/1: 197.) A dinastia lusitana de Avis (1385-1580) foi guin- dada ao poder quando do amplo movimento anticaste- Ihano de 1383-85. A entronizacio de dom Joio I (1385-1433) e a vit6ria sobre 0 poderoso vizinho con- solidaram a unidade nacional lusitana ¢ aproximaram da Coroa as ricas burguesias maritima e comercial do litoral do pais. Dom Joao contara com o apoio quase unanime do ‘terceiro estado’ e boa parte da alta no- breza optara pelo partido castelhano. Em pleno século 15, a Franga ¢ a Inglaterra encontravam-se ainda en- volvidas na Guerra dos Cem Anos. Por sua vez, Castela © Aragio ocupavam-se na luta pela reconquista do sul da peninsula aos mugulmanos. O Algarve portugués fora recuperado aos ‘inimigos da fé" nos primeiros anos do reinado de Afonso Ill (1248-79), No Quatrocentos, unificado nacionalmente, Portugal conheceria um lon. g0 periodo de paz, enquanto as outras nagdes atlan 32 idas em interminav cas viviam envol ternas externa iS guerras, in- SOLUGAO MARITIMA A nova casa real portuguesa colocara-se a frente de um pais nacionalmente coeso, mas comprimido entre o mare a voraz Espanha. A nobreza que apoiara anova dinastia vivia de seus proventos feudais ¢ en- contrava dificuldade em aumentar a exagio que exer- cia sobre 0 homem do campo. Com cerca de um mi- Thao de habitantes, Portugal era montanhoso, sobretudo em suas regides setentrionais, ¢ relativamente pobre em riquezas minerdtias e em terras agricultaveis, prin- cipalmente em suas regiées meridionais. (MATTOSO, 1988: 31 et seq; GODINHO, 1984: 45.) Aaameaga castelhana recomendava um minimo de consenso social entre os grandes e a gente mitida De 1369 a 1385, 0 reino fora invadido cinco vezes por Castela. (MARQUES, 1987: 32.) Portugal encontrava-se debrugado sobre 0 oceano Atlantico e © continente africano, A expansio maritima foi o desenlace natural dos problemas nacionais portugue- ses. Com 0 comércio ¢ a pirataria, enriqueciam-se a corte, os nobres, a burguesia maritima, sem que ver- gassem ainda mais as costas do trabalhador rural. Parte do excedente populacional podia ser reorientada para as atividades marinheiras, aliviando as fortes press6es sociais que transpassavam o feudalismo portugués. (DIAS, 1967: 1 - 33; ARNOLD, 1983: 34; GODINHO, 1969: 18.) Apesar de suas rafzes sobretudo agririas, Por- tugal possufa uma importante tradico maritima e eis marinheiros treinados na pesca da baleia, do atum, da sardinha, do bacalhau e na navegacio de alto-mar. (ARNOLD, 1983: 35.) A ciéncia maritima muculmana, normanda e genovesa muito contribuira para o aprendizado lusitano das coisas do mar. Lis- boa se transformara, durante o dominio islamita, em um importante centro do comércio europeu ¢ africa- no. (CORTESAO, 1975/1: 212, 248; SERRAO, 1987: avam-se marujos chega- dos de diversos portos da Europa maritima - genoveses, alemies, ingleses, cataldes, flamengos, marselheses .. primeiro grande passo lusitano em direcio da Africa, em 1415, almejava sobretudo a conquista de Ceuta. A rica cidade comercial da costa marro- quina encontrava-se si ante de Gibraltar, a menos de cingiienta quilémetros de Tanger. Ceut constitufa-se uma presa supimpa. Construida em um estratégico promontério e rodeada de jardins ¢ plan- lagées, era conhecida pela sua magnificéncia, for- mosura € cosmopolitismo. Negociantes venezianos, genoveses, aragoneses, pisanos, flamengos, catalfios, florentinos, marselheses, etc., mantinham bazares permanentes na cidade onde trocavam produtos