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A REVOLUGAO MUNDIAL Ao mesmo tempo, acrescentou [Bukharin]: “Acho que entramos num periodo de revolucao que pode durar cingiienta anos, antes que a revolugao seja finalmente vitoriosa na Europa e em todo 0 mundo Arthur Ransome, Six Weeks in Russia in 1919 (Ransome, 1919, p. 54) Como é terrivel ler 0 poema de Shelley (para néo falar dos cantos camponeses egipcios de 3 mil anos atrds), denunciando opresséo e exploracdo. Serio eles lidos num futuro ainda repleto de opressio ¢ exploracao, e dirdo as pessoas: “Até naquele tempo..."? Bertolt Brecht, ao ler “The masque of anarchy” em 1938 (Brecht, 1964) Depois da Revolugao Francesa, surgiu na Europa uma Revolugao Russa, ¢ isso mais uma vez ensinow ao mundo que mesmo 0 mais forte dos invasores pode ser repelido, assim que o destino da Pétria é realmente confiado ao povo, aos humildes, aos proletérios, d gente trabalhadora. Do jommal mural da 19 Brigata Eusebio Giambone, dos partisans italianos, 1944 (Pavone, 1991, p. 406) A revolucdo foi a filha da guerra no século XX: especificamente a Revolugdo Russa de 1917, que criou a Unido Soviética, transformada em superpoténeia pela segunda fase da “Guerra dos Trinta e Um Anos”, porém mais geralmente a revolugdo como uma constante global na historia do século. A guerra sozinha no conduz necessariamente a crise, colapso ¢ revolugiio nos paises beligerantes. Na verdade, antes de 1914 predominava a crenga contraria, pelo menos em relagao a regimes estabelecidos com legitimidade tradicional. Napoledo I queixava-se amargamente de que o imperador da Austria podia sobreviver feliz a uma centena de batalhas perdidas, como o rei da Prissia sobrevivera ao desastre e a perda de metade de suas terras, enquanto ele proprio, filho da Revolugdo Francesa, estaria em risco apés uma tinica derrota. Mas as tensées da guerra total do século XX sobre os Estados e povos nela envolvidos foram tio esmagadoras e sem precedentes que eles se viram esticados até quase seus limites e, quase sempre, até o ponto de ruptura. S6 0s EUA sairam das guerras mundiais como tinham entrado, apenas um pouco mais fortes. Para todos os demais, o fim das guerras significou levantes. Parecia ébvio que o velho mundo estava condenado. A velha sociedade, a velha economia, os velhos sistemas politicos tinham, como diz 0 provérbio chinés, “perdido o mandato do céu”. A humanidade estava a espera de uma alternativa, Essa alternativa era conhecida em 1914. Os partidos socialistas, com 0 apoio das classes trabalhadoras em expanso de seus paises, ¢ inspirados pela crenga na inevitabilidade historica de sua vitéria, representavam essa alternativa na maioria dos Estados da Europa (ver A era dos impérios, capitulo 5). Aparentemente, s6 era preciso um sinal para os povos se levantarem, substituirem 0 capitalismo pelo socialismo, ¢ com isso transformarem os sofrimentos sem sentido da guerra mundial em alguma coisa mais positiva: as sangrentas dores e convulsées do parto de um novo mundo. A Revolugao Russa, ou, mais precisamente, a Revolugao Bolchevique de outubro de 1917, pretendeu dar ao mundo esse sinal. Tornou-se portanto tio fundamental para a historia deste século quanto a Revolugao Francesa de 1789 para o século XIX. Na verdade, nao é por acaso que a histéria do Breve Século XX, segundo a definig&o deste livro, praticamente coincide com o tempo de vida do Estado nascido da Revolugao de Outubro. Contudo, a Revolugdo de Outubro teve repercussdes muito mais profundas e globais que sua ancestral. Pois se as idéias da Revolugdo Francesa, como é hoje evidente, duraram mais que o bolchevismo, as conseqiiéncias praticas de 1917 foram muito maiores e mais duradouras que as de 1789. A Revolugdo de Outubro produziu de longe o mais formidavel movimento revoluciondrio organizado na historia moderna. Sua expansio global nao tem paralelo desde as conquistas do isla em seu primeiro século. Apenas trinta ou quarenta anos apés a chegada de Lenin 4 Estago