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Clifford Geertz O SABER LOCAL Novos ensaios em antropologia interpretativa Traducao de Vera Mello Joscelyne 0 saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa « 3* Edigio / Clifford Geertz; traducio de Vera Mello Joscelyne. — Petr6polis, RI Vozes, 1997. ‘Titulo original: Local Knowledge. ISBN 85.326-1932-0 1, Etnologia ~ Discursos, ensaios e conferéncias I. Titulo, aa y EDITORA indices para catélogo sistemitico: VOZES 1, Antropologia interpretativa: Sociologia 306 ologia Petrapoli 2. Etnologia: Sock 306 polis me 2000 Capitulo 6 Centros, reis e carisma: reflexées sobre 0 simbolismo do poder > Introdugio Como tantas outras idéias-chave na sociologia webe- riana, versteben, legitimidade, ascetismo do mundo inter- no, racionalizacio, 0 conceito de carisma nao é explicito com relacio ao seu referente: 0 que denota, afinal? um fendmeno cultural ou um fendmeno psicolégico? Como o carisma ora é definido como “uma certa qualidade” que destaca um individuo, colocando-o em uma relagao privi- Jegiada com as origens do ser, ¢ ora considerado um poder hipnotico que “certas personalidades” parecem possuir € que Ihes torna capazes de provocar paixdes e dominar mentes, nao é possivel saber ao certo se ele € um status, um estimulo ou uma fusio ambigua dos dois. A tentativa de escrever uma sociologia da cultura e uma psicologia social em um tinico conjunto de frases é o que da a obra de Weber sua complexidade orquestral ¢ sua profun- didade harménica. Mas é, também, o que dé origem a sua intan- gibilidade crénica, sobretudo para ouvidos pouco acostumados a polifonia. Em Weber, um exemplo clissico de sua propria catego- tia, a complexidade € bem administrada, € a indefinicao contrabalancada por sua habilidade extraordiniria em man- ter unidas idéias conflitantes. Em tempos mais recentes € menos herdicos, no entanto, a tendéncia tem sido a de aliviar © peso que scu pensamento carrega, reduzindo-o a apenas uma de suas dimens6es, mais comumente a psicol6gica. Em nenhum outro caso isso € tio verdadeiro como no conceito 182 de carisma.’ Desde John Lindsay até Mick Jagger, muita gente jd foi chamada de carismética, devido a sua capacidade de atrair um determinado niimero de pessoas com o brilho de sua personalidade: e a interpretacao mais comum que se da 0 aparecimento ~ este um pouco mais genuino — de lideres carismaticos nos Estados Novos, € que esses seriam um produto da psicopatologia que a desordem social alimenta.” No psicologismo generalizado desta era, tio bem observado por Phillip Rieff, 0 estudo da autoridade pessoal se estreita ara transformarse em uma investigagio do exibicionismo e da neurose coletiva; seu aspecto espiritual desaparece de vista? Alguns estudiosos, ¢ entre estes Edward Shils € um dos mais proeminentes, procuraram evitar essa reducao da va- liosa complexidade weberiana a clichés neofreudianos, a0 admitir que existem temas miiltiplos no conceito weberiano de carisma, que quase todos eles foram afirmados mas néo desenvolvidos, e que, para preservar a forca do conceito € preciso elaboré-los e descobrir qual é, precisamente, a dina- mica de sua interagdo. Entre a falta de clareza que resulta quando se tenta dizer muita coisa ao mesmo tempo, € a banalidade que é fruto de um repiidio do desconhecido, existe a possibilidade de tentar definir a razdo pela qual Para uma excelente revisio eral dessa questio, veja a introdugio de SN. Eisenstadt para sa coler4nea dos traballhos de Weber sobre carsma, Max Weber ‘on chartema and inettution Building, Chicago, 1968, p. iclv. Sobre a “psico- Togizacio" da legiimidade, veja H. Pitkin, Weigenstin and justice, Berkeley € os Angeles, 1972; sobre “ascetismo do mundo interno”, veja D. McClelland, The achieving society, Princeton, 1961; sobre “racionalizacio, A. Mitaman, The iron cage, Nova lorgue, 1970, Toda essa ambiguldade © até confusio nas interpretgies, cahe-aos dizer, nfo debam de ter alguma justiieativa, devido 0s préprios eros de Weber. Para alguns exemplos, vela “Philosophers and kings: studies in leadership’ Daedalus, vesio, 1968. 3. Ref, The triumph ofthe therapeutic, Nova Torque, 1966. 