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COMO LER . — Bee CAPITULO 3 Narrativa Jguns narradores de ficgo sao conhecidos como omnis- ntes, 0 que significa ave,s¢ assume que sabem tudo, acerca historia que contam,¢ que nao,é de esperar que o leitor estione aquilo,que eles dizem, Se um romance comega m «Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da da,com um vaso de batbear, sobre o qual se cruzavam um pelho ¢ uma navalha» (*), seria fil o leitor exclamar «Nao nha nada!», «Como € que sabes?» ou «Deixa-te disso!». facto de termos acabado de ler as palavras «Um Romance» folha de rosto descarta essas observagdes como invdlidas. suposto curvarmo-nos ante a autoridade do narrador. ele nos diz que Mulligan trazia um vaso de barbear, entio, ctuamos obedientemente com a ilusdo de que trazia, do mo modo que pactuamos com a ilusao de que uma erianga presidente do Fundo Monetatio Internacional, se isso lhe der prazer momentaneo. No entanto, curvarmo-nos ante a autoridade do narrador 10 é grande risco, dado que nao nos estamos a compro- ter com grande coisa. Na verdade, nao nos é pedido que ) De Ulisses, de James Joyce. Recorremos aqui a tradugao de Antonio aiss (Lisboa, Difel, 1994). [N. do T.] on Como Ler Literatura acrediremos que houve alguém chamado Buck Mulligan g, trazia um vaso de barbea é pedido que fagamos de cor pe i ment as palavras «Um Romance’ ou, simplesmente, por sabermos gue & suposto aquele texto ser uma ficco, sabemos tambin que 0 autor nio esté a fentar convencer-nos de que aqui aconteceu mesmo. Ele nao esta a fazer aquela afirmagig Seria mais correto dizer que y : 0s, nta que acreditamos, Por lermos uuma proposigao acerca do mundo real. Conta-se que como 0 do século xvitt que leu o romance As Viagens de uum bisp\ : Gulliver, de Jonathan Swift, atirou o livro para a larcira declarando, indignado, que nao acreditava numa s6 palayra dele, Obviamente, ele achava que era suposto a histéria ser verdadeira, mas suspeitava que era inventada. O que, claro esta, é precisamente aquilo que ela é. O bispo estava a rejeitar a ficgao por achar que era ficgao. Se nao é suposto a afirmagao acerca de Mulligan enganar- -nos, pode afirmar-se, muito estranhamente, que ela nao é nem verdadeira nem falsa. Isto porque s6 as assergdes acerca da realidade podem ser verdadeiras ou falsas, ¢ aquela frase nao conta como tal. Apenas o aparenta. Tem a forma de uma dessas assergdes, mas nao o contetido. Portanto, nao se esper que acreditemos nela, mas também nao se espera que gritemos «Deixa-te de coisas!» ou «Que grande disparate!». Fazé-lo seria pressupor que o autor tinha a intengao de proferir ums afirmagao auténtica acerca do mundo, 0 que, claramente, na0 € 0 caso. De igual modo, «Bom dia» parece uma proposicé? acerca da realidade («Est4 um bom dia»), mas, na verdadé é a expresso de um desejo («Espero que tenhas um bom dia») E isso nao pode ser nem verdadeiro nem falso, tal co"? © nao podem ser «Nao me chateies!», «Estas a olhar P# quem?» ou «Meu traidorzinho nojentol», Nao € verdad? 112 Narrativa rena ae uum estudante russo homicida chamado skolnikov(*) ou um caixeiro-viajante com dificuld: anceiras chamado Willy Loman(‘5), No entanto, jades i : . dizer que numa obra literdria também nao ¢ falso, dado que a oby ‘ afirma que tenham existido, i ae 0s naradores omnissentessio yous insompireas eno conagens localizaveis..A sua maneira, andnima e inidenti- vel, agem,como os cérebros.da propria obra, Aina assim, + devemos assumir que expressam as ideas ¢ 05 sentimentos autor na vida real, Jé vimos um exemplo disto nas frases ugurais de Passagem para a India de E. M. Forster, que si0 « por um narrador omnisciente mas que indicam atitudes fe podem ser ou nao ser as do proprio Forster. A cidade Chandrapore nao existe, pelo que Forster niio pode ter aisquer opinides acerca dela. Ele pode ter posigdes acerca fndia em geral, mas aquilo que escreve nessa passagem *o pode ser um reflexo delas como pretender ter um efito sério, Raramente existe uma relagdo simples entre 0s auro- as suas obras. A peca A Charrua e as Estrelas, de Sean personagem chamada rnsiste em dizer que @ 4 libertagao nacional. acreditava pre- "Casey, goza sem piedade com uma vey, que debita jargao marxista € i! ta dos trabalhadores deve sobreporse tudo, o proprio O°Casey era marxista ¢ ; © Retrato do Artista amente naquilo que Covey pregava. i m_o seu herdi uando Jovem, de James Joyce, vermina Co fea argumentacio acerca d2 erteza de nao ser aceite ao nos diz 1sso- apresentar uma longa e eru! tética, parte da qual podemos fer © lo proprio Joyce. Mas 0 romance ™ 7 7 de Fiddor Dosoieski IN: APTN, ry ) De Crime e Castigo, de Arthur Mill je Arthur Miller. ) De Morte dum Caixeiro-viajanté+ 13 ima obra de fice30, NAO € inteira,, Ne Por vezesy NU Ate 1 certo, a