Finlandia em Petrogrado, um tergo da humanidade se achava vivendo sob regimes diretamente derivados dos “Dez dias que abalaram 0 mundo” (Reed, 1919) e do modelo organizacional de Lenin, o Partido Comunista. A maioria seguiu a URSS na segunda onda de revolugées surgida da segunda fase da longa guerra mundial de 1914-45. O presente capitulo trata dessa revolugdo em duas partes, embora naturalmente se concentre na Revolugdo original e formativa de 1917, e no estilo proprio especial que impés a suas sucessoras. De qualquer modo, dominou-as em grande parte. Durante grande parte do Breve Século XX, 0 conmnismo soviético proclamou-se um sistema alternativo e superior ao capitalismo, ¢ destinado pela histéria a triunfar sobre ele. E durante grande parte desse periodo, até mesmo muitos daqueles que rejeitavam suas pretensdes de superioridade estavam longe de convencidos de que ele ndo pudesse triunfar. E — com a significativa excegio dos anos de 1933 a 1945 (ver capitulo 5) — a politica internacional de todo o Breve Século XX apés a Revolugdo de Outubro pode ser mais bem entendida como uma luta secular de forgas da velha ordem contra a revolugdo social, tida como enearnada nos destinos da Unido Soviética ¢ do comunismo internacional, a eles aliada ou deles dependente. A medida que avangava o Breve Século XX, essa imagem da politica mundial como um duelo entre as forcas de dois sistemas sociais rivais (cada um, apés 1945, mobilizado por tras de uma superpoténcia a brandir armas de destruigdo global) se tornou cada vez mais irrealista Na década de 1980, tinha tio pouca relevancia para a politica internacional quanto as Cruzadas. Mas podemns entender como veio a existir. Pois, mais completa e inflexivelmente até mesmo que a Revolugdo Francesa em seus dias jacobinos, a Revolugdo de Outubro se via menos como um acontecimento nacional que ecuménico. Foi feita nio para proporcionar liberdade ¢ socialismo 4 Rassia, mas para trazer a revolugo do proletariado mundial. Na mente de Lenin e seus camaradas, a vitéria bolchevique na Russia era basicamente uma batalha na campanha para alcangar a vitéria do bolchevismo numa escala global mais ampla, e dificilmente justificavel a ndo ser como tal. Que a Russia czarista estava madura para a revolugéo, merecia muitissimo uma revolugdo, e na verdade essa revolugdo certamente derrubaria 0 czarismo, ja fora aceito por todo observador sensato do panorama mundial desde a década de 1870 (ver A era dos impérios, capitulo 12). Apos 1905-6, quando 0 czarismo foi de fato posto de joelhos pela revolugdo, ninguém duvidava seriamente disso. Alguns historiadores, em retrospecto, dizem que a Russia czarista, nio fossem o acidente da Primeira Guerra Mundial e a Revolugao Bolchevique, teria evoluido para uma florescente sociedade industrial liberal-capitalista, estava a caminho disso, mas seria necessdrio um microscopio para detectar profecias desse tipo feitas antes de 1914. Na verdade, o regime czarista mal se recuperara da revolugaio de 1905 quando, indeciso e incompetente como sempre, se viu mais uma vez agoitado por uma onda de descontentamento social em rapido crescimento. Tirando a firme lealdade do exército, policia e servico publico nos tiltimos meses antes da eclosdo da guerra, o pais parecia mais uma vez a beira de uma crupgao. Na verdade, como em tantos dos paises beligerantes, 0 entusiasmo e patriotismo das massas apés a eclosdo da guerra desarmaram a situagao politica — embora, no caso da Russia, néo por muito tempo. Em 1915, os problemas de governo do czar pareciam mais uma vez insuperaveis. Nada pareceu menos surpreendente e inesperado que a revolugdo de margo de 1917, que derrubou a monarquia russa ¢ foi universalmente saudada por toda a opinido publica ocidental, com excegdo dos mais empedernidos reacionarios tradicional! E no entanto, com excegiio dos rominticos que viam uma estrada reta levando das praticas coletivas da comunidade aldea russa a um futuro socialista, todos tinham como igualmente certo