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caipira a culinaria da paulistania a historia eas receitas de um modo antigo de comer CARLOS ALBERTO DORIA MARCELO CORREA BASTOS Re a a an Re aia a al caipira parece ooupar um papel oadjuvante na gastronomia brasileira BOP ok aad pee CU a ae een Cot ig formagio do Brasil ainda ¢ obseuro. rere ag Perera Rarer es ka en ei peerrn tec pe enon er ree ca eee ee ny ene eer ug a culindria caipira esté entre as mais ricas do pais, eentre as que mais soferam com eens renee et (Plantas Alimenticias Nao Convencionais) era parte da alimentagio cotidiana do eet ar crear das receitas mais tradicionais de nossa ee ene et) ee eee tte SSSR Trees SO rice tse Paulistas, foi se cornando sindnimo de Acculinaria caipira da Paulistania PrOranteaeercom RKPACIOS Notas para degustar um livro Joao Pedro Stédile Se vera que o Brasil nao é longe daqui Carlos Alberto Doria Identidade eaipira ‘Marcelo Corréa Bastos APRESENTAGAO. A busca da culinaria caipira PARTE I~ 0 CAMINHO DA ROGA $ A cozinha dos guaranis: de onde partiu— aculinéria caipira : Os bandeirantes foram longe demais Sitio, o ranchinho a beira-chio Produtos do sitio que ganharam Uma coisa sao sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela. Carlos Drummond de Andrade viygina izaugcOM PREFACIO Notas para degustar um livro. Estimados leitores, ‘Tenho a alegria de thes apresentar um livro que tive o privilé- gio de conhecer na primeira edigio, Jénas paginas iniciais me identifiquei totalmente como texto € pude apreender muito, de maneira que atendo ao convite, ¢& missio, de escrever este preficio com muito prazer, e espero de verdade que todos/as também aproveitem muito. A culindria caipira da Paulistania soa & primeira vista como um livro de receitas destinado ao pessoal do ramo ou aos “aven- tureiros” da cozinha. Nada disso. Trata-se de uma verdadeira obra clissica sobre a cultura de nosso povo, descrevendo virios Aspectos que marcam a formagio da sociedade brasileira nessa. parte do territério. Acomegar pela grata exaltagio do “caipira’, que ha geragdes é marcado pelo preconceito ¢ pela ignorancia — talvez decorren- tes das obras de Monteiro Lobato —, pela forma distoreida com que.as midias corporativas tratam o tema, e pela pouca dedicacao 0 estudo desse recorte social. Os caipiras sio resultado da misci- genagio ocorrida na regitio da Paulistdnia, como parte da forma- ¢40 socioecondmica de nosso povo, da mescla dos indigenas que viygnanzauy com qu habitavam por séeulos, em espeeil os guaranis © eniaras dhe povos afticanos eseravizados ¢ dos brancos europeus com suas diversas culturas, algumas delas marcadas pelas raizes my. tas dos ibéricos. Da soma de tudo isso nasceu o caipira ou, se qu. serem, o apelido para nossos antepassados. ‘Aqui também apreendi essa inovadora denominagio geo. grifica do territério caipira, que os autores chamam de Pau- istinia, formada pelos territorios de Sio Paulo, norte do Para. na, Goids, sul de Minas Gerais ¢ parte do Mato Grosso Mato Grosso do Sul. E sobre essa base de um povo ¢ de um territério que os au- tores nos ajudam a entender os alimentos ¢ a forma de prepa- ré-los que norteiam a rica culinéria caipira, Mais do que um simples livro de receitas, A culindria caipira da Paulistania é uma obra de antropologia, historia, sociologia e cultura, tendo como pano de fundo a explicagdo de como se construiu a co: nha desses nossos avés... O primeiro capitulo é uma contribuigio impressionante sobre a historia do povo guarani das nossas raizes, dos povos que aqui habitavam 0 territorio antes da chegada do europeu capitalista. Sabe-se muito pouco sobre © modo de vida, sobre as ca- racteristicas do que pode ser reconhecido como um modo de produgio préximo a um comunismo primitivo desses povos. Estima-se que chegaram aqui, vindos da Asia, pelo estreito de Bering (no que ¢ hoje o Alasea), ha aproximadamente 50 mil ‘anos. E tem-se poucas informagdes de como se organizavam, como viviam enquanto némades, quando se fixaram, que tipo de alimentos preparavam, como sobreviveram em equilibrio com uma natureza tio riea e como desenvolveram as ativida- des da produgio agricola. 0 Neste livro os autores nos conduzem a contribuigio guarani para 0 uso do milho em nossa alimentagio didria, em suas miil- tiplas formas de preparo, desde o milho-verde in natura, a pa- monha, passando pelo “mingau grande”, que depois os italianos chamariam de polenta. Entio, anote ai, a origem da polenta de milho é guarani, e nio italiana. Hoje, sabe-se que 0 milho nao é nativo de nosso territorio € ‘0s poucos registros historicos aventam a tese de que os guaranis foram buscé-lo em seus interedmbios com os povos andinos do império Inca, no famoso caminho guarani que ligava nosso lito- ral até o ter dos aimaras, hoje uma regio boliviana. Ain- da existem naquele lugar povoagoes descendentes de guaranis, com as mesmas caracteristicas biologicas ¢ culturais dos nossos antepassados. Teria sido de li que vieram as sementes de milho, batatas ¢ outros produtos que utilizamos no nosso dia a dia. ‘Tenho usado sistematicamente esse capitulo sobre a vida € contribuigo dos guaranis em nossa cultura nos cursos sobre a formagao historica do povo brasileiro, ¢ sobre a questio agri- ria a militantes dos movimentos populares do pais. Escrevo este texto sorvendo chimarrio, legado do uso da erva-mate deixado pelos guaranis que habitavam os pampas, onde também me criei. Os caipiras foram se embrenhando pelo sertao adentro, se re- produzindo em novas terras desabitadas, forcados também pela lei de terras n° Gor, de 1850, que Ihes impediu de terem seu prd- prio pedago de terra. Essa lei dava direito a terra apenas a quem tivesse dinheiro para compri-la da Coroa. B assim, a proprieda- de agraria nasceu capitalista ¢ latifundtiria, porque somente os ‘abastados puderam se apropriar dela. Aos mestigos, caipiras, sobrou buscar as terras piblicas e naio ivindicadas pelo fazendeiro capitalista, nos sertdes. E, contra- ditoriamente, essa situagio melhorou ainda mais sua culindria, ‘com a utilizagao da caga, das gorduras, da banha e de outros ve~ ” viyinar zauvCOoM gras, ponent sydns ave featecanat nie sequida parte do ivr0, 08 autores pereorrem a ¢ulinria propriamente dita e eserevem com detainee tocomreceitas —ainda que inciquem como eram preys mas como um guia