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Ween) normalidade e da medicalizagao A QUESTAO DA NORMALIDADE EM PSICOPATOLOGIA O conceito de satide e de normalidade em psi- copatologia é questio de grande controvérsia, sendo fundamental © questionamento per- manente e aprofundado sobre o que seriam 0 normal e o patolégico (Almeida Filho, 2000) Ha questoes particularmente dificeis na de minacao de normalidade/anormalidade em sicopatologia. Historicamente, receberam gi essas node ande carga valorativa; assim, de finir alguém como normal ou anormal psico Patologicamente tem sido associado aquilo que & “desejével” ou “indesejavel’, ou aquilo que é “bom” ou “ruim’: Tais valores, mesmo que se busque esclarecer que no devam estar pre sentes, retornam quase sempre, de forma ex. plicita ou camuflada, quando se caracteriza al guém como “anormal” psicopatologicamente (Duyckaerts, 1966) Aléin disso, 0 comportamento ¢ o estado mental das pessoas ndo sio fatos neu. tros, exteriores aos interesses e preocupa ses humanas. Nao se fica indiferente perante outros individuos, ao lidar com seus compor- tamentos, sentimentos e outros estados men- {ais. A classificagdo de Plutao como planeta- anéo ou plutoide, asteroide ou cometa, per dendo, enfim, o status de planeta, nio afeta la, a vida dos seres huma- nos. Ja classificar de normal/anormal ou pato logico/saudavel alguém. cuj nada, ou quase nad ja orientagio do Que é loucura Dana. ou segui-lo como eset De nds dois, quem o louco O que, acordado, sonha doidama” O que, mesmo v¢ vé0 real e segue g de um doido pelas bruxas emby, Carlos Drummond de Andrade desejo erdtico é homosexual ou dade de género € de transgéi Cuja ident er0 afeta mar cadamente milhares de pessoas reais, para. quais essas definigies interferem diretamente em suas vidas. Assim, o debate sobre norma lidade em psicopatologia é um debate vivo, intenso, interessado, repleto de valores (expii citos ou nao), com conotacées politicas¢ fo. Séoficas (explicitas ou nao) e conceitos que implicam 0 modo como milhares de pessoas serdo situadas em suas vidas na sociedade Obviamente, quando sio casos extremos que estio em discussdo, cujas alteracoes com Portamentais ¢ mentais sio de intensidade acentuada e de longa duracao, com soft ‘mento mental intenso e disfungdes graves no dia a dia, como deméncias avangadas, psica Ses graves ou deficiéncia intelectual profund: 0 delineamento das fronteiras entre o normal € 0 patoldgico nao é tao problematico. Entre: tanto, hé muitos casos menos intensos e del mitados, além daqueles limitrofes e comple xos em sua definicao, nos quais a delimitagio entre comportamentos, estados mentais e for mas de sentir normais ou patolégicas & bas tante dificil e problematica. Nessas situagdes, © conceito de normalidade em psicopatolo- sia € satide mental ganha especial relevinci. Na CID-11, transtorno leve de personali dade (mild personality disorder) é um exemplo infeliz de criagao de entidade nosoldgica que Por ser muito préxima ao comportamento de um grande niimero de pessoas em geral tidas normais (eX que, em apenas alguns S{nteatos soci, apresentam problemas mio Graves na identidade, alguma dificuldade em Palaces interpessoais, desempenho no traba tho wem relagdes sociais), podera gerar diag. _ gosticos psivopatoligicos exagerados ¢ medi alizagao inapropriada, “Tal problema nao & exclusive da_psico- patologia, mas de toda a medicina e psico Jogia clinica (Almeida Filho, 2001). ‘Tome-s camo exemplo, a questio da delimitagio dos niveis de tensio arterial para a determinagio, de hipertensio ou de glicemia na definigio do diabetes. Essas delimitagdes mudaram em funcao de visdes de satide e de politicas sanité rias da sociedade, Esse problema foi cuidadosa. mente estudado pelo fildsofo e médico francés Georges Canguilhem (1943/1978), cujo livro 0 normal ¢ 0 patoldgico tornou-se uma obra clissicae indispensivel em tal discussio, “0 conceito de normalidade em psicopa: tologia também implica a propria definigio do que é sade e doenga/transtorno mental. Os priprios termos levantam discussio. No século XIX, usava-se 0 termo “alienagio”, oriundo do direito; no século XX, passou-se a usar 0 termo “doenga mental’; e, nas Gltimas décadas, com os sistemas diagnésticos Classi- ficacao internacional de doengas e problemas “relacionados & satide (CID) e Manual fico e estatistico de transtornos mentais (DSM) | ganhando protagonismo, passou-se termo “transtorno mental’. O termo “doenca” foi