You are on page 1of 16
4 Desenvolvimento das capacidades comunicacionais MARIO ALFREDO DE MARCO Para o exercicio de uma boa medicina, € preciso desenvolver, ao lado de habilida- des técnicas (biomédicas), capacidades éticas, estéticas e emocionais, implemen- tando a busca de conhecimentos e atividades que favorecam a incorporacdo e a evolugio dessas capacidades. Um campo importante nessa formacao envolve 0 conhecimento da pessoa em sua constituicao e complexidade, os processos comu- nicacionais e a influéncia de todas essas caracteristicas e de todos esses fatores no processo satide-doenca. Tal conhecimento ¢ fundamental para determinar a qua- lidade da relagao que se estabelecerd no encontro do profissional da satide com 0 paciente. Dependem disso: a possibilidade de percep¢ao do outro e da dinamica emocional presente na relagao; a manutengao de uma postura ética e 0 enfrenta- mento dos dilemas que, inevitavelmente, se apresentam nesse campo; €0 cuidado ‘com os aspectos estéticos € a compreensdo de sua influéncia no processo satide- -doenga. Mas como buscar ¢ estruturar esse aprendizado? Boa parte do aprendizado vem das observages ¢ experitncias que a propria vida nos proporciona, 0 que no exclui a necessidade de sistematizagio, treina- mento ¢ aprofundamento, Aliés, um importante obstaculo para a busca ¢ a estru- turagio desse aprendizado, que envolve o conhecimento da pessoa e dos proces- sos comunicacionais, é a ideia equivocada de que ele nao pode ou nio precisa ser aprendido. HABILIDADES DE COMUNICACAO E ENTREVISTA Em relacio as habilidades de comunicacio titeis e necessdrias para a realizacio da entrevista, é vigente entre muitos estudantes e profissionais a ideia de que no é preciso aprender a entrevistar (como se fosse inerente ao profissional ja saber fa~ zé-lo) ou de que entrevistar é algo que ndo pode ser ensinado. De fato, muitas vezes, entrevistar pode parecer algo “natural”, que depende do senso comum, do “jeito” de cada um. Entretanto, embora seja muito impor- tante que cada um possa encontrar uma maneira propria de entrevistar, existem conhecimentos, exercicios e técnicas capazes de otimizar o aproveitamento de Psicologiamedica 85 uma entrevista tanto no que diz respeito a seu contetido ¢ a sua condugao, quan- to ao estabelecimento de um bom contato e vinculo, bem como um melhor apro- veitamento do tempo. Podemos comparar essa situago ao preparo do cirurgigo: a eficiéncia desse profissional depende tanto do treinamento e do aperfeigoamen- to de habilidades motoras inatas quanto do aprendizado e do treinamento das técnicas especificas envolvidas em cada cirurgia. A ideia, neste capitulo, ¢ apresentar teorias e técnicas de entrevista da forma como as temos utilizado no preparo de nossos estudantes (no curso, utilizamos aulas teoricas ¢ expositivas e aulas praticas, com a gravagao ea discussio de situa- oes dramatizadas de entrevistas - método de role-playing - dentro da técnica co- nhecida como videofeedback interativa). Inicialmente, sto apresentados aos alunos conhecimentos sobre os tipos de entrevista (aberta, estruturada, semicstruturada) ¢ discutem-se as vantagens ¢ desvantagens do uso de cada um deles em uma entrevista ou consulta médica. Em seguida, abordam-se nogées bésicas de comunicagio (emissor, receptor, ruides, interferéncias). Uma atengio especial é dada aos fendmenos da comunicacao nio verbal (proxémica, cinésica, paralinguagem), fundamentais para a percepsio mais aprofundada do outro e da dinamica da relacao. Passamos, entao, a chamada fase exploratéria da entrevista, na qual se con- centra boa parte da tensio da entrevista e que, por isso, é determinante no estabe- lecimento da alianca terapéutica, As caracteristicas e os principais obstculosa se- rem enfrentados nessa fase so apresentados ¢ discutidos, introduzindo os alunos ao conhecimento de algumas técnicas para perguntar, escutar, falar e enfrentar os entraves proprios dessa etapa. Por fim, na fase resolutiva da entrevista, momento de informar o paciente sobrea natureza de sua doenca, evolugao, prognéstico e condutas a tomar, procu- ramos aprofundar habilidades e técnicas para conseguir uma melhor memoriza- 40 e compreensio das orientacdes, facilitando a assimilagdo e driblando as resis- tencias dos pacientes. Abordamos temas como dar més noticias ¢ lidar com a agressividade dos pacientes e com o fenomeno da internet (cada vez mais acessi- vel e utilizado pela populacao). Técnicas de negociagao envolvendo a pactuagao das condutas e orientagdes entre o profissional e o paciente séo apresentadas e discutidas (evidentemente, ao apresenti-las, jé estamos deixando claro para o es- tudante o direito do paciente de participar e opinar sobre seu processo). OS DESAFIOS A SEREM ENFRENTADOS PELO FUTURO MEDICO OU POR QUE £ IMPORTANTE PARA O FUTURO MEDICO APROFUNDAR-SE NO CONHECIMENTO DAS HABILIDADES DE COMUNICAGAO ‘Acheia situacdo muito mecdnica.Fiquei muito preso ao roteiro. Euacho muito complicado perguntar sobre a vida pessoal do paciente, principalmente sobrea sexualidade ea situagdo econdmica, continua >> DeMarco, Abud, Lucchese & Zimmermann >> eantinvagto Achei um pouco complicado quando chegamosas questdes sobrea sexualidade da paciente. Foi dificil conter oriso. Nao consigo entender qual a necessidade de ficar perguntando sobrea vida pessoal do paciente. Eseo paciente comegara chorar? 