Il A revolugio mundial, que justificou a decisdo de Lenin de entregar a Russia ao socialismo, no ocorreu, € com isso a Russia soviética foi comprometida, por uma geragdo, com um isolamento empobrecido ¢ atrasado. As opgdes para seu desenvolvimento futuro estavam determinadas, ou pelo menos estreitamente circunscritas (ver capitulos 13 e 16). Contudo, uma onda de revolugdo varreu o globo nos dois anos apés Outubro, ¢ as esperangas dos aguerridos bolcheviques nado pareceram irrealistas. “Volker hért die Signale” (“Povos, escutem os sinais”) era o primeiro verso do reftao da “Internacional” em alemio. Os sinais vieram, altos e nitidos, de Petrogrado e — depois que a capital foi transferida para uma localizagao mais segura em 1918 — Moscou,!"! e foram ouvidos onde quer que atuassem movimentos trabalhistas ¢ socialistas, independentemente de sua ideologia, ¢ mesmo além. “Sovietes” foram formados por empregados da industria do tabaco em Cuba, onde poucos sabiam onde ficava a Russia. Os anos de 1917-9 na Espanha vieram a ser conhecidos como o “biénio bolchevique”, embora a esquerda local fosse anarquista apaixonada, ou seja, politicamente no polo oposto ao de Lenin. Movimentos estudantis revolucionarios irromperam em Pequim (Beijing) em 1919 e Cérdoba (Argentina) em 1918, logo espalhando-se por toda a América Latina e gerando lideres ¢ partidos marxistas revoluciondrios. O militante nacionalista indio M.N. Roy caiu imediatamente sob o seu fascinio no México, onde a revolugo local, entrando na fase mais radical em 1917, naturalmente reconheceu sua afinidade com a Riassia revolucionaria: Marx e Lenin tornaram-se seus icones, juntos com Montezuma, Emiliano Zapata ¢ varios trabalhadores indios, ¢ ainda podem ser vistos nos grandes murais de seus artistas oficiais. Em poucos meses Roy estava em Moscou, e desempenhou um papel importante na nova Internacional Comunista para a libertagao das colénias. Em parte gragas a socialistas holandeses residentes como Henk Sneevliet, a Revolugdo de Outubro deixou em seguida sua marca na principal organizago de massa do movimento de libertagdo nacional indonésio, 0 Sarekat Islam. “Essa agio do povo russo”, disse um jornal de provincia turco, “um dia no futuro se tornara um sol ¢ iluminard toda a humanidade.” No distante interior da Australia, os rudes tosquiadores de ovelhas (c em grande parte catélicos irlandeses), sem interesse perceptivel por teoria politica, aplaudiram os soviéticos como um Estado operario. Nos EUA os finlandeses, havia muito a mais fortemente socialista das comunidades imigrantes, converteram-se em massa ao comunismo, enchendo os sombrios assentamentos minciros cm Minnesota de comicios “onde a mengdo do nome de Lenin fazia pulsar 0 coragao [...] Em mistico siléncio, quase em éxtase religioso, nés admirdvamos tudo que vinha da Russia”. Em suma, a Revolugao de Outubro foi universalmente reconhecida como um acontecimento que abalou o mundo. Até mesmo muitos dos que viram a Revolucao de perto, um processo menos conducente ao éxtase religioso, se converteram, desde prisioneiros de guerra que voltavam a seus paises como bolcheviques convictos ¢ futuros lideres comunistas de seus paises, como 0 mecanico croata Joseph Broz (Tito), a jornalistas visitantes como Arthur Ransome, do Manchester Guardian, uma figura no notadamente politica, mais conhecido por usar sua paixio por barcos em encantadores livros infantis. Uma figura ainda menos bolchevique, o escritor tcheco Jaroslav Hasek — futuro autor da obra-prima As aventuras do bravo soldado Schwejk — viu- se pela primeira vez militando numa causa e, diz-se, ainda mais espantosamente, sdbrioTomou parte na Guerra Civil como comissdrio do Exército Vermelho, depois do que voltou a seu papel mais conhecido como anarco-boémio e bebum de Praga, alegando que a Rissia soviética pés-revolucionaria nao fazia o seu estilo. Mas a Revolugao fizera. Contudo, os acontecimentos na Russia inspiraram ndo sé revoluciondrios, porém, mais importante, revolugées. Em janeiro de 1918, semanas depois da tomada do Palacio de Inverno, € enquanto os bolcheviques tentavam