que uma revolugao da Russia nado podia e nao seria socialista. As condi¢gdes para uma tal transformagao simplesmente nado estavam presentes num pais camponés que era um sinénimo de pobreza, ignorancia e atraso, ¢ onde o proletariado industrial, o predestinado coveiro do capitalismo de Marx, era apenas uma miniscula minoria, embora estrategicamente localizada. Os préprios revolucionarios marxistas russos partilhavam dessa opiniao. Por si mesma, a derrubada do czarismo e do sistema de latifundiarios iria produzir, e sé se poderia esperar que produzisse, uma “revolugdo burguesa”. A luta de classes entre a burguesia e 0 proletariado (que, segundo Marx, s6 podia ter um resultado) continuaria entio sob as novas condi¢ées politicas. Claro, a Russia ndo existia isolada, e uma revolugdo naquele enorme pais, que se estendia das fronteiras do Japio as da Alemanha, e cujo governo era parte do punhado de “poténcias mundiais” que dominava a situacdo mundial, nado poderia deixar de ter grandes conseqiiéncias internacionais. O proprio Karl Marx, no fim da vida, tinha esperado que a Revolugdo Russa agisse como uma espécie de detonador, disparando a revolugao proletaria nos paises ocidentais industrialmente mais desenvolvidos, onde estavam presentes as condigdes para uma revolucio socialista proletaria. Como veremos, 14 pelo fim da Primeira Guerra Mundial, pareceu que era exatamente isso que ia acontecer. Havia mais uma complicacao. Se a Russia nao estava pronta para a revolugao socialista proletaria dos marxistas, tampouco estava para a “revolugao burguesa” liberal. Mesmo os que nao queriam mais que isso tinham de encontrar um meio de fazé-lo sem depender das pequenas e fracas forgas da classe média liberal russa, uma miniscula minoria sem posigo moral, apoio publico ou tradigdo institucional de governo representativo em que pudesse encaixar-se. S. Os Cadetes, partido do liberalismo burgués, tinham menos de 2,5% dos deputados da Assembléia Constitucional livremente leita (c logo dissolvida) de 1917-8. Uma Russia liberal-burguesa teria de ser conquistada pelo levante de camponeses e operarios que nao sabiam nem se importavam com 0 que era isso, sob a lideranga de partidos revoluciondrios que queriam outra coisa, ou, 0 que era mais provavel, as forgas que faziam a revolugao iriam além de seu estdgio liberal-burgués, passando para uma mais radical “revolugdo permanente” (para usar a expressao adotada por Marx e revivida durante a revolugao de 1905 pelo jovem Trotski). Em 1917, Lenin, cujas esperangas nao tinham ido muito além de uma Rus democratico-burguesa em 1905, também concluiu desde 0 inicio que o cavalo liberal nao era um dos corredores no pareo revoluciondrio russo. Era uma avaliagao realista. Contudo, em 1917 estava tio claro para ele quanto para todos os outros marxistas russos ¢ nfo russos que simplesmente nao existiam na Russia as condigdes para uma revolugdo socialista. Para os revoluciondrios marxistas na Russia, sua revolugdo tinha de espalhar-se em outros lugares. Mas nada parecia mais provavel de que era isso que iria acontecer mesmo, porque a Grande Guerra acabou em generalizado colapso politico e crise revolucionaria, sobretudo nos Estados beligerantes derrotados. Em 1918, todos os quatro governantes das poténcias derrotadas (Alemanha, Austria-Hungria, Turquia e Bulgaria) perderam seus tronos, assim como o czar da Russia, derrotada pela Alemanha, que ja caira em 1917. Além disso, a inquictagio social, equivalendo quase a uma revolugdo na Italia, abalou até mesmo os beligerantes europeus do lado vencedor. Como vimos, as sociedades da Europa beligerante comegaram a vergar sob as extraordindrias pressdes da guerra em massa. Baixara a onda inicial de patriotismo que se seguira A ecloso da guerra. Em 1916, 0 cansago de guerra transformava-se em hostilidade surda e calada em relagdo a uma matanga aparentemente intermindvel e incerta, que ninguém parecia ter vontade de acabar. Enquanto, em 1914, os adversarios da guerra se sentiam