183 alguns seres humanos véem transcendéncia em outros, € exatamente o que significa esta transcendéncia. No caso de Shils, as dimens6es do carisma previamente negligenciadas so retomadas quando ele focaliza a conexio entre 0 valor simbélico. de individuos ¢ a relagdo que estes mantém com os centros ativos da ordem social.’ Tais cen- ‘tros, que “nao tém qualquer relacio com geometria ¢ muito pouco com geografia”, so, em esséncia, locais onde se concentram atividades importantes; consistem em um pon- to ou pontos de uma sociedade, onde as idéias dominantes fundem-se com as instituigdes dominantes para dar lugar a uma arena onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos membros desta sociedade de uma maneira funda- mental. £ 0 envolvimento~mesmo quando este envolvimen- to € resultado de uma oposicio — com tais arenas e com 0s eventos ocasionais que nelas ocorrem, que confere o caris- ma, O carismético no € necessariamente dono de algum atrativo especialmente popular, nem de alguma loucura inventiva; mas est bem préximo ao centro das coisas: Esta proposigao de que a origem do carisma relaciona-se um ponto central privilegiado tem uma série de implicagoes, primeira delas € que figuras carismaticas podem surgir em qualquer parte da vida social - tanto na ciéncia ou na arte, ‘como na religido ou na politica, desde que esta area esteja suficientemente em evidéncia, €, por esta razio, pareca imprescindivel & sociedade. A segunda é que o carisma nao aparece apenas sob formas extravagantes ou em momentos Passageiros, mas, a0 contririo, é, ainda que inflamavel, um aspecto permanente da vida social, que, ocasionalmente, explode em chamas. Assim como nao existe um tinico sen- 4.E.Shils, “Charisma, Order, and Status", American Sociological Review, abril, 1965; dem, “The Dispersion and Concentration of Charisma", n Independent Black Africa, org WJ. Manna, Nova lorque, 1964; idem, “Centre and Periphery" in The {Logic of Personal Knowledge: Essays Presented to Michael Polanyi, London, 1961 184 timento moral, estético, ou cientifico, também nao ha uma tinica forma de emogio carismatica; embora as paixdes, € muitas vezes paixdes distorcidas, sejam certamente parte integrante deste sentimento, essas variam radicalmente de um caso para outro. No entanto, néo é minha intencio prosseguir aqui com esse tema, apesar de sua importancia para\uma teoria geral sobre © autoritarismo social, Meu objetivo é investigar uma nova luz que se acendeu com a abordagem de Shils: 0 contetido sagrado do poder do sobe- © reconhecimento do simples fato de que governantes € deuses tém certas propriedades em comum é bastante antigo. “O desejo de um réi é profundamente espiritual”, escreveu um tedlogo politico do século XVII, que, aliés, nao foi o primeiro a fazer tal afirmacio; “ele contém uma espécie de universalidade total.” © tema jé foi também objeto de varios estudos: o livro extraordinario de Ernst Kantorowicz, The King’s Two Bodies — um debate magistral sobre 0 que 0 autor chamou de “teologia politica medieval” — esbocou as vicissitudes do carisma de monarcas no mundo ocidental em um periodo de duzentos anos e em uma meia dtizia de paises, €, mais recentemente, houve uma pequena explosio de livros com uma certa sensibilidade para que hoje tende a ser chamado, de forma um tanto ou quanto vaga, de aspectos simbélicos do poder.’ No entanto, o contato entre 5. Kantorowlcr, The king's nwo bodies: a study in medieval politcal theology, Princeton, 1957; RE. Giesey, The royal funeral ceremony in Renaissance France, Genera, 1960, R Strong, Splendor at court: Renaissance spetacle and the theater of power, Boston, 1973; M. Walzer, Te Revolution of the Sains, Cambridge, Mass, 1965; M. Walzer, Regicide and Revolution, Cambridge, Inglaterra, 1974; Anglo, Spetacle, pageantry, and early Tudor policy, Oxford, 1969; DIM. Bergeron, English civic pageantry, 1558-1642, London, 1971; FA. ‘ues, The Valois Tapestries, London, 1959; & Siea, Repraesentation Matesta. tis oder Churbayeriscbe Freudenfeste, Munique, 1969;G.R.Kesnodle, From art {0 theatre, Chicago, 1946. Para um vro popular recente sobre a presidéncia dos 185 esse trabalho essencialmente histérico € etnogrifico € os interesses analiticos da sociologia moderna é, no minimo, superficial; uma