0 que faco? Essas so questdes extraidas de situagdes da nossa pratica, ilustrando alguns dos desafios que se apresentam para a realizacdo da entrevista médica. Quando tais desafios nao sao enfrentados de forma apropriada, ocorre um prejuizo do apzen- dizado e da capacitacdo paraa realiza¢do da entrevista, cristalizando procedimen- tos inapropriados e pouco eficientes ¢ efetivos. Como enfrentar esses desafios? f necessirio/possivel um preparo? Como ja explicitamos, as técnicas para a realizagdo de entrevistas podem ser objeto de um aprendizado especifico. Mais do que isso, hoje, os resultados de mui- tos trabalhos voltados para esse treinamento tém contribufdo para nos ajudar a afirmar com seguranga, com base em um grande conjunto de pesquisas (Borrell, 2004; Henwood; Altmaier, 1996; Hulsman et al., 1999; Wissow; Kimel, 2002) e em. uma experiencia longamente acumulada, que as habilidades de comunicagdo po- dem ser ensinadas ¢ treinadas, Na realidade, mais do que apenas habilidades, 0 pre- paro envolve também o conhecimento ¢ 0 treinamento de atitudes ¢ caracteristicas que favorecem 0 contato e a comunicago, bem como o conhecimento das tarefas comunicacionais a serem cumprides. Mais detalhadamente, essas pesquisas e obser- vagées tém aportado importantes contribuigées, que nos permitem afirmar que: A qualidade da entrevista eda relago entre o profissional e o paciente éampla- mente dependente das habilidades do profissional para conhecer e manejar 0 processo de comunicacio (isso provavelmente nés jé sabiamos ou pelo menos desconfidvamos). A qualidade da entrevista e da comunicacao favorece a adesdo ao tratamento e aevolucao. ™ Habilidades de comunicado podem ser ensinades e aperfeigoadas (este € 0 tépico sobre o qual é possivel que tivéssemos mais diividas). Hoje, a pergunta mais importante nao é se esse aprendizado deve fazer par- te do curriculo médico, mas como inseri-lo no curriculo. Como indluir esse tipo de preparo na formagio profissional? Como saber se jd estamos preparados? (f possivel que muitos se considerem preparados, e isso pode ser creditado, em par- te, 2 um desconhecimento da complexidade do tema e do preparo que envolve, bem como ao fato, jf mencionado, de assumirmos, sem criticas, ser inerente a0 profissional da satide jé saber entrevistar.) Como alcangar preparo e aperfeicoa- mento nesse topico? Psicologiamédica © 877 Para encaminhar respostas a essas questdes, é necessdrio, antes de tudo, situar 0 modelo que nos orienta, pois é isso que vai nos permitir discriminar 0 “qué’, o “quando” e o “como”. Para facilitar ainda mais nossa discriminagao, po- demos dividir a questo em dois topicos distintos: 0 aprendizado da entrevista e sua aplicagdo no campo da medicina. ‘Aprender a técnica de entrevistar pessoas ¢ relativamente independente do que se pretende pesquisar eesti associado, basicamente, ao estudo ea aplicagao dos conhecimentos acumulados no campo da comunicagao humana (¢ claro que isso também depende dos modelos de comunicacdo que nos servem de referéncia). ‘Todavia, os conhecimentos necessdrios para a aplicag4o no campo da medi- cina dependem do modelo que se tem como referéncia, sendo os modelos biomé- dico e biopsicossocial os mais importantes no cenério atual do ensino e do exe! cicio da pritica médica. No modelo biomédico, o campo de interesse 6 o organis- mo biolégico e as doengas, sendo suficiente o aprendizado dos contetidos relacionados ao funcionamento biolégico do organismo e suas alteragdes, que podem se manifestar na forma de doencas. Portanto, para uma entrevista a partir desse modelo, os conhecimentos ne- cessdrios se referem ao funcionamento biolégico do organismo: para direcionar a entrevista, € preciso ter os conhecimentos que permitam visualizar as ramifica- ‘Goes que cada queixa, sinal ou sintoma fisico dispara como possibilidades. Por exemplo, uma queixa de febre alta acompanhada por vomito e conjuntivas ama- reladas vai nos levar na ditecéo de hipéteses que disparam uma série de pergun- tas, as quais ndo sdo ébvias para quem nao tem o conhecimento que o habilita a relacionar esses eventos. Entdo, na perspectiva biomédica, a atuacio se apoia nos conhecimentos de anatomia, fisiologia e fisiopatologia, que permitem formular hip6teses que ajudario a direcionar a entrevista Evidentemente, para a entrevista ter maiores possibilidades de sucesso tanto na exploragao quanto em sua dimensao resolutiva, um conhecimento da pessoa do paciente também ¢ necessério nesse modelo. Esse conhecimento ajuda a detec- tar ¢ a manejar as atitudes, as defesas eas resistencias (se 0 paciente est inibido, se est omitindo informagoes, se esta disposto a cooperar ou no). Jé no modelo biopsicossocial, cujo foco € a pessoa ¢ o processo de adoccer, 0 conhecimento do funcionamento biolégico € necessirio, mas ndo suficiente. £ pre- iso conhecer a pessoa (0 que indlui as dimensdes biol6gica, psicol6gica e social ¢ suas interagSes). Ou seja, para entrevistar a partir desse modelo, o conhecimento da pessoa é duplamente necessdrio. De um lado, para a realizagio da entrevista e, de outro, pela mudanga que traz no préprio objeto de investigacao e de ago, isto é,a realidade do paciente que ser investigada é bastante ampliada. Como consequén- cia, além dos conhecimentos da dinamica dos mecanismos biolégicos, ¢ necessério conhecer as dindmicas dos mecanismos psicolégicos e sociais. Na realidade, é preciso conhecer nao s6 essas dinamicas, masa interacdo en- tre elas. O estudo e a abordagem dessa intera¢do deu ensejo 4 formulagao de uma perspectiva centrada em processos — perspectiva processual do adoecer (caracte- ristica do modelo biopsicossocial) -, que abordaremos com mais detalhes no Ca- pitulo 19, em oposicdo a uma perspectiva centrada na doenca (caracteristica do modelo biomédico). 