eu- Topeus por mercadorias asidticas ¢ africanas. (GODINHO, 1984: 141.) Comerciantes arabes ¢ arabizados atravessavam em caravanas de milhares de dromedarios o Sara ¢ traziam para a cidade, desde os mercados sudaneses € guineenses, ouro em pé, escravos, malagueta, mar- fim e outros produtos exsticos. (SANCEAU, s.d.: 9-1 GODINHO, 1984: 86; 141.) De Ceuta, partiam corsé- rios muculmanos para taxarem ¢ assaltarem as naves que cruzavam o estreito, dificultando e encarecendo 0 comércio europeu com o Oriente. Ceuta apoiava ¢ defendia o reino de Granada contra as pressdes da Reconquista. Em meados do Quatrocentos, Eanes de Zurara, cronista da primeira conquista portuguesa da Africa, escreveria ser a cidadela “a chave de todo 0 mar Mediterraneo”. (ZURARA, 1973: 27) PODEROSA FROTA, Conquistando Ceuta, a Coroa, os nobres e os comerciantes lusitanos pretendiam saquear as suas riquezas e obter escravos para a exploracdo de aci- car do despovoado sul de Portugal. De Ceuta, con- trolariam o rendoso comércio do ouro sudanés. Com cle, esperava-se abocanhar a parte de leo dos lucros das trocas do Oriente com a Europa do Noroeste. Ceuta facilitaria igualmente o controle lusitano do estreito de Gibraltar e das reservas triticolas do Nor- te da Africa. O controle da cidadela assentaria um poderoso golpe no poderio muculmano e avangaria 1, em relacio a Castela, no que se refere extrapeninsular. (GODINHO, 1969: 41; CORTESAO, 1975/2: 400; 443.) Para a aventura africana, a Coroa organizou, no) maior segredo, uma expedicao de extraordinério po- derio - em torno de 240 navios e 50 mil homens. A vit6ria foi total ¢ a cidade foi rapidamente conquista- da. (TINHORAO, 1988: 31; ZURARA, 1942.) Entre- tanto, a operagao revelou-se uma verdadeira vit6ria de Pirro, para Portugal. O poderio naval e comercial mu- gulmano foi debilitado, mas Ceuta transformou-se em centro de incessantes ¢ custosas operacées mili Os comerciantes muculmanos simplesmente diri suas caravanas para outros terminais mercantis mediterrinicos da Africa do Norte. Apesar do fracas- 50, as aventuras militares portuguesas na costa da Afri ca continuariam ainda por mais de um século. Entre- tanto, as décadas seguintes veriam nascer uma outra forma de pensar e enfrentar o problema do ouro afri- cano. Os cosmégrafos ¢ cartégrafos a servico de Por- informagées detalhadas sobre os cen- do Sudio Ocidental e Central, habitu- almente visitados por mercadores e sdbios judeus e mugulmanos. No atlas do cart6grafo judeu maiorquino Abraio Cresques (? - 1387), de 1375-77, conhecido sob o nome de mapa-miindi catalo, encontram-se de- talhadas informacées sobre 0 comércio do Oriente € sobre as rotas do trafico africano do ouro. Um dos mais brilhantes cartégrafos que serviram ao Principe Nave- gador, Jehuda Cresques, seria filho do autor desta stimula geografica. (SANTOS, 1988: 13; CORTESAO, 1975/2: 335; KUPCIK, 1989: 68.) Diante da impossibilidade de atrair para Ceuta © comércio do ouro, os portugueses compreenderam Portu, 33 que, para controli-lo, deviam desbravar o atlantico africano e estabelecer contato direto com os centros Produtores. Desviando as caravanas ¢ 0 comércio para © litoral atlintico, interromperiam as rotas terrestres transaarianas. Golpeariam ‘pelas costas” 0 monop6- lio mugulmano das trocas com a Africa Negra. Neste sentido, peremptério 0 historiador portugués ‘Vitorino Magalhaes Godinho: “[...] [0 ouro do Sudao} seri o alvo das viagens de descobrimento quatrocen- tistas. A