da alimentagao eda contribuiggg, dont: j nossa cultura até os dias atuais, airy {os Ietores que quiserem se aventurar na cozinha, og res indicam no enpitulo conelusivo o livro Fagao de enka fa 1977). hist6rico na culingria eaipira — ainda que seja contesae apenas como “cozinha mineira” —, com reccitas sistematia fa por dona Maria Stella Libanio Christo, mie de nosso que Frei Betto de quem ele herdou a arte de cozinhar, Certamente vocés lerio ansiosos pagina por pigina, nuns folego, degustando esses ensinamentos escritos com um estig quase informal de conversa de compadres, mas sem fugir do1i- gor cientifico, da citagio das fontes ete. que podem ser mensur- dos pela rica bibliografia, orientando leituras complementares de quem quiser se aperfeigoar. Por tudo isso, acredito que vocés se deliciariio coma leiturades- telivro. E, fagam como eu, indiquem a muitos amigos/as e, se forum educador, de qualquer area do conhecimento, certamente tert aqui muitos subsidios para utilizar em suas aulas e seminirios. Bom proveito! JOAO PEDRO sTEDUE 2 PREFACIO Se vera que o Brasil nao é longe daqui Quando me mudei do interior para.a capital, aos treze anos, meus colegas da nova escola nfo me davam trégua, ridicularizando ‘© modo como eu pronunciava 0 “r”. De repente, eu me vi como um easo de fonoaudiologia e, na pratica, tive que reaprender a prontincia ao gosto da Pauliceia. Hoje, penso que ja estava ali a base do tratamento despre- zivel que, em Sio Paulo, se dedica a qualquer coisa que evoque a cultura caipira, o interior do estado, mesmo um simples “r", ‘Também a cozinha— tio rica elaborada —é considerada “coisa de pobre’, segundo testemunho de chef's que ousam oferecer em seus restaurantes qualquer coisa marcadamente caipira. As vezes nem é a cozinha como um todo que é rejeitada liminarmente, mas apenas ingredientes isolados, como a farinha de milho, 0 milho-verde na forma de curau ou pamonha, ou até a pimenta. Quando se sentam A mesa, os paulistanos imaginam que estio ‘em outro canto qualquer, nunca em Sio Paulo, Ha bem mais de uum século éassim, Mas o Brasil nao élonge daqui, como se vers. Emggs, comecei a me interessar pela cozinha caipiraeescrevi um pequeno artigo, discorrendo de modo ligeiro sobre sua riqueza, na revista Gula, que depois inclui em meu livro Estrelas no céu da 8 viygnanzcauy com oon! Masfoiséquanddo termine! Formasto da culinériabrasteng foo pose pensar neste due oeitor tem em mag, 7 ; pos ter lido um ndmero especial da revista Current an. S sobre 0 que me parece Sera agricultura antes, istoé,antes do Neolitico, pude me dar conta dequia sbropolegy ageicultu jo milho para alimentagio : portante foiomitho paraa alimentag dos povos pré-colonj is poqueveioasero terrtério brasileiro. Ora, omilhoestavaescon- “Faopara mim por causa de um misto de ignorancia eum tanto, indianismo nacionalista, ealeado na presenga quase absoluta dy andioca, o que é uma simplificagao ainda presente em nossag Ictras, Aquela constatagio estimulou em mim uma investigagig ‘emmaior profundidade sobre a formagio ea consolidagaodeuma culindria praticamente desaparecida dos habitos de consumo de nossa gente € que se tornou imaginaria no século 20: a cozinha ipira, quase totalmente bascada na utilizagao do milho. ‘$6 mesmo quem viveu no interior dos estados de Séo Paulo, ., Goiis ou Parana, ou que observa com muita atengio 0 que li ocorre, pode ter uma ideia aproximada do que foi a cult niin caipira, da qual ainda é possivel encontrar algum vestigio, aqui ali, nessas regides — um prato, um simples ingrediente owainda o relato de alguém que nos diz 0 que seus avés comiam como cozinhavam, Assim, quem conhece as eozinhas mine! gland ou vale-paraibana tem nogao da cozinha caipira, masnem sempre sabe que sio recortes distintos de uma matriz comum. Sea culinéria eaipira é& hoje um conceito corrente, a historia desua formagio s6 pode coincidir com o longo processo no qual io sero que é, Mas desentranhé-la da historia nao é fécil. Bm Primeiro ugar porque, sendo uma culinsria de gente pobre, emgeral ‘analfabeta, deixou poucos registros diretos, o que nos faz depender derelatose interpretagdes de terceiros. Em segundo lugar pordue ‘influéncia dos povosindigenas, que foi determinante, remontas pocas muito recuadas no tempo, tendo ocorrido de forma disper” im " sa, em latitudes diferentes — sem contar que esses povos ja nao existiam quandoa cozinha para qual contribuiram se consolidou. e podemos, hoje, acompanhar com clareza algumas influéncias portuguesas, o mesmo niio se pode fazer com as indigenas. A culindria caipira da Paulistania, escrito por mim e pelo co- inheiro Marcelo Corréa Bastos, é a porta de entrada que ima- ginamos para.a cozinha caipira. Trata-se, aqui, de um exercicio ‘20 mesmo tempo histérico, litersrio ¢ culinario, com 0 objetivo de colocar ao aleance do leitor, tanto quanto possivel, a inteireza dessa cozinha que teima em desaparecer. Em 1865, 0 general Couto de Magathaes, que andava muito pelos sertdes, esere Faria um livro utile muito nacional aquele que quisesse deserever todas as coisas que servem de alimento ao povo brasileiro |. ‘com infinidade de informagdes muito mais interessantes do que coisas de Paris, que sio as que mais nos ocupam. Deve isso ser feito quanto antes, porque os costumes nacionais esto de tal sorte transformados, que eu, que me nio considero velho, contudo, em .- pertengo a uma sociedade que ja deixou de existir.