desesperadamente negociar a paz a todo custo com 0 exército alemio em avango, uma onda de greves politicas e manifestagdes antiguerra em massa varreu a Europa Central, comegando em Viena, espalhando-se via Budapeste as regides tchecas da Alemanha e culminando na revolta dos marinheiros austro-hingaros no Adriatico. Quando se desfizeram as Ultimas dividas sobre a derrota das Poténcias Centrais, seus exércitos finalmente se desmantelaram. Em setembro, os soldados camponeses da Bulgaria voltaram para casa, proclamaram uma repiiblica e marcharam sobre Sofia, embora ainda fossem desarmados com ajuda alema. Em outubro, a monarquia dos Habsburgo desabou apés as iltimas batalhas perdidas na frente italiana. Varios novos Estados-nagdo foram proclamados, na (justificada) esperanga de que os aliados vitoriosos as prefeririam aos perigos da Revolugéo Bolchevique. E de fato a primeira reagio do Ocidente ao apelo bolchevique aos povos para celebrarem a paz — e a publicagdo, por eles, dos tratados secretos em que os aliados haviam dividido a Europa entre si — foram os Catorze Pontos do presidente Wilson, que jogavam a carta nacionalista contra o apelo internacional de Lenin. ‘Uma zona de pequenos Estados-nago formaria uma espécie de cinturdo de quarentena contra o virus vermelho. Em inicio de novembro, marinheiros e soldados amotinados espalharam a revolugdo alema da base naval de Kiel para todo o pais. Proclamou-se uma repiblica, e 0 imperador retirou-se para os Paises Baixos, sendo substituido por um ex-seleiro social- democrata como chefe de Estado. Arevolugao, que assim varria regimes de Vladivostok ao Reno, era uma revolta contra a guerra e, na maior parte, a vinda da paz desarmou muito do explosivo que ela continha. De qualquer modo, seu contetido social era vago, a ndo ser entre os soldados camponeses dos impérios dos Habsburgo, Romanov e otomano, e dos Estados menores do Sudeste da Europa, e suas familias. Ali, consistia de quatro pontos: terra, e desconfianga das cidades, ou de estranhos (sobretudo judeus) e ou de governos. Isso tornava os camponeses revoluciondrios, mas nao bolcheviques, em grandes partes da Europa Central e Oriental, embora nao na Alemanha (com excegéio de parte da Baviera), Austria e partes da Poldnia. Tinham de ser conciliados com uma medida de reforma agraria mesmo em alguns paises conservadores, de fato contra-revolucionarios, como a Roménia ¢ a Finlandia. Por outro lado, onde constituiam a maioria da populagéo, praticamente asseguraram que os socialistas, e sobretudo os bolcheviques, nao ganhassem as eleigées gerais. Isso ndo fazia necessariamente dos camponeses bastides do conservadorismo politico, mas atrapalhou fatalmente os social- democratas; ou entio — como na Russia soviética — levou-os a abolir a democracia eleitoral. Por esse motivo os bolcheviques, tendo pedido uma Assembléia Constituinte (uma conhecida tradigo revolucionaria desde 1789), dissolveram-na assim que ela se reuniu, poucas semanas depois de outubro. E 0 estabelecimento de novos pequenos Estados-nagiio nas linhas wilsonianas, embora longe de eliminar conflitos nacionais na zona de revolugées, também diminuiu 0 espago da Revolugdo Bolchevique. Essa fora, de fato, a intengdo dos articuladores da paz aliados.Por outro lado, o impacto da Revolugdo Russa nos levantes europeus de 1918-9 foi tio patente que seria dificil haver muito espago em Moscou para ceticismo quanto a perspectiva de disseminagao da revolugao do proletariado mundial. Para o historiador — e mesmo para alguns revoluciondrios locais — parecia claro que a Alemanha imperial era um Estado de consideravel estabilidade social e politica, com um movimento operario forte mas no fundo moderado, que por certo ndo teria experimentado nada semelhante a uma revolugdo armada, nao fosse a guerra. Ao contrario da Russia czarista ou da periclitante Austria-Hungria; ao contrario da Turquia, 0 proverbial “doente” da Europa; ao contrario dos barbaros ¢ armados habitantes das montanhas do Sudeste do continente, capazes de qualquer coisa, no era um pais onde se esperassem levantes. E de fato, comparado com