situacao que o historiador de arte. Panofsky, em outro contexto, comparou A de dois vizinhos que tm 0 direito de cagar na mesma area, mas um deles € dono da espingarda € 0 outro de toda a munigio. As reformulagées de Shils, embora ainda em estagio inicial, e algumas vezes apresentadas em um tom excessiva- mente apoditico, prometem ser de grande importancia na luta contra esta separacio tio pouco frutifera, principalmen- te porque elas nos estimulam a buscar a universalidade do desejo dos reis (ou presidentes, generais, fiubrers, € secreté- rios do partido) naquele mesmo lugar onde buscamos a dos deuses: isto é, nos ritos € nas imagens em que ela se exerce ‘Mais precisamente, se 0 carisma €é sinal de envolvimento com 0s centros que dao vida a sociedade, € se tais centros so fendmenos culturais e, portanto, historicamente construidos, 2 investigagao do simbolismo do poder € a da narureza deste poder sao, na verdade, empreendimentos muito semelhantes. A distingZo que se faz levianamente entre a aparéncia externa de um governo, e a propria substincia deste governo, torna-se, assim, menos aguda, € até mesmo menos verdadeira; como acontece com a massa € a energia, o que importa é a maneira pela qual uma se transforma na outra. No centro politico de qualquer sociedade complexamen- te organizada (para reduzis, agora, 0 foco de nossa visio) sempre existem uma elite governante € um conjunto de Estados Unidos sobe tema semelhante, veja M. Novak, Choosing our king, Nova lorque, 1974, Estudos antropolégicos especlalmeate aqueles eyo tema crs Afries, vem sendo bastante sensiveisa esses assuntos, ih bastante tempo (como exeaplo, cabe-nos mencionas, como obras essenciais: EE. Evans-Prit ‘chard, The divine kingship of the Sbilluk of he Notte Sudan, Cambridge Inglaterra, 1948, e tanto Myth of the Stare, New Haven, 1946, de E. Cassis, ‘como Les vois thaumaturges, Pais, 1961, de M. Bloch e também 0 proprio Kantorowicz) A citagio no texto € de N. Ward, reprodizca no dicionirio de Ingles Oxford sob a palavea “aunninous (espcitual. 186 formas simbélicas que expressam 0 fato de que ela realmente governa. Nao importa 0 grau de democracia com que essas lites foram escolhidas (normalmente nao muito alto) nem a ‘extensio do conflito que existe entre seus membros (normal- mente bem mais profundo do que imaginam aqueles que nio so parte da elite); elas justificam sua existéncia e administram suas ages em termos de um conjunto de estérias, ceriménias, insignias, formalidades € pertences que herdaram, ou, em situagdes mais revoluciondrias, inventaram. Sao esses simbolos = coroas € coroagdes, limusines ¢ conferéncias ~ que dio ao centro a marca de centro ¢ ao que nele acontece uma aura no 86 de importancia, mas, algo assim como se, de alguma estra- nha maneira, ele estivesse relacionado com propria formaem ‘que 0 mundo foi construido. A seriedade da alta politica ¢ a solenidade dos altos cultos sao resultados de impulsos que sio, na realidade, bem mais semelhantes do que parecem ser & primeira vista. Essa semelhanga é mais visivel (embora, como irei argu- mentar cventualmente, nao seja nem um pouco mais verda- deira) em monarquias tradicionais que em regimes politicos, pois, nestes tiltimos, disfarca-se melhor a tendéncia natural dos seres humanos para antropomorfizar 0 poder. A inten- sidade com que se focalizaa figura do reie 0 estabelecimento “Sbvio de um culto, as vezes até mesmo de uma religiio, a0 seu redor, tornam 0 carter simbélico da dominagio dema- siado palpivel e, portanto, impossivel de ser ignorado mes- mo por seguidores de Hobbes ou pelos utilitarianistas. A visibilidade € tanta, que acaba deixando a descoberto aquela verdade que todo o misticismo do cerimonial da corte deveria supostamente esconder — ou seja, que a majestade nfo é inata, € sim construida, “Uma mulher no é uma duquesa se est4 a cem jardas de uma carruagem.” Chefes wansformam-se em rajis, pela aparéncia estética de seu governo. Tudo isso surge com maior clareza que em qualquer outra situacao nas formas cerimoniais onde os reis tomam posse simbélica de seu dominio. Em particular, os cortejos reais (entre os quais, onde existem, a coroacao € apenas primeiro) identificam 0 centro da