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ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL (A NATUREZA JURIDICA DA REPARAGAO DE DANOS EMERGENTES DE ACIDENTES DE TRABALHO E A DISTINCAO ENTRE AS RES- PONSABILIDADES OBRIGACIONAL E DELITUAL) Pelo Dr. Luis Manuel Teles de Menezes Leitdo (*) SUMARIO INTRODUGAO 1. Delimitagao do objecto de estudo. 2. Razao de ordem. PARTE 1 — A REPARACAO DOS DANOS EMERGENTES DE ACIDENTES DE TRABALHO. PROBLEMAS E SOLUCOES I._A DISTINCAO ENTRE AS RESPONSABILIDADES OBRIGACIONAL E DELITUAL E SUAS CONSEQUENCIAS NO DOMINIO DA REPA- RACAO DOS DANOS PESSOAIS. 1. A actual crise da Responsabilidade Civil no dominio da reparacdo dos danos Pessoais. 2. A distingdo entre as Responsabilidade Obrigacional e Delitual. 2.1. Generalidades. 2.2. A justificagao material da distingao. (*) Advogado e Assistente (estagidrio) da Faculdade de Direito da Universi- dade de Lisboa. 14 LU{S MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO 2.3. Os problemas técnicos suscitados pela distinggo. 2.3.1. A delimitagZo do dominio das duas responsabilidades. 2.3.2. © concurso de responsabilidades. 3. A distingo no Ambito da reparacdo dos danos pessoais. I. OS VARIOS SISTEMAS DE REPARACAO DOS ACIDENTES DE TRA- BALHO 1. Generalidades. 2. A Responsabilidade Civil como sistema da reparacdo dos acidentes de tra- balho. 2.1. Pressuposto: a necessidade de um nexo de imputacdo. 2.2. A culpa como nexo de imputacdo. 2.2.1, Consequéncias deste sistema. 2.2.2. Consequéncias da qualificacéo da reparacdo dos acidentes de trabalho como responsabilidade delitual. 2.2.3. Consequéncias da qualificagao da reparacdo dos acidentes de trabalho como responsabilidade obrigacional. 2.2.4, A teoria da inverséo do énus da prova. 2.3. O risco como nexo de imputagao dos acidentes de trabalho. 2.3.1. Generalidades. 2.3.2. As diversas concepgdes do risco. 2.3.3. Consequéncias deste sistema. 2.4. Insuficiéncia da responsabilidade civil como sistema reparatério dos acidentes de trabalho. 3. A reparac&o do acidente de trabalho como dever emergente da relacdo de trabalho. 4. A reparag&io dos acidentes de trabalho através do sistema da Seguranca Social. 4.1. Generalidades. 4.2, Caracteristicas deste sistema. 5. Conclusio. PARTE 2 — A ACTUAL SOLUCAO DO DIREITO PORTUGUES Ill. PRESSUPOSTOS DA REPARAGAO DOS DANOS EMERGENTES DE ACIDENTES DE TRABALHO Generalidades. A categoria de trabalhador protegido. A causa do dano. A espécie do dano. Conclusio. yePenr ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 7S IV. CARACTERISTICAS E NATUREZA JURIDICA DA REPARACAO DE DANOS EMERGENTES DE ACIDENTES DE TRABALHO Generalidades. © seguro obrigatério da responsabilidade. O cardcter tarifério ¢ limitado da reparaco. A inalienabilidade, impenhorabilidade e irrenunciabilidade dos créditos deri- vados de um acidente de trabalho. 5. Conclusdo: A natureza juridica da reparacdio de danos emergentes de aci- dentes de trabalho. eee eer V. © PROBLEMA DO CONCURSO DA RESPONSABILIDADE CIVIL COM A REPARACAO DE DANOS EMERGENTES DE ACIDENTES DE TRABALHO 1. Posigéo do problema. 2. A ndo cumulabilidade de indemnizagées. 3. O acidente de trabalho devido a dolo ou culpa da entidade patronal ou seu representante. 4. O acidente de trabalho causado por terceiros ou companheiros de trabalho. 5. Conclusdo. CONCLUSOES FINAIS BIBLIOGRAFIA INTRODUCAO 1, DELIMITACAO DO OBJECTO DE ESTUDO E usual afirmar-se que a distincdo entre a responsabilidade obrigacional e a responsabilidade delitual é, para a mente légica do jurista, tao clara quanto necessdria Q). A verdade, porém, é que a necessidade material dessa distin- do raramente é explicada, contentando-se os seus defensores com © argumento formalista de que na responsabilidade obrigacional ha uma obrigacao prévia vinculando as Partes enquanto na res- ponsabilidade delitual tal nao acontece. ©) André Tunc, Capitulo Introdutério ao Vol. XI (Torts) da Internacional Encyclopedia of Comparative Law, p. 23. 