* O ritmo de desaparigio de elementos dessa culinaria tem sido bem ‘mais pido do que aquele que marcou sua formagio. Lendoagora livros de receitas da cozinha ai ‘© quanto o marmelo, por exemplo, esta presente no receituirio antigo, eme lembroda profustio dos marmeleiros nascidos espontaneamente nos pastos ou caminhos por onde euandava, edos quais era possivel eolher os frutos que se transformavam em doces de sabor nico, Do mesmo modo, recordo que em uma casa onde morei, em Santa Rosa do Viterbo, no interior paulista, havia um frondoso pé de eambuci — fruto de docura eacidez deliciosas, que pouca gente hoje conhece ou dele sequer ouviu falar. Desaparecimento também notavel foi ‘oque ocorreu com um prato emblemitico dessa cozinha, o cuscuz 6 viygnaizauT com paulista. Bi a {specials —emum aniversirio,na Semana Santa ou no Natal feito da maneira antiga, isto é, 20 Vapor, 20 passo que hoje ele ¢ preparadona panels, comosefosse uma farofa. A maior parte deg pessoas que apreciam esse prato nao conhece a versio ao vapor ¢ nem mesmo possui a panela especial para fazé-1o Assim, a¢ coisas que compédem a: tradig&o culinaria caipira vio saindo do normal da vida para se acumular na prateleira de uma memé; nem sempre bem organizada. Retratar esse substrato culinario de Sio Paulo nao tem, porém, o sentido de uma aventura passadista, pois foi com surpresaeale. aria que pude observar, 20 longo dos tltimos anos, a ressurgéneia de alguns desses sabores nos pratos cotidianos do restaurante Jiquitaia, de Marcelo Corréa Bastos. Ele os faz porque gosta, ¢ ‘gosta porque os conhece desde a infancia no Parané, e também de suas leituras frequentes. O principal do que Mareelo cozinha nao foi aprendido em escolas de gastronomia— sempre presas uma representagdo caolha da culinaria brasileira —, mas a partir dessas referéncias que trazemos para o primeiro plano ‘aqui, por constituirem experiéncia de vida sobre a qual é possivel se demorar, descobrindo coisas sempre novas e surpreendentes. Marcelo criou uma linha de inovagio que corresponde, no meu modo de entender, a um modelo fértil de investigagao de sabores, com paralelo moderno na mediterranizagio da culinéria espanhola de que fala Ferran Adria ao se referir 4 primeira fase do seu trabalho. A cozinha de Marcelo exala uma brasilidade que qualquer um que tenha comido no Jiquitaia pode reconhecer. Isso seconduna com nosso entendimento de que o valor presente da tradigio nfo esti na sua permanéneia como coisa artificial ‘mente viva, tombada como patriménio imaterial, massim como epertorio de sabores 2os quais se possa recorrer para trazer grag? 0 que cozinhamos hoje, Foi assim que, apés extensa pesquise a costume, em familia, comer 0 cuscuz em oeasioe, * 6 em livros outros eseritos, recuperamos também alguns pratos da tradigio que fazem parte de nossas prOprias memérias pes- sonis. Assim, se hoje 0 paulistano médio esta mais familiarizado coma cozinha japonesa do que com acaipira, esse simples contraste, através da nossa mediterranizagio cabocla (para mantermos a analogia com o trabalho de Ferran Adria na fundagio da nova cozinha espanhola), dispde diante dele um mundo surpreendente que, se no expressa o scu passado familiar, é a0 menos 0 do territorio em que escolheu viver. ‘Todos nds, sem excecio, perdemos os nexos histéricos mais, profundos com o territério que foi habitado outrora por grupos ‘guaranis, dos quais os portugueses, para sobreviver, adotaram indmeras estratégias culinarias. Trazendo de novo & luz, neste livro, alguns desses nexos queo tempo recobriu, acreditamos estar contribuindo para uma nova visio de nossa histériaculinaria, na qual triade tradicional — indigenas, negros ¢ brancos —aparece desbalanceada, jé nfo apenas como pano de fundo, mas como ‘um campo onde a presenga negra quase desaparece para revelar, com todo o vigor, a predominiincia da relagao indigena-branco no tecer das solugdes alimentares que bandeirantes, tropeiros € sitiantes desenvolveram e disseminaram por um vasto territério. Ese, aqui ouali, num ou noutro restaurante, é possivel topar com fragmentos dessa caipiridade, é porque chegou enfim omomento de arraneé-la da terra, por estar madura, Quisemos tragar um panorama da cozinha caipira que nao se limitasse a recuperara historia de sua formagao, mas que também pudesse inserever, nas préticas atuais, uma evocagio dos seus sa- bores € modos de transformar a natureza, Isso se consolida nas quase 270 receitas aqui reunidas, que possuem versdes variadas dentro do préprio territério investigado. Sio receitas que aparecem com frequéncia em todas as fontes consultadas, algumas ainda vivas na tradigio oral, de tal sorte que sempre se esbarranelas a0 viygnancauy com recuar no tempo. Trazer esse tempo passado e fragmentado parg nossa motivagio principal, agora fo * Um livro se faz por eaminhos nem sempre previamente conhecj- dios, Muito do que cele édeve-se A interferéncia, consciente ounio, dle virias pessoas. Sabe-se como comega, mas quando terming é jd outra coisa, Por isso, nao poderia encerrar estas palavras introdutérins sem mencionar os débitos evidentes, para mim, ssa trajetdria de mais de dois anos. Em primeiro lugar, foi grande aquele contraido com Viviane Aguiar, gragas a dedicagio eo trabalho excepcional de pesquisa realizado por essa mestranda em histéria na Universidade de Sio Paulo (vst). Além deir a fonte com precistio cirtirgica, ela soube sugerir virias pistas ¢ hipéteses interpretativas sem as quais o livro seria bastante distinto, Especialmente ao iiltimo capitulo, sobre tema que vem estudando, sua contribuigio analitica foi fundamental. Débito grande também tenho com 0 trabalho de ilustragao, realizado pacientemente pela amiga c artista visual Mariana Ardito, que desenvolveu a iconografia em consonineia estreita com o texto e considerando minhas eventuais fantasias, Aos amigos Carlos Bacellar ¢ Walquiria Ledio Rego, pela re- cordagio e partitha de receitas que eu desconhecia. A Karla Ana- por sua consultoria em cozinha goiana. A Maria de Fatima ‘Moura, amiga portuguesa que me propiciou acesso a interessante bibliografia sobre 0 milho e sobre os portugueses no Brasil. AS Ieituras eriticas de Carla Castellotti, Joao Luiz Maximo Francys Silvestrini Adio S. J. A paciéncia, a0 cuidado ¢ a flexibilidade do editor Aleino Leite Neto. CARLOS ALBERTO DORIA © PREFACIO Identidade caipira Umdito recorrente, que eseuto desde erianga, €0 seguinte: quando alguém esta inerte, deprimido, ocioso por algum motivo ouinco- modando gratuitamente qualquer pessoa, costuma-se recomendar: “Vai carpir uma data!” “data” éuma denominagio tradicional, em Sio Paulo, de uma medida de 2g x 50 metros). Essa recomenda- ao sempre me pareceu ter um carter de austeridade, um viés Iaboral; nunca havia me dado conta de sua natureza ontolégica, ‘uma vez que o termo “caipira’, etimologicamente, se refere aquele {que corta 0 mato.' O imperativo, portanto, se destina aquele que ainda nao encontrou um sentido paraa vida e, provavelmente, 0 encontraria carpindo; ou aquele que, em vez de molestar os ou- tros com estultices, poderia fazer algo que realmente importasse. Outro termo que se refere ao caipira, e com o qual convivi com frequéncia devido a minha timidez ¢ falta de traquejo