desamparados ¢ isolados, em 1916 podiam sentir que falavam pela maioria. O quanto a situagdéo mudara dramaticamente foi demonstrado quando, em 28 de outubro de 1916, Friedrich Adler, filho do lider e fundador do partido socialista austriaco, assassinou deliberadamente ¢ a sangue-frio o primeiro-ministro austriaco, conde Stiirgkh, num café de Viena — era uma época de inocéncia, antes dos homens da seguranga — como um gesto publico contra a guerra. sentimento antiguerra naturalmente elevou o perfil politico dos socialistas, que cada vez mais reverteram a oposigo que seus movimentos faziam a guerra antes de 1914. Na verdade, alguns partidos (por exemplo, na Riissia, na Sérvia e na Gra-Bretanha — o Partido Trabalhista Independente) jamais deixaram de opor-se a ela, e, mesmo onde os partidos socialistas apoiaram a guerra, seus mais clogiientes opositores se encontravam em suas fileiras. Ao mesmo tempo, e em todos os grandes paises beligerantes, 0 movimento trabalhista organizado nas vastas indistrias de armamentos tornou-se um centro de militancia industrial e antiguerra. Os ativistas sindicais de escal6es inferiores nessas fabricas, homens qualificados em forte posig&o de barganha (“delegados de fabrica” na Gra-Bretanha; “Betriebsobleute” na Alemanha), tornaram-se sinénimos de radicalismo. Os artifices e mec4nicos das novas marinhas de alta tecnologia, pouco diferentes de fabricas flutuantes, moveram-se na mesma diregdo. Tanto na Russia quanto na Alemanha, as principais bases navais (Kronstadt; Kiel) iriam tornar-se grandes centros de revolugao, e mais tarde um motim naval francés no mar Negro deteria a intervengdo francesa contra os bolcheviques na Guerra Civil russa de 1918-20. A rebelido contra a guerra adquiriu assim concentragdo ¢ atuagio. Nao admira que os censores austro-hingaros, controlando a correspondéncia de seus soldados, passassem a notar uma mudanga de tom. “Se ao menos o bom Deus nos trouxesse a paz” tornou-se “Para nds ja chega” ou “Dizem que os socialistas vao fazer a paz”. Nao surpreende, portanto, que, mais uma vez segundo os censores habsburgos, a Revolugio Russa fosse o primeiro acontecimento politico desde o inicio da guerra a repercutir nas cartas até mesmo de esposas de camponeses e operarios. E nao surpreende, sobretudo depois que a Revolugdo de Outubro levou os bolcheviques de Lenin ao poder, que os desejos de paz e revolugdo social se fundissem: um tergo da amostragem de cartas censuradas entre novembro de 1917 e margo de 1918 esperava obter a paz via Russia, um tergo via revolugdo, e outros 20% via uma combinagdo das duas. Que uma revolugdo na Russia teria grande repercussdo internacional, sempre foi claro desde que a primeira revolugdio, em 1905-6, abalara os antigos impérios sobreviventes na época, da Austria- Hungria até a China, passando por Turquia e Pérsia (ver A era dos impérios, capitulo 12). Em 1917, toda a Europa se tornara um monte de explosivos sociais prontos para ignicdo. I A Rassia, madura para a revolugdo social, cansada de guerra e a beira da derrota, foi o primeiro dos regimes da Europa Central e Oriental a ruir sob as pressées e tensdes da Primeira Guerra Mundial. A explosio era esperada, embora ninguém pudesse prever o momento e ocasido da detonagao. Poucas semanas antes da revolugao de fevereiro, Lenin ainda se perguntava em seu exilio suigo se viveria para vé-la. Na verdade, o governo do czar desmoronou quando uma manifestagdo de operdrias (no habitual “Dia da Mulher” do movimento socialista — 8 de margo) se combinou com um /ock-out industrial na notoriamente militante metalirgica Putilov e produziu uma greve geral e a invasao do centro da capital, do outro lado do rio gelado, basicamente para exigir pao. A fragilidade do regime se revelou quando as tropas do czar, mesmo os leais cossacos de sempre, hesitaram e depois se recusaram a atacar a multidao, e passaram a confraternizar com ela. Quando, apés quatro dias de caos, elas se amotinaram, 0 czar abdicou, sendo substituido por um “governo liberal” provisorio, néo sem certa simpatia e mesmo ajuda dos aliados ocidentais da Russia, que temiam que o desesperado regime do czar saisse da guerra e assinasse uma paz em separado coma Alemanha. Quatro dias espontdneos e sem lideranga na rua puseram fima um Império.”