716 LufS MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO No entanto, se as divergéncias do. regime entre as duas ordens de responsabilidades se apresentam como reduzidas, verifica-se que podem ter extraordindrias consequéncias no dominio da repa- rag&o dos danos pessoais, designadamente no que respeita ao regime do énus da prova e da prescricdo. Coloca-se-nos, entéo, a quest4o de averiguar se é justifica- vel que se trate de formas diferentes dois seres humanos ofendi- dos na sua integridade fisica, pelo simples facto de o dano infli- gido a um deles ter consistido na violagaéo de uma obrigacdo imposta por um contrato, o que n4o se passou com 0 outro. O objectivo do nosso estudo sera, por isso, o de examinar a justificacdo ldgica da dualidade de responsabilidades a luz de uma situacdo, no dominio dos danos pessoais, em que a repara- ¢4o do dano sofrido se apresenta como verdadeiro imperativo: a do acidente de trabalho. O acidente de trabalho ocorre no quadro de uma relagao criada pelo contrato de trabalho, mas vem a produzir a lesdo de um direito absoluto do trabalhador (como a sua vida ou a sua integridade fisica) cuja tutela a lei vem assegurar ao impor a exis- téncia de uma reparacdo. Propomo-nos, neste estudo, examinar a natureza dessa repa- ragdo e, através das conclusdes alcangadas, procurar dar uma res- posta ao problema de saber se existe alguma justificacao légica para distinguir as duas categorias de responsabilidades. 2. RAZAO DE ORDEM Nesse objectivo, procuraremos primeiro analisar as conse- quéncias da distingao entre as duas responsabilidades no domi- nio da reparagdo dos danos pessoais. Em seguida, examinaremos criticamente os diversos sitemas utilizados como meio para atribuir uma reparagdo pelo acidente de trabalho, face a perspectiva dessa reparagdo ser uma necessi- dade absoluta para o trabalhador, privado da possibilidade de continuar a sustentar-se e 4 sua familia. Depois, faremos uma andlise da solugéo que foi adoptada na nossa ordem juridica, pela Lei 2127 de 3 de Agosto de 1965 ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL ™ e pelo decreto n.° 360/71 de 21 de Agosto alterado pelo Decreto- -Lei 459/79 de 23 de Novembro. Examinaremos, nesse ponto, Os pressupostos e a natureza da reparacdo pelos acidentes de trabalho e as suas relagdes com as outras formas de reparacdio de danos. Por fim, apresentaremos de forma sucinta as conclusdes a que chegarmos. PARTE 1 — A REPARACAO DOS DANOS EMERGENTES DE ACIDENTES DE TRABALHO. PROBLEMAS E SOLUCOES I. A DISTINCAO ENTRE AS RESPONSABILIDADES OBRI- GACIONAL E DELITUAL E SUAS CONSEQUENCIAS NO DOMINIO DA REPARACAO DOS DANOS PESSOAIS 1. A ACTUAL CRISE DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DO- MINIO DA REPARACGAO DOS DANOS PESSOAIS Pode sem receio dizer-se hoje que o Instituto da Responsa- bilidade Civil se tem mostrado insuficiente no que diz respeito @ reparacdo dos danos pessoais. Concebido por uma sociedade individualista (') e exigindo, na sua concepgo classica, a culpa do agente como pressuposto da atribuigo do direito a repa- rag4o, tornou-se incapaz de dar resposta ao extraordindrio nimero de acidentes que se verifica nas sociedades industrializadas. A concepgao classica da Responsabilidade Civil corresponde com efeito, a uma ordem econémica liberal. Assenta num equili- brio de interesses: o do agente em nfo ser responsabilizado pelos () Cfr. Genevieve Viney, «De Ja responsabilité personelle @ la repartition des risques» em Archives de Philosophie du Droit, n.