luta das caravelas contra as céfilas de came- Tos € que constituiré um dos fios condutores desta historia”. (GODINHO, 1984: 67, 143.) Desde 1416, dom Henrique (1394-1460), filho de Dom Joo I, encontrava-se a frente dos negécios da Africa. Em 1419, quatro anos apds a conquista de Ceuta, o principe foi nomeado governador perpétuo do Algarve, para onde transferiu sua residéncia per- manente. Em Sagres, o principe navegador fundaria © mais importante centro de estudos néuticos, cartogrificos e geogrificos da época - a incorreta- mente chamada ‘escola’ do castelo de Sagres. Tal seria a profusio de estrangeiros na sua corte que Zurara diria ter dom Henrique reunido, junto a si, “desvairadas nagoes de gente tio afastada de nosso uso”. (ZURARA, 1973: 22.) Por outro lado, os regi- mes dos ventos € das correntes maritimas facilita- vam as aventuras langadas de Portugal em ditecio do Atliintico Sul ¢ Central. (ARNOLD, 1983: 25, 35; DIAS, 1967: 33 - 49; SANTOS, 1988: 24; CORTE- SAO, 1975/1: 193.) PRIMEIRAS CARAVELAS As primeiras expedigoes lusitanas que busca- ram sistematicamente 0 Atlantico africano foram fei- tas em barcas. A barca era uma embarcagio peque- na, pesada, de bordas baixas e de pouco calado, de origem muculmana. As bareas possuiam um ou dois mastros de velas quadrangulares com as pontas in- feriores presas aos dois bordos. A partir do fim da terceira década do Quatrocentos, a grande arma da expansio maritima portuguesa foi a caravela, em- barcacio igualmente tributdria da arte nautica mu- gulmana (CORTESAO, 1975/1: 244.). A caravela cra uma embarcagio alongada, leve (cerca 50 toneladas), pequena (cerca 20 por 8 metros) € rapida. Possuia bordos altos, dois ou trés mastros, velas redondas ¢ triangulares ¢ podia navegar contra ovento. Adaptada 4 navegacio costeira e de mar gros- 80, devido ao seu reduzido calado, aproximava-se das costas ¢ penetrava nos grandes rios, foz a dentro, sem dificuldades. A caravela portava uma tripulacao de uns vinte homens ¢ mostrou-se a embarcagio ideal para a grande exploragio ocednica. Foi com ela que Crist6v0 Colombo arriscou-se no mar oceano. Durante 0 século 15, além de aperfeigoar a caravela - conhecida desde a Idade Média -, os lus tanos reuniram em Portugal os maiores cartégrafos cosmégrafos da época. Importantes sabios estrangei- Tos, como 0s judeus Jehuda Cresques e Abraao Zacut, ajudaram a resolver os grandes problemas prati- co-tedricos colocados pela navegagio através de mares ¢ debaixo de céus até entio desconhecidos. (UPINER, 1987: 7 et passim.) Em 1419, os lusitanos redescobriram a ilha da Madeira, assinalada vagamente nos mapas do Tre- zentos. A partir de 1421, no minimo uma embarea- ao foi enviada, cada ano, para as costas da Africa atlantica. Em fins dos anos 20, chegou-se ao distante arquipélago dos Acores. Em 1433, comecaram “as viagens de descoberta e exploracao” sistemiticas ao Jongo do litoral africano. Finalmente, em 1434, 0 cabo Bojador, limite das navegacGes da “cristandade”, se- ria ultrapassado. (ARNOLD, 1983: 49; GODINHO: 1969: 43; CORTESAO, 1975/2: 368; 411.) Capitulo 5 = Uma descoberta de pouca importancia Para alguns autores, as dificuldades de vencer as aguas nio tio perigosas do Bojador deviam-se a motivos psicoldgicos. Além do cabo, esperariam os navegantes terras, mares € climas assustadores, pois jamais conhecidos pelos cristios. (BOORSTIN, 1988: 161.) As razGes seriam outras. Por estes anos, dom Henrique nao perseguiria certamente a