as situagdes autenticamente revolucionarias nas derrotadas Russia e Austria-Hungria, 0 grosso dos soldados, marinheiros e operdrios revoluciondrios aleméies permaneceu to moderado e respeitador da lei quanto as talvez apécrifas piadas dos revoluciondrios russos sempre os fizeram parecer (“Onde houver um aviso proibindo o piblico de pisar na grama, ¢ Sbvio que os insurretos alemies sé andaraio pelas trilhas”). Contudo, esse era o pais onde os marinheiros revolucionarios levaram a bandeira dos sovietes por todo 0 territério, onde o diretor de um soviete de operarios e soldados de Berlim nomeou um governo socialista, onde Fevereiro e Outubro pareciam ser um s6, pois o poder de fato na capital ja parecia estar nas mios de socialistas radicais assim que o imperador abdicou. Era uma ilusdo, devido a total, mas temporaria, paralisia dos velhos exército, Estado ¢ estrutura de poder sob o duplo choque da derrota absoluta e da revolugao. Apés uns poucos dias, o velho regime republicanizado logo estava de volta na sela, nfo mais seriamente perturbado pelos socialistas, que no conseguiram nem ganhar maioria nas primeiras eleigdes, embora se realizassem poueas semanas depois da revolugao."") Viram-se menos perturbados ainda pelo recém-improvisado Partido Comunista, cujos lideres, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, foram logo assassinados por pistoleiros de aluguel do exército. Apesar disso, a revolugdo alem& de 1918 confirmou as esperangas dos bolcheviques russos, tanto mais porque uma repiiblica socialista de curta vida foi proclamada na Baviera em 1918 e, na primavera de 1919, apés o assassinato de seu lider, uma breve repiblica soviética se estabeleceu em Munique, capital da arte, da contracultura e da (politicamente menos subversiva) cerveja alemis. Coincidiu com outra e mais séria tentativa de levar o bolchevismo mais para oeste, a republica soviética hingara de margo-julho de 1919.!2! Ambas foram, claro, eliminadas com a esperada brutalidade. Além disso, a decepgdo com os social-democratas logo radicalizou os trabalhadores alemaes, muitos dos quais transferiram sua lealdade para os socialistas independentes, ¢ depois de 1920 para o Partido Comunista, que portanto se tornou 0 maior desses partidos fora da Russia soviética, Nao se poderia esperar uma revolugao alemi, afinal? Embora 1919, 0 ano auge da agitagdo social ocidental, houvesse trazido derrota As tnicas tentativas de espalhar a Revolugao Bolchevique; embora a onda revoluciondria estivesse rapida e visivelmente baixando em 1920, a lideranga bolchevique em Moscou nao abandonou a esperanga de revolugao alemi até fins de 1923 Pelo contrario. Foi em 1920 que os bolcheviques se comprometeram com o que, retrospectivamente, parece um grande erro, a divisio permanente do movimento trabalhista internacional. Fizeram isso estruturando seu novo movimento internacional comunista com base no modelo do partido de vanguarda leninista, de uma elite de “tevolucionariosprofissionais” em tempo integral. A Revolugio de Outubro, como vimos, conquistara simpatias nos movimentos socialistas internacionais, todos os quais, praticamente, emergiram da guerra mundial ao mesmo tempo radicalizados e muitissimo fortalecidos. Com raras excegées, os partidos socialistas e trabalhistas continham grandes blocos de opiniao que favoreciam a entrada na nova Terceira Internacional Comunista, que os comunistas fundaram para substituir a Segunda Internacional (1889-1914), desacreditada e despedagada pela guerra mundial a que nao conseguira resistir."