88 DeMarco, Abud, Lucchese &Zimmermann, Entio, se percebemos as vantagens de utilizar uma perspectiva biopsicosso- cial, qual o preparo necessério? Para o exercicio da medicina, tanto a partir da perspectiva biomédica como da biopsicossocial, precisamos desenvolver uma sé- tie de capacidades e habilidades para otimizar a entrevista e a comunicacao. Na abordagem biopsicossocial, além desses conhecimentos, € preciso agregar aos contetidos exigidos pela perspectiva biomédica (funcionamento da maquina bio- logica) conhecimentos relacionados a dimensio psicologica e social. Resumida- mente, além de conhecer os dinamismos biolégicos da doenca, preciso conhecer 0s dinamismos da pessoa e sua influencia no processo satide-doenca. Mas como conhecer pessoas? Quais campos de conhecimento podem ajudar nesse fim? A respostaé que contribuigdo pode ser encontrada tanto no campo cienti- fico, por meio de disciplines psicolégicas, sociolégicas ¢ antropolégicas, como, complementarmente, por meio de disciplinas paralelas (como mitologia e hist6- tia) ou manifestagdes ligadas a arte, como literatura, teatro e cinema. Por exemplo, com base em textos de psicologia, é possivel aprender sobre 0 desenvolvimento da personalidade e sobre 0s momentos criticos, as progressdes e as regressdes desse proceso, de forma a alcancar uma série de conhecimentos que ajudem a detectar fatores e situagSes de risco que contribuem para a satide e a doenga. Também podemos encontrar nessa drea informacées que auxiliem a per- ceber como se sente e se comporta uma pessoa quando adoece. Esses mesmos conhecimentos podem ser muito enriquecidos pelo contato com as manifestagées ligadas a arte. Por exemplo, se queremos um retrato vivo de como se sente € 0 que se passa com um doente e o seu entorno, a leitura de A mor- te de Ivan Ilitch, de Tolstoi, pode ser muito enriquecedora. No texto de psicologia, vamos encontrar mais informagao conceitual; ja na literatura (nos bons escrito- res), encontraremos a “vida como ela é”. O dlinico diaia: isto eaquilo indicam que o senhor tem isto ou aquilos mas se o ex- ‘me no confirmar que o senhor tem isto ou aquilo, devemos levantar a hipdtese de teristo ouaquilo... van llitch sé se preocupava com uma coisa: 0 que tinha era gra- ‘ve ou nao? O doutor, porém, nio ligava para a descabida pergunta. Do seu ponto de vista, o capital era decidir entre um rim flutuante, uma bronquite crénica ou uma afecgdo do ceco. Nao estava em paula a vida de Ivan llitch, mas sim decidir pelo rim ou pelo ceco. Eo fecultativo, brilhantemente, resolveu, segundo pareceu a Ivan Ilitch, a favor do ceco... Exatamente 0 que Ivan Ilitch fizera mil vezes,¢ com 0 mesmo brilhantismo, em relagio a um acusado. De maneira igualmente brilhante, © médico fez sua conclusio e, triunfante, ¢ até jubilosamente, olhou por cima dos 6culos para o acusado. Mas Ivan Ilitch, pela conclusao cientifica, inferiu que as coi- sasandavam mal para o seu lado, embora isso fosse indiferente para o médico etal- vex para todo mundo. Desde que fora se consular, principal ocupacio de Ivan lltch passou a sera exe- cugao rigorosa das determinagoes do clinico quanto a higiene e a ingestao dos remé- dies, €a observagio de sua dor ede todas asfungées do seu organismo, O seu interes- se concentrou-se todo em torno das doencas eda satide. Quando, nasuapresenca, se falava de pessoas enfermas,falecidas ou restabelecidas, mormente quando a enfermi- dade era parecida com a sua, ele atentamente ouvia com mal disfargada inquietagzo, fazia mil perguntas e relacionava 0 que diziam com 0 seu caso. (Tolstoi, 1998, p.37) Psicologiamesica © 89 Se queremos saber mais sobre o médico, sua personalidade e as vicissitudes do exercicio da medicina, podemos estudar uma série de textos (psicol6gicos, so- ciolégicos, antropolégicos), mas, se complementarmos isso com a leitura do mito de Asclépio e seu tutor Chiron (0 curador ferido), com certeza sairemos bastante enriquecidos. Inicialmente, € util uma breve palavra sobre mito: 0 mito pode ser conside- rado como uma expressdo autoconfigurada da dinamica psiquica, revelando, em fungdo disso, a profundidade de elaboragio sobre as diferentes questdes da vida, alcangada por uma cultura. No caso da cultura grega, percebemos, mediante 0 contato com seus mitos, a profunda sensibilidade em relagao as questdes huma- nas. Nao por acaso, a Grécia foi o bergo da filosofia. No caso do mito da medicina, nao é diferente. Percebemos em sua leitura a profunda sensibilidade em relagao as questdes que envolvem a pratica médica e 0 sofrimento humano. Eis 0 mito de Asclépio e seu