social, é“tu- cura’. Quantas vezes, quando me encontrava reticente, arredio ou cenvergonhado diante de uma situagio social, néio ouvi de meu pai, deminha mic ou, prineipalmente, de meu irmaoa frase “Deixade ser tucura’? Tucura, venho descobrir agora, ¢o gado mestigo, que, assim como o caipira, nio tem raga definida, Sobre o surgimento do caipirae suas caracteristicas genéticas, Darey Ribeiro esclarece: 0 viygnancauy com ‘As miseigenagao er livre poraue quase ninguém haveria, deny a homens bons, que no Fosse mestigo. Nessas circunstineise sino d india eseravacomosenhor resci livre em meio aossaue iguais, que no eram gente da identidade tribal de sua mae, em muito menos os mazombos, mas os chamados mamelucos, frutoy decruzamentos anteriores de portugueses com indias, orgulhososde sua autonomia e de seu valor de guerreiro.? Enquanto outras culturas regionais se manifestam de forma or. gulhosa, organizada e deliberada —por exemplo, as do sertangjo edo gaiicho—, a cultura caipira, envergonhada de suas prop caracteristicas, sobrevive apenas de maneira dissimulada, Essa cultura do subsistente rural que, entre ciclos econémicos, viveu periodos de estagnagio na ampla regitio que vai do sul de Minas Gerais até parte do norte e do oeste do Parans, do vale do rio Paraiba até o Mato Grosso, passando por Goids, e que conjugaas culturas indigena ¢ portuguesa, nao se explicita nem se celebra. Talvez isso ocorra porque caipira nao saiu de seu territério, ‘mas se transformou e foi transformado por ele. Outalves porque o que poderiamos chamar de nagao caipira € parte da regio brasileira com maior densidade demogrificae indice de industrializago. A pujanga econdmica favorece 0 Su simentodeuma estratificagao social bastante complexa, naqual ® avidez pela distingao suplanta a valorizagao de uma cultura ‘ancestral comum a varios estratos. Nao € preciso ir muito longe ‘no tempo para presenciar comportamentos que ilustram ess Supressao de tragos da cultura caipira. E muito comum obser- ‘varmos ovens do interior que vém estudar em Sao Paulo eperdem™ ee assando a pronunciar 0“r” en See oenémeno contrio me parece mast fallidade gaan ttsulrdo na capital nose décomame 'oo jovem retorna a sua cidade de origem. Quando Déria, apés ter almogado num movimentado dia de semana no Jiquitaia, me convidou para escrever um livro sobre acozinha caipira, nao pestanejei: disse que topava, embora mi- nha conseiéncia tentasse frear 0 impulso. Afinal, o que teria cu de caipira, além de pronunciar os “erres” apés as vogais? Sempre me senti tao urbano! Sou de uma cidade do interior, ¢ verdade, ‘mas uma cidade de meio milhao de habitantes que, por ter sido fundada por ingleses nas primeiras décadas do século pasado e colonizada por imigrantes de diversas partes do mundo, ga- bava-se de ser uma “pequena Londres”. Desde muito jovem, tive uma vida sobretudo urbana. A cidade nao era tio grande, ¢ vi- viamos, entio, uma época em que os perigos da violéncia urba- na nfo eram to alardeados. ‘Mudei com minha familia para centro da cidade aos oito anos — viviamos antes em um bairro adjacente a regiio central. Fazia tudo pé, andava pela cidade toda e me preocupava somente com trombadinhas, meninos carentes da mesma idade que eu, ‘ou.um pouco mais velhos, que cometiam pequenos furtos. Meus contatos com a vida rural foram esporddicos: algumas férias na fazenda da empresa de meu pai no Mato Grosso, outras em ‘uma fazenda de amigos no Vale do Paraiba, Apesar de ter passado bons momentos no campo, de ter aprendido como as coisas fun- ynavam ali, e como haviam funcionado em periodos anteriores, nunca fui arrebatado pela vida bucdlica, Sempre fui fascinado, isso sim, pelas cidades, a vida urbana, o comércio, os restaurantes, cinemas, teatros, livratias ¢ bancas de jornal. De minhas vindas a Sio Paulo quando crianga, lembro-me de sentirum inquietante frio na barriga, um fascinio diante das infini- tas possibilidades que a metropole parecia apresentar. Sempre que vinhamos, o programa era mais ou menos o mesmo: passedvamos durante o dia; & noite, {amos a uma pega de teatro e depois a um restaurante (que eu ajudava a escolher no Guia Quatro Rodas, ins- a viygnancauy com tigado pela diversidade de géneros ¢ origens das culinarias, avidg por conhecer o exstico, o nunea antes provado). As muitas horas que passsivamos no trinsito e a aparente inviabilidade da convi- véncia entre toda aquela gente que eu via pelos vidros do carro no faziam meu fascinio arrefecer. Um dia eu haveria de explorar todas aquelas ruas, de escolher o restaurante que bem entendesse, Minha mae ¢ filha de um casal de cozinheiros que ganhoua vida com as panelas. Eles tiveram alguns bares ¢ restaurantesna cidade de Londrina, Meu avé materno, Sebastiio Neves Corréa, foi criado em Sao Sebastitio do Paraiso, em Minas Gerais. Reza alenda que, talentoso no trato com os animais, ele adestravaum jumento ¢ 0 ensinava a passar pelo mata-burro. Entao vendia ‘animal, que, passado algum tempo, transpunha o mata-burro do novo proprietirio ¢ voltava para o sitio de meu avé, que o revendia a outra pessoa. Assim, ele juntou dinheiro ¢ mudou-se para Sao Paulo, onde trabalhou em bares, restaurantes ¢ padarias, Entao, mudou-se com minha avé Cida e toda a familia para Londrina, onde criariam os filhos ¢ passariam o resto da vida Os dois abriram um restaurante no centro da cidade. Nao me recordo muito desse restaurante, mas lembro-me vagamente do Ultimo bar que tiveram, na saida de Londrina, ¢ que foi vendido quando meu avé faleceu — eu tinha uns sete anos. Minha avé, no entanto, nunca deixou de cozinhar: até os noventa anos alimentou, diariamente, um batalhao de filhos, netos ¢ bisnetos. Era bonito ver oaprego que ela tinha pela comida ea importineia que davaias refeigdes. Embora nao costumasse demonstrar afeto com gestos e carinhos, ela o fazin com suas mesas de almogo. Lembro-me de um momento muito tocante de scu funeral, quando meus primos e meu tio comecaram a falar da comida dela ¢ do prato que cada um tinha como preferido. Ficou evidente para mim 0 amplo repertorio que ela tinha: frango ensopado, costela asada, bife acebolado, rabada, carne de panela, macarronada, figado. salada de batata, quiabo, jil6 e panquecs de espinafre. Era ine vitavel, acabei com os olhos € a boca cheios agua. aoe Desde que inaugurei o Jiquitaia, procurel cocinhat