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Vincent Jouve POR QUE ESTUDAR literatura? | «i I A d\> rautoonoist Mies treet aysenacain 310 ins sapien? Encho masa tacos Marco oar tla custo Can reo aes Antec oa pan sant ies taisinos! a Jageta Paiva Dionisio UFPEL ee esto faraco UPR Eponate ea tanae PUCSE] tn mn ete vets TUFSG tbo Fraae Montego (UNivers 1 yen Rajagopalan [uneamp] Marcos Bagno [Unb Meter Perera Scherr (FES) Aol Gazal Andrade (PUC-SP] Roxane ojo UNICAMP! Sauna Tannus Mucha [PUCSP] Stella Mals Bortont Mlcavclo [Un CAR BRASIL CATALOGACAO NA FONTE SINOICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, ie Jouve Vincent Por que estudar literatura? / Vincent Jouve ;Marcos Bagno © Marcos Marcionll, tradutores.- So Paulo :Parabola 2012. Bem, (TeoriaLitersrla) ‘radugso de:Pourquol étudler a Iitérature? Incl bibliografia SBN 978-85-7934-052-9 {.iteratura - Estudo e ensino, 2. Literatura - Histéria e crtica.3. Leitura- Aspectos psicolégicos.4.Educagao -Finalidades ¢ objett- vos. Titulo..Série. 127247 cop:807 DU 82 Direitos reservados 8 Pardbola Editorial Rua Dr. Matio Vicente, 394 - Ipiranga (04270-000 Si0 Paulo, SP pabx:(11} 5061-9262 | 5061-8075 | fax:l 11] 2589-9263, home page: wwwparabolaeditorialcom.br €mall:parabola@parabolaeditorlal.com.br Todos 0s direitos reservad aati ee ‘Nenhuma parte desta obra pode ser reprodu- au tans ox qualquer oma eau quasqur mito eletinico ou pls e grava¢4o) ou arquivada em qualquer sistema ou banco . banco de dados sem permissdo por escrito da Pardbola Editorial Ltda. 'SBN:978-85-7934-052.9 : Odacdicdo:; 'd3 edic0: Pardbola Editorial, S20 Paulo, novembro de 2012 = Hiterdrios — evidentemente — permi- gem aumentar a cultura @o explicar o que signi- ca uma visio “barroca” ou “romantica” do mundo, ao recordar © que péde causar riso numa época ou emogio em outra). Mas 2 cultura no se limita & literatura. Se o propésito é ter a visio mais informada possivel, é legitimo — até mesmo indispensivel — nGo falar apenas dos textos @, entre eles, no apenas dos textos literdrios). Existem no somente outras formas de arte (musica, pintura, escultura), como também outras manifestagdes culturais (gastronomia, televisdo, esporte, moda ete.) Seria logico, portanto, dissolver os estudos literdrios dentro dos estudos culturais. Este movimento encontra grande respaldo nos paises anglo~ xSnicos, Mas 0 objeto central dos estudos literdrios no é 0 conhecimen- to da linguagem? Sem diivida, as obras litersrias sio, antes de tudo, textos, Mas a linguagem nao se limita a literatura, Embora frequentemente seja mais agradavel estudar a literatura, ela dé provas de um funcionamento particular, que no cobre a totali- dade do campo da linguagem. A analise das obras literdrias pre- ay —— im, ser completada pelo exame do outeos faton lingutitiony 10 rox cue estpag reearuna? cisa, yt remetem mais explicitamente a certos mecaniimos de Hidguagon, Noy. sa perspectiva, ox estucos tenis deverian se ltndle na agutieg Artefato cultural e fato de Hinguagem entre outros, em (MEO TNO Tht, fi specifica? rario justifica uma abordagem especiflea? A hipotese deste ensaio & que nifo se pode refletir sobre o Interesne valor de uma obra literdria sem levar em conta seu vo MALLY Ue objety dearte, Esse posicionamento suscita, legitimanente, diy 8 (Ue tioy, Antes de tudo, podemos perguntar se nifo é francamente cesar tavoado falar da “arte literdria’, Essa formula um tanto quanto obsoleta nia pe. mete a questdes de outro tempo? Ja niio é consenso que a “arte" (literary Ou outra) nao é um absoluto, mas um dado relative cujas dvelinagies y riam com a hist6ria? Falar da “arte” sem outra especificagdo niio ey a uma concepgiio essencialista que sabemos niio resi ‘ollar ira exame? Nao somente niio temos certe: Za cle que nosso abjeto de estudlo existe, mas todas as questies que se podem levantar acerea tla arte (ontendida como ideia, apenas como realidad) ha muito tempo tém sido tratadas por um setor particular da filosofia, a estética', Nao seria falta de hus mildade @ abdicagéio da prudéncia mais elementar) debrugar- problemas aos quais, para citar apenas alguns nomes, Kant, Hey Schopenhauer consagraram paginas memoraveis? sobre ou Por fim, podemos nos perguntar's coisa melhor a fazer do que se no estado atual do mundo, nio ha Oclipar com abjetos que niio sabemox muito bem para que servem — se 6 que servem para alguma coisa, Vamos tentar responder, Mesmo que se pense que a arte é uma Hogio eminentemente relative, ¢ impossfvel, na pratica, manter-se Nessa posigio, Qual o livreiro que responderd a um cliente que Ihe pede conselho; “Todos os livros silo iguais, é uma questiio de Sosto; nio posso ajudar vord em nada"? E “Parte da filosofia voltada para 4 reflesto a respoito da beleza antistica” (Diciontvio Honiss dn Ling at Portugues nivel oto fend Preficio 11 possivel imaginar um professor universitério dando a mesma resposta a um estudante? O relativismo é ainda menos permitido aos ministros da Educagao ou da Cultura, que tém obrigatoriamente de decidir na escolha dos programas ou das manifestagdes a subvencionar: por que mandar estudar Machado de Assis e néo Rubem Fonseca (ou 0 inver- so)? Por que financiar uma “parada tecno” e nao um filme de vanguar- da (ou o inverso)? Em suma, se a arte nao existe mais para os tedricos, ela ainda existe para a maioria dos individuos e, sobretudo, para uma série de instituig6es (ensino, imprensa, mfdia) que pesam fortemente sobre nossa existéncia cotidiana. Assim, talvez nao seja indtil se inter- rogar sobre uma “realidade” que, mesmo mal definida, “informa” — através de uma série de engrenagens — o mundo em que vivemos e nossa existéncia no interior deste mundo. A segunda objesiio (j4 nao se disse tudo sobre a arte?) é bastante forte. Todavia, podemos constatar que a reflexiio estética, de fato, nunca se interrompeu. Alids, hd varias décadas que ela experimenta uma revi- vescéncia impressionante? e, em certos aspectos, espantosa. Se, mesmo deixando de propor ideias novas, conseguissemos, gracas a essa re- flexdio, ver de modo um pouco mais claro no interior de debates apai- xonantes, mas frequentemente complexos, na esperanca de tirar deles algumas conclusées sobre nossa relagéo com a arte hoje, talvez nao perdéssemos de todo o nosso tempo. Quanto ao terceiro problema (para qué?), acabamos de recordar 0 para- doxo da arte que, embora nao tendo utilidade pratica, toca dimensdes da existéncia tao fundamentais quanto a cultura, a educacao ou a comu- nicaco. Por conseguinte, o que esta em jogo aqui nao é somente o gosto. Resta saber como proceder para nao se perder no labirinto e na com- plexidade dos problemas. Como em todas as situagées de crise, o me- 2 Na Franga, atestam isso os trabalhos de J-M. Schaeffer: LArt de| Tage moderne —lesthétique et la philosophie de l'art du XVI siécle a nos jours. Paris: Galtimard, 1992; Les Célibataires de fart — Pour une esthétique sans myths. Paris: Gallimard, 1996; Adieu a Vesthétique, Paris: PUR, 2000. Também merecem destaque os estudos de G. Genette: LOEwore de l'art — Imnanence et Iranscendance, Paris: Seuil, 1994; Lazwore de 'art — La relation esthétique. Paris: Seuil, 1997. ON Thor decerto & retornar as questdes essencia ques! Temos o que éa literatura, que importancia conceder respectiy, is, que frequentementy si : Sin imples (@o menos em sua formulagao). Assim, nos Pergunta. AMente licada dy 4 respeito da OrICO Serd en. trecortado de anilises textuais apresentadas na forma de “ 4 forma, ao contetdo e 4 emogio, sem ev ‘ar a questio del valor artistico. Concluiremos com propostas concreta pritica do ensino. Para ilustrar a reflexdo, 0 percurso te “interliidigs” i DAARTEE DALITERATURA bordar a literatura como “arte da lingua- gem” supée ter antes definido a nogao de “arte”. No entanto, nao existe