tutor Chiron: Coronis, filha tinica de Flégias, rei da Be6cia, é engravidada por Apolo. Ten- tando reparar a ilegitimidade do filho, ela quer se casar com Isquis. Um corvo, ave branca naqueles tempos, leva a noticia ao deus, que, tomado por intenso citime, descarrega, de imediato, seu 6dio no emissdrio transformando sua cor. Quanto a Coronis,o deus nao cogita outro castigo que nao a morte. Pouco antes que Coronis arda na pira funeraria, o deus, tomado de amor € compaixao pelo filho, retira-o, ainda com vida, do ventre da mae e entrega-o 20s cuidados de Chiron para ser educado. Chiron era um centauro muito especial, tutor de muitos heréis ¢versado em_ varias artes, inclusive na arte da cura. £ nessa arte que vai iniciar o menino ¢ pu- pilo Asclépio. Uma vez completada a iniciagio, Asclépio se dedicou com grande pericia e entusiasmo a arte de cura, mas nao se conformou em curar somente os vivos € quis, também, ressuscitar os mortos. Zeus, atendendo as queixas de Hades, senhor do mundo subterraneo e “rei dos mortos’, que via seu reino se esvaziando, nio permitiu que o hébil médico continuasse violando desse modo as leis da natureza e fulminou-o com um raio. A seguir, elevou-o aos céus, convertendo-o na conste- lagdo chamada Serpentério. A natureza de Asclépio foi moldada por uma dupla influéncia: de um lado, Apolo, o pai luminoso e, de outro, o mestre e tutor Chiron, que o familiarizou com as plantas e seus poderes magicos e também com a serpente. O mundo de Chiron € contraditorio: inesgotaveis possibilidades de cura e doenca eterna (Groesbeck, 1983). Habitante de uma caverna no cimo do monte Pélion, Chiron, embora conhecesse o segredo das ervas que curam, tinha, ele proprio, uma ferida incurdvel. Sua ferida fora provocada por uma flecha envenenada disparada por Heracles (Hércules), que o atingiu involuntariamente. Heracles 6 o grande heréi dos gregos, civilizador por exceléncia, que realizou uma série de trabalhos, dando combate a toda sorte de monstros que assombra- vam a Grécia. Foi no combate aos centauros, criaturas selvagens, violentas e im- pulsivas, que Heracles atingiu involuntariamente o amigo Chiron, que, a diferen- ‘ca dos outros centauros, era bondoso ¢ sensivel. A flecha disparada por Heracles atingiu Chiron na pata traseira, provocando uma ferida que permaneceria para sempre aberta, pois Heracles embebia suas flechas no sangue envenenado da hi- dra de Lerna, um dos monstros que matara. De Marco, Abud, Lucchese & Zimmermann Essas s4o as imagens do corpo principal do mito, imagens moldadas em tor- no do motivo do curador por uma civiliza¢ao que nos moldou. Imagens carrega- das de grande forca dramética, que nos sensibilizam independentemente de qual- quer elabora¢ao intelectual. Conforme o mito, podemos perceber nos gregos uma percepcao e uma previsdo refinada e sensivel dos dilemas envolvidos na arte da cura (De Marco, 1993). O episddio em que Asclépio ressuscita os mortos nao nos remete a uma sé- rie de questdes e dilemas com as quais nos deparamos ainda hoje em nossa ativi- dade médica? O drama diario das UTIs, 0s esforgos para manter os pacientes vi- vosa qualquer custo... ‘Mas é a figura contraditéria, quase patética, de Chiron, a que mais nos sen- , Ao nos remeter a. uma ferida eternamente aberta naquele que cura. O que essas imagens despertavam nos gregos? O que despertam em nés? Ea ferida incurdvel? Como nos colocamos diante dessa imagem? O que cla provoca em nés? Contudo, se desejames saber como se sente um médico quando adoece, uma leitura obrigatéria é 0 livro O médico doente, de Dréuzio Varela (2009): sil Basta cair doente para que todos se considerem no dieeito de dar ordens: “Jé paraa cama",“Nao saia no sereno”,“Vista o agasalho”. (O mais humilhante ¢ obedecer com a docilidade dos cordeiros, porque a doen- ‘ga tem 0 dom de nos fazer regredir a0 tempo em que nos entregévamos indefesos 0s cuidados maternos. Na cadeia, vi muito assaltante de renome camar pela ma- maezinha na hora da do. (Varela, 2009, p. 19) ‘Um técnico do laboratério passou um garrote para colher sangue e ligar o frasco do soro: “Vou dar uma picadinha”, Foio primeiro de uma sérieinfindével de diminutivos que viriam a ser pronun- iados. Achei graga porque me lembrei de meu sogro, engenheiro agronomo que se corgulhava de ter passado a vida a abrir fazendas ¢ a desbravar rincées longinquos. Quando esse homem a moda antiga saiu do centro cinirgico depois de uma opera- ‘do de catarata e Ihe perguntei se havia sentido dor, respondeu: “Dor & 0 de menos; duro € ouvir ‘Abre o olhinho, ‘Fecha o olhinho' e ser obrigado a ficar quieto”, O emprego do diminutivo infantiliza 0 cidadio. Deitado de camisola e pulsei- rinha, sem forgas para agir por conta propria, cercado de gente que diz:“Vamos to- ‘mar um remedinho”;“Abre a boquinha’; “Levanta a perninha’...h maturidade que resista? (Varela, 2009, p. 25) ‘As quatro pessoas mais préximas de mim, de quem eu morria de saudades ao me afastar por poucos dias que fosse, haviam perdido o significado afetivo. Nao que ti- vvessem se tornado estranhas, continuavam intimas, mas os lagos emocionais que sme ligavam a elas jé nao existiam. Tinha visto pacientes dar a impressio quese desligavam dos familiares nos dias ‘que antecedem a morte. Um deles