oa a nha como referéncia, a comida & qual estava mi cs eae a seguir, de forma nio muito precisa, 0 cardpio comercial cendigional de Sio Paulo, que era o que meus avOs cortumavam servir em seus restaurantes € bares ¢ que, consequentemen a Influenciou muito a comida que minha mae fazia em casa. ‘cardapio do Jiquitaia foi se desenhando naturalmente- ae te-a pesquisa, quando me deparei, no livro Os pareeir0s A 0 Bonito, de Antonio Candido, com uma relagao de ingredientes notei que o que cu fazia ¢ utilizava com mais ¢ pratos caipiras, ; tinha muito do que é descrito frequéncia, inconscientement ‘como um ideal de dieta do caipira. Embora me imaginasse distante dessa cultura, 20 buscar as cearacteristicas do caipira com um pouco mais de profundidade, pereebi que os ingredientes e modos de fazer da sua cozinha eram comuns ¢ identificaveis. Mas nio s6 isso: comecei a colecionar ele- ‘mentos muito préprios da minha forma de agir, de costumes meus ede meus ancestrais que me parecem heranga da cultura caipira. Lembro-me imediatamente de minha avé paterna quando, por exemplo, Antonio Candido descreve a etiqueta caipira, paraa.qual todo alimento deve ser oferecido, e nenhum aceito sem negativa prévia, Nada é mais impolido do que demonstrar cobiga por alimento alheio|...). A comida & sempre considerada indigna por quem oferece ede raro paladar por quem aceita; pouca, segundo o primeiro, abundantissima, para o segundo.* Mesmo que esse padriio de comportamento atribuido ao caipira seja muito comum em diversas pessoas que conheci, principal- mente mulheres mais velhas, ¢ dificil dissocia-lo de minha avo Dirce, mae do meu pai, que sempre tinha em casa um bom es- 2 viygnanzcauy vom toque de compotas varindas, que ela mesma Produ 9 amendoins confeitados ¢ algum tipo de manjar, “ *émde Mewav paterno, Luis Dias Bastos, também tinha 4, uma gentiencaipirs. Filho de administrador de acy =" sel os pasos dopa (ae perdeu muito cede, aga para otf) trabalhou na agrieultura a vida toda, Gg" inmios esereveu um livroem que relataatrajetdriadafanie facenda em fazenda, até se estabelecerem, apésa monty bisav6, na cidade de Monte Azul, em Minas Gerais, Com, i livro de memérias, nao faltam deserigdes de pratose qu preparados por minha bisave Olivis tes O almogo de domingo, sempre mais variado e mats completo, servido: salada de alface com tomate, feijio com farina dmg, arroz"“Sio Silvestre’, todo enfeitado com salsa, frangoassadosne pedagos, farofa mexida com mitidos de frango, ovos ¢ azciton, Como sobremesa: laranjas, tangerinas, pudim de laranja eas saborosas “bananinhas”. Duas enormes jarras de dgua, sucode limto galego eagticar. Para arrematar, ocafezinho “bem espets’S Identificadas minhas raizes cafpiras, devo dizer que o impetode aceitar o convite para participar deste livro se deve nioséess. ligagao, que me impregna, mas também & admiragio que tenho por meu parceiro, Nao sabia quando receberia de novo umcomite para trabalhar com Déria, Nossa relagio precede minha vidade cozinheiro profissional. Eu o conheci logo que cheguei a Sto Pt rio pessoalmente, é verdade, mas por intermédio de um livros Devia ser janeiro de 2008, ¢ eu, recém-formado em dire Pela Universidade Estadual de Londrina, me preparsv® Pat © exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Viera StoFat® para ficar perto de minha namorada (hoje esP0S®)» ong um emprego e, enfim, seguir a vida, Em um dos momen deseanso dos estudos juridicos, quando me distrais com a leituras, escolhidas aleatoriamente nas prateleiras da biblioteca do Gentro Cultural Sao Paulo, me deparei com o livro Estrelas no céu da boca. Perdi aquele dia de estudo inteiro, fascinado pelo delicioso texto que tratava de um tema que muito m teressava. A saga do autor como restaurateur, suas reflexdes tericas e complexas sobre a cozinha brasileira, um ensaio sobre o restaurante por quilo.. Nao imaginava que era possivel pensar a cozinha daquela forma, que a gastronomia, atividade que sempre me parecera to simples, tao trivial, pudesse reverberar daquele modo, Nao exagero se disser que Déria, além de me trazer de volta para uma atividade, digamos assim, mais intelectual, teve uma parcela de culpa em minha mudanga de trajetoria profissional naquele mo- ‘mento. Além de gostar muito de comida e de restaurantes (como frequentador), passei a me interessar pela ideia do negécio. Nao que ela nunca houvesse me passado pela cabega; mas, antes, era sempreem uma versio mais idlica, do tipo “Quando me aposentar vou abrir um restaurante, fazer o que gosto”. A partir daquele ‘momento, comecei a enxergar a gastronomia de outra forma. Minha contribuigdo para a construgio deste livro foi modes- ‘tae se restringiu a sele¢io das receitas € a algumas reflexdes ¢ ‘comentarios acerca de minhas experiéneias com elas e com seus ingredientes. Jia influéncia que este livro teve em meu trabalho incomensurivel, ¢ certamente ser cada vez maior. * Por mais paradoxal que possa parecer, algumas modas das van- guardas gastronémicas contribuem para aproximar nossos co- zinheiros das culindrias regionais ancestrais, como a caipira. A ‘alimentagio como umaatividade essencialmente agricola, nogio incorporada por movimentos gastronémicos de ponta, como o viynanzcauy com consequent valorizagi0 do terroir deseo + ogutos € modos de produglo gue hayign nS : si gricolas modernas e demand, gredient ; jos por praticas 2 orerrad o. ra las; soreromogencizadas. A proliferaeto do uso das Panes (i Ht roe Nao Convensionals) POF eX€mplo, parece mi imentic Cl inert. A uniformizasio do consumo de her ino sem W consequente diminuigio na variedade de honey grranjeir grandes centros comecam a sof grandes cam a softer um rey tasdisponiveis no nt cwsdispcimento]eaaceleragio da demanda por varedade, satus, Hortaligasquese tOTmaram Aas, como bertla dq ona aoe seralha,comegama volta 8s feiras enosmeready, vei ates, a cesta. de verduras se Timitava a couve agg vice raula. A moda dos restaurantes “do campo i mess, dproximagio entze cede eozinha, pequenos produtores uni aeresiosqe fazem queijos, embutidos, farinhasete.,eaansa “icoferecer produtos inigos ¢ exclusivos tém contribuido para + alguns aspectos da cozinha enipira. \do comparamos. lista de hortaligas do caipiraapresen tada pelo jornalistae escritor Cornélio Pires em Conversa ao pd fogo aos menus-degustagio de alguns dos