consen- so neste ponto. Definir a arte, alids, é tao delicado que se chegou a conclustio de que o mais sensato ainda era desistir da nogao!. Vejamos como anda a coisa. A arte existe? A questio da existéncia da arte se confunde com a de sua defi- nigdio. Haveré concordancia (ou nao) em incluir este ou aquele objeto no campo artistico conforme ele corresponda (ou nao) & definigao da palavra “arte” que se reconhega como pertinente. Para dar um exemplo famoso, alguns recusardo o estatuto de obra de arte para as caixas Brillo* de Andy Warhol porque elas no tém (segundo eles) nada de estético; outros, em contraparti- da, concedersio as caixas tal estatuto sem hesitar porque elas fa- ¥ fa opinido, por exemple, de F. Schuerewegen (Le début et Ia fin de Fart: sur Ar thur Danto. Poétique, n° 147, 2006, p. 367-379). ? Lembremos que se trata de um conjunto de calxas empilhadas umas sobre as. outras, imitando as caixas de sabiio em pé de uma marca famosa, I Baron que ESTUDAR HITT RATUE simbélico. Os primeiros se aplicam a definicig ze ita o sentimento do objeto de arte como artefato que suscita ent issica do 1s ‘ wa ‘os segundos adotam uma definigaéo mais moderna, que concebe a belo; os segund ; oe arte como uma maneira particular de significa m pensar num modo Seria preciso, entéo, perguntar se 6 possivel —e desejavel — entrar em algum acordo sobre a definicéo do termo. Uma definigao impossivel? Existem diversos te6ricos para quem nao é possivel nem desejavel de- finir a arte. Assim, para M. Weitz3, a arte — na qualidade de conceito “aberto” — nio pode ser definida por um conjunto de propriedades necessdrias e suficientes. Um conceito é “aberto” quando é possivel ampliar o campo de sua aplicagiio com base numa simples decisto. Weitz toma o exem- plo do romance. Nao existem propriedades necessarias e suficientes que permitam definir um texto como “romance”. Alids, por isso é que o conceito abrange textos tao diferentes quanto A Moreninha, Ullisses ow Memirias postumas de Bris Cubas. Portanto, nao é possivel catalogar um novo texto como “romance” tendo por base um modelo ideal do ro- mance: simplesmente se perguntard se a obra candidata a identidade romanesca tém tracos comuns suficientes com outros textos j4 conside- rados como “romances” para que se justifique a extensio do conceito. Sao os textos efetivamente publicados que determinam nossa ideia do romance, e nao o contrério. O mesmo vale para a arte. Identificar uma obra como artistica é se referir a um feixe de propriedades que, empiri- camente, funcionam como critérios de reconhecimento; no entanto, nem Pe aaa ‘ de presenca obrigatoria, O erro consiste teconhecimento de classes historicamen- te fe = fechadas (0 romance grego, a tragédia cléssica) em critérios normati- Vos de avaliacao de classes abertas (o romance, a tragédia), Daquilo que ——___ > CE. Le role de la théorie e i e en esthétique i ‘sthélique. Paris: Klincksieek, 2004, 7 Sah, Rees Ce niceties - Sa , eda literatura 16 i foram o romance ou a tragédia num dado periodo nao se pode deduzir o que devem ser 0 romance ou a tragédia de forma absoluta, Se nao é possivel definir a arte, tampouco é desejavel fazé-lo, Seria 0 mesmo que transformar um conceito aberto em conceito fechado, ou seja, arriscar a liberdade criadora: O que sustento, portanto, é que o cardter muito expansive, aventuroso da arte, suas mudangas incessantes ¢ suas novas criagées fazem com que seja logicamente impossivel garantir um conjunto de propricdades determinantes. £ claro que podemos optar por fechar 0 conceito, Mas fazer isso com os conceitos de “arte”, “tragédia” ou “retrato” ete, é ridi- culo, j4 que bloqueia as préprias condigées da criatividade nas artes*, Se nao existem propriedades definidoras da arte (observemos que Weitz parece considerar a “criatividade” como um trago essencial), 0 tinico modo pertinente de enfrentar a questo é a abordagem histérica, Podemos indagar 0 que se entendeu, na origem, com a palavra “arte”, como e por que o sentido da palavra tem evoluido e de que sentido (ou sentidos) ela se reveste para nés hoje em dia. Historicamente, a palavra “arte” vem designando ha muito tempo os artefatos que suscitam o sentimento do belo. Aliés, é 0 sentido que ain- da encontramos na maioria dos diciondrios. Assim, para o Dicionirio Houaiss da lingua portuguesa, a arte 6 a “produgio consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretizagao de um ideal de beleza e harmonia ou para a expresstio da subjetividade humana’, Se a arte evolui, é simplesmente porque jA n&o concebemos o belo da mesma maneira. A historicidade afetaria, assim, bem mais nossa ideia do belo do que nossa ideia da arte. A arte eo belo Quando se vincula a identidade artistica ao sentimento do belo, a discussdo gira em torno da seguinte questa 0 belo se deve a pro- Ibid, p.34, priedades manifestas da obra ou a apreciagiio subs Conforine a primeira concepeso, existiriam obras objetes Confarme a seyunda, 0 belo é uuina questo de juizo pes O segundo ponto de vista — que est4 na base de nessa de" 40 Inscreve na tenovardio de perepectiva proposts t exiute abjeto belo em si, mas unicamente objets nos quass 0 Saye ética O hela nao 6 um dade absolute € 0 r6 umn prazere relagio de conveniéncia entre J pre contingente, de un. des de um objeto eo poste da estética, portanto, nao é a natureza do olyeto apreer sobp sobre ele. Como vxplica Genette, “nilo ¢ 0 ¢ olhar que se lang torna estéticn a relagio, € a relagdo 4 precisamente, ha relagio estetica cada ver que wr (isto 6, que incide sobre a apartncia de um oby uma apreciagio’. Podemos, assim, apreciar estet de um mestre quanto um cartaz pr rio, Os “subjetivistas” deveriam logicamente cheyar a cv nijo existe, No entanto, diante da evidencta de qu {em concretamente (basta passear num museu para se Convencer dis exis 80), cles propdem o seguinte deslocamnento: uma obra de arte no produz necessariamente o sentimento do belo (0 que impediria toda generaliza- Giio), mas visa sempre a produzir o sentimento do belo. Em sua reflex’ em dois volumes sobre a obra de arte, Genette parte assim da segu definigiio (que ele se empenhard a seguir em modular): “Ur tun objeto estético intencional, ou, o que da no mesmo: « artefato (ow produto humane) com fun Giio estetica™”. Com isso, torna-se pos sivel fundar a definicdo da arte em critérios objetivos. Em qualquer obra, a intengio estética &, de fato, reconhecivel num certo numero de tragos: © G Genette, Ud wore de Sart — Lar © Segundo Genette, 0 proprio cont sporti, Ver esta passagem de La Relanon est pode ser pereebidercomo usna ‘forma’ des teudo avanalise prognde de forma para ° G.Genette, ULuvre de fart — lmmanence et tr He se, por exemplo, um texto respeita as regras do soneto, 6 se filiar 4 poesia e, portanto, a literatura ea arte, Assim, uuma definigdo avaliatéria do objeto de arte (obra que cmsegue produzir osentimento do belo) uma definicao categorial (artefato provide de certo numero de tracos que manifestam a intengifo de produzir o sentimento do belo, isto 6, de ser avaliado no plano estéticc). Porque ele quer podemos opor a Levar em conta essa inteng&o permite assim definir a arte sem renun- ciar a ideia de que o belo é subjetivo e relativo. No campo literdrio, os tragos “artisticos” so essencialmente tragos genéricos. Todo romance, toda tragédia, toda elegia é estatutariamente uma obra de arte. A ques- tio da identidade artistica, portanto, nada tem a ver com a do mérito estético. O ultimo Paulo Coelho tem o mesmo estatuto que Guerra e paz: os dois livros, na qualidade de romances, pertencem categorialmente 4 literatura, e seu respectivo valor estético entendamos: nao ¢ objetivamente apreensivel. sua “beleza”) Contudo, ainda que se admita que somente uma definigio categorial da arte pode ser objetiva, a reflexdo nao