! Mais que isso: tio pronta estava a Riissia para a revolugdo social que as massas de Petrogrado imediatamente trataram a queda do czar como uma proclamagio de liberdade, igualdade e democracia direta universais. O feito extraordinario de Lenin foi transformar essa incontrolavel onda anarquica popular em poder bolchevique. Assim, em vez de uma Rassia liberal e constitucional voltada para o Ocidente, disposta a combater os alemies, 0 que resultou foi um vacuo revolucionario: um “governo provisério” impotente de um lado, e do outro uma multiddo de “conselhos” de base (sovietes) brotando espontaneamente por toda parte, como cogumelos apés as chuvas.'! Estes tinham poder de fato, ou pelo menos poder de veto, mas no tinham idéia do que fazer com ele, ou do que se poderia fazer. Os varios partidos e organizagées revoluciondrios — social-democratas bolcheviques e mencheviques, social-revoluciondrios, e imimeras facg¢des menores da esquerda, emergindo da ilegalidade — tentaram estabelecer-se nessas assembléias, para coordend-las e converté-las as suas politicas, embora no inicio sé Lenin as visse como a alternativa para o governo (“Todo poder aos sovietes”). Contudo, é claro que, quando o czar caiu, uma proporgdo relativamente pequena do povo russo sabia o que representavam os rotulos dos partidos revolucionarios, e os que sabiam em geral nao eram capazes de discernir seus apelos rivais. O que sabiam era apenas que nio mais aceitavam autoridade — nem mesmo a autoridade dos revoluciondrios que diziam saber mais do que eles. A reivindicagao basica dos pobres da cidade era pao, ¢ a dos operdrios, entre clas, melhores salarios e menos horas de trabalho. A reivindicagdo basica dos 80% de russos que viviam da agricultura era, como sempre, terra. Todos concordavam que queriam o fim da guerra, embora a massa de soldados camponeses que formava 0 exército nao fosse a principio contra a luta como tal, mas contra a severa disciplina e maltrato de outros soldados. O slogan “Po, Paz, Terra” conquistou logo crescente apoio para os que o propagavam, em especial os bolcheviques de Lenin, que passaram de um pequeno grupo de uns poucos milhares em mar¢o de 1917 para um quarto de milhdo de membros no inicio do verdo daquele ano. Ao contrario da mitologia da Guerra Fria, que via Lenin essencialmente como um organizador de golpes, a Unica vantagem real com que ele e os bolcheviques contavam era a capacidade de reconhecer © que as massas queriam; de conduzir, por assim dizer, por saber seguir. Quando, por exemplo, ele reconheceu que, ao contrario do programa socialista, os camponeses queriam uma divisdo da terra em fazendas familiares, nado hesitou um instante em comprometer os bolcheviques com essa forma de individualismo econémico. Ao contrario, 0 Governo Provisério e seus seguidores nao souberam reconhecer sua incapacidade de fazer a Russia obedecer suas leis ¢ decretos. Quando homens de negécios e administradores tentaram restabelecer a disciplina de trabalho, nao fizeram mais que radicalizar os trabalhadores. Quando 0 Governo Provisério insistiu em langar 0 exército na ofensiva militar em junho de 1917, 0 exército estava farto, e os soldados camponeses voltaram para suas aldeias a fim de tomar parte na divisdo de terra com os parentes. A revolugaio espalhou-se pelas estradas de ferro que os levavam de volta para casa. Ainda nao era o momento para uma queda imediata do Governo Provisério, mas do verao em diante a radicalizagao se acelerou tanto no exército quanto nas principais cidades, cada vez mais em favor dos bolcheviques. O campesinato deu apoio esmagador aos herdeiros dos narodniks (ver A era do capital, capitulo 9), os social-revolucionarios, embora estes se tornassem