chefs brasileios maiscriativose renomados, notamos que muitos itensantescon siderados banais, e que aabaram deixando de ser produaides {por causa da busca por maior produtividade de uma variedade menor de produtos), agora ressurgem como produtos de x0 -exclusivos, para poucos: ‘io falramas tumbas de batata-doce, branca ou roxa, de cart. d¢ arto, de batatinha, Na horta no faltam a couve,aalfaee¢ tepolho, oquiabo, o card de érvore, a ervilha, as favas, 0 Fete uandu, 0 fejjio de vara,a taioba, a mostarda, ¢@ aboboreira Pet cambuguira, eas abobrinhas, morangas e mogangos: © chet oalhoeacebolas Em ripida pesquisa na internet, encontramos pratos de chefs celebrados que utilizam algumas dessas hortaligas. O restau- ante Tuju, em Sio Paulo, por exemplo, serviu, em um de seus brilhantes menus sazonais, um varénique de mangarito com ovo de codorna. Nos primeiros menus da casa, havia um prato de foie gras com feijao-guandu, O foie gras era 0 protagonist, mas, com o passar do tempo, o feijao-guandu tornou-se o elemento principal de outras receitas. A bochecha bovina com puré de taioba ja ¢ considerada um clissico de Helena Rizzo, chef do restaurante Mani, também em Sao Paulo, No Jiquitaia, sempre utilizo cambuquiras, que sito os brotos, ou folhas jovens, das cucurbiticeas. Costumamos serviras de chuchu, mais faceis de encontrar, cozidas, acompanhando as alheiras produzidas na casa ‘Jas cambuquiras de abobrinha sio servidas sozinhas, levemente empanadas ¢ ou cozidas, em sopa de milho- talos e folhas carnosos e saborosos, sio uma iguaria finissima. “Também utilizo com muita frequéneia a batata-doce roxa— que, por um bom tempo, era destinada exclusivamente a pro- dugio artesanal de doces ¢ hoje comega a aparecer em pratos de diversos restaurantes. Com ela, prepara-se um nhoque que surpreende pela aparéneia (os clientes sempre perguntam se a coloragio é natural), pelo sabor e textura. Os mogangos, citados por Cornélio Pires, também atestam 0 fendmeno da supressio de variedade de espécies, no caso entre as abéboras. Muitas eram as variedades nativas consumidas por nossos ancestrais. Hoje, as espécies encontradas sio basicamente trés: a cabocha, de origem coreana; a moranga, preservada talvez pela sobrevi- véneia de alguns pratos tipicos emblematicos, como o camarao na moranga; ¢a abdbora de pescogo, que costuma ser destinada ‘a produgao de doces e compotas. Variedades como 0 mogango, por exemplo, muito dificeis de encontrar, sto desconhecidas da maior parte da populagio. verde; com 2 viyinar zaud COM 4 dearvore mangarito,fijio-guand,taioba ccambugurg seeetsis que embora fossem de uso comum na slimentagig serene ats, como se constatamacitagao de Cornlio Pry, tesees neuen norol das Panes. O termo, cunhado pel bidlogy ek fir Valdely Knupp refere-sea plantas ou partes delas que aso utilizadas usualmente naalimentagio, apesar de serem Tomestiveis. Designa desde plantas nativas pouco conhecidas falgumas consideradas ervas daninhas pela agriculeura moder. ra) até hortaligas que, por desinteresse dos produtores ruras, ‘Jeixaram de ser eultivadas, passando por plantas ornamentals {que tenham alguma parte que possa ser consumida. Partes de plantas que jé nao so consumidas com tanta re- gularidade, como as cambuquiras ¢ as folhas da batata-doce, as castanhas de frutos diversos, como pequi e jaca, ¢a raiz tuberosa do chuchuzeiro e de outras espécies também se incluem nessa classifieagio. O fendmeno da popularizagao das Panes, queocorre emritmoacelerado, se deve, além da difusto da alta gastronomia, ‘20 crescimento do vegetarianismo e de suas correntes mais orto- doxas, a0 surgimentona midia de gurus populares daalimentagio natural e nutricionistas ligados& agricultura familiar, etambém 4a fadiga geral em relagao as praticas da industria alimenticia. Chegou-se am ponto em que o produto final que éentregue a0 consumidor encontra-se distante da pratica agropecuéria,ea simples mengio ao abate de animais causa ojeriza— mesmo aque- es que nem sonham ser vegetarianos e comem, tranguilamente, presuntos em forma de paralelepipedos idénticos ou partes de frango de tamanhos precisamente padronizados, temperadsse congeladas. Hoje, as criangas identificam os logotipos das marc®s da grande industria alimenticia com mais facilidade do que ®> hortaligas in natura mais banais. ‘Tenhoaimpressio de quea antitese desse modelo de produsi Ae alimentos comegou a se intensificar em mendos da déeade Car de 2000, quando o assunto virou tema de debate piiblico. Em 2004, um documentiirio independente, Super Size Me, ganhou notoriedade ao questionar o modelo de alimentagio americana baseada no fast food. No filme, o diretor Morgan Spurlock se submete, durante trinta dias, a uma dieta em que se alimenta exclusivamente de produtos do MeDonald’s. O filme mostra os efeitos da dieta: Spurlock ganhou onze quilos ¢ teve a satide se- riamente abalada, com alteragdes de humor ¢ disfungao sexual. Dessa época até hoje, € notavel a popularizagao da cultura da vida saudavel. A busca por produtos organicos ¢ a atengio& importancia, paraa saiide, da alimentagio a base de ingredientes mais naturais chegou a tal ponto que a prépria grande industria comegou a lancar linhas organicas e a adquirir empresas que lidam com esse tipo de produto. chef americano Dan Barber, do restaurante Blue Hill, em Nova York —um dos principais expoentes dacozinha “do campo mesa” —, relata em O terceiro prato: observagdes sobre o futuro da comida a redescoberta de um tipo de milhoamericano ancestral, realizada por ele e por um agricultor associado, e como chegou, consequentemente, a “melhor polenta da vida" O livro chamaa ‘atengio dos chefs para a importancia dos produtos¢ ingredientes eum manifesto em defesa das praticas agricolas que aproximam oagricultor do consumidor, causam menos impactos no meio ambiente e resgatam espécies ancestrais de grios e hortaligas. Ocorreu comigo uma situagio de certa forma andloga 4 do chefamericano, Diversos pratos que servimos no Jiquitaia tém 2 farinha de milho como ingrediente, das farofas aos cuscu- zes, passando pelos virados ¢ escaldados. Costumava comprar a tinica variedade do produto vendida na casa do norte onde costumo adquirir os varios tipos de farinha de mandioca que utilizamos na casa. Quando ganhei de presente de Carlos Alberto Déria um pacote da farinha de milho