avancou muito, Talvez.tenha- mos respondido a pergunta “que é a arte?”, mas esvaziando-a no mes- mo gesto de qualquer interesse. Agora se trata de saber o que ¢ uma arte de qualidade. Tudo 0 que se fez foi deslocar 0 problema (eu diria até que nés simplesmente o formulamos de maneira diferente). ‘ou O pro- Quer se enfatize o resultado (produzir uma emogio estét jeto (manifestar a intengao de produzi-la), os “objetivistas” e os vistas” parecem compartilhar a convicgio de que nao se pode separar a arte da questo do belo. Mas seré certo que nés ainda vineulamos aarte a0 sentimento do belo? Pensar que a definigao de ontem éa definigiio de hoje nao significa negar o peso da hist6ria sobre nossas representagies? subjeti- A arte ea historia — » mostrar de fato que, embo- Oestado atual da produgio artistica parece mostrar de fate eae 5 a elo, ela tem se en- ra.a arte venha sendo ha muito tempo vinculada ao belo, ela "WF Ferubaw sirsn svn? \ —i— Fiquecide Com MME Toso oUtTO® Eragon que, de seecnlaTlos, acabarany por ee tornar essenciais, Seria entle bem posnivel que a (ago estetion nao fosse male hoje uma condigie necenndrla para se talae de “obea de arte”. Para J-M. Schaeffer, ela alida jamiate o fol avultes objeto que consideramos hoje como obras de arte nde respondiaty, Ho momento: de sua criagdo, a nenhuma intengio eatética, A redugdo do actiaticn ao este zen nal cultural; co & uma postura datada, eujas va Por razées que tem a ver con a histérla recente dan soelodlaces ocldlentais, quando dizemos “estética” pensamos cn “obra deatte”, Hosa ileatitleagie: que as diferentes definigdes da pala- yra “arte” considerado apenas alguns tracos em detrimento de outros)? amos demonstra-lo, a questo “o que € a arte?” recuperaria Se pudé alguma pertinéncia. A guisa de analog} fades do “saber viver" ou da “polidez” sio diferentes, ¢ ate 5; isso niio impede que a ideia de a, os Componentes cas modali- contradi- torios, conforme os lugares e as epocas saber viver esteja presente em todos os paises ¢ em todas as culturas "D. Lories (Philosophie analytique ¢ ) tembra que a filosofin anatitica & es vte-uma filosofia anglo-saxdniica, Par isso temas o habito de upora cla a “Blosotia sencialm continental”, pag UTERAT at de declinagies factuais absolutamente incontestiveis. Poderia- mos dizer o mesmo do lute ou da relagio tenha sempre existido, mesmo bordagem analitica no tora es amorosa. Portanto, nio é im- possivel que o que se designa por “arte” quando no se utilizava a palayra. Aa obrigatoriamente caduca a hipotese antropologica- Uma pratica transcultural mega a distinguir 0 “artista” do partir do Renascimento que se co “artesiio", O emprego da palavra “arte” como termo genérico desig- nando © conjunto das atividades com intengio estética £0 se impora plenamente no século XVII Nao se pode concluir disso, © obvio, anteriormente fosse desconhecida. Pensar que eitualizada nao tem realidade é, de fate, um Jar que o inconsciente ndo existia no que a pratica artistic uma pratica nao cone absurdo: isso equivaleria a postul do surgimento da psicandlis ser humano antes ceitualizacio é justamente o de poder se aplicar ap nos pelos quais ela nao se interessava originalmente, mas cuja com- De modo geral, a emergéncia de um conceito preensio ela permite. e de dar conta de uma série de atividades se explica pela necessidad em vigor ha muito tempo. Se a arte 6 uma nocéo transcultural, os objetos aos quais ela remete devem necessariamente compartilhar certo ntimero de tragos. Have- 4 entio algo de comum entre a Vénus de Milo, as “embalagens” de Christo, o Hino a alegria de Schiller ea “Fonte” de Duchamp? A ideia de colocar a questdo nesses termos sem diivida nao € nova e al- gumas respostas so particularmente interessantes. Assim, para F. Ver- dade artistica ndo é uma esséncia, mas uma relagio, nier™, a especi a relagdo que certos objetos mantém com os modelos simbélicos em vigor numa dada época. E proprio desses objetos explorar as virtuali- ede la théorie, Montréal: Publications du Dé "Enides on te de Montréal, 2004. ju Département d'Etudes Frangaises ¢° Daartee da literatura 21 dades dos sistemas que utilizamos Para apreender o mundo. A pintura abstrata nos confronta assim com outros cédigos além daqueles que Tegem habitualmente nossa mancira de terdria atualiza certas possibilidades inéditas do sistema linguistico em que se inscreve. Para dar um s6 exemplo, a obra de Flaubert, pelo uso que faz. do imperfeito e dos pronomes pessoais, explora possibilidades da lingua francesa que, no uso corrente, raramente so exploradas?, Analisada do ponto de vista de sua fungao (renovar a percepcao e, portan- to, a apreensao da realidade), a arte é um dado ao mesmo tempo trans- -hist6rico (nés a encontramos em todas as culturas) e relativo (nao sao obrigatoriamente os mesmos objetos que oferecerao a cada individuo —€acada época — novas maneiras de pensar o mundo). Essa andlise, bastante convincente para a arte critica e contestataria, se aplica mais dificilmente a arte de celebragdo, que se conforma aos sistemas domi- nantes em vez explorar altemnativas a ele’, ver, tanto quanto uma obra li- Sempre conservando a ideia de que a arte responde a uma necessidade transcultural (0 que devolve pertinéncia ao conceito), vou propor outra definigao raciocinando a posteriori. Se retomarmos a questo dos pon- tos comuns levantada acima, poderemos depreender as trés caracteris- ticas seguintes: as obras de arte so objetos nito utilitirios, que exprimem alguma coisa e aos quais é reconhecido um valor. Todas as sociedades tem conhecido, e provavelmente exigem, esse tipo de objetos. A ideia de que a obra de arte nao tem utilidade pratica no advém, como se poderia pensar, de um ponto de vista retrospectivo proprio 4 moder- nidade. Se for verdade que ela se vincula a afirmagao kantiana do desin- teressamento da atengao estética e A abordagem da obra de arte como “finalidade sem fim”"5, encontramos em todas as épocas ¢ na maioria das ® Algo que nio escapou a Proust. Ver F jernier (op. cit, p. 157). Vernier responde que uma obra de arte & um objeto complexo, que possui proprie= dades artisticas e propriedades nao artisticas. Quando ela se conforma aos sistemas do- ‘ninantes, 6 em razio de caracteristicas que niio se devem A sua especificidade artstca (p. 94-95). Esse raciocinio, contudo, 6 6 vilddo se concordarmas previamente sobre a definig dessa especificidade artistica que, justamente, procuramos delimitar, ' Se, historicamente, desdgua na visio romantica da obra de arte como realidade auté- oma e autotética, a tese da finalidade sem fim repousa — como observa Schaeffer — numa io a NG i _—_EE_;——E Tx 4 _ Daartee da literatura 23 de uma intengio exclusivamente estética, respondem em geral a uma intengao parcialmente estética @ maioria dos objetos religiosos jogam com a sedugao formal para atrair a atengao). A recategorizagaio de um objeto sagrado em objeto de arte aparece, portanto, como natural. A segunda caracteristica da obra de arte — o fato de ela exprimir al- guma coisa — advém da simples constatagao. Decerto é por isso que se trata de um dos raros pontos que parecem obter consenso entre os te6ricos. Nem por isso a importancia concedida a dimensio expressiva da obra de arte se torna menos varidvel: alguns pensam que a obra de arte s6 existe como objeto semistico; outros consideram que, se o valor expressivo da obra de arte é pouco contestavel, esse valor nfo é essen- cial a sua identidade. Para A. Danto, que se filia ao primeiro ponto de vista, 0 que distingue uma obra de arte de qualquer objeto do mundo é que ela é sempre “a propésito de algo”, Deve-se compreender com isso que a obra de arte representa sempre outra coisa que nao ela mesma, Enquanto signo, ela nao se reduz A sua realidade material ou fisica. De fato, a obra de