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____—_DesconsTrumpo tpentipane: {na Luisa Amaral Ler Novas Cartas Sarena! Porrucuesas a LUZ ba Teoria Queer PN ciara peice eonca mags reset am tanta Beda doco cents eprint ‘eeaios qu, elo pls tem A terre eset innit eta eps Baa minha anc lee by Rieewkefomer Ler, como aqui proponho, Novas Cartas Portuguesas a lus de uma teoria que € geralmente aplicada 4 questio das identidades sexuais € que emerge do trabalho desenvolvido pelos Estudos Gay € Lésbicos podera parecer estranho, até se atentarmos no que é dito num determinado passo do livro de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta ¢ Maria Velho da Costa: "Ho-de de susto dizer-nos até lésbicas, porque sobre este corpo (seis seios da novela também rindo) nao se podem pousar miios a oferecer ou pedir prendas” (Barreno et al., 1974: 56). Aparentemente, nio sera esse o caminho para entender as Novas Cartas: porque, sendo livro uma clara deniincia de situagoes discriminatérias que passam também, e sobretudo, pelo sexo e pela sexualidade, no hé nas suas paginas momentos explicitos que o possam inte- grar numa orientacio homossexual. E, todavia, varias das pro- postas da teoria queer lhe podem ser aplicadas: a explosto de dicotomias, a defesa de uma miriade de identidades nao fixas nem estaveis, antes em constante transformaga0, a prépria ques- tionagio de pontos de referéncia tidos como seguros. E assim ‘que na teoria queer as identidades surgem como “miltiplas, ou pelo menos compostas por um nimero infinito de possibilida- desem que as componentes da identidade ... xe podem combiniar de uma forma arbitraria [e] instavel(..)” (Moita, 2001: 169). “Queer” pode referir-se, diz Eve Sedgwick, “a mistura de possibilidades, hiatos, dissonancias ressonancias, saltos € excessos de sentido, quando os elementos constitutivos da setualidade das pessoas nto sio (ou nao podem ser) levados a produzir significados monoliticos” (Sedgwick, 1993: 8)." Utilizado para exprimir, do ponto de vista cultural, identificagbes sexuais marginais, 0 termo queer tem ainda sido tomado como onto de partida para designar um modelo teérico nascente que se desenvolveu a partir dos Estudos Gay e Lésbicos (Turner, 2000). Embora se atribua a Judith Butler e a Eve Sedgwick (res- pectivamente com Gender Trouble e Epistemology of the Closet, ambos publicados em 1990) 0 papel de fundadoras da teoria queer, seria Teresa de Lauretis quem, em 1991, primeiro usaria o termo, partindo da reflexao sobre a dificuldade de as mulheres falarem e se representarem dentro de uma linguagem e de um aparelho conceptual eriado pelos homens. Dai que seja impossi- vel falar em teoria queer sem falar em teoria feminista —ou teo- rias feministas. Digo teorias feministas. porque, a semelhanca do que se passa com a necessidade de, em vez de feminismo, antes se falar em feminismos (sobretudo se entendermos como urgente “a des-essencializagio desse recente sujeito colectivo a que chamamos ‘as mulheres" (Ramalho, 2000: 526), também nas teorias feministas encontramos mais do que uma posicto. Lembro a proposta da utilizagio do termo “gender”, por Ann. Oakley. com o seu Ser, Gender and Society, de 1972, proposta vali- dada, em 1985, por Joan Seott em "Genders a Useful Category of Historical Analysis” ~e lembro ainda a questionagio recente da utilidade tebrica deste binémio e a cada vez maior aceitagao de permutabilidade entre os termos “sex” e “gender”. Nao sendo este aqui o ponto crucial, esta reflexdio pareee-me justificar-se, visto remeter para uma problemitica que faz parte do contexto em que of estudos queer se desenvolver. Se uma perspectiva feminista interroga a "naturalidade” de uma diferenga sexual articulada com as desigualdades entre os sexos. oferecendo, entio, como alternativa a essa pretensa naturalidade a nogio de diferenga sexual construida