descreveu com énfase esse alheamento: “Meus f- thos nio significam mais nada. Meus netos parece que nunca existiram’. Fiquei chocado ao ouvi-lo. Julguei haver uma frieza nas relacdes familiares da- quele homem, muito diversa do amor e da intimidade que caracterizavam as mi- has. No lugar dele, imaginei que nao suportaria a dor da separacao iminente. Julgamento equivocado. Para mim, também, minha neta Manoela era uma f- ‘gura abstrata. (Varcle, 2009, p. 118) Varios filmes também podem servir para esse propésit Psicologiamedica = 91 Vejamos esse mesmo estado descrito na riqueza pottica de Rilke (2002): Eestranko, sem diivida, jé ndo habitar a terra, {indo seguir os costumes que mal foram aprendidos, jd nao dar &s rosas ¢ As outras coisas, grévidas de promessas, 2 significaglo do futuro humano; jidndo ser o que era na angiistia infinita das mios ¢ abandonar até o proprio nome, como um brinquedo quebrado. Eestranko ji nio desejar os desejos. Estranho ver pairar, salto no espaco, tudo que se relacionava. Estar morto ¢ trabalhoso eccheio de repetigdes para, aos poucos, sentir ‘uma parcela da eternidade. — Mas todos os vivos cometem erro de fazer distingdes muito fortes. tir ao filme Golpe do Destino (The Doctor) nos dé uma boa ideia do golpe e das transformagées na vida e na postura profissional de um médico que podem ser ocasionadas por uma doenga grave. DESENVOLVIMENTO DAS CAPACIDADES E as capacidades e habilidades, como desenvolvé-las? Nesse t6pico, é importante repetir que, embora dependam de muitos fatores pessoais e sejam construfdas por meio das experiéncias da vida, tais capacidades podem ser aperfeicoadas pelo estudo e pela pritica.A intencio é fornecer uma es- trutura conceitual que possa prover os meios pelos quais 0 proceso de comuni- cacao pode ser observado e oferecer vocabulirio para descrevé-lo. £ necesséria a identificagao dos componentes que constituem um curriculo de habilidades de comunicagio. Eles podem incluir, entre outros: Habilidades basicas de entrevista médica. Comunicagéo de més noticias e consentimento informado. Educacdo em satide, motivagio para mudangas de comportamento. ‘Técnicas para lidar com violéncia, satide mental, satide sexual. ‘Comunicacéo transcultural, com criancas e com pessoas com transtornos da aprendizagem. Manejo de queixas e comunicagio interprofissional. © campo € bem amplo, ¢ aqui, nos concentraremos em apresentar algumas das capacidades que consideramos mais importantes ¢ algumas técnicas gerais, liteis para o processo de comunicagio (De Marco, 2006). 92 DeMarco, Abud, Lucchese & Zimmermann Encontrando como outro y | Para que um encontro efetivo ocorra, devemos manter a mente aberta — nao co- nhecemos a pessoa com a qual estamos interagindo. £ importante, portanto, nao nos deixar influenciar por imagens prévias ou preconceitos. Cada pessoa é um universo muito amplo, desconhecido, em grande medida, para a propria pessoa. Portanto, importante ter presente que vamos ter acesso somente a uma parte muito pequena desse ser. £ importante lembrarmos que: Todo contato produz ansiedade, seja em quem est entrevistando,seja em quem ‘esta sendo entrevistado. E importante que isso seja levado em consideracao, aceito e observado. E wtil, entdo, respeitar o fato de que todo encontro entre pessoas desperta al- gum tipo de tensdo.A tendéncia, quando nao ha uma percepsao adequada das angiistias despertadas no encontro, 6 pessoa ficar"armada' (seja 0 profissional ou 0 paciente). Osnivels de ansiedade quesurgem em cada encontro sao variados e podem ser um indicadorimportante a ser considerado. Observando Nao permita que suas concepgées sobre as manifestagses das doengas originem-se de ppalavras owvidas... ou lidas. Observe e, entdo,raciocine, compare e julgue. Mas, inicialmente, observe. Dois olhos nunca envergam igualmente, nem dois espelhos refleter a mesma imagem. Que a palavra seja sua escrava e nd sua mestra. William Osler Para exemplificar a importancia da observacao, costumamos apresentar um exercicio aos nossos alunos (Fig. 4.1). Pedimos para os alunos observarem a ima- gem e relatar que chama sua atengao. \Vérias respostas so deflagradas ¢, em geral, depois dealgum tempo, alguém observa uma contradigao entre a imagem ea frase “isso nao é uma pessoa”. O as- sunto é discutido ¢, por vezes, alguém se dé conta de que nao existe contradigao: isto ndo 6 uma pessoa; é uma imagem. Nesse momento, apresentamos a fonte de inspiragdo para o exercfcio (Fig. 4.2). Trata-se do famoso quadro de René Magritte, que, como todo bom surrea- lista, procura abalar nossa visio ingénua da realidade. Diz-se que, quando alguém questionava a afirmacao, Magritte desafiava a pessoa a fumar com esse cachimbo. Esse exercicio é muito util para ilustrar o funcionamento mental. Nossa mente é uma espécie de tela com uma série de imagens: temos imagens sobre tudo todos e frequentemente incorremos na confusdo de tomar nossas imagens pelo objeto ou pessoa a nossa frente. Ou seja, todos estamos carregados de imagens prévias, resultado de uma série de experiéncias e também de nossas fantasias. ‘Te- mos imagens sobre tudo e todos. importante, entdo, para otimizar o processo de Psicologiamédica = 93. FIGURA 4.1 imagem utilizada para um exercicio de