arte “caixa Brillo” nao se confunde com uma caixa Brillo comum, tanto quanto a obra literdria Madame Bovary nao se reduz A sequéncia de frases que compem o texto de Flaubert. Para retomar a expresso de J. Margolis, as obras de arte so “entidades culturalmente emergentes”: Elas manifestam propriedades que os objetos fisicos néio podem manifestar, mas que nao dependem da presenca de nenhuma substancia outra sendo aquilo que pode ser atribuido aos objetos puramente fisicos. Falando mais amplamente, essas propriedades so aquilo que pode ser caracterizado como funcional ou intencional, e que pode incluir 0 desenho, a expressividade, o simbolismo, a representacio, a significacao, o estilo e outras coisas do género". Se as propriedades representacionais séo tao importantes é porque sio elas que permitem diferenciar as obras de arte dos objetos fisicos ® A, Danto, La Transfiguration du banal. Paris: Seuil, 1989 [ed. or: 1981], p.143. ™ J, Margolis, La spécificité ontologique des ceuvres dart, it: Philosophie aalytique ct esthé= Ligue, op. cit, p. 218, MAW ade renee ermal? —$$__—_—_* AW QUADS OHNE SO AT NAN Jacontiainias a mien jdeia de Bakhtin, ANA {HOA AY ANB johy ONWUe (avy ae confide cont o material que Sho SOV AWE APTI, DHA LO arte aprenen tty enquanty “aconteci- drone” Mapuddintor oxpoetfidn’ MAH we Hee HOVe MT eeguuntela permpectVay dlenuneiands 9 “panse- ARUN” OND ad A Voted Alial aubre a arte, ele se recusa a fazer Ada Va OAD HOT data, CWAIMHNE ONtatiza, isso Cquivaloria a dizer que uma obra 56 é WARDATA A Aviation depots te se alopreendeu sua significagiio”. AY EV dewtomdente ao Heya que a obra exprima certo numero Qavinas, WAS OL TO fol erfadha para ise, Set eatatulo, desse ponto ABO VIA. SO OO qhe O dos atlel Atos niio artisticas: eles dao teste- yn componente canstitilive da identidade ar- granatio de waa epoca, de una cultura, de uma sensibilidade, mas sem seven sido Anoelsidos pant ditto, Ovatoreypressive da obra (learteadvem, porlanto, da propriedade que eta connpanaillha cam todos os abjetos criados pelo homemt: “Ter sa ido de gana aaeatidade Intoneional™’ Na ter aninologia de Searle, a Intencionali- dade CoN naintscala) canzcler i2a.v funcionamento da consciéncia. Todo BAN) PSHWIOY EHNA f170, poreepeia, desejo, dio etc.) ¢Intencional na ayatida or que, remetendo a alguna coi , passa por unta representa- Kao casciens Yanv onttos termos, a consciéneia & sempre consciéncia algo, Dior que dt obra de arte surgit de “estados Intencionais™ & aro, Teambrat que ela spade ent sud fonte um fendmeno mental que Fea WU ropresentagilo, Sent dtivida, qualquer objeto surgiu de gua aratidade Inteneional: uM simples pote de geleia tem igualmente SARE Rakai, Dovbine sv ownterm, dy materiatt et de la forme dans foouvee litté ran ever? sone Sanne de nonnan, Paris: Gallimard, 1978, p. 82. ar teen Yard oper 9. J TA utente ess priate cindigta d ineontomavel. O estatuto de objeto de arte spsteivaattat,ebannne te ttas ala lentilade generic (objets), da intengao esteticn AP asin) oo aka atnty Out tiat doy HYPO), SER Sale litt essai do phils hie des états mente, Paris: Min SOS] A wrantsvatla poumite atisting iit a "Intencionalidade” (relagio da consciene Sencaan atyeond da “ontonetonatintade” @antter ftencional de uma ‘atituddg), que é sou de Aaiotadis PENNS t, 1985 ia Jats ms Daartee em sua fonte um estado mental que remete, entre outras coisas, A tepte- ntagdo de um pote de geleia, Mas ¢ justamente porque todo artefato humano exprime algo” © pote de geleia da testenmuho das evigen praticas, e ate das preferineias emeonta pelo cons esteticas, que, levadas cebedor (individual ou coletive), resultaram na sua concepgio”. A questio da “causalidade Intencional” &, contude, capital, visto que pemnite distinguir claramente objeto estétioy de objeto artistic, Se qual- quer objeto do mundo pode se tomar o objeto de minha atengio estetica, até mesmo os objetos n3o provenientes de uma causalidade Intencional (omar em furia, uma flor, um ceu de tormenta ete,), a relagdo artistica ste poe — ao menos parcialmente — a consideragio dos estados mentais de que a obra de arte 6 consequéncia, 3 to®. Em suma, o que diferencia a relagio artistica da relagio estetica 6 a ateng3o dispensada ao contetide, Como outrora eserevia Barthes: "iat do you mean?’ [...]. Ea pergunta milenar dessa coisa tio antiga: a Arte” comegar pela intengio e pelo pro} O terceiro traco definitério da obra de arte & ser um objeto ao qual s reconhece um valor. Apesar de es: a ultima caracteristica ser ampla- mente confirmada pela pritica (a maioria das pessoas tem dificuldade de considerar como obra de arte um objeto ao qual elas nao atribuem nenhum valor), ela atualmente suscita acesos debates entre os teoricos, A posicdo em voga consiste, como vimos, em destacar a definigio de arte de todo juizo de valor em nome da relatividadte do julgamento de posto, diria que um artefato, como uma porta ou UT Vase, @ a nalizagde e Nao a ev FressZo de um conteude Intencional: a porta sent dun de uma tepresentagio men: talbmas,enguanto objeto inerte ela nfo pode, por detinigie. eyprimie neuhuiniconteule ps guco (Les Cetibutaires de Vat, op ik, ps TTA, Tanto depenate do seutide que se de av verbo *: por sua propria existéncia, porta da testemunho dle estadlos merttais na o 3s operagdes das quais ela surgi, Neste sentida, poems dizer que ela os “expriie © Sea especificidade do objeto de arte nio se deve ao fato de exprimit algo (earacteristicn comum a todos os objetos surgidas de uma causalidade lntencional), como tentarei mostrar mais adiante — 3 natureza ed evtensio daquilo que ele exptine. © Essa dimensio “espiritual”&, na visio de Hegel, aquilo que constitui a superioridade di ‘elo artistico sobreo bulo natural: “Do ponto de vista fire, vio importa que ma lalela que Passe pela cabeca de um homem ¢ [.~.] mais elevada que no importa que produgie da Batureza, porque ela possui sempre espiritualidade e literdade” (Hegel. Esthetiques Ui Le Livre de Poche, 1997, vol. I, p. 52). : * LObvie et Vobtus. Paris Seuil, 1982, p. 188, da surg talver se deva SS NO Qu crt parenanmea? Sw havtty Shaetter atime ainda que se existe claramente uma dimensio aval ensio avalia- stort na tela ae artiatioa, ela nao ¢ eapecifica, Re mente, a avaliacia ge eO Conte nas telagges que mantemos com a maioria dos objetos, E a sien . Ba sim ‘oldgico; nds 08 jul 6 i julgamos segundo sua Capaci taste ale preencher a fingio qu ploc conse quenecia de sett estatute te éad Mas, para o autor Aho Celidvetartes dic arte, o fato de cles cumprirem mais ou menos bem sua Hunde nao tenia menor ineidencia em sua identidade: um carro pode ter maior OU WHO esenpenho (em termos de velocidade, de conforto etc.) aver nent por isso deixar de ser um carro, A identificagao de um objeto eum obra de arte nao teria, portanto, nada a ver com seu valor eventual. As coisas talvez nao sejam assim tao simples, Retomenos os tres Latores que, segundo Schaeffer, sdio capazes de defi- ico: a alenciio estética, a pertinéncia genérica, nic Unt objeto come art aintencan esteticn Se umn objeto se torna artistico por conta da atengito estética que lhe @ dlispensacla, 0 critério do éxito nfio parece a priori suficientemente operatorio: podemos apreciar esteticamente todo ¢ qualquer objeto alo mundo. Contudo, devemos notar que se 0 objeto em questio nao auscita o sentimento de prazer que se espera da relago estética, esta altima se intervompe. Temos, ento, pelo menos, critérios de éxito ou Ale tracasse, mrestno que eles sejam, toda vez, subjetivos. Quandlo tuna obra 6 identificada como artistica por pertencimentto se nyticy, a itnbricagiio entre avaliagdo ¢ definigao 6 mais estreita ainda. Uni soneto mance nao é realmente um soneto, logo, nao é realmente poesia, Logo, tuto & mais arte, Poderiamos dizer 0 mesmo de um drama cent teusdio narrativa ou de uma sinfonia a qual faltasse um movimen- to. Mais genericamente falando, se existem — como Schaeffer pens@ juir dai que iedades nem objetives constitutivamente artisticos, nao é logico concli eles porter suia identiclade de objetos de arte quando as propri © vacilantes? Um romance policial sem crime gute os alotianenn § vestigagito ¢ ainula wn romance policial? 