socialmen- te, também a teoria queer tem a virtude de colocar interrogagdes sobre identidades e papéis (ineluindo os sexuais), ja que indica justamente a dificuldade ou impossibilidade de os seres huma- nos caberem em ealeyo: 20 trabalho proposto pelos Estudos Gay ¢ Lésbicos exprime somente uma das suas varias possibilidades de utilizagao. Se ha criticos, como Lauretis, que entendem queer como outro hori- zonte discursivo, ou outra forma de pensar o sexual (Lauretis, 1991: 5x), outros existem, como Judith Butler, que léem queer como zctivando uma politica de identidade que resiste aos pré- prios processos de nomeagao.* Assim, no seu sentido mais restrito, queer pouco mais faz ws eslanques. A colagem da teuria queer do que rever os sinénimos de “gay ¢ lésbica”, a0 oferecer-se como uma nova solidificagao (mesmo que através da rarefaccao) de identidades; mas queer, num sentido mais amplo, porque fun- ciona, como diz Annamarie Jagose, “menos [como] uma identi- dade do que [como] uma critica a identidade” (Jagose, 1996-1) visto ser “uma categoria em formagao constante™ (Idem, 131). permite um potencial conceptual tinico para definir um lugar, necessariamente instavel, mas simultaneamente de comprome- timento e contestagdo. Nao se trata sequer de trazer para o cen- ‘tro o marginal, como propoe grande parte da critica feminista: trata-se de desestabilizar centros —e tamhém o que é, ja por si, sindnimo de desvio a esses centros: as margens. Por isso a teoria queer, nesse seu mais lato sentido, propde 0 descentramento das identidades, antes defendendo a fluider (nao s6, sublinho, sexual) ¢ 0 conhecimento como forga social. Sublinhe-se ainda o cespago oferecido pela teoria queer a “andlise das praticas institu- cionais ¢ dos discursos que produzem conhecimentos sexuais (..) atendendo particularmente a forma como estes conheci- ‘mentos ¢ praticas sociais reprimem as diferencas” (Moita, 2001: 170). Sao estas nogdes que serao por mim aqui aplicadas a leitu~ +a (ou releitura) desse livro que. escrito embora no inicio dos anos setenta, detém, na formulagao de Maria Alzira Seixo, uma “ sensibilizacao aguda e precursora” (Seixo, 1988). Levadas a julgamento em 1973, devido aos trechos "imo- rais © pornogrificos” contidos em Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa produziram um livro que traz a critica as formas sociais do patriarcado, além do questionamento de varios aspectos da vida nacional (a cundigao da mulher, a guerra colonial, a emigracao, entre outros), conscientemente utilizando como instrumento de luta uma linguagem que se ancora numa tradigio literéria, escamoteada ou invisivel, num passado literdrio recente ~ 0 das proprias autoras — para depois os desmontar, como € paten- tenacélebre epigrafe: “ou de como Maina Mendes pos ambas as ios sobre o corpo e deu um pontapé no eu dos outros legitimos superiores”. Partindo das cinco eartas de Soror Mariana do Alcoforado 0 Cavaleiro de Chamilly, 880 construidas, no livro das trés Marias, nove cartas ~ entremeadas de poemas, de pequenos ensaios, de textos impossiveis de catalogar, assim se subverten- do © protocolo que normalmente preside a correspondéncia epistolar. Escrevendo umas para as outras, dividindo, pelas trés, em trés, 0 niimero de cartas que cada uma presumivelmente escreverd, as trés Marias escrevem também para um leitor que fazem derivar, tanto quanto elas préprias derivam, ja que nio hi nas cartas qualquer assinatura autoral que as valide. Nao sera descabido © comentirio de Hillis Miller, que, a propdsito de Kafka, diz que 0 “facto de escrever um poema, uma histéria, on lum romance, no é senio uma extensio do terrivel poder de deslocagio implicado no gesto mais simples, que consiste em eserever uma carta a um amigo” (Miller, 1988: 179); nem a réplica a esse comentario, de Silvina Rodrigues Lopes: “este principio de eserita poe em deriva o autor € 0 leitor” (Lopes, 1990: 179). ois que toda a literatura € uma carta a um interlocutor invisivel”,1é-se no inicio de Novas Cartas Portuguesas. "presen- te, possivel ou futura paixdo que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E jé foi dito que nao interessa tanto 0 objecto, ape- nas pretexto, mas antes a paixdo; € eu acrescento que nao inte~ essa tanto a paixio, apenas pretexto, mas antes 0 seu exercici (Barreno et al., 1974: 9). Convoco aqui, pela primeira ver (tor- narei afazé-lo mais tarde), Emily Dickinson ~ cujas estratégias de eserita bem podiam ser também analisadas a luz da teoria queer ~ © as suas cartas. Referindo-se as cartas de Dickinson, uma outra poeta norte-americana, Susan Howe, escreve: “Os poemas chamar-se-io eartas € as cartas chamar-se-30 poe mas”, porque “algumas veres as cartas so poemas com uma saudagio € uma assinatura” ¢ “outras vezes 0s poemas sao cartas com uma saudagio € uma assinatura” (Howe, 1991: 142). E Howe pergunta a seguir: "Se os limites desaparecem, onde encontrar pontos de orientagio?” (Idem, 145). E também de resisténcia a catalogacio que sio feitas Novas Cartas Portuguesas, que assim desmantelam as fronteiras entre os géneros poético e epistolar, empurzando os seus limites até pontos de fusao. Ora esse desmantelamento dos géneros poético e episto~ lar € acompanhado pelo desafio as categorias estanques de auto- ria ¢ autoridade ~ nao ha nas Novas Cartas, como disse acima, ‘uma assinatura, mas trés, que extrapolam as das prOprias auto- ras, as trés Marias, encarnadas, através da pele de personagens que nem ficeionais chegam propriamente a ser, em Mariana, Maria, Monica, Maria Ana, duas delas derivadas do nome (entio) mais portugues de identidade da mulher. “[CJontinua- ‘gio sem nome (...) exerefeio a tres” (Barreno et al., 19742 34): sem assinatura, processo que dispde 0 nome como forca legitimadora do social e a sua verbalizagao como expansio reve ladora, o texto torna-se 0 mais possivel exercicio radical de liberdade: “Penso em vos ambas”, diz uma das vores, “e vos dis tingo e nao distingo do todo que formamos” (Idem, 239). Estas vores podem dizer, com uma Soror Mariana transportada para o século XX, da existéncia em simultaneo dos opostos: “que seria de mim sem tanto édio e tanto amor (...)?" (Idem, 30). Ou podem interrogar “E 0 erotismo, senhores, ¢ 0 erotismo? Em quase todos os livros chamados eréticos (...) ilm'y-a pas de fem- ron ‘mes libres, ily a des femmes lisrées auzshommes. K.essa.alibertagdo que os homens nos oferecem, de repouso de guerreiro passamos a despojo de guerra” (Idem, 264). Ha conceitos fulerais que a teoria queer inevitavelmente desafia e desmantela: o heterossexismo, a ordem patriarcal, e, sobretudo, os dualismos sobre os quais a cultura se constroi Nessa medida, a teoria queer partilha denominadores comuns com o feminismo mais radical em que se inscreveu, por exem- plo, 0 trabalho pioneiro de Adrienne Rich “Compulsory Heterosexuality”, originalmente publicado em 1980. Nesse ensaio de Rich, um dos binarismos contestado é o biolégico — a suposta orientagao inata sexual dos homens para as mulheres face & suposta dupla orientacao inata das mulheres pelos homens ¢ pelos filhos. Julgo que as Novas Cartas Portuguesas vo ainda mais longe, ao fazerem explodir as dicotomias em que assentam identidades ¢ papéis sexuais e, com elas, a propria rigider. atribuida a periodizagao historic. Soror Mariana do Aleoforado é trazida para os anos setenta, uma Mariana que despe o hibito e ensaia pontos de prazer “quebra[ndo] a clausu- ra" Barreno et al., 1974: 48). No exercicio, levado até ao limite, de fantasia, o segmento de Novas Cartas intitulado "A Paz” (Idem, 48-30) ensaia um acto sexual onde os papéis tradicionais sao revertidos ("o movimento ritmado das coxas” da mulher "a possui-lo como macho") ~ porque de facto é a mulher sozinha quem