observacao. igtockphot.com/DanielL.a of 2011:Confdentdocor king at you ISTO NAOE UMAPESSOA observacio, tentar no confundir as imagens com a pessoa real que esté a nossa frente. Por exemplo, a imagem que temos de um paciente pode ter pouca relagio com o paciente que est em nossa preseng2. Vejamos como isso 6 expresso nas pa- lavras do poeta Fernando Pessoa (1976): ‘Nao basta abrir janela para ver 0s campose o rio, Nao € bastante ndo ser cego para ver as érvores eas flores. Epreciso também nao ter filosofia nenhuma. Com filosofia nio ha drvores: hé ideias apenas, Hié 36 cada um de nés,como uma cave. Hi6 36 uma jancla fechada,e todo.o mundo I fora; um sonho do que se poderia ver sea janela se abrisse, Que nunca é 0 quese vé quando se abre a janela. Leck Tent par une pipe. FIGURA 4.2 Quadro surrealista de René Magritte. = 94 — DeMarco,Abud, Lucchese &Zimmermann A observacao exige, antes de tudo, presenga. Se estamos presentes fisicamen- te, mas nossa atengo esti ausente, voltada para pensamentos, lembrangas ou ou- tras questdes, no conseguiremos realizar uma observacao adequada. E util, ao realizar observag6es, notar a forma como observamos. Observar 0 que acontece conosco também € importante. As impress6es, as sensagdes € as emogoes despertadas pelo contato podem ajudar, quando adequadamente inter- pretadas, a perceber o que est se passando com a pessoa com a qual estamos em contato e qual a natureza do vinculo que esta se estabelecendo. Se observarmos mal, vamos perceber € nos comunicar mal! Quanto menos corretamente observamos, mais nos aproximamos do monélogo ¢ nos distancia- mos do diélogo, pois vamos interagir mais com nossas impresses ¢ imagens pre- concebidas do que com o interlocutor a nossa frente. Por exemplo, podemos, muitas vezes, falar com o paciente como se ja o conhecéssemos (na verdade, esta- mos nos relacionando com alguma imagem preestabelecida, derivada de nossas experitncias prévias). Isso faz parte dos esterestipos que carregamos: todos este- reotipam, e os esteredtipos muito polares estabelecem relagdes enrijecidas com padrées pouco flexiveis (podem ocorrer em qualquer estrutura vincular: p. ex, mie e crianga, pai e filho adolescente). Nao € possivel desfazer facilmente um padrao estereotipado, mas sua per- cepgdo nos ajuda a deixé-lo sob observacao, e isso é benéfico para a relagdo e 0 processo de comunicacao, Identificagao de perspectivas A capacidade de identificar diferentes perspectivas ¢ um complemento da capacida- de de observagao, é0 que nos permite notar que nao existe uma forma tinica de ob- servar e vivenciar determinada realidade. Por exemplo, a nogdo e as vivencias que 0 paciente vai ter de sua doenga sdo proprias dele (dependem de sua constituisaoe de sua historia, ¢ seguramente sto diferentes das nogdes ¢ vivéncias do profissional), € € muito importante que o profissional procure conhecer ¢ respeitar essa perspecti- va. Nesse caso, também costumamos propor um exercicio para ilustrar a importan- cia de perceber a existéncia de diferentes perspectivas (Fig. 43). ia FIGURA 4.3 Figura geométrica utilizada em c—_—_—_—__b um exercicio de identificagao de perspectivas. Psicologiamédica 9S Pedimos aos alunos que observem a figura geométrica e verifiquem qual a face do cubo que esté voltada para a frente. As primeiras respostas indicam a face ABCD. Apés algum tempo, é comum alguém identificar a face EFGH. Isso em ge~ ral provoca discussdo no grupo ¢, apés algum embate, € possivel que 0 grupo es- pontaneamente perceba que ambas as respostas esto corretas (isso nem sempre acontece com facilidade). Esse exercicio ilustra a importancia de ter presente a existéncia de diferentes perspectivas de observacao e reacio a determinada realidade e 0 quanto 0 nio re- conhecimento dessa possibilidade pode provocar conflitos interminaveis. Tal per- cepcao ajuda a esclarecer que uma parte significativa dos conflitos humanos de- corre do desconhecimento desse fato. A imagem também deixa clara a impossibi- lidade de manter simultaneamente ambas as percepgies. £ preciso sempre transitar entre uma perspectiva ¢ outra, em um interjogo de figura ¢ fundo. A Figura 4.4, uma imagem bastante difundida, ajuda a perceber mais clara- mente o que estamos querendo transmitir. Trata-se da imagem clissica dos dois rostos ou do cilice. Dependendo do que focamos e do que consideramos figura e fundo, vamos visualizar uma das possibilidades. FIGURA 4.4 Dois rostos ou um célice? Tal abordagem ajuda a perceber a necessidade desse interjogo ¢ aplicé-lo a nossa atividade profissional, transitando entre a nossa perspectiva e a perspectiva do paciente, Criagao e ampliacao da continéncia A seguir, temos alguns relatos de alunos que estio iniciando seu treinamento em anamnese: Ela chegou a chorar duas vezes durante a entrevista, 0 que causou certo desconfor- to.€ dificil saber como agit porque eu me senti inibida para fazer algumas pergun- tas, sobretudo de cunho pessoal, com medo de fazé-la chorar novamente. 