fazer a narragao, Vejamos, ee 5 or est, a . claro quem em de Henderson, 0 Rei da cp exeinplo, esta passag de Saul Bellow: va, ‘Aluzdo dia vinha de uma estreita abertura acima dq Minky cabeca originalmente, essa Ins era amarela, mas tornay,., cinzenta ao contactar com as pedras. Na abertura, eStavam colocadas duas barras de ferro para evitar que mesmo wn, crianca conseguisse esgueirar-se através dela. Ao examin, 4 minha situagao, descobri uma pequena passagem aberta no granito, que descia conduzindo a outro lanco de escadas, também de pedra. Estas eram mais estreitas, alcancavan ta profundidade maior e, pasado pouco tempo, vi que estavam interrompidas, com relva a nascer e terra a vazar elas fendas. «Rei», chamei, «Rei, ei, Vossa Majestade esti ai em baixo?» Mas nada veio de lé de baixo, exceto correntes de ar quente que levantaram as teias de aranha, «Qual éa ressa do gajo?», pensei eu... Supostamente, esta Passagem € dita por Henderson, 0 herbi Ge lv, Contudo, Henderson & uns americano riistico que Seria bem capaz de exclamar “Rei, ei» ou «Qual é a press? 40 gaj0?», mas que dificilmen 2 amare! Com as pedras, Kt sige setica te fal veia poética, deta laria, com veia p I la que se torna cinzenta ao contact! mbém nio é prova Je escrevess® rovaw ele es Prosa relativar ee " a minh, Msie to formal como «Ao examina? Mha situacio, do, Scobri Branito,,. nn bri uma + Trata-se Pequena passagem aberta "° Tragio hibrida, na qual 4 ¥°" ‘amente dito, incorporada no mod ado do Proprio autor. A abrange"“" ) 114 de uma nay °D, Propri is SOfistic, de Hendersg de falar m Narra, Romance seria demasiade hinitac da conseidneia da sua também precisa de de falar desta, Que se presume que os narradores ommiseientes sabem tudo quanto hi para saber acerca das suas historiag, existem excegdes esporiidicas a essa regra, Um martador pale, Por exemplo, fingir ignorar algo quanto ao seu relato, Nu policial mediocre intitulado The Footsteps at the Lock("), uma das personagens acende um cigarro barato, eo aut bastante pretensioso, finge nio saber qual é a marea deste. Digo «finge», mas nao é que ele, na verdade, saiba ¢ esteja a esconder esse facto, Se a marca niio € dita ao leitor, nio existe marca. Temos aqui um exemplar do fendmeno raro que sio | 98 cigarros sem marca (deixo de lado a questiio complicada _ dos cigarros de enrolar). Podem existir cigarros assirn na lite ratura, tal como pode haver fumo sem fogo, um avestruz que 4 ©av0 to 4 PetsonageN principal deixar que chegwe ate nos a man fale albanés ou alguém que esteja, simulraneamente, a beber whisky em Birmingham, em Inglaterra, € a realizar urna cirur gia ao cérebro em Birmingham, no Alabama, Neste aspeto, a vida real é menos agradavelmente diversificada, Como observou Oscar Wilde, a arte é um sitio onde uma coma pode ser verdade, mas também o seu oposto. £ mais econémica do ue a vida real. Vém-nos 4 ideia as frases finais do romance Molloy, de Samuel Beckett: «£ meia-noite. A chuva fustia a» Vidragas. Nao era meia-noite. Nao chovia.+(") ere Jomo Ler Literatura os omniscientes, existerm natradores em gue nig, ey preceprora que narra Calafrio("), de ty, Ye James, é, quase de certeza, louca. James esta a jogar um, ied desonesto com 0 leitor fornecendo-nos fundamentos sufcen. tes para que demos crédito ao relato da preceptora, ao Meng 4 bastantes dicas dissimuladas que sugerem que ar confianga nele. J4 vimos que a narrativa de O Monte dos Vendavais nao € inteiramente presenta uma hist6ria marcada pelo pre. Além d pode conf tempo que d nao devemnos t Nelly Dean em fiavel. Jane Eyre a conceito, pelo ressent agressividade e pelo in de Joseph Conrad chamam a atenco para a natureza limitada lades de interpretagao. Estes podem timento, pela inveja, pela ansiedade, pela teresse proprio. Alguns dos narradores das suas prdprias capacidi ter apenas uma nogao intermitente € confusa daquilo que se esta a passar nas hist6rias que contam. O narrador de Sob os Olbos do Ocidente, de Joseph Conrad, é um exemple disso, tal como 0 sao os contadores das historias de O Bom Soldado, de Ford Madox Ford, e de Doutor Fausto, de Thomas Mann. E possivel que esse tipo de narradores apreenda menos do significado da historia do que a propria leitora. Conseguimos ver aquilo que eles no conseguem ver ¢ talvez a razao pela qual nao conseguem vé-lo. Um contador de hist6rias reconhecidamente pouco fidvel é oheréi de As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Gullives que parece nunca aprender nada com as suas viagens, € U" narrador idiota, além de pouco fidvel. Todos os narradores idiotas sao pouco fidveis, mas nem todos os narradores Pov? ) OwA Ve pare Volta no Parafuso ou A Volta do Parafuso ou Outra Vole do Hee aa 0u O Aperto do Parafuso, consoante as tradug6es- Opti mais antiga, de Joao Gaspar Simoes. [N. doT) 