38 ——— : — A questo do valor é igualmente incontomndvel quando se define o objeto de arte pela intengao estética em sua origem. Ha projetos bem- -sucedidos e outros que falham: uma intencao se julga in fine diante de seus resultados. Nao é preciso seguir Schaeffer quando ele pretence que uma maionese estragada ainda seja uma maionese: E certo que nao basta querer preparar uma maionese para que o resultado seja efetivamente uma maionese. Por outro lado, o que se exige para que um produto dado seja uma maionese nao é que ele tenha sido concluido, mas que se peguem azeite e gemas de ovos, que se tente mist los € que, ao final da opera¢do, acrescente-se um filete de vinagre, ou seja. que se utilizem os elementos constituintes pertinentes e que se empreendam as ages “instrumentais” pertinentes®. A distincao entre um resultado que nao seria uma maionese e outro que seria uma maionese estragada me parece um pouco bizantina: uma maio- nese que no deu liga que, portanto, nao pode desempenhar sua funcZo de maionese) ainda é uma maionese? Para mudar de registro, digamos que uma fotografia mal tirada — na qual no se distingue quase nada (por causa, por exemplo, de uma superexposicao a luz) — é ainda uma fotografia? Contrariamente ao que diz Schaeffer, a “realidade” da maio- nese nao depende de acgGes genéticas pertinentes, mas de propriedades observaveis no produto acabado. Quem poderia afirmar que uma cadeira defeituosa (a qual, por exemplo falta um pé) ainda é uma cadeira? Se é dificil — como a experiéncia o comprova cotidianamente — falar de uma obra de arte sem avalid-la, nao é porque a avaliacao positiva faz parte integrante do conceito de obra de arte? Como o demonstrou Danto, os predicados especificamente artisticos supdem sempre um juizo de valor. Se Fonte de Duchamp, contrariamente aos outros uri- néis, 6 uma obra de arte é em razao de propriedades (ndo perceptuais) que os urindis geralmente ndo possuem e que sao justamente avalia- Ses subjetivas positivas: “Ela é audaciosa, impudente, desrespeitosa, espiritual e inteligente””. Na esfera da arte, como Adomo ja entendera * J-M. Schaeffer, Les Célibataires de V'art, op. cit, p. 188. ® A, Danto, La Transfiguration du banal, op cit., p. 160. PE | AR LITERATUPA? bem, ojuizo de fato se confunde com 0 juizo de valor: "O cone obra de arte implica 0 do éxito. As obras de on aes 120 520 obras "A posicao de Rochlitz éa mesma: a Pr a validade ‘ato deve ser sancionada positivamente para que de arte” Liles artistica de um artefi possamos qualificd-lo de “objeto de arte”. seria preciso integrar a arte 0 conjunto dos los os dias pelos editores, 05 quadros sem de arte e as modelagens indbeis de uma uim" (seja 0 que for que se enten- 0 assim sob reserva)” a0 género que o julgam assim 0 elen- Se tal nao fosse o caso, manuscritos recebidos tod valor recebidos pelas galerias crianga de 5 anos. Se um romance : da por isso) ainda pertence (e mesm “romance”, 6 pouco provavel que aqueles quem na categoria “literatura”. Alias, a ex] s6 tem sentido se entendermos “literatura” em um sentido atenuado (produgées escritas). Quanto a expressao “arte ruim”, ela nao é muito pressao “literatura ruim” correntemente empregada. Observemos que, se aceitarmos a definicao da obra de arte como “ar- tefato nao utilitario que exprime algo e ao qual nao atribuimos valor”, a historia da arte 6 exatamente a historia das variagdes na identidade do “se” impessoal (quem est4 habilitado a atribuir valor?) e nos crité- rios de avaliac&o quais so as propriedades da obra que devem ser levadas em conta?). Tal abordagem explica por que a hist6ria da arte nao é nem uniforme, nem linear. Existem, em cada época, varias ins- tancias de legitimagao, frequentemente conflituosas, cujos desacordos explicam a variedade e a diversidade das formas artisticas. Nao ape- nas o “mundo da arte” é uma realidade complexa, que faz intervirem atores muito diferentes (criadores, criticos, tedricos, historiadores da arte, instituicées), como qualquer grupo, ou até mesmo todo individuo, » TW, Adorno, Théorie esthétique, Paris: Klincksieck, 1989 [ed. or: 1970], p. 241. CLR. Rochlitz, LArt au bane dessai, Paris: Gallimard, 1998. Ora, passo ao largo da questo (evidentemente essencial) dos critérios de avaliaao. Agora, meu objetivo é simplesmente mostrar que, na prética, a identificagao de um artefato como objeto de arte é indissociavel de uma avaliagio positiva. » Como vimos, ¢ dificil chamar de “romance” um texto que ndo siga as restrigdes constitu- tivas do género. fete — pevte construit 0 proprio universo artistion a JNitiy de suas proprias expertiativas, «As “Sangdes™ da historia ivio slo, alent do mais, dennis tivas nunca: doterminado objeto evelurdo do mundo da arte em una epra pode tito Deny Voltar a ele end outer ¢ OASIS! wen tinge da. evolucio dos criterias de avaliagie, Esais reflendes sobre a obra de arte tambynt se. ay tionny eoviderte, A tite Tatura que. mo esquogamas, faz WNvrte das artes, Contd a arte tite deproende sta singularidadte to fato de queg material questa uti aria a Tinguagem — jae em si mesmo um sistema signitionnte, As questies que Sio postas 2 arte claramente nio sio Postas do mesmo modo d titeratuns A literatura existe? palavra “literatura” designa uma noatidade objetiva, ow se trata de um termo vago, de signiticagdes mutantes, por v Ss contraditorias® ntes de responder, reevoquemas brovemente as origens do terme O termo “literatura” Se existe algum interesse env restituir a historia de un terme, isso e porque nossa idea atual da Titeratura se explica, ent grande parte, pes las diversas acepgdes que o teem foi revebendto no decotner do tempe. Etimologicamente, havemos de lembry do latin Tittenituni (“ese de Tittena (“letra”), No seculo MVE a “literatura” designa, entio, a “oul quea palavea “literatina” vem, »“yramatica’, “cisneia’), forjado a partic tura” e, mais exatamente, a cultura do letrado, ow soja, a cnadigin, “Ter literatura” & possuir um saber, consequéneia natural de uma sonia de leituras, Como a fitenttuni supde a atiliagdo a uma elite, a uma aristos cracia do espt 0, 0 termo acaba, por destizamentos stcessives, vindo a designar o "grupo das pessoas de letras’, Falarsest, por evenple, dos “senhores da literatura”. a sé volta de meados do 5, é por volla de mea los do séeuty ou R, Escarpit . : gem” comega a se afirmar. fi “arte da lingua : ; e verbal Jimitava-se a poesi, 0 século XVII jgares"(0 romance @ 05 BENCOS eM pros Como o demonstr XVII que a ideia de uma quanto, anteriormente, a art vé emergirem 05 generos “vul es do jornalismo). Dial a arte de escrever, 05 as linguas, como 0 Tuss0, em um termo de se! ue ele sempre sugere primeiros sentidos. A diferenga é que a provenient inte da necessidade de um termo gory) para designar literatura. Algum: tam essa nova acep¢do se da palavra literatura 6 q| “aristocracia”, herdadas de seus partir de entao sao as obras ¢ nao os homens que perlencem a uma clite, Fazer parte da “literatura” funciona, desse modo, como um reconheci- mento para os géneros antigos ¢ valida o valor dos géneros recentes, ‘A literatura deixou de designar, portanto, um “ter”, para designar uma o conjunto das obras dela resultantes, olhares se vollaram para a palayry adotam 0 termo; outras enxer. ntido aproximado. O interes. as ideias de “ ite” ede pratica ¢, para além disso, Contudo, & preciso aguardar para que 0 termo literatura possa rivalizar, com 