criticado para a area de psiquiatria e psicologia clinica, pois impli- caria sempre ou quase sempre alteragdes pato- Igieas no corpo (no caso, no eérbro). Como ‘em muitas das condigdes psicopatoldgicas nao se evidenciam alteragoes anatomicas, fisiol6- gicas ou histolégicas no cérebro, convencio- nou-se usar o termo “transtorno’, Neste livro, “usam-se como sindnimos os termos “doenca” ¢“transtorno”, Os temas relacionados ao debate sobre ormalidade apresentam desdobramentos em ‘arias areas da sade mental e da psicopatolo- bia, a saber: 1. Psiquiatria e psicologia legal ou forense. A determinagio de anormalidade psicopa- toldgica pode ter importantes implicagdes Jegais, criminais e éticas, podendo definir 0 destino social, institucional e legal de uma Pessoa. A definigio de alguém como normal Psicopatologicamente significa que o indi- Aauestio da normatidade «da medicalizagio 15 viduo em questio é plenamente responsdvel Por seus atos © deve responder legalmente Por eles. Caso se defina a pessoa como anormal ¢ tal anormalidade a impeca de avaliar a realidade e de agir racionalmente, respeitando as leis de sua sociedade, ela passa a ser considerada nio responsivel por Seus alos, perdendo a autonomia, de um lado, ¢, de outro, a possibilidade de ser acu sada © punida judicialmente, Assim, a defi nigio de normalidade/anormalidade tem um peso marcante nessa dimensio da vida, 2. Epidemiologia dos transtornos mentais. Nesse caso, a definigio de normalidade & tanto um problema como um objeto de tra- balho e pesquisa. A epidemiologia, inclu sive, pode contribuir para a discussio e 0 aprofundamento do conceito de norma- lidade em satide em geral e em psicopato- logia, em particular. . 3. Psiquiatria cultural e etnopsiquiatria. Aqui, © conceito de normalidade & tema impor- tante de pesquisas e debates. De modo geral, ‘oconceito de normalidade em psicopatologia impée a anilise do contexto sociocultural Aqui se exige necessariamente 0 estudo da relacio entre o fenmeno supostamente pato- légico e © contexto social no qual tal fend- meno emerge e recebe este ou aquele signi- ficado cultural, 4, Planejamento em satide mental e politicas de satide. Nessa area, é preciso estabelecer critérios de normalidade, principalmente no sentido de verificar as demandas assisten- ciais de determinado grupo populacional, vecessidades de servigos, quais e quantos a servigos devem ser colocados disposigio lesse grupo, etc. 5, Orientagio e capacitagio profissional. Sio importantes na definigao de capacidade ¢ adequagio de um individuo para exercer CSS anialar ok cae Tar armas, dirigir veiculos, etc. ~ por exemplo, 0 caso de individuos com défcits cognitivos ¢ que desejam dirigir veiculos, pessoas psicd- ticas que querem portar armas, sujeitos com crises epilépticas que manipulam maquinas werigosas, entre 7 nuito importante a capa- liscriminar, no proceso de ava- cidade de di av liagio ¢ intervengio clinica, se tal ow qual 16 Psicopatologia e Semiotogia dos Transtornos MK fendmeno & patologico ou normal, se fa parte de tm momento existencial do indi- vidluo ou se & {go {rancamente patoligico. De modo geral, sio incluidas na pritica cli- ica apenas as pessoas com transtornos mentais; entretanto, isso nao é absoluto, pois aquelas com sofrimento mental signi ficativo, sem uma psicopatologia, também podem se beneficiar de intervengdes pro- fissionais em satide mental, como psico- terapia, arte-terapia, orientagio ¢ mesmo, em certos casos avaliados individualmente e com cuidado, uso de psicofirmacos por periodos breves, Critérios de normalidade Ha varios e distintos critérios de normalidade € anormalidade em medicina e psicopatologia. A adogao de um ou outro depende, entre outras coisas, de opgdes filosdficas, ideoldgicas e pray mitticas do profissional ou da instituigao em que ocorre a atencio a satide (Canguilhem, 1978). Os principais'critérios de normalidade util zados em psicopatologia sao: 1. Normalidade como auséncia de doenea. primeiro critério que geralmente se utiliza 60 de satide como “auséncia de sintomas, de sinais ou de doengas” Segundo expressiva formulagao de um dos fundadores das pes quisas médicas de intervencdo sobre a dor fisica, René Leriche (1879-1955),"a sade éa vida no siléncio dos érgaos” (Leriche, 1936) Normal, do ponto de vista psicopatolégico, seria, entao, aquele individuo que simples- mente no é portador de um transtorno mental definido. Tal critério é bastante falho e precério, pois, além