possui e € possuida por si: 0 corpo, centro de identidades miltiplas, "pronto a reacender-se, caso queira, com 0 corpo, Mariana se comprazer ainda” (Idem, 50). Centro de identidades miltiplas, o objectivo deste corpo é tornar visivel —e legivel ~0 outro lado da clausura. Retomo Eve Sedgwick ¢ a essa ideia de desafio aos signifi- cados monoliticos, presente na sua definigio de queer. No texto A Paz”, de Novas Cartas Portuguesas, esses excessos de sentido, ligados a0 corpo € a sexualidade, esses hiatos ou aberturas de possibilidades encontram-se no proprio gesto de ultrapassar nao 06 a barreira, culturalmente construida, dis diferencas sexuais, mas ainda a do proprio erotismo e do desejo: nao sio unicamente 08 papéis tradicionais sexuais que aqui surgem_ revertidos por Mariana: ¢ Mariana quem condensa em si, em fantasia, o desempenho, a representacio. dos dois papéis, assim fazendo explodir a nogio mesma de corpo sexual individual. Do ponto de vista literdrio, é como se se aspirasse a "uma estética e ‘uma pottiea onde a diferenga sexual deixlasse] de ser relevante, como queria Virginia Woolf” (Santos/Amaral, 1997: 10 ), quer em A Room of One's Own, de 1929. quer em Orlando, de 1928, € na proposta de androginia—lugar (ou nao lugar) onde é possivel ensaiarsimultaneamente maltiplas identidades. “Aidentidade esté longe de ser uma entidade fixa”. escre- ve Maria Irene Ramalho, num ensaio que tem por titulo "A Sogra de Rute ou Intersexualidades”; a identidade seri antes “uma rede fluida de relagdes que se oferece como um especticu- Jo em que da mesma forma participam os espectadores. Como qualquer identidade, também a identidade sexual ¢ plural, rela- cional ehistoricamente situada, sujeita as oscilagdes da ciéncia, da arte, ¢ até da moda, ¢ tanto mais se oferece protagonista do espectaculo da moderna sociedade global quanto mais premen- te se poe a questo do poder, quanto mais necesséria se torna aluta contra desigualdade e a opressio” (Ramalho, 2000: 528). Sao também as identidades sexuais, tais como as constréem os leitores, num pacto de escrita nunca inocente mas contaminado por horizontes de expectativa definidos, que aqui surgem des~ construidas. Em Novas Cartas Portuguesas, todas as instancias descritivas de um corpo, num pequeno texto que se intitula jus~ tamente "O Corpo" (Barreno et al. 1974: 225-6). enviam para 0 feminino, com énfase particular num universo semantico de suavidade. A convidar o leitor para al universo esto sujeito que contempla eece corpo. quace voyeuristicamente: ceu olhar comega por aflorar a “pele doirada”, os “mamilos quase rosa dos, as costas movendo-se (...) com a mesma unida e certa ondulagio da agua mansa (...) alta e suave", 0 "osso da anea deli- cado”, a “densa dogura dos pélos mornos” (Idem, 225); esse olhar passa depois as nadegas, a “perna abandonada”, para finalmente se deter entre as coxas. Irremediavelmente preso a esse jogo de seducio, pouco mais resta ao olhar do leitor que antecipar uma imagem feminina. E é entio que se frustram expectativas, porque, "como savana célida”, surge um sexo — snasculino: “os dois pequenos pomos cuja fineza se desenha na pele branda ¢ a corola recolhida” de um “pénis adormecido (dem, 226). ‘Num ensaio sobre a Olympia, de Manet e a Venus de Urbino, de Ticiano, Charles Bernheimer escreve: "O nu (...) um bem de troca erético, a nudes vale nao pela sua individualidade marcada e pela sua expresso subjectiva, mas pela sua capacidade de alimen- tar fantasias masculinas que apagam a subjectividade do desejo da mulher” (Bernheimer, 1989: 13). 