116 Narrativa mae teal alr is sao idiotas. Gulliver atua como agente da sitira do mas, numa clara tatica diplice, é também 0 alvo dela. consegue estar pateticamente desejoso de se identificar as criaturas extravagantes entre as quais se encontra. Em ut, por exemplo, adota os padrdes de comportamento nagio de criaturas mintisculas com demasiadissimo entu- 10. A dado momento, nega acaloradamente a acusagao de ido sexo com uma liliputiana com poucos centimetros de . Também se esquece de, em sua defesa, levantar a dbvia Jo da impossibilidade disso. E também fica tolamente 1080 do titulo que esses andes Ihe outorgam. Gulliver, jindo, é algo influenciavel. O proprio Swift era anglo-irlandés e, como tal, nao se tia completamente em casa nem na Irlanda nem na Gra- Bretanha. Uma maneira de resolver esse dilema, conforme Oscar Wilde viria a descobrir, era tornar-se mais inglés do que os proprios ingleses, uma estratégia refletida no compor- ~ tamento obsequioso de Gulliver. No final do romance, tendo vivido durante algum tempo com os cavalares Houyhnhnms, comeca a trotar por toda a parte ¢ a relinchar. Nao ha muitos narradores que sejam mostrados a enlouquecer no seio das suas préprias narrativas. No entanto, noutras alturas, Gulliver esté demasiado desfasado dos costumes locais, como um esta- ce aos seus proprios pido inglés condescendentemente cego fa preconceitos culturais. Ele esta sempre ou demasiado alheado ou enterrado até ao pescogo. Swift usa 0 seu narrador para expor a crueldade ¢ a corrup¢ao dos outros, mas também 0 cobre de ridiculo no seio do seu proprio relato. Se contarmos a nossa historia na 6tica de uma personagem specifica, poderd nao ser facil sair dessa perspetiva. Uma obra literaria escrita a partir do ponto de vista de um sapo 117 Como Ler Literatura ’ ee arrisea-se fear prsioneira de um mundo batraguiang ‘itil para ela erguer-se acima da consciéncia do sey py synrador. Nao ha muitos narradores que sejam sapgy ha bastantes que sao criancas. Isso pode ter os seus pitta o muito apreciado narrador adolescens como acontece com de Uma Agulha no Palheiro(), mas também pode ter 05 se, jnconvenientes. Ver o mundo do ponto de vista de uma etic pode fazé-lo parecer reveladoramente estranho. Isso poe acontecer para que percecionemos os objetos com uma fres. cura e um imediatismo particulares, facto de que Wordsworth tem consciéncia, No entanto, a maneira de ver de uma criang, 6 naturalmente, limitada, (Uma notavel excegdo a esta regr éa Maisie Farange do romance O Que Maisie Sabia(™), de Henry James, uma rapariguinha que parece ser quase tio omnisciente quanto o seu autor.) O David Copperfield de Dickens diz-nos que, quando era mitido, conseguia ver as pat tes, mas nao 0 todo. Ironicamente, € desse modo que o propt yma criang? tal como de ver do jarmente Dickens tende a percecionar as coisas. O olhar de ui face a realidade pode ser vivido mas fragmentério, acontece, com bastante frequéncia, com a maneira proprio Dickens. Por conseguinte, ha algo de particul apropriado no facto de ele contemplar tantas vezes © mundo através do olhar de uma crianga. A perspetiva limitada dos narradores infantis si8™ qs eles nem sempre conseguem dar um sentido coerent® 1. vertidas 04 ® fica experiencia. Isso pode levar a situagdes div oo mantes. Mas significa também que uma personase™ Goa int *) 5, - |. sal IN. Came no Centeio, consoante as tradugdes- De ak 1 [n. 40 () Ou Pelos ‘ 1 Pelos Olbos de Maisie, consoante as traduges- 118 Narrativa ee ie iver Twist pode nao ter compreensio alguma do sistema o faz sofrer. Ele s6 quer uma ajuda imediata, u m instinto 6 qual nos solidarizamos naturalmente, Todavia, sem Iquer nogio de como o sistema funciona, e de como ra cima e pela avantajada Bumble. Nesse romance precoce, 0 proprio ens parece incapaz. de perceber que hd ali mais coisas em © do que apenas a crueldade dos individuos ou a questio necessidades basicas. Aquilo que esté em causa éa logica ida-lo, havera muito mais criangas a olharem pai edirem mais papas de aveia ao passarem riga do Sr. Alguns narradores so pouco fidveis a ponto de serem completos aldrabées. O narrador do thriller policial Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, é, na tdade, 0 assassino, mas a autoridade de que se acha inves- lo pelo ato de contar a historia despista-nos. Normalmente, lum policial, 0 assassino esta escondido, mas escondido pelo redo € no ocultado atras do ato de narrar. No final de Terceiro Policia, de Flann O'Brien, percebemos que, durante maior parte do romance, o narrador estava morto, do esmo modo que ficamos chocados ao descobrir, no final do mance Pincher Martin(*), de William Golding, que Martin, He conta a histéria, se afogou na primeira pagina. © orador do poema «A Sua Timida Amante», de Andrew arvell, um homem aparentemente