de redundante, baseia-se em uma “definicao negativa’, ou seja, define-se a normalidade nao por aquilo que ela supostamente é, mas por aquilo que ela nao é, pelo que lhe falta (Almeida Filho & Juca, 2002), 2. Normalidade ideal. A normalidade aqui é tomada como certa “utopia’, Estabelece-se arbitrariamente uma norma ideal, aquilo que € supostamente “sadio’, mais “evoluido” Tal norma é, de fato, socialmente constituida e referendada. Depende, portanto, de crité- rios socioculturais © ideolégicos arbitrarios ¢, as vezes, dognxiticos ¢ doutrinarios. Exem- iceitos de normalidade sio aqueles com base na adaptagio do individuo- plos de tais co 1s moras € politicas de determinady socicdade (como nos casos do macarthising nos Estados Unidos e do pseudodiagnésticg de dissidentes politicos como doentes men tais na antiga Unio Sovidtica), Normalidade estatistica. A normalidade estatistica identifica norma e frequéncia ‘Trata-se de um conceito de normalidade que se aplica especialmente a fendmenos quantitativos, com determinada distri. 0 estatistica na populagio geral (como peso, altura, tensio arterial, horas de sono, quantidade de sintomas ansiosos, etc.), © normal passa a ser aquilo que se observa com mais frequéncia. Os indivi duos que se situam estatisticamente fora (ou no extremo) de uma curva de distri- buigio normal passam, por exemplo, a ser considerados anormais ou doentes. Esse é um critério muitas vezes falho em saiide geral ¢ mental, pois nem tudo 0 que é frequente é necessariamente “saudavel, assim como nem tudo que é raro ou infrequente € patolégico, Tomem-se como exemplo fen ‘menos como as caries dentarias, a presbio 0s sintomas ansiosos e depressivos leves, © uso pesado de Alcool, os quais podem ser muito frequentes, mas que evidentemente no podem, a priori, ser considerados nor- mais ou saudaveis, Normalidade como bem-estar. A Orga- nizagio Mundial da Satide (WHO, 1946) definiu, em 1946, a satide como o “completo bem-estar fisico, mental e social”, endo sim- plesmente como auséncia de doenca. E um Conceito criticavel por ser muito amplo € impreciso, pois bem-estar é algo dificil de se definir objetivamente, Além disso, ess¢ completo bem-estar fisico, mental e social & ta0 ut6pico que poucas pessoas se encaixa tiam na categoria “saudaveis” Normalidade funcional. Tal conceito baseia- -se em aspectos funcionais e nao necessari- mente quantitativos. © fendmeno é consid tado patolégico a partir do momento em que é disfuncional e produz sofrimento par! Proprio individuo ou para seu grupo social Normalidade como processo. Nesse mais que uma visio estitica, consideramrs® 08 aspectos dindmicos do desenvolvimente Psicossocial, das desestruturagdes ¢ das Fees traturagées ao longo do tempo, de crises mudangas proprias a certos periods etirios, Esse conceito & particularmente tii na cht mada psicopatologia do desenvolvimento relacionada a psiquiatria ¢ psicologia clinica de criangas, adolescentes ¢ idosos. Normalidade subjetiva, Aqui, ¢ dada maior Enfase a percepsio subjetiva do proprio indi viduo em relagio a seu estado de satide, suas vivéneias subjetivas. O ponto falho desse critério & que muitas pessoas que se sentem bem, “muito saudiveis e felizes’, como no caso de sujeitos em fase manfaca no trans torno bipolar, apresentam, de fato, um transtorno mental grave. Normalidade como liberdade. Alguns auto- resdeotientagao fenomenoldgicaeexistencial propéem conceituar a doenga mental como perda da liberdade existencial, Dessa forma, a satide mental se vincularia As possibilidades de transitar com graus distintos de liberda- de sobre o mundo e sobre o préprio destino. © psicopatélogo francés Henri Ey (1900- -1977) formulou com clareza esta nogio: [..] as enfermidades fisicas so ameagas } vida, as enfermidades mentais si0 ataques a liberdade. [...] no transtorno mental [...] © processo mérbido tra- vando, bloqueando, dissolvendo a ati- vidade psiquica, diminui a liberdade ¢ responsabilidade do paciente mental (Ey, 2008, p. 77). ‘A doenga/transtorno mental é, portanto, constrangimento do ser, éfechamento, fos- silizagio. das possibilidades existenciais. Dentro desse espirito, 0 psiquiatra gaticho Cyro Martins (apud Guilhermano, 1996, p. 12) afirmava que a satide mental poderia ser vista, em certo sentido, como a possi- bilidade de dispor de “senso de realidade, senso de humor e de um sentido poético perante a vida’, atributos esses que permi- tiriam ao individuo “relativizar” os sofri- mentos