abertura de uma rota maritima para as {ndias. Na época, nao exis- tindo condic6es objetivas minimas para tal, a inicia- tiva nao se colocava como projeto concreto. Escrevendo sua Crénica do descobrimento e conquista da Guiné, Eanes de Zurara apresentou as raz6es que teriam levado o Infante a exploraro Atlan- tico africano: saber o que existia além do Bojador; conhecer o real poder dos mugulmanos nestas regides: descobrir aliados cristos contra os inimigos da fé; cristianizar os povos pagios ¢ procurar povos ou por- tos de onde fosse possivel “para este reino trazer muitas mercadorias”. (ZURARA, 1937: CAP. III.) Almejava-se apenas realizar boas presas e bons negécios nas costas da Africa e, se possivel, encon- trar povos em contato com os centros auriferos, a fim de desviar 0 comércio do metal para as costas atlinticas. Durante muito tempo, outros nao foram 0s objetivos portugueses. “O grande problema, cuja solugio o Infante dom Henrique e dom Joao II queri- am resolver, consistia em fixar, na costa ¢ em seu. proveito, 0 ouro que de varios pontos do interior con- vergia sobre Timbuctu [...].” (CORTESAO/I, 1975: 43.) As embarcacoes enviadas para a Africa pelo Prin- cipe Navegador ocupavam-se sobretudo em ativida- des comerciais e de pirataria. As descobertas eram atos importantes - mas complementares - sistemati- camente apoiados por dom Henrique. Zurara relata- ria que os capitaes que voltavam da Africa, sem ul- trapassar o Bojador, “nao se tornaram sem honra”. Para desculparem-se diante do principe, por nao terem cumprido “perfeitamente o mandado”, “uns iam sobre a costa de Granada, outros corriam por o mar de Levante, até que filhavam (capturavam) grossas pre- sas de infiéis, com que se tornavam honradamente para © reino”. Vencido 0 cabo Bojador, passou-se a nave- gar ao longo de um litoral inéspito e desconhecido dos pilotos cristaos € muculmanos. Nos anos seguin- tes, os portugueses chegaram ao maldenominado “tio do Ouro”, onde escambaram, em 1442, pela primeira vez, “ainda que fosse pouco”, algum ouro em pé. Em 1443, 0 navegador portugués Nuno Tristao penetrou no golfo de Arguim e capturou trinta africanos. Neste ano, a Coroa concedeu a dom Henrique 0 monopélio das navegagGes além do Bojador e importantes direi- tos sobre os seus frutos. Em 1444, os portugueses ul- 35 trapassaram esta zona extrema do Sahel ¢ ingressa- Tam na Africa Negra. (ALMEIDA, 1978: 14-33; DIAS, 1967: ; ZURARA, 1973: CAP. VIII, XVI; GODINHO, 1984: 145.) : Em 1460, com a morte de dom Henrique, abrandaram-se as descobertas. Os portugueses ja ha. viam explorado em torno de quatro mil quilémetros de costa africana. Ja nestes anos, ouro, cativos, dro- gas, etc., eram escambados, no litoral, com ca nas, desviadas do interior, e chegavam, em boa quan- tidade, a Portugal. Na feitoria da ilha de Arguim, préxima ao cabo Branco, construida possivelmente em 1455, os portugueses trocavam, com os comerci- antes némades mouros, cavals, trigo, tecidos e por muitos cativos, peles, algum ouro ¢ outros produtos. No rio Senegal, j4 na Africa Negra, resgatavam-se igualmente homens ¢ algum ouro. Mais ao sul, os portugueses subiam o rio Gambia, entravam em con- tato direto com o império negro-africano do Mali, e obtinham boa quantidade de ouro, escravos e outros produtos. Na Serra Leoa, escambava-se uma quanti- dade indeterminada de po de ouro de quase 23 quila- tes. (GODINHO, 1984: 147; 151; 161.) De 1469 a 1474, a Coroa arrendou 0 monopélio de parte do