atormentado pelo medo da morte, incita a sua amante a superar o seu pudor virginal Ht") Sem, edig: ‘io em portugués. Pincher Martin: The Two Deaths of Christophe ” Martin, na edigo norte-americana. [N. do T.] 119 Como Ler Literatura Se ea fazer amor com ele antes de irem ambos Parar a cova, Fle nao é exatamente um narrador pouco fidvel, mas 6 gen" duvida, prudente, tanto por parte da amante como do leito, desconfiar das suas motivagdes. Estara ele verdadeiramente dlesesperado com a brevidade da vida e do amor ou estar; apenas a tentar convencé-la a dormir com ele? Seré esta 4 tentativa mais intelectual de ir para a cama com uma mulher de que ha meméria? Estaré o orador a ser sincero nas suas cogitagdes acerca da mortalidade ou sera aquilo apenas um ardil engenhoso para persuadir a sua amante de que mais vale desfrutar dos prazeres da carne enquanto ainda tem carne para desfrutar? O poema nao nos permite escolher entre estas alternativas. Em vez. disso, permite que elas coexistam numa espécie de tensao irdnica, simultaneamente hidica ¢ premente. Talvez o proprio narrador nao faga ideia de quio sério pretende ser. Tem havido alguma discussao entre os criticos quanto a se Thady Quirk, narrador do romance Castle Rackrent(*), de Maria Edgeworth, é ou nao um narrador pouco fidvel. Thady € um criado da familia Rackrent, da aristocracia irlandesa, e, tanto quanto deixa transparecer, um velho e fiel vassalo. Ele relata a histéria dos seus patrdes bébedos e cruéis com um afeto obsequioso. Ao longo do livro, ele demonstra um indulgéncia cordial para com os defeitos dos seus superior’ ue incluem fraquezazinhas tao encantadoras como 0 Sit Kit Rackrent aprisionar a sua mulher no quarto dela durante anos. Por conseguinte, podemos ler 0 romance como um" Satira ao modo como os criados podem ser convertidos oo clmplices dos seus amos, cumplicidade essa que € m8" Se (") Sem edisdo em portugués. [N, do T] 120 Narrativa ee imeresse dos anos do que no deles prdpris, Neste sentido, o romance éuma fibula acerca de lealdades descabidas, Contudo, esta no € a Gnica leitura possivel, Também podemos ver Thady como um tipo do campesinato rebelde irandés,a ocultar ardilosamente o seu descontentame nto por rds de uma mascara de servilismo. Talvez ele ande a trabalhar seretamente para 0 derrube dos latifundirios e, portanto, a procurar promover 0 velho sonho gaélico de as pessoas simples reclamarem a terra. Existem pistas no romance que sugerem um esquema desses, Thady comete uma série de omissdes ¢ de erros em proveito proprio que podem bem ser mais intencionais do que parecem. No final da histéria, o seu filho Jason consegue apropriar-se das terras dos Rackrent, porventura com a conivéncia secreta do pai, em cujo caso Thady anda a enganar nao s6 os seus amos como também 05 leitores, que nunca, nem por um momento, merecem a sua confianca. Visto nesta perspetiva, ele é um estereotipo do servil e traigociro campesinato irlandés, que jura lealdade ao seu latifundidrio durante o dia enquanto, a noite, se esgueira ara lhe jarretar o gado. No entanto, noutra leitura ainda, Thady anda a enganar-se a si mesmo € nao aos leitores. Num tipico ato de autoengano, ele acredita ser fiel aos Rackrents, ‘as anda, inconscientemente, a planear 0 seu derrube. Por muito que a sua narrativa procure suavizar o abominavel ‘omportamento deles, esta denigre-os no proprio ato de fazer ‘so, Existem, portanto, diversas verses possiveis daquilo que Thady anda a aprontar. E nao é permitido ao leitor decidir-se Por uma delas, Uma narragio por uma terceira pessoa omnisciente é uma ‘pécie de metalinguagem, o que significa que, pelo menos na fcsdo realista, nao pode ser objeto de crticas ou comentarios 121 Como Ler Literatura r See vo seo da propria narrativa. ado tratarse da vor da prop, Ie ssria.parece impossivel pora em questo. A Gnica mang,» de isso poder acontecer € quando a oe faz uma pays, para rfletir sobre si mesma, Um exemplo ane disso ocorre quando George Eliot suspende a historia de O Noivado q, “dam Bede(®) para inserit um capitulo em que medita sob, algumas questes quanto a0 realismo, a natureza da persona. gem, apresentagio fccional de homens € mulheres de clase baixa e por af fora. Isso, por assim dizer, € o romance a refltp sobre o romance. Essa metalinguagem ou voz-off autoral nio pode existir nos chamados «romances epistolares», que con. sistem em cartas escritas pelas personagens, umas as outras, E também nao pode existir na maior parte das pecas de teatro, em que aquilo que ouvimos é a fala das personagens e nao a da propria obra. Ben Jonson nao pode intervir para nos dizer que opinido devemos ter acerca de Volpone, do modo como Thackeray se manifesta em Feira das Vaidades(*), para frisar que uma das personagens mais amaveis do livro é atrasada mental, Isto pode tornar dificil saber quais os pontos de vista que uma peca subscreve ¢ quais rejeita. Vejamos, por exemplo, 0 célebre discurso de Pércia acerca da misericérdia, em O Mercador de Veneza, de Shakespeare: A qualidade da misericérdia nao se impoe, Cai como a suave chuva do céu, Sobre a terra em baixo. E: duplamente abencoada: (83) dos (*) Ou. Triste Noinado de Adam Bede ou O Carpinteiro do Vale Fenos, consoante as tradugdes. [N. do T] (*) Ou A Feira das Vaidades, consoante as tradugaes. [N- do 7) 122 Narrativa = Seeger rere ee Abencoa quem a concede e quem a recebe; E a mais poderosa entre os poderosos: fica melhor Ao monarca do que a sua coroa...