uma esquerda mais radical, que se aproximou dos bolcheviques, e em breve se juntou a eles no governo apés a Revolugaio de Outubro. Quando os bolcheviques — até entio um partido de operdrios — se viram em maioria nas principais cidades russas, e sobretudo na capital, Petrogrado e Moscou, e depressa ganharam terreno no exército, a existéncia do Governo Provisorio tornou-se cada vez mais irreal; em especial quando teve de apelar as forgas revoluciondrias na capital para derrotar uma tentativa de golpe contra-revoluciondrio de um general monarquista em agosto. A onda radicalizada de seus seguidores inevitavelmente empurrou os bolcheviques para a tomada do poder. Na verdade, quando chegou a hora, mais que tomado, o poder foi colhido. Diz-se que mais gente se feriu na filmagem da grande obra de Eisenstein, Outubro (1927), do que durante a tomada de fato do Palacio de Inverno em 7 de novembro de 1917. O Governo Provisério, sem mais ninguém para defendé-lo, simplesmente se esfumou. Do momento em que a queda do Governo Provisério se tornou certa, a Revolugao de Outubro foi mergulhada em polémicas. A maioria delas é enganadora. A verdadeira questio nao é se a Revolugao, como tém dito historiadores anticomunistas, foi um putsch ou um golpe do fundamentalmente antidemocratico Lenin, mas quem, ou o qué, devia ou podia seguir-se a queda do Governo Provisério. A partir do inicio de setembro, Lenin tentou no apenas convencer os elementos hesitantes em seu partido de que o poder poderia fugir-lhes com facilidade se nao tomado por um plano organizado, durante 0 tempo possivelmente curto em que estava ao seu alcance, mas — talvez com igual urgéncia — responder a pergunta “Podem os bolcheviques manter o poder do Estado?” se o tomassem. Que poderia fazer, na verdade, qualquer um que tentasse governar a erup¢do vulcanica da Russia revolucionaria? Nenhum outro partido além dos bolcheviques de Lenin estava preparado para enfrentar essa responsabilidade sozinho — ¢ o panfleto de Lenin sugere que nem todos os bolcheviques estavam tio determinados quanto ele. Em vista da situagao politica favoravel em Petrogrado, em Moscou e€ nos exércitos do Norte, a defesa puramente de curto prazo da tomada do poder jd, em vez de esperar outros acontecimentos, era de fato dificil de responder. A contra- revolugao apenas comegara. Um governo desesperado, em vez de dar lugar aos sovietes, podia entregar Petrogrado ao exército alemio, j4 na fronteira norte do que é hoje a Esténia, ou seja, a alguns quilémetros da capital. Além disso, Lenin raramente hesitou em encarar de frente os fatos mais sombrios. Se os bolcheviques nao tomassem o poder, “uma onda de verdadeira anarquia podia tornar-se mais forte do que nds”. Em Ultima andlise, 0 argumento de Lenin nao podia deixar de convencer seu partido. Se um partido revoluciondrio nado tomasse 0 poder quando 0 momento e as massas 0 pediam, em que ele diferia de um partido nao revolucionario? A perspectiva a longo prazo é que era problematica, mesmo supondo-se que o poder tomado em Petrogrado e Moscou pudesse ser estendido ao resto da Russia e ali mantido contra a anarquia e a contra-revolugao. O programa do proprio Lenin, de empenhar 0 novo governo do soviete (isto é, basicamente Partido Bolchevique) na “transformagao socialista da Repiiblica russa”, era essencialmente uma aposta na transformagio da Revolugdo Russa em revolugéo mundial, ou pelo menos européia. Quem — como ele disse tantas vezes — imaginaria que a vitria do socialismo “pode se dar [...] a nao ser pela completa destruigdo da burguesia russa e européia?”