sociedade e-confirmam sua conexio com coisas transcendentes ao demarcar um territério com os sinais rituais de dominago. Quando reis viajam pelo campo, mostrando-se a seus stiditos, presencian- do quermesses, conferindo honras, intercambiando presen- tes, ou desafiando scus adversarios, estio marcando seu territério, como o fazem lobos ¢ tigres com seus odores, como se esse fosse quase uma parte fisica deles préprios, Como veremos, este processo pode ser executado através de estruturas de expressdo € de crenca tao variadas como 0 protestantismo anglicano do século XVI, o hinduismo java- nés do século IY, ou o islamismo marroquino do século XIX; mas, seja onde for que ele aconteca, é irreversivel: a ocupa- do real passa a ser vista como se a sua volta tivesse sido construido algo ainda mais poderoso que uma cerca di A Inglaterra de Elizabete Tudor: virtude ¢ alegoria No dia 14 de janeiro de 1559, véspera de sua coroagio, Elizabete Tudor - “uma filha cujo nascimento foi uma desi- lusio para seu pai, ao destruir suas expectativas de sucessio, € que por isso tornou-se, indiretamente, a causa da morte prematura de sua mae; uma princesa ilegitima, cujo direito ao trono era, entretanto, quase tao vilido quanto 0 de scu meio-irmao ¢ 0 de sua meia-irma; um pomo de discérdia durante 0 reinado de Mary Tudor; e uma sobrevivente do alvorogo constante que faziam os emissarios imperiais € espanh6is em seus esforcos para que fosse assassinada” ~ desfilava em um enorme cortejo (havia mil cavalos, enquan- to ela, coberta de jéias € tecidos de ouro, ia sentada em sua liteira descoberta) pelas ruas da cidade de Londres. Enquan- to passava, um espeticulo diditico gigantesco se desdobrava a sua frente, ato apés ato, estabelecendo-a como soberana na paisagem moral daquela alegre capital que cinco anos 188 | | antes tinha feito 0 mesmo, ou tentado fazer 0 mesmo, pelo rei Felipe da Espanha.® [Comegando na Torre de Londres (onde apropriadamente comparou sua visio do dia com 0 episédio em que Deus liberta Daniel dos ledes) ela seguit para a Rua Fenchurch, onde uma criancinha the ofereceu, em nome da cidade, dois presentes — linguas bentas para clogid-la € coragdes sinceros para servila. Na Rua Grace- church, deparou com um tableau vivant chamado ‘A uniao das dinastias de Lancaster e York.” Tinha 0 formato de um arco que ia de um lado ao outro da rua, ¢ este estava coberto de rosas vermelhas e brancas € dividia-se em trés niveis. Na parte mais baixa, havia duas criancas, cercadas por uma rosa feita de rosas vermelhas, representando Henrique Vil ¢ sua esposa Blizabete; na parte central, duas outras criangas, representavam Henrique VIII ¢ sua esposa Ana Bolena; nessé nivel, uniam-se sobre as criangas 0 banco de rosas vermelhas ‘que se originava no nivel superior — 0 dos Lancaster -€ 0 de rosas brancas que desciam do nivel inferior — 0 dos York, No nivel superior, entre rosas vermelhas e brancas, enipoleira- vva-se uma sé crianca, representando a prépria homenageada (€ legitima) Blizabete. Em Cornhill, havia um outro arco, também com uma crianga representando a nova rainha, mas, neste caso, a crianga estava sentada em um trono levado por quatro homens da cidade, vestidos para representar as qua- (6. HA vrias descrigbes da procissio de Ellzabeth em Londres (ou sua “entrada” em Londees) das quais a mals completa é de Bergeron, English clic pageantry, p. 11.23. ejatambem R Withington, English pageant, an historical oualine, ol. 1, Cambridge, Mass, 1918, p. 199-202; e Anglo, Spetace, pageantry, 344-59, Oteatocitadoéde Anglo, Spetacle, pageantry, p. 345. Acidade também ‘estavaresplandecente; "pelo caminho, todas as casas estavam ornamentadas; de ‘ada lado da rua, hava baricadas de madeira nas qual se debrucavam merear {doces artistas de todos 0$ ramos, vestidos com longas eapas negra ecobertos ‘com eapuzes de tecido vermelho ¢ negro... com todos seus simbolos, bandeiras fe estandartes"(ctagio, em Bergeron, English cote pageantry, p. 14, da deseri- ‘ho feta pelo embsixador de Veneza em Londres) Para a entrada de Mary © Felipe, em 1554, ver Anglo, Spetacte, pageantry, p. 324-43, and Withington, English pageantry, p. 189. 189

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