trifico africano ao comerciante lisboeta Ferno Gomes. Além do pagamento de uma indeniza- io, ele obrigava-se a explorar, a sua custa ¢ anua mente, cem léguas de litoral. Em 1471, os lusitanos chegaram as praias da atual Ghana, onde comecaram a escambar quantidades nao despreziveis de ouro em. pO. Nesta regiao, se localizaria a seguir o Castelo de ‘So Jorge da Mina. O mineral precioso, possivelmen- te apenas suplantado em importincia pelo comércio de homens, comecava a ter significagao consideravel ‘nos negécios africans. Ao entrarem no golfo da Guiné, os lusitanos depararam-se com comunidades africa- nas que conheciam uma importante cultura maritima, ‘© que facilitou enormemente a progressio portugue- sa. O historiador Jaime Cortesao lembra que, devido a importancia destes conhecimentos maritimos, neste ‘caso, nao se poderia falar de “descobrimento” lusita- no. (CORTESAO, 1975/1: 42, 3.) .: 36 CAMINHO PARA AS iNDIAS Por estes anos, navios de outras nacionalidades - sobretudo casiclhanos, devido A guerra entre os dois reinos - aventuravam-s s africanos e questi- onavam o exclusivis 's. O monopélio lusi- tano destes mares fora sancionado, nos anos anterio- res, por diversas bulas papais. Em 1480, o rei Afonso V ordenou que as tripulagées de navios estrangeiros aprisionados navegando naquelas paragens fossem implesmente jogadas ao mar. Em fins do reinado de dom Afonso, a citcunavegagio da Africa - caso hou- yesse uma passagem entre os oceanos Atlintico e Indico - a conseqiiente abertura de um caminho ma- ritimo para as Indias tornaram-se uma aventura, ao ‘menos do ponto de vista nautico, exeqiifvel. (BOXER, 1977: 37-54; ALMEIDA, 1978: 34-57.) A Coroa portuguesa, enriquecida pelo com cio afticano, comecava a considerar, com seriedade, anecessidade de enfrentar tal iniciativa. Neste senti- do, como vimos, consultaria, por carta, o cosmégrafo Paolo dal Pozzo Toscanelli, sobre a possibidade de alcangar as indias viajando-se, pelo Atlantico, para 0 Ocidente. Em junho de 1474, o florentino afirmaria, também por carta ¢ crroneamente, ser 0 “percurso” atlintico “muito mais breve” que a circunavegacio da Africa e desenharia o mapa fantistico do qual, mais tarde, teria cedido uma cdpia para Colombo. Esta consulta nasceu talvez do desencanto dos portu- gueses ao descobrirem, navegando fortemente para © Oriente, o golfo da Guiné, e nio o fim da Africa e uma passagem para os mercados orientais. (COMO, 1991: 38 - 4; KUPCIK, 1989: 34.) Em agosto de 1481, dom Joao II subiu ao trono devido a morte de seu pai. O principe jé se encontra- va, havia diversos anos, na frente dos negécios aft ‘anos. Um dos seus primeiros atos foi ordenara cons- truco, nas costas da atual Ghana, da primeira grande fortaleza no coragio da Africa Negra - 0 Castelo de Sao Jorge da Mina. O castelo destinava-se a organi- Zar 0 escambo do ouro que ali se efetuara ¢ a defen- der o golfo da Guiné da penetraco de outras nagoes européias. (CORTESAO, 1990/3: 570.) stima-se que, na Mina, os portugueses tenham obtido, nos primeirds tempos, anualmente, em torno de quatrocentos quilos de ouro. A partir dos anos 1520, este comércio comecou a decair ¢ a fortifice ao terminou transformando-se num importante cen- tro de comércio de cativos. (GODINHO, 1984.) Em 1483, como vimos, o navegador Diogo Cao chegou & foz do rio Congo e, em 1486, devido & import crescente do trafico de afticanos, a Coroa fundou a Casa dos Escravos, encarregada do controle daquele comércio com a