. Nesse meio tempo, o dever basico, na verdade nico, dos bolcheviques era se agiientarem. O novo regime pouco fez sobre o socialismo, a ndo ser declarar que esse era seu objetivo, tomar os bancos e declarar 0 controle dos “operarios” sobre as administragdes existentes, isto é, apor o selo oficial ao que ja vinham fazendo de qualquer modo desde a Revolugdo, enquanto os exortava a manterem a produgdo funcionando. Nada mais tinha a dizer-Ihes.”) O novo regime se agtientou. Sobreviveu a uma paz punitiva imposta pela Alemanha em Brest-Litowsk, alguns meses antes de os proprios alemfes serem derrotados, ¢ que separou a Polénia, as provincias balticas, a Ucrania e partes substanciais do Sul e Oeste da Russia, além de, de facto, a Transcaucasia (a Ucrania e a Transcaucasia foram recuperadas). Os aliados nio viram motivo para ser mais generosos com o centro da subversio mundial. Varios exércitos e regimes contra-revolucionirios (“brancos”) levantaram-se contra os soviéticos, financiados pelos aliados, que enviaram tropas briténicas, francesas, americanas, japonesas polonesas, sérvias, gregas e romenas para o solo russo. Nos piores momentos da brutal ¢ caética Guerra Civil de 1918-20, a Russia soviética foi reduzida a uma faixa de territrio sem saida para o mar, no Norte no Centro da Rissia, em algum ponto entre a regio dos Urais os atuais Estados balticos, a no ser pelo estreito dedo exposto de Leningrado, apontado para © golfo da Finlandia. As tnicas vantagens importantes com que 0 novo regime contava, enquanto improvisava do nada um Exército Vermelho eventualmente vitorioso, eram a incompeténcia e divisdo das briguentas forgas “brancas”, a capacidade destas de antagonizar © campesinato da Grande Russia, e a bem fundada desconfianga entre as poténcias ocidentais de que nao podiam ordenar com seguranga a seus soldados e marinheiros rebeldes que combatessem os bolcheviques. Em fins de 1920, os bolcheviques haviam vencido. Assim, contra as expectativas, a Russia soviética sobreviveu. Os bolcheviques mantiveram, na verdade ampliaram, seu poder, ndo s6 (como observou Lenin com orgulho e alivio apés dois meses e quinze dias) por mais tempo que a Comuna de Paris de 1871, mas durante anos de ininterrupta crise e catastrofe, conquista alema e imposigao de paz punitiva, separag6es regionais, contra-revolugao, guerra civil, intervengao armada estrangeira, fome e colapso econémico. Nao podia ter estratégia ou perspectiva além de optar, dia a dia, entre as decisdes necessarias 4 sobrevivéncia imediata © as que arriscavam um desastre imediato. Quem podia dar-se ao luxo de considerar as possiveis conseqiiéncias a longo prazo, para a Revolugao, de decisées que tinham de ser tomadas jd, do contrario seria o fim da Revolugao e nao haveria outras conseqiiéncias a considerar? Uma a uma, as medidas necessarias foram tomadas. Quando a nova Republica soviética emergiu de sua agonia, descobriu-se que essas medidas a haviam levado para um lado muito distante do que Lenin tinha em mente na Estagio Finlandia. Mesmo assim, a Revolugdo sobreviveu. E o fez por trés grandes razdes: primeiro, possuia um instrumento de poder iinico, praticamente construtor de Estado, no centralizado e disciplinado Partido Comunista de 600 mil membros. Qualquer que tenha sido seu papel antes da Revolugao, esse modelo organizacional, incansavelmente propagado ¢ defendido por Lenin desde 1902, atingiu a maioridade depois dela. Praticamente todos os regimes revolucionarios do Breve Século XX iam adotar alguma variagio dele. Segundo, era, de forma evidente, 0 tinico governo capaz de manter a Russia integral como Estado — e disposto a tanto —, desfrutando, portanto, de consideravel apoio de patriotas russos a parte isso politicamente hostis, como os oficiais sem os quais 0 novo Exército Vermelho nao poderia ter sido construido. Para estes, como para o historiador que trabalha em retrospecto, a op¢do em 1917- 8 nao era entre uma Russia liberal-democratica ou nao liberal, mas entre a Russia e a desintegragdo, que havia sido o destino de outros impérios arcaicos e derrotados, ou seja, a Austria-Hungria e a Turquia. Ao contrario destes, a Revolugdo Bolchevique preservou a maior parte da unidade territorial multinacional do velho Estado czarista pelo menos por mais 74 anos. A terceira razio era que a Revolugdo permitira ao campesinato tomar a terra. Quando chegou a isso, 0 grosso dos camponeses da