($) E dificil no sermos persuadidos Por esta eloquéncia, Porém, 0 discurso de Pércia é consideravelmente mais ime. resseito do que pode parecer, Ela esta determinada a salvar um dos seus, 0 cristo veneziano Anténio, das garras de Shylock, um odioso judeu. Os cristios da cidade nao tém sido conhecidos por demonstrarem misericérdia para com esse desprezivel forasteiro e penalizé-lo-do duramente quando ele perder o seu processo judicial contra eles. Agora, no entanto, estdo a suplicar a Shylock, através de Pércia, a sua porta. -voz autonomeada, que salve Antonio, que é visceralmente antissemita. Se querem que Shylock seja misericordioso, é Porque nao esto preparados para Ihe fazer justia. Shylock fem em sua posse um documento legal que afirma que pode atrancar quatrocentos e cinquenta gramas de carne do corpo de Anténios e, embora se possa tratar de um contrato barbaro, ©S quatrocentos ¢ cinquenta gramas de carne so devidos aos olhos da lei. Além do mais, Anténio concordou com 0 acordo. Considerou-o, inclusive, razoavel, dadas as circunstdncias. Se 0 apego teimoso de Shylock a letra da lei parece lega- lista, também o € © estratagema através do qual Porcia leva “melhor sobre ele, salientando que o acordo permite que ele ‘ie carne mas nao sangue. Nenhum tribunal a sério permitiria ‘ima evasiva tio absurda. A lei deve funcionar de nook “9M 0s entendimentos normais ¢ ndo com minudéncias hie (5 Agua-forte, ‘ ) Recorremos aqui a tradu 30 de Helena Barbas (Almada, Agua: 2002). 1N. do Ty 123 Como Ler Literatura ___Gomo Ler Literatura pith sailor none m todo 0 caso, a misetic6rdia pode nao se mas sem diivida que a justiga se impie devem ser proporcionais aos crimes, uma virtude, mas nao se pode enganadoras. Ei impor (condicionar), [As penas, por exemplo, Ser misericordioso é, de facto, que isso ridicularize a justiga. Ha varias razses la questéo tem mais que se discurso bem ensaiado de permitir para que suspeitemos que aque Ihe diga do que parece sugerit 0 Pétcia, Contudo, dado nao termos nenhuma voz-off para nos dizer o que devemos achar, resta-nos tirar as nossas préprias conclusdes. Em Hamlet, existe um problema semelhante com 0 con- selho de Polénio ao seu filho Laertes, que termina com os versos muito citados «Mas, sobretudo, sé a ti proprio fiel; / segue-se disso, como o dia a noite, / que a ninguém poderés jamais ser falso.»(®) Sera este, na verdade, um conselho sdbio? Entdo e se formos uns aldrabées natos e decidirmos ser figis a nossa natureza? Nao ha maneira de sabermos 0 que é que o proprio Shakespeare pensava deste conselho paterno. Este tem algo de sentencioso que pode parecer autoritario a alguns leitores. Contudo, Polénio, por vezes, sai-se com afirmacées portentosas, mas de valor duvidoso. Talvez a pec esteja simplesmente a fazer pouco dele, como tantas vezes acontece. Ou talvez, por um momento precioso, ele se afaste da sua habitual presungao, ramo a uma genuina introspesio moral. Também é possivel que Shakespeare nao parasse para se perguntar se considerava aquele conselho sabio, ou que achasse que era sabio mas estivesse errado. Talvez nd0 the tenha ocorrido o caso do vigarista nato, Nao devemos ( (©) Recorremos aqui a tradugao de Carlos Alberto Nunes (Rio de Jane" Nova Fronteira, 2011). [N. do T.] 124 Narrativa ppedo de imputar insuficiéncias ao Bardo, Afinal de contas 4_sun comectia difcilmente nos deixa a rebolar de risy sen coxias. Em geral, nao precisamos de ser postos fora da Noite de Reis(*”) com convuls6es de riso histérico, BS Os narradores omniscientes nao sao inquestionaveis, Podemos suspeitar que eles tém os seus préprios preconceitos ¢Angulos mortos. Vejamos, por exemplo, as relacées entre as narrativas ¢ as suas personagens. Um romance pode idealizar excessivamente uma das suas personagens, tal como pode orientar a sua trama excessivamente a favor de um certo ponto de vista. As obras de ficgéo podem, quer explicita quer implicitamente, revelar atitudes face as personagens ¢ aos acontecimentos que retratam que o leitor poder querer questionar. Certa vez, um critico astuto comentou que Scobie, o protagonista de O Né do Problema(‘*), de Graham