0 que encontramos nesse texto de Novas Cartas Portuguesas ¢ a subversao do tradicional processo de seducdo que se estabelece entre o espectador ¢ o corpo con- templado —geralmente o da mulher. E é significativo que seja no estado de adormecido, sujeito, pois (tal como a mulher tradicio- nal e culturalmente havia sido), condigao mais completa de vul- nerabilidade, que este corpo se disponibiliza e oferece como objecto de olhar—e, podemos conjecturar, de musa. Do outro lado, 0 corpo da mulher pragmatiza-se numa outra forma de vulnerabilidade, a mais cruel: as mulheres “entram nos hospitais com os titeros furados, rotos, escanga~ Ihados por tentativas de abortos easeiros, com agulhas de tricot, paus, talos de couve, tudo 0 que de penetrante e contundente estivesse & mo"; aos seus corpos “sio feitas raspagens (.. frio, sem anestesia, e com gosto sidico, ‘para elas aprenderem’ (Barreno et al., 1974: 264). Cito novamente Maria Irene Ramalho: "[I]nserevendo-se iniludivelmente no corpo, 0 sexo 6, porventura, 0 que podemos conceher de mais intimo ¢ priva~ do ou de mais pessoal e particular. O corpo sexual é, com efeito, © que de mais local, ou seja, o que de menos global podemos coneeber” (Ramalho, 2000: 526) . Nem senhora nem dona do seu corpo € a mulher que surge nesse (exto das Novas Cartas, porqueno seu corpo se inscreve a angistia do seu “destino bio logico (...): feito drama seu ¢ nao mais « experiéneia dramatica da espécie” (Barreno et al, 1974: 265). E 0 olhar romantico que descrevia 0 corpo adormecido, detendo-se agora neste outro corpo, interroga, denunciando 0 mito romantico: "O que pude- ram Romeu e Julieta?” (Ibidem) ‘Também de desmistificagao do ideal romantico fala uma das cartas de Mariana auma amiga, D. Joana, texto onde sio feitos explodir os discursos institucionalizados (ou invisiveis, mas pre sentes nas priticas sociais) sobre o corpo: "Que infelizes, minha amiga, ambas amarradas por leis tao desumanas que tornam a mulher pertenca sempre de alguém, dominio, terra onde se per- noita e semeia” (Barreno et al., 181); ou fala a “carta de uma mulher", uma prostituta, também “chamada Mariana. nascida em Beja, dirigida a uma mulher de nome Maria, ama de sua filha Ana”, Maria/Ana /Mariana ~ ou a mulher, metamorfoseada e assim repositorio de identidades varias. Essa desmistificagio do ideal romantico chega-nos ainda pela vor de uma Joana, que. num texto chamado “de honra ou de interrogar”, pergunta: “Tera a mulheralguma razdo para acreditar ainda no amor? (..) Para crer ainda na sua libertagao enquanto for aceitando o que se Ihe tem roposto até hoje: companheira, colaboradora... ou seja: sempre ‘© papel subalterno ¢ doméstico no mundo a mistura com a obri- gagdo de parir e lavar as fraldas dos fillos (..)?” (Idem, 319) "Podera a arte ser politica sem deixar de ser intempo- ral?”, interrogava-se Adrienne Rich, para problematizar, a seguir, 0 papel da escritora: "Escrevo”, diz Rich, "sabendo per- feitamente que a maioria dos analfabetos do mundo sio mulhe- res (...) acredito que este facto esta directamente relacionado com as fragmentagdes que sofro em mim propria, que estamos juntos nisto tudo” (Rich, 1986: 186-7). A busca continua © essa aguda consciéncia do papel de quem fala de um lugar, apesar de tudo, privilegiado, se comparado com o das outras mulheres, ‘encontramo-las também em Novas Cartas Portuguesas, cruzadas com a desmistificagao do ideal romantico: escritas no auge da wor, guerra colonial, as Novas Cartas sto também um manifesto anti-guerra, tal como sio uma deniincia da estratificagio social € da dupla marginalizagao ai sofrida pela mulheres —veja-se 0 mondlogo de "uma mulher chamada Maria a sua patroa” (Barreno et al, 1974: 209-11). Convoco novamente Emily Dickinson e um passo de uma célebre carta sua em que se pode ler: "My Business is Circumference” (Carta 268, Dickinson: 1958, II). Gom “cireun- feréneia", pretendia Dickinson definir a movimentagao da escrita como um trabalho (oficio) na margem (ou nas margens), na linha sugestiva da experiéneia-extrema, na linha em que, de forma paradoxal, limite e acesso se entrecruzam sinonimica- mente, Numa linha de geométrica parciménia ¢ excessivos sen- tidos, onde os limites, sendo transportados para a sua fronteira mais longinqua ¢ incomportivel, se transformam em excesso. A ruptura encontra-se precisamente na utilizagdo de uma vor.que fala. partir de angulos diversos, que, como diz Margaret Dickie, “habita varias frequéncias, que nao tem centro, mas antes raui- tas circunferéneias” (Dickie, 1991: 27). A circunferéncia con- densa, simbolicamente, a poética de Dickinson: eriando aquilo a que Jay Leyda chama um “centro omisso” (Leyda, 1960: 123), destréi a linearidade de leitura, substituindo-a por miltiplas ops que centrifugam o movimento de ler. E que o trajecto af contido € infinito de possibilidades: permitindo isolar do mundo exterior, a linha que compde a cireunferéncia é também. aque com esse mundo efectua a tangéneia, tiniea multiplicidade de pontos por onde € possivel o acesso. "As Novas Cartas Portuguesas rompem., extravasam. Dai que se caracterizem pelo excesso” ~ a afirmagio ¢ de Maria de Lurdes Pintasilgo, no primeiro prefiicio a edigio de 1980 de Novas Carias Portuguesas. “O sistema linguistico”, escreve Allen Weiss. “ultrapassa em muito os limites da nossa expressio: a linguagem ¢ 0 espago de excesso do nosso discurso. O nosso dis- ccurso esta sempre ameagado pelas propriedades universalizan- tes da linguagem, o nosso mundo eseapa-nos sempre, os nossos sentidos s40 constantemente subvertidos” (Weiss, 1989: ix). E isto que sc ensaia cm Novas Cartas Portuguesas c que a teoria queer pode ajudar a problematizar: o reconhecimento de que a lingua~ gem € 0 espago de excesso do nosso discurso, sempre ameacado pelo hegeménico, seja ele cultural, universal ou nacional. “Je aime, je t'aime, como ¢ que se pode em portugués dizer tal coisa?” (Barreno et al., 1974: 245) ~ ¢ assim o final da carta ao noivo de uma Mariana, universitéria de Lisboa, e neste passo encont:amos um dos muitos momentos de excesso, enquanto rupture das normas (neste caso linguisticas), enquanto desme- sura, ¢ enquanto estratégia ligada aos conceitos de limite ¢ ‘transgressdo, enquanto momentos nao dicotémicos, mas tan- gentes, tal como 0 entende Foucault (1977: 33). "Nesta teia de autoras © personagens”, escreve Maria de Lurdes Pintasilgo, “(que personagens também sio as autoras que a si mesmas se apresentam: ‘isolla bella (isolda?) e teresa de mao leda e fatima da écida azinheira’ (...)) quebram-se as regras da gramitica, em jeito deirrupeao do sentido para além do sentido (...). Uma nova semantica est4 ai em gestagdo” (Pintasilgo, 1979: 16). Usei a figura da circunferéncia, pedida emprestadaa Emily Dickinson, para ilustrar esse espago de exercicio de excessos em ‘Novas Cartas Portuguesas. Mas talvez.que mais do que essa met fora, que exemplarmente descreve o trabalho na margem, possa~ ‘mos, embora partindo dela, dela extrapolar ¢ assim falar de ‘movimentos espiralados para abordar a obra. Permitindo todas as possibilidades, a circunferéncia nao deixa de remeter para 0 fechamento, 20 passo que a espiral se abre a varios trajectos, a “deceocuran” (Barreno et al.. 1974: 374). Lugarcs (ou no luga~ res) onde € possivel ensaiar excessos. Pense-se, de resto, no excesso do barroco, caracterizado por “uma linguagem que se compra (...) no suplemento, na desmesura, na busca, frustrada por definicao, do objecto parcial” (Sarduy, 1989: 94) ¢ por tracos ‘como a ambiguidade ~ ¢ nao admirari que o ponto de partida para Novas Cartas Portuguesas sejam precisamente as cartas seis centistas de Soror Mariana do Aleoforado. A reescrita, 0 hibridismo, a alteridade sio tragos das ‘Novas Cartas, apontados por Maria Alia Seixo, ao falar da sua dimensao de obra literaria, como uma das raz6es para hoje a8 relermos. Os dois iltimos tragos s3o aspectos que a teoria queer, aplicada a critica literaria, ira privilegiar. E interessante notar- mos, porém, que é justamente a leitura de Novas