Grande Riissia — niicleo do Estado, além de do seu novo exército — achou que suas chances de manté-la eram melhores sob os vermelhos do que se retomasse a fidalguia. Isso deu aos bolcheviques uma vantagem decisiva na Guerra Civil de 1918-20. Como se viu, os camponeses russos foram otimistas demais. Il A revolugio mundial, que justificou a decisdo de Lenin de entregar a Russia ao socialismo, no ocorreu, € com isso a Russia soviética foi comprometida, por uma geragdo, com um isolamento empobrecido ¢ atrasado. As opgdes para seu desenvolvimento futuro estavam determinadas, ou pelo menos estreitamente circunscritas (ver capitulos 13 e 16). Contudo, uma onda de revolugdo varreu o globo nos dois anos apés Outubro, ¢ as esperangas dos aguerridos bolcheviques nao pareceram irrealistas. “Volker hért die Signale” (“Povos, escutem os sinais”) era o primeiro verso do reftao da “Internacional” em alemio. Os sinais vieram, altos e nitidos, de Petrogrado e — depois que a capital foi transferida para uma localizagao mais segura em 1918 — Moscou,!"! e foram ouvidos onde quer que atuassem movimentos trabalhistas ¢ socialistas, independentemente de sua ideologia, ¢ mesmo além. “Sovietes” foram formados por empregados da industria do tabaco em Cuba, onde poucos sabiam onde ficava a Russia. Os anos de 1917-9 na Espanha vieram a ser conhecidos como o “biénio bolchevique”, embora a esquerda local fosse anarquista apaixonada, ou seja, politicamente no polo oposto ao de Lenin. Movimentos estudantis revolucionarios irromperam em Pequim (Beijing) em 1919 e Cérdoba (Argentina) em 1918, logo espalhando-se por toda a América Latina e gerando lideres ¢ partidos marxistas revoluciondrios. O militante nacionalista indio M.N. Roy caiu imediatamente sob o seu fascinio no México, onde a revolugao local, entrando na fase mais radical em 1917, naturalmente reconheceu sua afinidade com a Rissia revolucionaria: Marx e Lenin tornaram-se seus icones, juntos com Montezuma, Emiliano Zapata e varios trabalhadores indios, ¢ ainda podem ser vistos nos grandes murais de seus artistas oficiais. Em poucos meses Roy estava em Moscou, e desempenhou um papel importante na nova Internacional Comunista para a libertagao das colénias. Em parte gragas a socialistas holandeses residentes como Henk Sneevliet, a Revolugdo de Outubro deixou em seguida sua marca na principal organizagdo de massa do movimento de libertagdo nacional indonésio, 0 Sarekat Islam. “Essa agio do povo russo”, disse um jornal de provincia turco, “um dia no futuro se tornara um sol ¢ iluminara toda a humanidade.” No distante interior da Australia, os rudes tosquiadores de ovelhas (c em grande parte catélicos irlandeses), sem interesse perceptivel por teoria politica, aplaudiram os soviéticos como um Estado operario. Nos EUA os finlandeses, havia muito a mais fortemente socialista das comunidades imigrantes, converteram-se em massa ao comunismo, enchendo os sombrios assentamentos minciros cm Minnesota de comicios “onde a mengao do nome de Lenin fazia pulsar 0 coragao [...] Em mistico siléncio, quase em éxtase religioso, nos admirdvamos tudo que vinha da Russia”. Em suma, a Revolugao de Outubro foi universalmente reconhecida como um acontecimento que abalou o mundo. Até mesmo muitos dos que viram a Revolucao de perto, um processo menos conducente ao éxtase religioso, se converteram, desde prisioneiros de guerra que voltavam a seus paises como bolcheviques convictos ¢ futuros lideres comunistas de seus paises, como 0 mecanico croata Joseph Broz (Tito), a jornalistas visitantes como Arthur Ransome, do Manchester Guardian, uma figura no notadamente politica, mais conhecido por usar sua paixio por barcos em encantadores livros infantis. Uma figura ainda menos bolchevique, o escritor tcheco Jaroslav Hasek — futuro autor da obra-prima As aventuras do bravo soldado Schwejk — viu- se pela primeira vez militando numa causa e, diz-se, ainda mais espantosamente, sdbrio

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