96 DeMarco, Abud, Lucchese & Zimmermann, Depreendemos desse relato que as emogdes da paciente causam desconforto. Que capacidade precisamos desenvolver para lidar com esse desconforto? A paciente chorou e demonstrou uma profunda tristeza e raiva desse homem. Mais uma vez, fiquel sem saber 0 que dizer ou como reagir, entao a entrevistadora per- ‘guntov-the sobre seus netos,a fim de distrafla com um assunto que Ihe importava e trazia boas lembrancas. Observamos, nesse caso, 0 emprego de uma estratégia: esquivar-se ou dis- trair o paciente. Esse é um recurso muito utilizado. £ uma boa estratégia? Sobre essa parte de deixar a paciente falar sobre essas experiéncias desagradaveis, {oi algo inusitado, apesar de sempre falarmos sobre isso nas aulas tive aimpressao de que,se fosse eu quem estivesse conduzindo a entrevista, certamente teria tenta- do mudar de assunto. Pode parecer grosseiro, mas peicebi que eu realmente nao daria essa janela para que a paciente falasse e respirasse no seu proprio ritmo, sim- plesmente porque eu no me sent vontade com o assunto com certeza faria ela se sentir ainda menos & vontade. Nao sei até que ponto isso pode ser considerado uma contratransferéncia, mas, a meu ver, acho que essa situacao é desconfortavel. independentemente de quem esteja me contando que perdeu algum familiar, ou seja, nao considero uma contratransferéncia. Aqui o aluno (que esté observando a entrevista) consegue perceber a capa- cidade do entrevistador, mas sente desconforto e nao se imagina capaz de supor- tar a experiencia caso estivesse no papel de entrevistador. Nesta enamnese, conversei com uma senhora que mexeu bastante comigo, por ter visto nela sonhos nao realizados, como o de ter um filho, e porque fol a tinica vez que consegui perguntar a paciente sobre como ela esti enfrentado a situacdo pela qual esta passanco...Perguntel a ela sobre seus sentimentos do momento,como um possivel medo de morrer, e perspectivas do futuro. Gostei bastante de ter conversa- do com ele sobre esses assuntos, acredito que a anamnese foi mais completa e pro- veitosa para mime paraa paciente. 0 ponto importante dessa anamnese foi a converse que tivemos com amée sobre sua vida; ela fez um desabafo sobre seus outros filhos que morreram...Ainda nao ha- ‘via um diagnéstico fechado sobre a enfermidade da paciente. Estavam esperando apenas o resultado de exames genéticos para poder fechar a hipdtese de defeito genético relacionado ao metabolismo dos acticares. Acredito que uma das princi- pais iniciativas do servico de satide oferecido a ser tomada para dar um suporte continua >> Psicologiamedica = 97 >> continuasso ‘emocional para essa familia seria a presenga de uma psicéloga que acompanhasse © caso e conversasse muito com essa mie. ‘© comego da anamnese foi trenquilo, mas chegou um ponto no qual ela no aguen- ‘tou e comecou a chorar. Isso me desmontou, primeiro porque senti muita vontade de chorar também, mas me segurei, e porque, pela segunda vez, a paciente chora en- quanto faco perguntas (aconteceu o mesmo na anamnese em clinica médica). Fez ‘com que eu pensasse que o motivo do choro era eu. Depois ouvi da professore:‘me- hor colocar para fora do que guardartudo dentro dela; entdomelembrei da empatia do laboratério de comunicacao e mudei meu pensamento: talvez mesmo nao saben- do nada de medicina,eu tenha conseguido passar confianga paraaquela mulher, que externalizou seu sofrimento e conseguiu verbaliz4-lo, ainda me olhando nos olhos. Com o passer da entrevista, pudemos perceber que Eliséngela foi ficando emotiva enquanto nos contava 0 que pediamos.Era como se ela desabafasse algo muito in- timo dela,o que realmente sentia sobre toda aquela situa¢ao.Disse-nos 0 quo difi- cil era cuidar de sua fiha, todo 0 tempo e dedicacao que ela tomava. Comecou a chorar, demonstrando 0 quanto aquilo a afetava. Foi comovente ver o amor que aquela mae sentia pela filha, vivendo com ela e para ela quase exclusivamente, sem esperar nada em troca, Que capacidade é essa que esses alunos jé conseguem exercer e que lhes per- mite explorar e permanecer em contato com as vivéncias dos pacientes e as suas pr6prias vivencias? £ a continéncia: uma capacidade da maior importincia para um contato mais efetivo ¢ eficiente. Continéncia ¢ a capacidade de permanecer com aquilo que é, sem tentativas prematuras (geralmente em fungio de ansiedade) de se “re~ solver” ou de se “livrar” Por exemplo, poder permanecer com diividas diagnésti- cas; poder permanecer em contato com estados emocionais do paciente (tristeza, raiva); e poder permanecer em contato com os préprios estados emocionais. Criagao e ampliacao da empatia Nunca mandes perguntar por quem dobra o sino; dobra por ti. John Donne ‘A empatia esté muito associada a capacidade de continéncia. ‘Trata-se da habilidade de estabelecer uma sintonia emocional com aquilo que est acontecendo com o ‘outro, sendo, portanto, necessdrio conseguir uma aproximagao vivencial do que esse outro estd experimentando. £ muito importante termos presente que essa sintonia precisa vir acompa- nhada da manutengao de uma separacao suficiente eu-outro. Caso contririo, nio teremos empatia, mas identificagio. Essa separacdo envolve varios aspectos, como a perspectiva, a autoconsciéncia, a consciéncia do outro, a flexibilidade ea reava- DeMarco, Abud, Lucchese & Zimmermann, liagdo da emogao, além da possibilidade de expresso verbal e nao verbal desse en- tendimento. £ a capacidade de empatizar que nos permite solidariedade com os sentimentos do paciente, como, por