0 termo poesia. No século XVIII, 0 contetido do estd longe de ser univoco. Ele também englo- ba perfeitamente tanto as obras de vocagiio intelectual quanto os textos de dimensio estética. Todo escrito a0 qual se reconkega um valor (seja por sua forma, seja por seu contetido) pertence 4 literatura. Diante disso, 0 campo literario engloba tanto as obras de ficgdo quanto os escritos his- toricos e filosoficos e até mesmo os textos cientificos. As coisas evoluem com as ciéncias positivas conquistando progressivamente a pré- dificil assimilar a “literatura” os no plano estético, termo literatura, com efeito, porque, pria autonomia, torna-se cada vez mais escritos cientificamente orientados. A consequéncia dessa “secessio” ¢ Jimitar a literatura ao campo da criagao estética. De fato, a “gratuidade” (@ auséncia de finalidade pratica) acaba por se impor como 0 critério da identidade literaria. A partir do século XIX, “literatura” adquire seu sen- tido moderno de “uso estético da linguagem escrita”™. in: Le Littéraire et le social, Paris: CER Fscarpit, La Definition du terme “Littératun Pamunanon, 1970, p. 259-263, % Fssa €a definigio dada pelo Trésor de la langue francaise, Essa concepao da lit eg jeratura— Dacarle eda literatura 31 $i vi lura sto indissocidveis dessa arte verbal que é para nés a literatu- se breve historico explica por que os valores do espirito e da cul- rar as antigas acepgies da palavra, mesmo recobertas pelo senti- do moderno, nio desapareceram de todo, Se “literatura” designa jo estética, 0 termo também evoca as ual” ¢ de “patriménio cultural”. Como , em ultima instancia, rico atualmente as obras de vou ideias de "produgiio intele o nota R. Esearpil, 0 lermo “literatura’ em contradigées: “Trata-se de uma série de ambiguidades que fez a propria fortuna, fi possivel que um esforgo de esclarecimento leve- -nos a perdé-lo para sempre”, A literatura como arte da linguagem Se formos levar em conta o sentido que o termo adquiriu no século XIX, a pergunta “o que é a literatura?” passa a ser formulada como em que condigdes um texto pode ser tido como estético? As , logicamente, atestam a mesma clivagem entre objetivistas e segu respos! subjetivistas que se vé na definicao do belo. pode verificar ao examinar as reflexdes de Genette sobre Eo que a identidade literdria. Segundo o autor de Fiction et diction*, so con- sideradas de acordo com os fatos) literdrias duas categorias de tex- tos: aqueles que pertencem a literatura por obediéncia a convencies; aqueles que sio tides como belos. Convém, portanto, distinguir dois regimes de lilerariedade: 0 constitutivo (um texto ¢ literdrio por respeitar as repras de determinado género); 0 condicional (um texto é literdrio € sempre a nossa — deve, dla arte: uma vez estabelecida qu radicalmente dos outros objetos do mundo, & como dus de suas caracteristicas essenciais. Aphis formalistas russos se apoiariio na identidade estetica para uma maxima propriedades formais dla Hinguagem, Sobre as relagdes entre romantismo ¢ formalismo, ver Todorov; Critique de da critique. Paris: Seuil, 1984, p. 7-15. © R, Escarpil, Literature, Dictionnaire international des term infofarttest/art792,php> © CLG, Genette, Fiction et diction, Paris: Seuil, 2001. jentemente, muito ao romantismo e a sua sacraliza¢o a obra de arte tem um valor proprio, que a distingue Jogico considerar a autonomia e a autotelia indo essa abordagem & literatura, os exploragio das = ltténaires seus objetos, literatura de diego aquela que se impoe essencialme 2s formais ...|" (Fiction et diction, op. city, p. 110). Ibidem, p. 144-115. aN avtinyedy vend (and! TYHY OH HEA PENN Livy traannatiadiy panne at Ete l Considerar Nowa a Daves sina tratential). De tod hoes, ewes saa a bie gadet eattnnes Ty ubayyett ty synyetanantosnnnanttae a ht svantivtiolye wes 8 ysannad ents Le AD Weave evn a Hicgde Gomi Hishvett awed Are aynat apne ANY HOH AE gn sonanan, MD Haniel VERE ttt Av tanntygty yoantiiat aha iT} Datrada)s a avtansitivtchnte ve WM Wi alony do si nresnnnny, Pastirnntans, Cavity Ve se do akostaany, apathy che tot iine retlorde ay Vnyeondee dQ Hy AM ETE tal atti pdt guagend camo “MENS ui sobre A MENSAKEND PAP SUA PLAPEht vent! catydtovanalas aus tratTiat tiny Fanaa 1) olativizadad Darticnhninenty ayenannehiy aay Tht vba ate socunnnababn i, ctnjay anAON tal a Anaya syvbiuduy vvnn gan cansthay poh Sy VUSNE GShN EE) chee ME Late UE al ay da atentaten ohne | Mas essa imporbinebt yet Alene deve ser r teraria, sistema siinboticn — pride pela forga das cots seagate ah no? Realivente, existe mina difereny Hannctantine costed tannery panna ae Sehaottor, bah abid he athe iiland vive vipat ale requerent wna pereepye a falat Se, come o Hel ste wenntation qanany fanaa! wiyqnitican), aabea [toni ta SCHED eH ye VME PURLEY sam pel necessariamente umn obje aio nao sao feito pany tn fata de sentido! Pod av Tuytagad, CME ed THNOE TOEE decora partida, & sempre amente 0 que COnSETNE Nt nia & isso eNaL no intorlidio a seyuit, sot Pant: MHL, DANN Pea nn} SOR Jakonlvaant, Povotigtne, tit, Pesans oe Lnkgitsty pals, 2 Vow Ty Daadennan; Qteest aver fe stone tiahalestte SEAN DNvetignis Pn ie Sul, IMM, YY Ww 1 As alonnaie attow qoucultana, piatiant, ntetet) colle GHvnbh vey antenatal host anvil vote vais netinty qtes ve ents Hite tf 1h JeM, Sehaettor, Les Cilisabunes de Hants rks pet Mason teens tee thls aby svt Viggo ohana "tahoe te Biba vwgattianle turin del sat @ snyppoterts cng or eatin fae faa: ve Spates veoh tons Tt rgnve fost ss 6 ogni qth wet ttt antl: poet aaa ce mtv cont nt Utes oe fe pa oven vat be fey ata abe Cheers tnn cao en a ag alt, es tay kg ean Galva aoe sit ti a Ha lp ya eH ls ot ssn conmnatat Hyatt Uy tens Bt fateh set fea ably haa Botta tin ssn Seabees woah Searle, Sehuettor esption gute toh fated, cianais, Cerlamiente, fa lent set cent a lovivaaa poroyortn dayton pe DUNTERLUDIO 19e EMMA E A GORDURA DOS LIVROS (Flaubert, Madame Bo E proprio da literatura — literatura que, como lembramos, tem na sta ori= gem uma vocacio erndita — (tentar) satisfazer ao mesmo tempo wma exper tiva estética e uma exigéncia intelectual, Se a maioria dos leitores considera que rigil que & no é possivel mudar uma tinica palavra nessa meciniea singular e fr o texto literirio, & porque tm a conviegio de que a menor modificagio equiva- leria no somente a alterar o ser musical e ritmico da obra (0 que é kigico), mas Jaen também o que ela exprime ou busca exprimir (0 que & mais surpreendente). Tudo s identificagio do que esté em jogo quanto para o pr passa como se o respeito ao literal no fosse menos necessitio paca a azer da leitura, Bo que vamos verificar analisando esta célebre passagem de Madame Bovary. Uy avait au couvent une viele fille qui: venait tous les mois, pendant huit jou, travailler & la lingerie, Protégée par Varcheyché comme appartenant 2 amne ancienne famille de gentilshommes ruings sous la Revolution, elle mangeait au refectoire, 3 la table des bonnes socurs, et faisait avec elles, aprés le repas, an petit bout de eausette avant de remonter 3 son ouvrage. Souvent les pensionnates s*échappaient de Pétude pour Faller voir, Elle savait par cour des chansons galantes du sitele passé, qu'elle chantait 3 demi-vois, tout en poussant son aiguille, Elle comtait des histoines, vous ait en ville v4 aprennait des nouvelles, fai commissions, et prdtait auy grandes, en cachette, quelque ars dans les poches de son tabliog et dont man qu’elle av. 1a bonne demoiselle elle-méme avalait de longs chapitres, dans les intervalles de sa évan besogne. Ce nfétaient quiamoues, amants, amantes, dames petsevutdes s’evanouissant dans des pavillons solitaires, postillons qu’tn tue} tous les teas chevauy quion erive 4 toutes les pages, fordts sombres, troubles du gneun serments, sanglots, farmes ot baisers, nacelles