produzida pela Fecula- viygnancauy com Nossa Senhora das Brotas, de Lindoia, em gig Pau experigneia transformadora. A farinha comida a sting No pequeno perfodo que se passou desde que inaugurei 0 Ji- r om 2012, pude notar uma transformagio no mercado das iret, uma aot. ser pasar POF ENBLM PTOCESO, fe crarmeiyt | quia : Prof que eu facia com a minha farinha habitual: eq 2] farinhas de mandioca. Apesar de ainda existir grande variedade Oars de farinhas mais artesanais, as tradicionais casas de farinha das reve, apresentava flocos grandes, em formato de fnay uma verdadeira obrade arte. O sabor daquelafarinha reg era mito melhor do que aquele a que eu estava aeostun, sendo ela mais fresea, sentia-se 0 gosto do milho, Const produtorimediatamente e passei a utilizar exclusivamenec farinha no restaurante. Uma simples farofa feta comelaect pouco de manteiga de garrafa, que servimos comoaconpars mento de vos pratos, causa deleite nos comenstis, apes simplicidade da guarnicao. Certa vez, em uma viagem & cidadezinha mineira de Pan, s6polis, terra natal de meus sogros, me deparei, emumpeque ‘agougue, com trés variedades de farinha, de qualidade compariv ado produto da Fecularia Nossa Senhora das Brotas, Otimsu, saginei que nem tudo estava perdido, que devia ser comumen Minas Gerais encontrar farinhas de milho de boa qualidade, qu a monotonia devia ser uma exclusividade paulistana, Semanas depois, convidado a participar de um evento em Belo Horizont, deixei para comprar Ii a farinha de milho para a farofa coma qual finalizaria meu arroz de sua do Jiquitaia. Minha surpres dessa vez, foi descobrir que, em todo o rico mercado municip da capital mincira, nas inimeras e diversas casas que vende farinha, s6 havia uma mesma variedade mediocre defarinhade mitho, semelhante aquela que eu costumava utilizar antesd¢ conhecer a excelente produgio de Lindoia. Parece-me, portant ‘que s6 restam alguns poucos produtores que se preocupamco® os detalhes da fabricagao da farinha de milho, e que eles de" Provavelmente, ser vistos como excéntricos, por priotisa"*4™ lidade do produto, ¢ nao os custos ¢ 0 rendimento. regides Norte ¢ Nordeste do pais parecem perder espaco no mer- cado para indistrias mais modernas, do oeste do Parana, que produzem verses mais padronizadas, em maior eseala, ¢ de qua- lidade inferior. Cada vez que vou ao Largo da Concordia, regiao de Sao Paulo que concentra estabelecimentos especializados em produtos do Nordeste, encontro menos variedades de farinhas, ‘e mais marcas vindas do Sul do pais. Embora o Pard ainda seja o maior produtor, a produgio de outras regides — variedades mais industriais — eresce de forma acelerada. ‘Com cada prato que incluo no cardapio do Jiquitaia, espero proporcionar ao comensal, além do prazer dos sentidos, alguma ‘emogiio adicional, como a surpresa de uma nova combinacao, r ou a descoberta de uma conexao Jembranga de um sabor fami cultural. © arroz de su‘i, um dos pratos mais consagrados de minha cozinha, é feito com a espinha dorsal suina, circundada por um pouco de carne. No cardpio do restaurante desde a 9. costuma causar reagdes diversas. Entre os clientes mais velhos, que ja 0 conhecem, a nostalgia ¢ bastante comum. ‘Com muita frequéncia, escuto pessoas de mais de sessenta anos lizerem que sua mie preparava esse prato e que fazia muito tempo que nao 0 comiam. Outros se alegram por ter matado a curiosi. dade de conhecer um prato do qual jé haviam ouvido falar, mas que pareci O fato é que, considerando a simplicidade dos ingredientes, a facilidade de execugao € 0 baixo custo, é dificil entender por que 0 arroz de sua teria se perdido no tempo. Fatores como a sobreposigiio das modas culinarias das elites, a desconfianga que Perdurou por décadas em relagio seguranga alimentar da carne 30 viyinar zauv COM scaina,a transformagio dos Processos industria dg seginalizagio dos crtes supostamente menos nob ‘Tapreocupagto com fatores nutricionais— contripy; an relegar o prato a condigio de excentricidade eee ve pea, O unico ajuste que fiz nas versOes mais tradi st antes de misturé-la ao arroz —e sig, lee 05 Produg desossar ast os clientes que nao gostam do prato. Quando decidi abrir o Jiquitaia, pretendia, grossomo ; fa do, um bistré de cozinha brasileira. Meu intuito era trabalh fe sabores que me eram mais familiares ¢ trazer clementog aa de outras regides do pais para construir uma cozinha andl autorale live, Uma das espinhas dorsais do eardépiocraa ge do menu comereial paulistano tipico, Como ¢ de costume, a restaurante acaba tendo vida prépria: seu cardépio toma ung que niio exatamente aqueles que haviam sido planejados, iy algumas premissas quando penso em sua formulagto: ora fazemoy um prato regional tipico da mesma forma como ele seria ft em qualquer botequim ou restaurante tradicional (um exemplo éamoqueca, que pode ser claramente identificada sem quese necessario dizer 0 que é), ora criamos um prato a partir deun| ingrediente nativo, ou fortemente identificado com a cosiis brasileira, e evidenciamos esse ingrediente. E 0 caso donhogue| de banana-da-terra, criado a partir de uma decisio minha de oferecer uma entrada feita da fruta. Foram feitos virios tests etentativas até chegarmos ao nhoque, simples, feito de banam -da-terra pura, que servimos com um ragu de carne-secs. “Também apresentamos um prato bem brasileiro, oar pato com tucupi, servido com um peito malpassado dav =! se francés fosse. E é curioso notar que os cardapios do Jiguiti escritos apenas em portugués e trazendo, quase sempre produtt nativos, geram mais perguntas do que os menus de restau franceses ¢ italianos, eseritos em linguas estrangei™ 2 comum as pessoas conhecerem um filé au poivre ou um steak tartare do que um arroz de sui, um quibebe ou um feijao tro- peiro, Sempre nos perguntam, no restaurante, o que é quirera de milho (que servimos como sopa, enriquecida com costelinha suina eembutidos, ou acompanhando mitidos de frango ou outra carne), enquanto a caponata italiana ou o gaspacho espanhol dificilmente geram duvidas. Volto a Cornélio Pires Feijio com eouve ralada, ou picada; “feijao virado” em farinha de rmilho; linguiga; arroz com sua de porco, com frango ou com aves selvagens, ou com entrecosto; couro “pururuca’, de porco, torresmo, viradinho de milho-verde, viradinho de cebola, virado de couve ou ervilha, palmito, batatas ¢ ensopados de card, serralha com muito cealdo, “cuscu2” de lambari bolo de fubs, “bananinhas” de farinha de trigo, além de outros pratos. A refeigao salgadaéencerrada ‘com um bom ealdo de couve ou serralha, de palmito ou cambuquira.