Cartas Portuguesas como reescrita que mais problemas coloca: "A rees- crita que procede em intertextualidade com as Cartas da Religiosa Portuguesa. (...) (€ algo que] desde 0 inicio nio pacifico” (Seixo, 1998). Dai que o efeito que essa reescrita pro- vora seja 0 de um “hibridismo des-organizado” (Ibidem). Essa “des-organizagio” é visivel na pretensa arrumagio dos textos, ‘mas também no préprio facto de, a partir de determinada altura, © modelo que constituira a génese do livro, as cartas de Soror Mariana, comecara ser cada vez menos relevante. A substitui-lo, surgem cada vez com mais frequéncia textos outros, mais auté- nomos ~ des-estruturando-se assim a inieial configuragio. Nesta nova des-configuragio, até mesmo a nogio de tra- dugio ¢feita explodir. As verses apresentadas de, por exemplo, dois sonetos de Elizabeth Barrett Browning nao s2o 86 recria- ges em absoluto livres, que passam pela propria estrutura for~ ‘mal ~ aqui, j4 no um soneto, mas um pequeno texto de vinte linhas, sem qualquer tipo de versificacao; slo ainda, ¢ também, textos que se afastam dos sentidos oferecidos pela poeta vitoria- nna, numa muito mais larga mensagem de liberdade: “Como de amar-te pois contar os modos, 08 mansos acres anos que vio sendo a tua face (..) € 0 direito de sob tua lei sem jugo ser man- tida e nio louvar-me de fiel sequer, porque assim sendo. pere- ne em ti ¢solta” (Barreno etal, 1974: 287) — € este 0 inicio em portugués (ow em portuguesa) do que em inglés é "How do Ilove thee? Let me count the ways” (Browning, 1993: 223). Eo que constitui em ingles o ultimo terceto do mesmo soneto “I love thee to the breath, / Smiles, tears, of all my life! — and, if God choose. / I shall but love thee better after death” (Ibidem), des~ via-se, nas Novas Cartas, para "de ti sofro como menina ainda ‘omal de nao estar pronta e a perdida crenga de que um dia. (..) Equeira esse outro que morta sendo assim, a morte seja pouco ¢ ‘entio perfeita forma” (Barreno et al.. 1974: 288). Utilizei como epigrafe um passo de um livro de Maria Velho da Costa, que foi, no seu tempo, uma réplica parédica & censura que dominava a Primavera caetanista. Gostaria de ter~ ‘minar, sem 08 comentar, com trés excertos. Primeiro, dois ver~ 805 do 90ema 1275, de Emily Dickinson,“e um passo de Novas Cartas Portuguesas: "The Spider as an Artist / Has never been employed” (Dickinson, 1970), pode ler-se nesse poema de Diekinson; e no passo das Novas Cartas a que me refiro surgem ‘trés mulheres que dizem tecer nao como Penélope, no bastidor, © tempo de espera de Ulisses, mas “em teias (...)” — "as trés, aranhas astuciosas fiando de nés mesmas” (Barreno etal, 1974: 45). Finalmente, um pequeno excerto de Um Faleaio no Punho, de Maria Gabriela Llansol: "A medida que o texto adquire uma certa poténeia deixa de ser caracteristico de homem, ou de mulher. (..) Eu prépria vou sentindo uma parte neutra no meu ser —a terra prometida da forga, e a terra de ninguém do sexo” (Llansol, 1985: 150). << Novas Exeepio quando indicado, todas ab teadugSes para o portapués sio da minha fepeanidese ha {al CF, Mita (2000° 70): “Em lugar de uma visto da afiemagao da dente como necessariamente liberadora, defende-se uma visio da identidade como wma fntrutura diseipinadora e reguladera que, faneionando oma um suporte de Aefinigdo do seff dos comportamentos,eaclal um leque de possiveis formas de estraturaro self 0 corpo, os deseos. as ages eas relagdes seis” BIBLIOGraFla Barreno, Maria Isabel / Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (1974). Novas Cartas Portuguesas, Lisboa, Editorial Futura [1972 Bernheimer, Charles, (1989), "The Uncanny Lure of Manet’s Slympia”, in Dianne Hunter (ed.). Seduction and Theory: Readings of Sender. Repevensaton and Rho, Urbana and Cheago, Unverstty Browning, Elizabeth Barrett (1993). 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