*! Na verdade, varios deles, como os partidos socialistas da Franga, Itélia, Austria e Noruega, e os Socialistas Independentes da Alemanha, de fato aprovaram a idéia, deixando em minoria os irreconciliados adversdrios do bolchevismo. Contudo, o que Lenin e os bolcheviques queriam no era um movimento de simpatizantes internacionais da Revolucgéo de Outubro, mas um corpo de ativistas absolutamente comprometidos e disciplinados, uma espécie de forga de ataque global para a conquista revolucionaria. Os partidos nao dispostos a adotar a estrutura leninista cram barrados ou expulsos da nova Internacional, que s6 poderia ser enfraquecida com a aceitagao dessas quintas-colunas de oportunismo e reformismo, para nao falar no que Marx chamara outrora de “cretinismo parlamentar’. Na iminente batalha sé poderia haver lugar para soldados. O argumento s6 fazia sentido com uma condigdo: que a revolugdo mundial ainda estivesse em andamento, e suas batalhas, em perspectiva imediata. Contudo, embora a situago européia estivesse longe de estabilizada, era claro em 1920 que a Revolugao Bolchevique nao estava nos planos do Ocidente, embora também fosse claro que na Riissia os bolcheviques se achavam estabelecidos permanentemente. Sem divida, quando a Internacional se reuniu, parecia haver uma possibilidade de que o Exército Vermelho, vitorioso na Guerra Civil, e agora marchando para Vars6via espalhasse a revolugdo para oeste pela forga armada, como subproduto de uma breve guerra russo-polonesa, provocada pelas ambi Polénia. Restaurada 4 condigdo de Estado aps um século e meio de ndo-existéncia, a Polénia exigia agora suas fronteiras do século XVIII. Essas ficavam dentro da Bielorri: Ucrania. O avanco soviético, que deixou um maravilhoso monumento literario na Cavalaria vermelha de Isaac Babel, foi saudado por uma variedade incomumente ampla de contemporaneos, que iam do romancista austriaco Joseph Roth, depois elegista dos Habsburgo, a Mustafi Kemal, futuro lider da Turquia. Mas os trabalhadores poloneses nao se levantaram, ¢ o Exército Vermelho retornou das portas de Varsévia. Dai em diante, apesar das aparéncias, nfo haveria novidades na frente ocidental. Claro, as perspectivas da revolugao passaram para o Leste, na Asia, 4 qual Lenin sempre dispensara consideravel atengdo. Na verdade, de 1920 a 1927 as esperangas de revolugdo mundial pareceram repousar na revolugdo chinesa, avangando sobre 0 Kuomintang, entio o partido de libertagio nacional, cujo lider Sun Yat-sen (1886-1925) acolheu igualmente o modelo soviético, a assisténcia militar soviética e 0 novo Partido Comunista como parte de seu movimento. A alianga Kuomintang-comunistas ia tomar o Norte a partir de suas bases no Sul da China, numa grande ofensiva de 1925-7, pondo a maior parte da China mais uma vez sob 0 controle de um unico governo, pela primeira vez desde a queda do império em 1911, antes que o principal general do Kuomintang, Chiang Kai-shek, se voltasse contra os comunistas e os massacrasse. Contudo, mesmo antes dessa prova de que o Leste ainda nao estava maduro para Outubro, a promessa da Asia nao ocultava o fracasso da revolugao no Ocidente.Em 1921, isso era inegavel. A revolugiio se achava em retirada na Riissia soviética, embora politicamente o poder bolchevique fosse inexpugnavel. Estava fora dos planos do Ocidente. O Terceiro Congresso do Comintern reconheceu isso sem o admitir exatamente, convocando uma “frente tmnica” com os mesmos socialistas que o Segundo expulsara do exército do progresso revolucionario. O que isso significava, na verdade, era uma divistio dos revoluciondrios pelas proximas geragdes. Contudo, de qualquer modo era tarde demais, O movimento rachara em definitivo, a maioria dos socialistas de esquerda, individuos e partidos, voltou para 0 movimento social-democrata, em sua esmagadora maioria levada por moderados anticomunistas. Os novos partidos comunistas continuaram sendo minorias da esquerda européia, e em geral com umas poucas excegdes, como na Alemanha, Franga e Finlandia minorias um tanto pequenas, se bem que apaixonadas. Sua situag&o nfo ia mudar até a década de 1930 (ver capitulo 5). Vv Contudo, o ano de levantes deixou para tras ndo apenas um pais imenso mas atrasado agora governado por comunistas e empenhado na construgdo de uma sociedade alternativa ao capitalismo, como também um governo, um movimento internacional disciplinado e, talvez igualmente importante, uma geracéo de revoluciondrios comprometidos com a visio da revolugdo mundial sob a bandeira erguida em Outubro e a lideranga do movimento que inevitavelmente tinha seu quartel-general em Moscou. (Durante varios anos, esperara-se que logo se