eas limitag6es inerentes Acondigio humana e, assim, desfrutar do resquicio de liberdade e prazer que a existéncia oferece. Normalidade operacional. Trata-se de um critério assumidamente arbitrario, com finalidades pragmaticas explicitas. Defi- ne-se, a priori, o que é normal € 0 que é patoldgico e busca-se trabalhar operacio- nalmente com esses conceitos, aceitando 1s consequiéncias de tal definigio previa. IME certo ponto, a demarcagio de sepa ragio entre normal © patoldgico dos sis- temas diagndsticos atuais (CID ¢ DSM) cemprega critérios operacionais € pragmé ticos na definigdo dos transtornos mentais. Portanto, de modo geral, pode-se concluir que os critérios de normalidade ¢ de doenga em psicopatologia variam consideravelmente tem fungao dos fenémenos especificos com os is se trabalha e, também, de acordo com as ‘opgoes filoséficas do profissional ow da insti o. Além disso, em alguns casos, pode-se utilizar a associagao de virios critérios de nor- malidade ou doenga/transtorno, de acordo com 0 objetivo que se tem em mente. De toda forma, essa & uma area da psicopatologia que exige postura permanentemente critica ¢ refle- xiva dos profissionais, MEDICALIZACAO, PSIQUIATRIZACAO, PSICOLOGIZAGAO Em excelente trabalho abrangente ¢ critico, Rafaela T. Zorzanelli e colaboradores apontam para os multiplos (e, as vezes, confusos) sen- tidos do termo “medicalizagio” na atualidade (Zorzanelli et al., 2014). ‘Campos ¢ condigdes como infancia e trans- torno de déficit de atengao/hiperatividade (TDAH), timidez e fobia social, envelhecimento e menopausa, meméria e transtorno de estresse 1pés-traumatico exemplificam temas que sio rei- teradamente incluidos nas criticas sobre medi- calizagio, Por medicalizagao entende-se “o pro- ‘cesso pelo qual problemas nao médicos passam a ser definidos e tratados como problemas ‘médicos,frequentemente em termos de doengas ow transtornos” (Conrad, 2007), sicopatologia, m edicali- fo. campo a um conceito que se refere mais especi- Feet iransformagio de comportamentos tsi ey deen 0 ns es em doencas ou transtornos men- tais, implicando geralmente a acao do controle Peter meen sobre a coadighes tastor cEaveraii@iention rs ‘medicalis em ent ~~ Assim, 0 termo “i \Go” teve, no inicio do uso desse construto, um sentido de denancia sobre 0 chamado “poder médico” (ver, por exemplo, as criticas de Zola, 1972). 18 Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais Os termos “psiquiatrizagao” (transformacao de problemas nao psiquidtricos em psiquid- tricos) ¢ “psicologizacao” (transformagio de problemas nao psicolégicos em psicol6gicos), embora menos empregados, teriam um sen- tido andlogo ao de “medicalizacao”. Assim, 0 que esta em jogo na critica que © termo “medicalizacao” implica é 0 pro- cesso ideoldgico e politico de rotular compor- tamentos desviantes, moralmente repreensi- veis ou mal-adaptados e transgressivos como doenga, como transtorno mental, e, assim, monitorar, regular e controli-los melhor, ou desqualificar &s pessons que reebem tal rétulo, Na atualidade, a nogao de medicalizacao se tornou mais problemdter © conga SB, tudo péla Eugen cus pEOaT MHD prota fazem por iden dager reclannaapeacurer condicées médicas e pela apropriacao de cat gorlés médleas pela populace en geval (ZBt zanelli et al., 2014). —— Embora a dentincia da medicalizacio, psi quiatrizacao e psicologizacao seja importante, ha diversos aspectos controversos em torno dela, Em diversos paises e no Brasil, em par- ticular Hi PaaS ERIM PESTS u instornos: mentais graves como esquizo~ ismo, depres orno bipolar, autismo, | > io t as sso a cuidados de ados, enquanto em outros nais_ privile: frenia, trans grave, satide cidade ‘conjugal, sendo medicalizada como “depressio” & 1m psicofai OO fracasso escolar devido a inadequagdes peda gogicas sendo psiqui: ‘A questéo, na maioria das vezes, nao é se 0 individuo recebe ou nao diagnéstico e tra- tamento médico, psiquidtrico ou psicoldgico, mas, antes, se aqueles que necessitam de fato recebem diagnéstico e tratamento adequados, € aqueles que nao necessitam possam ficar isentos de ages médicas com implicagées ina- dequadas (Glasziou, 2013). A definiggo de um conjunto de compor: tamentos como normal ou anormal, como , transgressao. 1 walmart aoe sole & toceonain 65, tna x indimette fee céutica), a vida politica, o sistema juds ial, enim, sobre a vida concreta, muitae sacl & milhares de pessoas ae

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