exemplo, formar uma ideia do sofrimento que um paciente est4 experimentando antes de passar por um procedimento difi- cil e/ou doloroso. Essa percep¢ao nos habilita a tomar medidas que possam trazer algum alivio para o sofrimento do paciente, seja expressando solidariedade emo- ional, seja tomando medidas de ordem pratica para minorar 0 sofrimento (saber se 0 paciente tem alguma dwvida e se esta bem informado sobre sua situacao, evi- tando transtornos desnecessarios, etc.). Empatia é, muitas vezes, confundida com reasseguramento, mas nao pode haver coisas mais distintas. Por exemplo, ao dizer ao paciente que tudo vai correr bem, ou, se 0 paciente estiver triste, dizer que nao ¢ nada, o profissional est se distanciando da vivéncia do paciente e minimizando seu sofrimento. DISCRIMINAGAO DOS CANAIS DE COMUNICAGAO y E importante ter presente que a linguagem verbal é uma forma evoluida de comuni- cagio, que funciona lado a lado com outras formas mais primitivas (gestos, expres- s6es corporais) ou de natureza distinta (escrita, pintura, miisica). ‘Trata-se de um instrumento que pode ser usado tanto para revelar quanto para encobrir 0s fatos. A linguagem verbal tem um contetido e um corpo. Este denominado para- linguagem e se refere as qualidades da emissao vocal (altura, intensidade, ritmo) que, assim como outras produgSes vocais, como 0 riso, o grito, o bocejo ca tosse, fornecem informages sobre o estado afetivo do emissor. Essas qualidades podem ser agrupadas nas seguintes categorias: Qualidade da voz, que inclui a altura do tom de voz,a qualidade da articulagaoe ‘ritmo. Qualificadores vocais, que incluema forma como as palavras s8o emitidas (exten- sao timbre, intensidade). ™ Caracterizadores vocais, que incluem certos sons bem reconhecidos, como 0 suspiro,0 bocejo,0 ris0,0 choro, ogrito, etc. I Secrecdes vocais, que incluem sons que participam do fiuxo da fala sem que as palavras signifiquem alguma coisa (ahn, hum, hem, aha, pausas e outras inter- rupgOes de ritmo). ‘A linguagem nao verbal compreende varias formas e canais de expresso. Os principais sao: I Expressées, gestos, contato visual, posturas corporais (inésica).. Uso do espaco, distancias,territorio (proxémica). Psicologiamedica «9D A linguagem cinésica se refere aos gestos e aos movimentos corporais e en- volve cinco éreas: contato visual, gestos, expressdes faciais, postura e movimentos da cabeca. Apresenta diferencas significativas dependendo do ciclo de vida (crian- ga; adulto e idoso) e da sociedade e da cultura (a maioria dos autores considera que nao hd expressdes universais e que qualquer expresso facial, atitude ou posi- 40 corporal tem significados diferentes nas diversas sociedades). A linguagem proxémica se refere a0 uso do espaco, envolvendo as dimensdes de distancia, territorio e ordem na comunicag4o humana (¢ muito importante nos ani- mais). £0 jogo de distancias e proximidades que se entretecem entre as pessoas ¢ 0 ¢s- Pago, traduzindo as formas como se colocam e se move em relagdo aos outros € ‘como gerenciam e ocupam 0 espago. Define a relagdo que 0s comunicantes estabele- cem entre si: a distincia espacial, a orientagdo do corpo ¢ do rosto, a forma como se tocam ou se evitam, o modo como se posicionam e dispdem objetos e espagos. Em nossa atividade, a linguagem proxémica envolve: a A forma como nos aproximamos do paciente (contato corporal, angulagso do corpo como sinais de aceitagao, rechago e hierarquia). Autilizagio ea distribuigao dos espagos (decoragdo, barreira da mesa), propiciando ‘um trabalho em campo tenso ou campo relaxado. ‘Tantoa paralinguagem como a comunicagio nao verbal sao cruciais no pro- cesso de comunicagio. £ importante perceber as inconsisténcias entre os dados verbais eos nio verbais. Estes costumam ser mais confidveis. Por exemplo, um pa- ciente que diz que tudo esté bem, chorando ou com os olhos marejados, esté lu- tando contra uma realidade interna, tentando manter distantes as emogdes que acabam por se manifestar mediante a linguagem no verbal. REFERENCIAS BORRELL, F. Entrevista clinica: manual de estratégias précticas. Barcelona: SEMFYC, 2004. DE MARCO,M. A. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educagio permanente. Rev Bras Educ Med, v.30,n. 1, p.60-72, 2006. GROESBECK, C. J. A imagem arquetfpica do médico ferido, Junguiana, v. 1, p. 72-96, 1983, HENWOOD, P. G; ALTMAIER, E. M. Evaluating the effectiveness of communication skils, training: review of research. Clin Perform Qual Health Care, v.4,n. 3, p. 154-158, 1996. HULSMAN,R. L et al. Teaching clinically experienced physicians communication skills: review of evaluation studies. Med Educ, v.33,n. 9, p.655-668, 1999. PESSOA, F. O eu profundo eos outros eus. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976. RILKE, R. M. Sonetos a Orfeu; elegias de Duino. Sao Paulo: Record, 2002. TOLSTOI, L.A morte de Ivan Hitch. Rio de Janciro: Ediouro, 1998. VARELA, D. O médico doente. Sao Paulo: Cia. das Letras, 2009. ‘WISSOW,L. S.; KIMEL, M. B. Assessing provider-patient-parent communication in the pediatric emergency department. Ambul Pediatr, v. 2, n. 4, p. 323-329, 2002. LEITURA SUGERIDA DEMARCO,M.A. (Org.).A face humana da medicina, Sao Paulo: Casa do Psicélogo, 2003.

You might also like