au clair de la lune, rossignols dans les b rs braves yuets, mess comme des lions, douy commie des ageats, vertuens comme on ne Fest pas, toujours iens mis, et qui pleurent comme des urnes, Pendant six mois, quinge ans, Emma se Bhabssa done les mains & cette potissidte des viewy cabinets de lecture", Naubert, Madame Bovary, I parte, cap. LV, Paris: Libraitie Generale Prangaise, 1972 led. of: 1857), p. 43, 36° POR QUE ESTUDAR LITERATURA? a. ov : ao "bh na rouparia, Protegida pelo arcebispado como pertencente a uma anti, no canvento uma solteirona qute vinha odds 08 meses, durante 8 digs dle fidalgos arruinados sob a Revolugio, ela comia no refeitério, & me 9 ds iris ai a efi, alguns insted poss ates de Fetomar spy ‘ teh, AAs internas,frequentemente,escapavam dos estudos para item vé-l, Ela sab trocava com elas i de coy 2 espetar si. TA a Cidade @ ha Nos boleog cangies galantes do século anterior, que cantava a meia-voz, sempre agulha, Contava histérias, transmitia noticias, levava as encomendas p, emprestava as maiores, is de seu avental e dos quai condidas, algum romance que ela sempre t a vel senorita devorava ela mesma longos cpt intervaos de sua ocupagio. Tudo eram amores,amantes, damas perseguidas desma, em pavilhes slitiios, postilhesassssinados a ada posta, eavaos efalfadog on todas as paginas, florestas sombrias, perturbagdes do coragio, juramentos, sol gos, ligrimas e beijos, canoas a0 luar, roux’ s nos bosques, avalheiros braves coms ledes, meigos como cordeiros, virtuosos como ninguém é, sempre bem colocados que choram como urnas. Durante scis meses, a0s 15 anos, Emma engordurou, mios nessa pocira dos velhos gabinetes de leitura.] Portanto, as A “hesitagao prolongada entre 0 som eo sentido” Se podemos estender a todo texto litersrio a definigdo que Valéry propce do poema'* é porque o trabalho sobre a linguagem é sempre recebido ao mesmo tempo como um trabalho sobre o sentido, Como acabamos de ver, essa aborda- gem deve muito ao modo como a ideia de “literatura” se construi ao longo da histéria. A forma jamais é percebida como limitada ao plano estético: oleitor também espera de sua leitura um lucro intelectual Vamos nos interessar pela iilima frase da passage ses, aos 15 anos, “Durante seis me- Emma engordurou portanto as méos nessa poeira dos velhos gabinetes de leitura.” Sea ordenagio dos termos obedece, evidentemente, a con- sideragdes ritmicas, ele também expressa certo niimero de coisas. A dupla ante: posicao temporal (“Durante seis meses”, “aos 15, anos”) tem valor de insisténcia; Por tempo demais e jovem demais. A 15 anos”) ea antiguidade (“velhos gabinetes”) ass fasagem: Emma nao est em seu lugar, Quanto 20 “por tum vinculo légico com o que precede e dé testemunho 2 ela sublinha um duplo excesso: Emma |é antitese entre a juventude (“ nala, além disso, uma de! tanto”, cle estabelece poema — esta hesitagia prolongad: Paris: Gallimard, 1943, p, 63), ‘@entre o som eo sentido” (“Rhumbs", Te! Quel! Daarteedatiteratura 37 mo das paginas precedentes. nfatizado da adoles~ estamos lidando importincia de nossa frase: é uma sintese, um resu Ela condensa aquilo que, aos olhos do narrador, merece ser e céncia de Emma. O narrador nos indica com esse “portanto” qu com um nticleo da histéria, que convém memorizar se quisermos romance, O conteiido do enunciado confirma, ais, 0 lado decisivo co transmitida: 15 anos so uma idade jovem, em que a pessoa ainda é em que as coisas se langam para o futuro, ea longa durasao (seis meses) mostra portanto, essen- seguir 0 fio do da informa- moldével, que a impregnagao é forte e tera consequéncias. Essa passagem é, cial para se compreender a sequéncia (do livro de Flaubert e da vida de Emma): 0 que vai se passar estd fundamentalmente ligado ao fato de Emma ter lido jovem demais, durante tempo demais, determinada categoria de livros**. O reflexo de leitura que consiste em inverter a forma sobre o plano do contetido é evidentemente, independente do projeto real do escritor, que pode muito bem ter corrigido por razdes unicamente estéticas. E decerto 0 caso para : temos a sorte de possuir seus rascunhos. Flaubert tinha escrito ini- "Durante seis meses, aos 15 anos, Emma envolveu portanto 0 espiri- a nossa Fras cialment to em todo esse fundo poeirento dos velhos gabinetes de leitura de provincia Ele substituiu portanto “envolver 0 espirito” por “engordurar as mios” e “esse fundo poeirento” por “essa poeira". A versio final decerto é mais musical que a do rascunho, como se percebe, entre outras coisas, pelo menor peso da frase e pelasaliteragdes em /s/ e /x/ ("fond poudreusx” vs, “cette poussiére”). Inevita- velmente, porém, ela tampouco significa a mesma coisa. Se consultarmos o diciondtio (Petit Robert), graisser (“engordurar”) sig- nifica, num primeiro sentido, “cobrir com uma camada de gordura ou material gorduroso” e, num segundo sentido, “manchar de gordura, sujar”. E essa segun- da acepgio que parece, aqui, ter de ser considerada na medida em que 0 sema /sujeira/, igualmente presente em “poeira”, permite construir uma isotopia: 1 *Cerias [fungies] constituem verdadeiras articulagées do relato (ou de um fragmento de relate); outras s6 fazem "preencher” o espaco narrativo que separa as funcdes-articulagées: ‘vamos chamar as primeiras de fundus cardeais (ou nricleos) eas segundas, vista sua natureza completiva, de ealdlises" (R. Barthes, Introduction & analyse structurale des récits, in: R. Barthes et a., Poétique du récit, Paris, Seuil, 1977, p. 21). © Observe-se que a importéncia da passagem fora percebida pelo advogado de Flaubert, que a cita em sua defesa (ver G. Flaubert, Madame Bovary, op. ct p. 462). * Folio74, manuscrito disponivel no sitio da Universidade de Rouen: wwwuniv-rouen.fr/ Aaubert/bovary. ® Vamos lembrar que o significado de uma palavra repousa numa soma de semas (ou “uni- dades de significagao"). 38 ron ur LsTupaR itemaruRa Emma suja as maos lendo livros velhos. Se Jevarmos em conta a estilizagn do enunciado (considerando o que precede, parece que “gabinetes de leitur “éuma metonimia para “livros”), é preciso entender entdo: Emma sujou a5 mos nessa poeira que impregna os livros que vém dos velhos gabinetes de leitura. Resta 2 questo de saber se 0 enunciado deve ser tomado em sentido proprio ou em sen- tido figurado. As duas hipéteses parecem igualmente aceitdveis: Emma sujou as mios, no sentido proprio, por causa da pocira que impregna 3505 livros vindos de velhos gabinetes mal conservados; Emma se impregna, no sentido figurado, do contetido de livros antiquados que a marcardo por toda a vida. As conotagées do termo “graisse” (“gordura’/“sujeira”/"graxa”) introda- zem, por outro lado, uma série de ambiguidades. De fato, elas sao contraditérias. Os valores negativos da “gordura” sio conhecidos: a gordura esté ligads a sujeira (= im”, provoca manchas) e ao empiitement™ (a cujo respeito se fala de “gordura r aquela que se deve suprimir quando se tem excesso de peso). Mas a gorduze também tem conotacies positivas: ela protege (enverniza-se um objeto, “para con- servé-lo, protegé-lo da deterioragao"), permite 0 bom funconamento (engraxa-se tum mecanismo, no sentido de “lubrificar”, para permitir que fancione melhor) alimenta (aduba-se a terra, engorda-se um animal) ¢ ela dé brilho (engraxa-se um sapato}. Ora, todos esses sentidos, ainda que opostos, séo aceitéveis no enundzdo a leitura suja a existéncia de Emma, mas também lhe dé brilho: que nos ocup; entrava sua vida, mas a alimenta; ameaga-a, mas as protege. mos, em outras passagens do romance, 05 valores antitéticos do verbo “graisse lote-se que encontra- (“engordar”/“sujar”/"engraxar”/lubrificar”) condensados numa tinicaf6rmuls [A frase seguinte é, desse ponto de vista, particularmente interessante: [.u] ele reconfortou o paciente com toda sorte de boas