transferisse para Berlim, e 0 alemio, nao o russo, continuou sendo a lingua oficial da Internacional entre as guerras.) Talvez 0 movimento nao tenha sabido com exatidio como a revolug&io mundial ia avangar aps a desestabilizagdo na Europa e a derrota na Asia, e as tentativas esparsas dos comunistas de insurrei¢ao armada independente (Bulgaria e Alemanha em 1923, Indonésia em 1926, China em 1927 e — tardio e anémalo — o Brasil em 1935) foram desastrosas. Contudo, como a Grande Depressio e¢ a ascensao de Hitler logo iriam provar, era dificil a situagdo do mundo entre as guerras ser de porte a desencorajar especulagées apocalipticas (ver capitulos 3 ¢ 5). Isso nao explica a subita mudanga do Comintern para uma ret6rica de ultra-revolucionismo e esquerdismo sectario entre 1928 e 1934, pois, qualquer que fosse a retérica, na pratica 0 movimento nem esperava nem se preparou para tomar o poder em parte alguma. A mudanga, que se mostrou calamitosa do ponto de vista politico, deve ser explicada antes pela politica interna do Partido Comunista soviético, quando Stalin assumiu seu controle, e talvez também como uma tentativa de compensar a cada vez mais evidente divergéncia entre os interesses da URSS, como um Estado que nao tinha como evitar a coexisténcia com outros Estados — comecou a ganhar reconhecimento internacional como regime a partir de 1920 — e 0 movimento cujo objetivo era subverter ¢ derrubar todos os outros governos. No fim, os interesses de Estado da Unido Soviética prevaleceram sobre os interesses revolucionarios mundiais da Internacional Comunista, que Stalin reduziu a um instrumento da politica de Estado soviético, sob o estrito controle do Partido Comunista soviético, expurgando, dissolvendo e reformando seus componentes a vontade. A revolugdo mundialpertencia retérica do passado, e na verdade qualquer revolugdo s6 era tolerada se a) nio conflitasse com o interesse de Estado soviético; ¢ b) pudesse ser posta sob controle soviético direto. Os governos ocidentais que viam o avango de regimes comunistas apés 1944 essencialmente como uma extensio do poder soviético, sem divida interpretavam corretamente as inteng¢des de Stalin; mas o mesmo faziam os revolucionarios irreconciliados que, furiosos, censuravam Moscou por nao querer que os comunistas tomassem o poder ¢ desencorajar toda tentativa de fazé-lo, mesmo os que se mostraram bem-sucedidos, como na lugoslavia e na China. Apesar disso, até o fim a Russia soviética continuou sendo, mesmo aos olhos de muitos membros interesseiros e corruptos de sua nomenklatura, algo mais que apenas outra grande poténcia. A emancipagao universal, a construgdo de uma alternativa melhor para a sociedade capitalista eram, afinal, sua razio fundamental de existir. Por que mais deveriam os impassiveis burocratas de Moscou ter continuado a financiar e armar durante décadas os guerrilheiros do Congresso Nacional Africano, aliado dos comunistas, cujas chances de derrubar o sistema de apartheid na Africa do Sul pareciam e eram minimas? (Coisa curiosa: 0 regime comunista chinés, embora criticasse a URSS por trair os movimentos revolucionarios apés 0 rompimento entre os dois paises, ndo tem uma folha comparavel de apoio pratico a movimentos de libertag3o do Terceiro Mundo.) A humanidade, a URSS aprendera hd muito tempo, nao seria transformada pela revolugao mundial inspirada por Moscou. No longo crepiisculo dos anos Brejnev, desapareceu até mesmo a sincera convicgao de Nikita Kruchev, de que o socialismo ia “enterrar” o capitalismo por forga de sua superioridade econémica. Pode bem ser que a erosao terminal dessa crenga na vocagao universal do sistema explique por que, no fim, ele se desintegrou sem resisténcia (ver capitulo 16). ‘Nenhuma dessas hesitagdes perturbou a primeira geragdo de inspirados pela luz brilhante de Outubro a dedicar suas vidas 4 revolugao mundial. Como os primeiros cristéos, a maioria dos socialistas pré-1914 era de crentes na grande mudanga apocaliptica que iria abolir tudo que era mal e trazer uma sociedade sem infelicidade, opressao, desigualdade ¢ injustiga. O marxismo oferecia a