Africa. Na segunda metade do sécu- lo 15, os portugueses teriam reduzido ao cativeiro em torno de 150 mil africanos. (SARAIVA, 1987: 140-1; ALMEIDA, 1978: 58-9; DIAS, 1967: 57-113.) Em 1487, dom Joao II iniciou os preparativos para 0 assalto dos mercados indianos. Para tal, man- dou dois espides - via Mediterrdineo ¢ Egito - até os mereados do oceano Indico. Um deles, Pero de Covilha, chegou a Cananor, Calecute, Goa e Ormuz. Do Cairo, em 1490, antes de partir para a Abissinia, enviou ao rei entusiasticas noticias confirmando as riquezas dos mercados orientais ¢ a existéncia de uma passagem maritima entre os oceanos Atlintico Indico. Em agosto de 1487, o navegador portugués Bartolomeu Dias parte de Lisboa para contornar, fi- nalmente, o ponto extremo da Africa Meridional. Pela primeira vez, os portugueses se encontravam a um passo das Indias. ESTRAGANDO A FESTA. Foi neste contexto histérico que Cristévao Colombo, voltando do Novo Mundo, passou por Lis- boa, em margo de 1493, dizendo ter chegado as cos- tas orientais da Asia. Dom Joao II recebeu 0 Almi- rante , em sinal de grande deferéncia, ordenou-Ihe que permanecesse coberto e sentado em sua real pre- senga. Anos mais tarde, Fernando, o filho menor do navegador genovés, relataria o singular encontro em Histérias da vida e dos fatos de Cristévao Colombo: E, “depois de té-lo ouvido com 0 rosto alegre os de- talhes de sua vit6ria” ajuntou - dom Joao II - que, segundo sua opiniao ¢ de acordo com o que fora acor- dado entre os dois reinos, “aquela conquista perten- cia a cle”, rei de Portugal. Crist6véo Colombo teria- se limitado a responder que nao conhecia tal tratado ¢ assegurado ao senhor lusitano que nao navegara em mares africanos. (SARAIVA, 1987: 143; DIAS, 1967: 113 - 122; COLOMBO, 1990: 155.) ‘A concessio, aos reis Catélicos, em maio de 1493, pelo papa espanhol Alexandre VI, da posse das “{ndias” - ou seja, de todas as “ilhas e terras firmes” a com Iéguas, para 0 Ocidente, dos Acores - aprofundaria ainda mais a angdstia portuguesa. (SILVA, 1919: 54; SUESS, 1992: 246-51.) Temendo que o achamento colombiano ameacasse o futuro da rota africana das especiarias, a Coroa lusitana interrompeu as explora- ¢6es maritimas, preparou uma forte esquadra que im- pedisse 0 acesso dos espanhéis ao Atlantico e acedeu aos pedidos de negociacées da Espanha. As discussdes terminaram garantindo a Portu- gal, com 0 tratado assinado na vila espanhola de Tordesilhas, de 7 de junho de 1494, as terras que se encontrassem a oriente de um meridiano tracado a 370 léguas a ocidente do arquipélago do Cabo Ver- de. Com o diploma - Capitulacao da Particao do Mar Oceano - Portugal garantia-se o Atlantic Meridio- nal e 0 caminho ‘africano” das Indias, visto que a Espanha concordava igualmente em nao enviar “na- vio algum” “a descobrir”, “contratar”, “resgatar” ou “conquistar” nas regides cedidas pelo diploma a Por- tugal. (SILVA, 1919: 60, 10.) A morte de dom Joao Il, em 1495, retardaria um pouco 0 assalto final das Indias. Em 8 de junho de 1497, 0 navegador Vasco da Gama partiu de Lis- boa no comando de uma frota de trés naus e um n: vio de transporte. As naus eram embarcagSes maio- res (cerca 30 metros), mais pesadas (cerca 400 toneladas) e mais resistentes do que as caravelas. Elas possuiam “cascos mais largos e trés ou quatro cober- tas”. (ARNOLD, 1983: 48.) Eram, portanto, capazes de navegar em mar grosso e de transportar pesadas 7

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