palavras, caricias citrgicas Js como 0 Gleo com que lubrificamos 0s bisturis. ec toutes sortes de bons mot: [...] i réconforta le patient av sont comme Fuuile dont on yraisse les bistouris" caresses chirurgic. ee T spessamento do tecido subcutaneo (NT). + Oleerve-nue que Flaubert, numa carla a Louise Colet de 26 de julho de 1852, recorre 2 nctafora da “gordura rim” que € preciso reirar: "Vendo meu aspecto, alguem pensariz lenho de produiro €pico,0 drama, a brutalidade dos fatos, eeu, ao contrario, sé me agrado nos temas de analise, de anatomia, por assim dizer. No fundo, sou o homem des livros-<32 eee eusta de paciencia v de estudo que me livre’ de toda a gordura esbranquicada que tnergia meus musculos’, Correspondance, vol. Il Paris: Gallimard, 1980, p. 184 Madan Bowtry. op «it p-17- Estamos no inicio do romance: Charles trata o padre Row que acabou de quebrar a perna P: It Daartee da literatura 39 1 rT A “graisse” aqui esté ligada significativamente, ao mesmo tempo, 5 “ca- ricias” © 3 “cirurgia”: se ela ajuda a funcionar melhor, é na medida em que — como a leitura? — ela dissimula superficialmente uma violéncia bem real. Se, em nossa passage, “engordurar” provavelmente foi mantido por Flaubert por razdes eufénicas, a modificago formal é, pois, pela forga das coisas, imediatamente interrogada pela leitura. Podemos fazer as mesmas observagdes quanto a palavra “poeira”, que aca~ bou sendo preferida ao “fundo poeirento”*, Do lado das conotacdes negativas, a pocira esté ligada & sujeira; participa de uma vida monétona e ligubre; é um sinal de desgaste, de envelhecimento; remete as cinzas e 4 morte. Significativa- mente, essa poeira negativa participa da l6gica textual: € como se a poeira en- contrada nos livros permanecesse agarrada a Emma por toda a vida. Observe-se que, jé adulta, Emma continua a gostar da poeira, sem se dar conta de seu carater mortifero. Vamos nos lembrar de sua entrada na Opera: Ela teve prazes, como uma crianga, em empurrar com o dedo as largas portas atapetadas; aspirou com todo o peito o odor poeirento dos corredores, ¢, quando se sentou em seu camarote, arqueou a cintura com uma desenvoltura de duquesa®. Mas 0 romance também atualiza as conotagées positivas de “poeira”, que se vé ligada ao arrebatamento, & estética (a faixa de poeira), ao maravilhoso (a poeira de ouro). De maneira geral, pé é suporte de devaneio, de poesia: ele remete ao vaporoso. Essa ambivaléncia, obviamente, € significativa. Podemos dar conta dela da seguinte maneira: no tocante A poeira e A gordura, 0 texto propde ora o ponto de vista de Emma, ora o ponto de vista do narrador. A ambiguidade de nosso enun- ciado se deve, pois, ao que Bakhtin chama de inter-relagéo das linguagens®s, A formula “engordurar as maos na poeira” supde, com efeito, duas consciéncias lingufsticas: uma que representa; outra que é representada, Condensando os valores contradit6rios de “gordura” e “poeira”, a formula diz. ao mesmo tempo 6 que a leitura representa de positivo aos olhos de Emma e 0 que, na realidade, cla veicula de negativo: Emma acredita se livrar da sujeira do mundo pela lei- : ie francés, as palavras ‘poudre” ('p6') e ‘poussiére” ('p6, poeira’) tém, 6claro, a mesma raiz eti ‘mol6gica, Mas nem por isso cleixam de apresentar conotacbes diferentes, sobi ‘ dem leitor maderno. eee 22 Matame Bovary, op. cit. p. 262-263. CEM. Bakhtin, Esthétique et théorie du roman, op. city p. 1758s, POR QUE ESTUDAR LITE 40 revenirmos contra a pocira), mas tudo g aus Os livros que se apresentam como inn, to de vista da personagem) conduzitio pre tura (untamos as mios para nos P' faz é passar de uma corrupsao a outra. maneira de embelezar a vida (pon gressivamente & morte (ponto de vista do narrador). ce nada” é recebido, portanto, como tim livro sobrg Mesmo um “livro sob pa apesar do que se diga dela — ser reduridy alguma coisa: a literatura nao pode — a musicalidade das palavras. A dimensdo intelectual: discursos sobre a leitura e 0 sentido da vida Através desse quadro de Emma a ler, 0 texto nos fala da leittira em sua re. lagao com a vida e a morte. Bis algumas das postulagdes que podemos deduzir do enunciado: ler é um remédio que pode se transformar em veneno; a leitura pode embelezar a vida, mas também afastar da vida (a forga da ilusdo é entao proporcio- nal A da desilusio); ler responde a uma necessidade de compensar a insuficiéncia do real (ou “ler cria 0 sentimento da insuficiéncia do real”); ha um modo de ler destrutivo (que é 0 reflexo invertido do que seria um modo de ler construtivo);a mé leitura depende da atitude do leitor, mas também do tipo de livro lido (disso se pode inferir 0 que o romance de Flaubert busca provocar e como convém [é-lo), Em suma,a leitura tem a ver coma alienagio, a dependéncia, a doenga, a morte, veneno, mas também com a protegio, o reftigio, o alisamento ¢ o embelezamento. O enunciado veicula, portanto, certo ntimero de contetidos. Resta saber por que ele veicula justamente esses contetidos. Responder essa pergunta supde passar da interpretaco a explicacio”. A explicacio consiste, de fato, em esclare: cer o contetido destacado, interrogando-se sobre suas causas. Trata-se de trazer a luz determinados fatores (biografia, cultura, histéria, sociedade etc.) que per mitem compreender por que um texto exprime o que exprime. A titulo de exemplo, proporemos uma explicago antropolégica de nosso enunciado com base nas andlises de'T. Pavel sobre a origem e a evolugio do géne- 58 : : ro romanesco™. A tese de Pavel é que o objeto de atengao do romance é sempre 0 * Voltarei mais adiante a distingao entre explicagao e interpretagao; e, de modo mais geral, questo complicadlissima da significacdo, * Ch. La Pensée du roman. Paris: Gallimard, 2003, p, 288ss, mesmo: o homem individual apreendido em sua difieuldade de habitar 0 mundo. ado idea- _Aesse respeito, dtias tradigies se enfrentany ao longo de sua histéria: lismo, persuadido de que o individuo pode dar um sentido a sua vida submeten- da 10, convencido da imperfeigio do homem e ¢ condigio. do-a a um absolute; a do ceti inutilidade dos esforgos que ele empreende para eseapar de sua t E a inanidade da visio idealista pondo em cena personagens que, embora ref par da realidade som- 0 Ele mostra egunda tradigio se encontra no século XIX na obra de Flaubert. ns de um mundo entregue a mediocridade, imaginam poder bria, Mas a forga do texto de Flaubert esti em atacar ao mesmo tempo a VIS que a propagam. Madame Bovary mostra, xaltadora do amor, de mundo idealista e os romances de fato, que 0 romance idealista, a0 difundir uma imagem & to entio: se contenta em suscita um desejo que nao pode ser satisfeito. O tes Jo, tornan- denunciar uma visio artificial: ele desmonta as engrenagens dessa v mm os mecanismos do desejo,o relato de Flaubert se sea” que R. Girard opde a “mentira romantica”: eira da ilusio pela qual 0 inscreve nesta “verdade romane: “O romancista & 0 tinico a descrever essa génese verdad romantismo sempre responsabiliza um sujeito solitério”™. nos ocupa faz dialogar, portanto, dois pontos de vista sobre a A frase que condensar. A presenga de tal contetido se explica da leitura e que ela consegue seguinte manera: herdito de uma problemstica propria ao género ¢ ributiria da historia cultural, o romance de Flaubert levanta, ), a questiio multissecula ut modo (e através dos desafios do lugar do individuo no mundo. prdprios ao século XIX icidivel da es- ssivo do enunciado é, como se mostrou, indi: O valor expre: tudo literitio pode abrir colha dos termos e mio de uma refle poder de sedugio que geralmente de sua ordenagio. Se nenhum 9 sobre a forma, portanto, nfo & unicamente por cattsa do The atribui. > Girard, Mensonge romantique et write romanesue, Paris: Grasset, 1961, p. 31.

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