esperanga do milénio a garantia da ciéncia e da inevitabilidade historica; a Revolugao de Outubro agora oferecia a prova de que a grande mudanga comegara. O mimero total desses soldados no necessariamente implacavel e disciplinado exército de emancipagdo humana talvez nao fosse maior que umas poucas dezenas de milhares; 0 niimero de profissionais do movimento internacional, “mudando de pais com mais freqiiéncia que de sapatos”, como disse Bertolt Brecht num poema escrito em homenagem a eles, talvez no passasse de umas poucas centenas ao todo. Eles nao devem ser confundidos com o que os italianos, nos dias de seu Partido Comunista de 1 milhdo de membros, chamavam de “o povo comunista”, os milhdes de seguidores e simples membros para os quais 0 sonho de uma sociedade nova e boa era também real, embora na pratica o seu nado fosse mais que o ativismo diario do velho socialismo e cujo compromisso, de qualquer modo, era mais de classe ¢ comunidade do que de dedicagdo pessoal. Contudo, embora o seu nimero fosse pequeno, nao se pode entender 0 século XX semeles. Sem o “novo tipo de partido” de Lenin, cujos “revoluciondrios profissionais” eram os quadros, é inconcebivel que em pouco mais de trinta anos apés Outubro um tergo da raga humana se visse vivendo sob regimes comunistas. O que sua fé e sua irrestrita lealdade ao quartel-general da revolugao mundial em Moscou deram aos comunistas foi a capacidade dever-se (sociologicamente falando) como partes de uma igreja universal, nao uma seita. Os partidos comunistas orientados por Moscou perderam lideres por secessio e expurgo, mas até © movimento perder o Animo apés 1956 eles nao se cindiram, ao contrario dos grupos fragmentarios de dissidentes marxistas que seguiram Trotski ¢ os ainda mais fissiparos conventiculos “marxista-leninistas” do maoismo pés-1960. Por poucos que fossem — e quando Mussolini foi derrubado na Italia em 1943 o Partido Comunista italiano consistia de cerca de 5 mil homens e mulheres, a maioria saindo da cadeia ou do exilio — eram o que os bolcheviques tinham sido em fevereiro de 1917, o nucleo de um exército de milhées, governantes potenciais de um povo e um Estado. Para essa geracao, sobretudo os que, embora jovens, viveram os anos de levante, a revolugao foi o acontecimento de suas vidas; os dias de capitalismo estavam inevitavelmente contados. A historia contempordnea era a antecdmara da vitéria final para os que vivessem para vé-la, 0 que incluiria alguns soldados da revolugao (“os mortos de licenga”, como disse © comunista russo Leviné, pouco antes de ser executado pelos que derrubaram o soviete de Munique de 1919). Se a propria sociedade burguesa tinha tantos motivos para duvidar de seu futuro, por que estariam eles confiantes na sua sobrevivéncia? Suas préprias vidas demonstravam sua realidade. Tomemos 0 caso de dois jovens alemies temporariamente ligados como amantes, que foram mobilizados pela revolugdo soviética da Baviera de 1919; Olga Benario, filha de um préspero advogado de Munique, e Otto Braun, um professor primério, Ela iria ver-se organizando a revolugao no hemisfério ocidental, ligada e afinal casada com Luis Carlos Prestes, lider da longa marcha insurrecional pelos sertées brasileiros, que havia convencido Moscou a apoiar um levante no Brasil em 1935. O levante fracassou, ¢ Olga foi entregue pelo governo brasileiro 4 Alemanha de Hitler, onde acabou morrendo num campo de concentragao. Enquanto isso Otto, mais bem-sucedido, partiu para revolucionar o Oriente como especialista militar do Comintern e, como se viu, 0 tinico nao chinés a participar da famosa “Longa Marcha” dos comunistas chineses, antes de voltar a Moscou e por fim a Repiblica Democratica Alem (Oriental). (A experiéneia 0 deixou cético em relagéio a Mao.) Quando, a nao ser na primeira metade do século XX, poderiam duas vidas interligadas ter tomado esses rumos? Assim, na geragio apés 1917, 0 bolchevismo absorveu todas as outras tradigées revoluciondrias, ou empurrou-as para a margem de movimentos radicais. Antes de 1914, 0 anarquismo fora muito mais uma ideologia impulsora de ativistas