Greene, & simultaneamente, mais e menos admiravel do que o proprio romance parece achar. Nos nio temos de aceitar a opiniao da Prépria obra de fico como se fosse um evangelho, muito embora nao tenhamos outras opinides além da dela. Se um Tomance nos diz que a sua heroina tem olhos com reflexos esverdeados, é dificil contrariar essa afirmagao. Se sugere tam- bém que elaéa mulher mais maliciosa desde Lucrécia Borgia, talvez queiramos confrontar isso com 0 que nos mostra dela, — — ") Ou Noite dos Reis ou 0 Gre iperies 0 Na Cea the Queiram Chamar ou Noite dos Reis ou o que Quieres, consoante aS tradugdes. [N, do T) ") 000 Cerne da Questao, consoante as traduyies. [N. do TI 125 y que diz, Uma obra de ficcdo pode parecer ersonagens sao estipidas, bondosas oy cis, mas pode sempre estar enganada, le fornecer-nos provas Contra essas por oposigao aquilo acreditar que as suas P absolutamente despreziv Sem que o saiba, ela pod avaliagdes. mene deD.H. Law! romance contém algumas criticas t Paul Morel, mas, apesar disso, em grande m do seu ponto de vista. Existe uma cumplicidade secreta entre a narrativa e a sua figura central. Na verdade, ha alturas em rence, pode servir de exemplo, rcitas ao seu protagonista, ie medida, vé o mundo que a histria parece ter o seu heréi em melhor conta do que nés o temos. Dado que o mundo é visto, em grande medida, na perspetiva do proprio Paul, a sua amante, Miriam, nao tem direito a texto suficiente. Teriamos curiosidade em saber mais acerca da opiniao dela sobre Paul, mas nao temos acesso a ela. A narrativa, por assim dizer, esta contra ela. E. preconceituosa na sua prépria estrutura, conforme a Miriam da vida real nao tardou em salientar. O mesmo se poderia dizer acerca de O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, que se Fecusa a passar o microfone ao implacavel Clifford Chatterley. Em vez disso, ele ¢ apresentado, quase inteiramente, a partir de fora. Poderiamos contrastar este facto com o tratamento sensivel que Tolst6i da a figura pouco apetecivel de Karenin, em Ana Karenina(®), Aquela abordagem difere também, el. aramente, do tratamento que Lawrence da a Gerald Crich em Mulheres Apaixona © seu autor considera al bominavel, i el, mas, ainda assim, bamente bem concteti e sober- zado. E mostrado a partir de dentro, ee (°) Ou Anna Karénin, eae A una ou Anna Karenina, consoante as tradugdes- 126 __Narrativa S que tenha alguma espiritualidade interior para ada. Clifford Chatterley, pelo contrétio,é reduce et 18° tomance 0 possa descartar com o menor esforgo Possivel. Ele € também deficiente, e Lawrence nao estd no seu melhor quando trata de pessoas em cadeira de rodas. O Noivado de Adam Bede, de George Eliot, concede aos leitores algum acesso & vida interior de Hetty Sorrel, uma rapariga da classe operdria que € seduzida pelo lascivo lati- fundiario local, tem uma crianga ilegitima em resultado disso, mata 0 bebé e acaba por ter de ser salva do cadafalso. Boa parte deste grande drama € apresentada a partir de fora, como se Hetty carecesse do tipo de profundidade interior que se poderia provar merecedora de exame. Ela é mais um objeto de pena do que uma genuina figura tragica. O seu apelido, «Sorrel», sugere tristeza(”), mas também significa um tipo de cavalo(”!), 0 que nao é tao respeitavel. No final, a narrativa envia Hetty para o exilio, abrindo assim caminho para que Adam, 0 herdi da obra, escolha uma mulher com bastante mais principios morais do que aquela leiteira de cabega oca. Este tipo de unilateralismo nao existe no melhor romance de Eliot, Middlemarch(”), no qual o narrador se comporta como um moderador criterioso num debate piiblico, assegurando que todas as personagens tém direito a palavra. Até o desumano Casaubon tem de ser mostrado como uma criatura que sente € sofre. Ai, no hé nenhuma monopolizagio do microfone. ——_. {") Sorrow, no original. (N. do T] (") Cavalo de pelagem castanha ou acobreada, sem preto. [N. doT (*) Ow Vida Era Assim em Middlemarch ou Middlemarch: Um Estudo 44a Vida de Provincia, consoante as tradugies. [N. do T-] 127 Como Ler Literatura ——_ Existe um Pp Casaubon em Judas, sentir um certo grau di rncionais, com 0 qual,como vimos, Sue Bridehead, ji, aralelismo para © tratamento que Eliog & 9 Obscuro. O romance encorajang, Je aversio a Phillotson, s6brio e de jas conv ‘ -pensadora, std tristemente casada, Sue suplica ao maridg que a liberte, ¢, no entanto, exatamente quando estamos esperg de que aquele cidaddo eminentemente respeitavel Iho recuse ale surpreende-nos, concedendo-the a Tiberdade para pani, Fle fico apesar da sua consideragio pela opinio pablica¢ apesar da sua profunda consternagao pessoal face & perda da mulher que ama. O resultado do seu ato altruista é perder também o seu emprego de mestre-escola. O facto de se recusar a transformar