* Dos pratos e ingredientes que Cornélio Pires cita ao descrever aquela que seria dieta ideal do caipira, apenasas aves selvagens ‘nunca passaram— por motivos legais —pelas panelas do Jiquitaia, cuja identidade penso ja estar bem delineada. A utilizagaoampla erepetida do milho e derivados, a predilecio pela carne suinaem relagio a bovina, ouso desta Ultima na forma de charque ou carne serenada, a opgdo pelo frango exclusivamente caipira e por uma profusiio de hortaligas —abéboras, couve, jilé, quiabo, pupunha, cambuquira—, a produgdo de uma linguiga artesanal prépria cos feijdes varindos, entre outrasideias, mostram que, na busca de uma brasilidade original para o Jiquitaia, acabei, inconscientemente, revelando o eaipira que existe dentro de mim. MARCELO CORREA BASTOS viygnanzaud COM APRESENTAGAO Abusca da culinaria caipira ‘Onaturalistae viajante francés Auguste de Saint-Hilaire, um dos mais argutos observadores da natureza ¢ da sociedade brasileiras no inicio do século 19, fez uma sintese admirivel dos habitos alimentares que encontrou em suas andangas: (Os habitantes do Brasil, que fazem geralmente trés refeigdes por dia, emo costume de almogar ao meio-dia. Galinha e porco sioas cares que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da. Provincia de Minas. O feijio-preto forma prato indispensivel na mesado rico, eesse legume constitui quase a inica iguaria do pobre. Se a esse prato grosseiro ainda se acrescenta mais alguma coisa Garroz, ov couve, ou outras ervas picadas e a planta geralmente preferida éa nossa serralha (Soncbus oleracus,L.),quesenaturalizou no Brasil, eque, por uma singularidade inexplicavel, se encontra frequentemente em abundancia nos terrenos emque recentemente se fizeram queimada de mata virgem. Como nfo se conhece 0 fabrico damanteiga, ésubstitufda pela gordura que se escorre do toucinho ‘quesefrita. O pio é um objeto de luxo; usa-se em seu lugar a farinha de milho,¢ serve-se esta ltima ora em pequenas cestinhas ou pratos, ‘ora sobre a propria toalha, disposta em montes simétricos. Cada ‘convivasalpica com farinha o feijio ou outros alimentos, aos quais 8 viygnanzcauy com soxefaeseassimumaespécie depasta: mas, quando se ‘cada vez que se eva um pedago it boea, junta-se Jha, e, om uma destreza i uma prada sem deisar exirum sO 80, Um dos patos favoritos eae eros éagafina conida com os frutos do quiabo (Hibiscus ae fs de que mao secomemcom prazer sendoacompanhadode spe expéie depoentasem sabor[-Empartealguma talvez se are yma anto doce eomona Provincia de Minas; fazem-se doces de sma multdao de cosas diferentes; mas, na maforia das vezes,nio seadistingue o gosto denenhuma, com tanto agiicar sto feitos. Nao ‘esse, entretanto, ogenero de sobremesa preferido; o que delicia ‘osmineiros éoprato de canjica, nome que do ao milho descascado ‘ceozido em agua. Nada iguala a insipidez de semelhante iguaria e, no entanto, estranha-se que o estrangeiro tenha o mau gosto de seadiciona ceomecarenssadiy uma coer de fart imitavel, arremessa- adicfonar-Ihe agicar.” Lido hoje, esse relato extenso mostra mais do que o que se co mia a época. Revela que os habitos e as preferéncias ali tares surgidos por aqui nos primeiros tempos, muito por in- fluéncia dos indigenas, ja haviam penetrado o universo daclite —a fazenda —e se estabelecido. Mostra como ingredientes 4a Afriea (quiabo) e da Europa (serralha) faziam parte da vida didria. Mas mostra, sobretudo, uma tensiio em relagio a0 uso doagucar: se, por um lado, as conservas parecem, ao paladar do ‘observador, “muito doces”, escondendo os sabores das frutas, por outro, ele sente que falta sal no angu e agticar na canjica, que oS estrangeiros tém o mau gosto de acrescentar. Tem-se, assim, um uadro de enormes transagdes alimentares — de ingredientes, degostos —que, aos olhos de Saint-Hilaire, configura certa or ginalidade da cozinha que viriamos a denominar caipira. Em1937, Luis da Camara Caseudo ja imaginava escrever "UM sides, extremo-norte, nordeste, Rio, S. Paul 2% —Minas, centro e sul, caracteristicas, pratos velhos ete. Apenas um artigo de informagio de bloco"? No entanto, em sua Historia daalimentagao no Brasil, preferiu perseguir as marcas dos passos que indigenas, negros e brancos deixaram no solo da culinaria danova terra, emprestando menor importéncia as configuragbes, que ela assumira aqui e ali, ou seja, atenuando o enfoque regiona- lista. De fato, 20 contrario de Gilberto Freyre, Cascudo foi um antirregionalista, ea delimitagao da culinéria caipira nao estava entre as suas cogitagdes. Mas, decorrido meio século desde oapa- recimento da Histéria da alimentacao no Brasil, énatural que seja. preciso revist-la, especialmente a luz de novos estudos que tocam, de perto os temas que abordou. Hoje, o nacionalismo ou mesmo oregionalismo ja no tém a importancia que tinham na culinéria; a arqueologia ¢ a antropologia deram grandes saltos, tornando obrigatério um novo tratamento do passado indigena; os negros sio mais conhecidos em suas origens tribais africanas; e mesmo as culinarias populares regionais foram objeto de virios estudos académicos, aparecendo com novas feigées. Em consequéncia, 0 que se busea neste livro ¢ reunir fatos € construir argumentos capazes de resultar em uma compreensio melhor da complexidade do que entendemos hoje por cozinha.caipira, indo além do amontoado de pratos que usualmente identificamos essa tradigio, em um restaurante “tipico” mineiro, por exemplo. Para tanto, buscamos sobrepor a um determinado territério uma hist6ria social, procurando um caminho capaz de alinhavar tudo ‘o que possa ser referido & tradigio que ai se formou e se manteve. ‘Ao buscar construir essa coeréncia, foi preciso recorrer a geografia, € A hist6ria, aos habitos alimentares, sobretudo de portugueses € indigenas, que, a0 longo dos trés primeiros séculos da colonizagio, mantiveram uma convivéncia o mais das vezes forgada. Nessa re- lagao de dominagio, desenhou-se um terreno de trocas cultu ‘no qual, primeiro, o portugués teve de se aproximar do indigenae viynanzaug com

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