revoluciondrios que o marxismo em grandes partes do mundo. Marx, fora da Europa Oriental, era mais visto como 0 guru dos partidos de massa cujo avango inevitavel, mas nao explosivo, para a vitoria, ele tinha demonstrado. Na década de 1930 0 anarquismo deixara de existir como forga politica importante fora da Espanha, mesmo na América Latina, onde a bandeira vermelha e preta tradicionalmente inspirara mais que a vermelha. (Mesmo na Espanha a Guerra Civil ia destruir 0 anarquismo, enquanto fazia a fortuna dos comunistas, até entio relativamente insignificantes.) Na verdade, os grupos social-revoluciondrios que existiam fora do comunismo moscovita tomaram dai em diante Lenin e a Revolugao de Outubro como seu ponto de referéncia, ¢ eram quase sempre chefiados ou inspirados por alguma figura dissidente ou expulsa do Comintern, 4 medida que Yosif Stalin estabelecia, e depois fechava, seu dominio sobre o Partido Comunista soviético ¢ a Internacional. Poucos desses centros dissidentescontavam muito do ponto de vista politico. De longe o mais prestigioso dos hereges, 0 exilado Leon Trotski — co-lider da Revolugdo de Outubro e arquiteto do Exército Vermelho — fracassou por completo em seus esforgos politicos. Sua “Quarta Internacional”, destinada a competir com a stalinizada Terceira Internacional, foi praticamente invisivel. Quando foi assassinado por ordem de Stalin em seu exilio no México, em 1940, a importancia politica de Trotski era insignificante. Em suma, ser um social-revolucionario cada vez mais significava ser um seguidor de Lenin e da Revolugao de Outubro, e cada vez mais um membro ou seguidor de algum partido comunista alinhado com Moscou; ¢ tanto mais quando, apds o triunfo de Hitler na Alemanha, esses partidos adotaram a politica de uniao antifascista que Ihes permitiu sair do isolamento sectario e conquistar apoio de massa tanto entre os trabalhadores quanto entre os intelectuais (ver capitulo 5). Os jovens que tinham sede de derrubar o capitalismo tornaram-se comunistas ortodoxos, ¢ identificaram sua causa com 0 movimento internacional centrado em Moscou; e 0 marxismo, restaurado por Outubro como a ideologia da mudanga revolucionaria, significava 0 marxismo do Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou, que era agora o centro global para disseminagao dos grandes textos classicos. Ninguém mais a vista se oferecia para interpretar 0 mundo e muda-lo, nem parecia melhor capacitado para fazer isso. Assim ia continuar até depois de 1956, quando a desintegrago da ortodoxia marxista na URSS e do movimento comunista internacional centrado em Moscou trouxe os pensadores, tradigdes ¢ organizagdes marginalizados da heterodoxia esquerdista para a esfera publica. Mesmo assim, ainda viviam sob a grande sombra de Outubro. Embora qualquer um com o mais leve conhecimento de histéria da ideologia pudesse reconhecer mais 0 espirito de Bakunin, ou mesmo de Nechaev, do que de Marx nos radicais estudantes de 1968 e depois, isso no levou a nenhuma ressurreigao significativa da teoria ou dos movimentos anarquistas. Ao contrario, 1968 produziu uma enorme voga intelectual para o marxismo em teoria — geralmente em vers que teriam surpreendido Marx — e para uma variedade de seitas e grupos “marxista- leninistas”, unidos pela rejeigdo a Moscou e aos velhos partidos comunistas como nao suficientemente revolucionarios ¢ leninistas. Paradoxalmente, essa quase completa tomada da tradig&o social-revolucionaria se deu num momento em que o Comintern abandonou claramente as estratégias revoluciondarias originais de 1917-23, ou, antes, contemplou estratégias para a transferéncia de poder bastante diferentes das de 1917 (ver capitulo 5). De 1935 em diante, a literatura da esquerda critica iria encher-se de acusages de que os movimentos de Moscou perdiam, rejeitavam, ou melhor, traiam as oportunidades de revolugéo, porque Moscou néo mais a queria. Até o orgulhosamente “monolitico” movimento centrado nos soviéticos comegar a rachar por dentro, esses argumentos tiveram pouco efeito. Enquanto 0 movimento comunista manteve sua unidade, coesdo e impressionante