esta figura desinteressante num papao faz parte da rejeigao das convengbes por parte do proprio romance, Em vex disso, este concede-Ihe uma resposta digna € generosa 3 infelicidade da sua mulher. Provavelmente, Lawrence nio lhe teria atribufdo essa magnanimidade. E talvez nem lhe tivesse concedido uma vida interior. Neste sentido, as personagens de Hardy conseguem sur preender-nos de uma maneira que raramente acontece comas de Austen ou Dickens. Elas podem atirar-se subitamente dis janelas, casar-se com um homem que detestam fisicamentt, ficar iméveis durante longos periods no cimo de uma arvor por roupa interior a descoberto para salvar alguém que st! preso num penhasco, vender a mulher numa feira devido @ tum impulso sibito ou envolverem-se numa eximia exibis? de esgrima sem que haja qualquer razio Gbvia pat? isso. Judas, embriagado, recita o Credo Niceno(”) numa tabern® de Oxford, uma ocorréncia pouco habitual nos nossos ba () Profissio de fé } Profissao de fé adotada no Con: li de Niceia, em 325. N42 128 yecimentos € nem sequer parecem prestar thes demasins fo, Contentam-se em permitit que diferentes tipos de : dentro , sem tentarem forga-los a adotar uma sé modalidade. O tratamento que Hardy dé a Tess Durbeyfield em Tess dos D'Ubervilles(”*) contrasta revel 0, Fealista € n0-realista, coexistam lado a lado ladoramente com o modo como George Eliot lida com Hetty Sorrel. Hardy esta claramente apaixonado pela sua heroina, quase do mesmo modo como Samuel Richardson esta apaixonado Por Clarissa, e pretende fazer justica a essa rapariga tio maltratada. Nesse sentido, pode dizer-se que a narrativa compensa amorosamente Tess pelo modo como algumas das suas préprias personagens a exploram de maneira vergonhosa. Aquela tenta apresenta-la como uma mulher completa, em vez de idealizé-la como Angel Clare ou de sensualiza-la como Alec D’Uberville. Trata-se de uma tentativa animada pela generosidade, embora no deixe de ter os seus problemas. Se 0 livro tenta retratar Tess a partir de dentro, também a torna objeto do | seu proprio olhar apaixonado, exibindo-a para uma inspecao | semelhante por parte dos leitores. Como salientaram alguns | ctiticos, a historia tem dificuldade em fazer sobressair a sua | heroin. Ela tenta torné-la transparente, mas, no seu esforco Para vé-la com clareza, acaba por saltar de uma voz ou de uma perspetiva para outra. Ha algo na sua sexualidade que €impossivel retratar. Em certos pontos criticos da narrativa, _ omo seja o momento da sua sedugao, a percecao de Tess € inacessivel aos leitores. Ela resiste ao modo como o narrador ———_— () Ou A Indigna, consoante as tradugoes. [N. do T] 129 Como Ler Literatura sculino) se tenta apropriar dela, Ha u plicitamente ma’ . ‘os de vista conflituantes e até (im Jo de pont! sobreposigae "7 ‘Ontr, ida de modo a fo) a “iorios, em que sia resol FIMAE Um to, coerente. Ao tentar mostrar o cardcter dela, o Fomance « desestabilizar 0 modo como a vemos. O lives ce imagens de picadas, perfuracées € Penetragea rrador tivesse a fantasia erdtica de se apo, ig ua protagonista. Contudo, no final, isso nig ma consegue repleto de como se 0 na plenamente da s acontecera. Ha romances intei Tempos Dificeis, de Charles Dickens, po, im sectaria de Coketown, a cidade ros que tratam os seus temas com cla. ros preconceitos. exemplo, pinta uma image sadustrial do Norte de Inglaterra em que decorre a agio do romance. © proprio local 6 encarado de modo impressionist como que por um observador do Sul de Inglaterra que o vss de relance, a partir de um comboio. © her6i do romance é stephen Blackpool, um homem da classe operaria, respeitoso com consciéncia moral. Somos convidados a admirar a maneira como ele se recusa a ceder a pressao do sindicato durante uma greve, mas a verdade é que Stephen tem mesmo muito pouca consciéncia politica. Ele esta afastado dos outros trabalhadores por razdes pessoais ¢ nao por razbes politicas. More na solidio, ¢ a impressao geral é que termina a sua vida como um marti, face ao fanatismo das organizagoes de trabalhadores. Porém, na verdade, a sua morte nao fe qualquer significado politico. O romance retrata 0 movimento sindical como fala-barat® sectario e potencialmente violento. Ao fazé-lo, despre2a u™* das forgas que, na Gra-Bretanha vitoriana, desafiara™ * ieee nates sociais ante as quais ele tanto s¢ ae ance baseia-se numa da vida real, € Dick" 130 Narrativa pinta um retrato muito mais favoravel desse acontecimento no seu jornalismo do que no seu romance, Na verdade, ‘aquilo que vé como sendo um comedimento por trabalhadores grevistas, ele elogia parte dos ' Tempos Dificeis apresenta também uma caricatura brutal do utilitarismo, uma doutrina que, na realidade, foi responsavel por algumas reformas cruciais na Inglaterra de Dickens. © fundador do