imunidade a fissao, foi, para a maioria dos que, no mundo, acreditavam na revolugdo global, a nica opgao. Além disso, quem podia negar que os paises que romperam com o capitalismo na segunda grande onda de revolugao social no mundo, de 1944 a 1949, o fizeram sob os auspicios de partidos comunistas ortodoxos, orientados pelos soviéticos? S6 depois de 1956 os que pensavam em revolugao tiveram uma verdadeira opgao entre varios desses movimentos com alguma verdadeira pretensdo a efetividade politica ou insurrecional. Mesmo esses — varios tipos de trotskismo, maoismo e grupos inspirados pela revolug&o cubana de 1959 (ver capitulo 15) — ainda eram mais ou menos de derivagio esleninista. Os velhos partidos comunistas continuavam sendo em grande parte os maiores grupos da extrema esquerda, mas a essa altura 0 velho movimento comunista perdera 0 animo. Vv A forga do movimento pela revolugao mundial estava na forma comunista de organizagao, 0 “novo tipo de partido” de Lenin, uma formidavel inovacdo de engenharia social do século XX, compardvel & invengdo das ordens monds s © outras na Idade Média. Dava até mesmo a organizagdes pequenas uma eficdcia desproporcional, porque 0 partido podia contar com extraordindria dedicagio ¢ auto-sacrificio de seus membros, disciplina e coesio maior que a de militares, e uma total concentragiio na execugdo de suas decisdes a todo custo. Isso impressionava profimdamente até mesmo os observadores hostis. E no entanto, a relagaio entre © modelo do “partido de vanguarda” e as grandes revolugdes que ele se destinava a fazer, ¢ ocasionalmente conseguia, longe estava de clara, embora nada fosse mais evidente do que 0 fato de que o modelo atingia a maioridade apés revolugdes vitoriosas, ou durante guerras. Pois os partidos leninistas eram essencialmente construidos como elites (vanguardas) de lideres (ou melhor, antes das revolugdes serem vencidas, “contra-clites”), ¢ as revolugdes sociais, como mostrou 1917, dependem do que acontece entre as massas ¢ em situagdes que nem as elites nem as contra-clites podem controlar por inteiro. Na verdade, o modelo leninista teve de fato considerdvel apelo para jovens membros de velhas elites, sobretudo no Terceiro Mundo, que entraram nesses partidos em nimeros desproporcionais, apesar dos esforgos herdicos, ¢ relativamente bem-sucedidos, desses partidos para promover verdadeiros proletérios. A grande expansio do comunismo brasileiro na década de 1930 baseou-se na conversao de jovens intelectuais de familias da oligarquia latifundidria e oficiais subalternos do exército (Martins Rodrigues, 1984, pp. 390-7). Por outro lado, os sentimentos das verdadeiras “massas” (as vezes incluindo os seguidores ativos das “vanguardas”) com freqiiéncia entravam em choque com as idéias de seus lideres, sobretudo em momentos de verdadeira insurreigdo de massa. Assim, a rebelitio dos generais espanhéis contra o governo da Frente Popular em julho de 1936 desencadeou de imediato a revolugio em varias regides da Espanha. Que os militantes, sobretudo anarquistas, passassem a coletivizar os meios de produgio, nao foi surpreendente, embora o Partido Comunista ¢ 0 governo central depois se opusessem ¢, onde possivel, revertessem essa transformagdo, ¢ os prés ¢ contras disso continuam a ser discutidos na literatura politica ¢ histérica. Contudo, 0 acontecimento também desencadeou a maior de todas as ondas de iconoclasma e homicidio anticlerical, pois essa forma de atividade se tornara pela primeira vez parte das agitacdes populares em 1835, quando os cidados de Barcelona reagiram a uma tourada insatisfatéria incendiando varios conventos. Cerca de 7 mil pessoas do clero — isto & 12% a 13% dos padres e monges do pais, embora apenas uma proporcao insignificante de freiras — foram mortas, enquanto numa tinica diocese da Catalunha (Gerona) mais de 6 mil imagens foram destruidas (Thomas, 1977, pp. 270-1; M. Delgado, 1992, p. 56). Duas coisas estio claras nesse terrivel episédio: foi denunciado pelos Hideres ou porta- vozes da esquerda revolucionaria espanhola, embora fossem anticlericais radicais, incluindo 8 cris