movimento, Jeremy Bentham, opunha-se a criminalizagao da homossexualidade, uma posi¢ao surpreendentemente esclarecida para alguém do seu tempo. © utilitarismo implicava muito mais do que transformar os factos em fetiches, que é 0 modo como o livro, grosseiramente, 0 apresenta, Dado que alguns dos melhores amigos de Dickens eram utilitaristas, ¢ dificil acreditar que ele pudesse nao ter tido consciéncia dessa distorgao. Uma historia pode nao assumir nenhuma posigio face a0 seu tema, mesmo quando seria de esperar que o fizesse. Isso aplica-se ao romance satirico Declinio e Queda, de Evelyn Waugh, que usa o seu heréi, Paul Pennyfeather, como vitima das extravagancias da alta sociedade inglesa. Dado que é apenas uma porta de entrada para esse mundo, nao € suposto Pennyfeather ser uma personagem muito desenvolvida. £ somente uma espécie de vazio no centro do romance, tio leve quanto o nome Pennyfeather(”’) sugere. Ele nao parece ser capaz de avaliar a sua propria experiéncia. Num soberbo trecho de humor negro, é condenado a sete anos de trabalhos forcados, como bode-expiat6rio pelos crimes de prostituigio € trifico de escravos de outrem. Todavia, nao consegue dizer nada que se assemelhe vagamente a um protesto contra essa injustica grotesca. () Peninha. [N. do T] Como Ler Literatura dee Paul é uma maneita de ele pertencer & fy) que o rodeia, Por conseguinte, € um reflex, tivo desse mundo. Mas serve também para Io critique. O facto de 0 seu herdi ser poucy ero faz parte da fértil comédia do livro, mas de questionar 0 comportamento dos seus alta, A atitude do romance face a essas ‘A vacuida‘ alta sociedade bastante nega' impedir que Paul mais do que um 2 também o impede compinchas de classe personagens é escrupulo: inexpressivo aumenta a sua graca. Trata-se de uma espécie de equivalente literario da fleuma britanica, dado que os acontecimentos mais chocantes e surreais so relatados com uma indiferenga descontraida. Contudo, essa neutralidade de tom é também altamente conveniente para um escritor como Waugh, um homem com fortes afinidades com a classe alta. ‘A comédia de Waugh resulta, em parte, de esvaziar as samente neutral, e esse tratamento pessoas das suas vidas interiores. Todavia, pode ser que, i partida, as suas personagens nao tenham grande vida interior que thes possa ser tirada. Isso serve para demonstrar a sua fragilidade moral e, por conseguinte, funciona contra elas. No entanto, se elas forem mesmo tao ocas quanto parecem, ¢ dificil perceber como é que podem ser responsabilizadas pel? seu comportamento escandaloso, o que funciona a favor delas- Paradoxalmente, aquilo que deve ser mais criticado nesses Parasitas e preguigosos — 0 facto de terem personalidades sem qua ‘ i qualquer profundidade — é também aquilo que 0s to" mais imunes as criticas. Existem varie Processos através dos quais as narrativas CON” s eBuem viciar os dados.a seu favor. A Quinta dos Animais(”) (*) Ou O Triunfo dos P ‘orcos 0 uci dos Bits, contoanee as wadisoes een Reva as tradugdes, [N. do T.] 132 Narrativa a eee ee de George Orwell, € acerca de um grupo de animais que jssume 0 controlo da sua quinta e tenta gericla, com resul, Portanto, é suposto 0 romance ser uma alegoria do colapso da democracia socialista no inicio da Unido Soviética. Porém,o facto é que os animais sio incapa- tados desastrosos, zes de gerir quintas. E dificil assinar cheques ou telefonar aos fornecedores quando se tem cascos em ver de maos. f verdade que nao é por isso que a experiéncia dos animais falha, mas isso tem uma influéncia inconsciente na reagdo dos leitores. Portanto, a histéria ¢ tendenciosa desde o inicio. O modo como configura as suas circunstdncias ajuda a provar o seu ponto de vista. A alegoria também pode implicar, sem diivida contra as intengdes do seu autor esquerdista, que a classe operdria é demasiado estipida para tratar das suas proprias questdes. Alias, o titulo do livro pode ser interpretado como ironico. «Quinta» e «Animais» é uma associagio ébvia. Mas que, aqui, no resulta. jogo esta igualmente viciado em O Deus das Moscas\”), de William Golding, que mostra um grupo de rapazes em idade escolar numa ilha deserta, que se vai gradualmente convertendo a barbérie. Entre outras coisas, isto é suposto Provar a teoria de que a civilizagio € apenas superficial. Tal como acontece em O Coragao das Trevas(”), de Joseph Conrad, por debaixo da pele somos todos barbaros, uma ideia que, na prética, aniquila qualquer esperanca de progresso social, Raspe-se um estudante e encontrar-se-4 um selvagem. Todavia, escolher criangas como personagens ajuda a provar eee (") Ou O Senhor das Moscas ou Senhor das Moscas, tradugdes. [N. do T.] cy consoante as Ou Coragao das Trevas, consoante as traducées. [N: do T] 133

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