° 22, la responsabilité, Paris, edi- tions Sirey, 1977, p. 5. m8 Lufs MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO danos causados a nao ser que tenha adoptado uma diligéncia infe- rior & média @), € a do lesado que tera direito 4 reparacdo se conseguir estabelecer a culpa do agente, ficando em caso contra- rio sujeito ao principio «casum sentit dominus». Este sistema vem a permitir que as actividades econémicas se possam desenvolver sem muitos encargos, satisfazendo-se as necessidades da acumulacdo do capital (*). A industrializac&o da sociedade e o aumento substancial do numero de acidentes que ela provocou vieram a romper 0 equilibrio em prejuizo do lesado. Verificou-se que o principio casum sentit dominus representava uma injustica substancial no dominio dos danos pessoais, daf que se tenha deixado de admitir a sua relevan- cia absoluta, surgindo formas alternativas de reparacdo do dano, como os Sistemas de Seguranca Social ou os Seguros Privados. Desaparece, assim, a tradicional equacdo entre reparacdo responsabilidade (*), 0 que vem a obrigar a um redimensio- namento do instituto que adquire uma certa subalternizacgdo e subsidiariedade face aos outros esquemas de reparacao destes danos (5) (5). @) Segundo a maioria da doutrina desta concepcfo esté corporizada no art, 487 n.° 2 do actual Cédigo Civil. ©) Cfr. L. Solyom, The decline of civil law liability (tradugao inglesa), Rock- wille M.D., U.S.A., Sijthoff Noordhoff, Budapeste, Akademiai Kiadé: 1980, pags. 39-41. (A ideia de que nfo hd reparacdo sem responsabilidade parece-me, de algum modo, inscrita no art. 483 n.° 2 ao tipificar no os casos de responsabilidade independente de culpa, mas antes os da prépria obrigac&o de indemnizar. Esta dis- posigiio deve ser questionada face ao advento dos sistema alternativos da reparacdo do dano. () Neste sentido, cfr. Simone David-Constant «L’influence de la Securité Sociale sur la Responsabilité Civile» em Melanges offerts 2 René Savatier, Paris, Librairie Dalloz, 1965, pags. 243 ¢ segs., André Tunc, Capitulo Introdutério ao Vol. X1 (Torts) da Internacional Encyclopedia of Comparative Law, pags. 18 ¢ segs. e «Les Problemes Contemporains de la Responsabilité Civile Delictuellew na Revue International de Droit Comparé, ano 90, pags. 759 € segs., Jorge Sinde Monteiro, « Estudos sobre a Responsabilidade Civil, Coimbra, 1983, pégs. 32-52 € «Reparacdo dos Danos Pessoais em Portugal» na Colectinea de Jurisprudéncia, ano XI, 1984, 4, pags. 8 © segs. (© Refere André Tunc, no Capitulo Introdutério ao Vol. XI (Torts) da Inter- national Encyclopedia of Comparative Law, p. 5, que desde 0s anos sessenta que ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 19 Noutros casos, quando a reparacdo atribuida através desses sistemas é incompleta, assiste-se a uma utilizacéo indiscriminada da responsabilidade civil por forma a obter uma reparacio pelos danos pessoais sofridos, mesmo em situagdes em que tradicional- mente nao se verificariam os seus pressupostos. Dé-se entéo uma sublimacdo da funcdo reparatéria, admitindo-se casos cada vez mais numerosos da responsabilidade objectiva (@, © que tem levado a doutrina, numa tentativa de construc&o unitdria, a refor- mular o tradicional conceito de responsabilidade (°). Pode dizer-se, por isso, que o instituto da Responsabilidade Civil se encontra em crise, tanto de contornos como de fungées JA pouco se assemelhando a sua concepeao classica. 2. A DISTINCAO ENTRE AS RESPONSABILIDADES OBRIGA- CIONAL E DELITUAL 2.1. Generalidades Da teoria classica resta-nos, no entanto, como heranga a dis- tingdo entre a responsabilidade obrigacional e a responsabilidade delitual, disting¢Zo conhecida em quase todas as ordens juridi nos Estados Unidos as normas da responsabilidade Civil dao origem a apenas 7,9 % da totalidade das reparagdes atribuidas por danos pessoais, © Cfr. Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, 1, Rio de Janeiro, Edicéo Revista Forense, 1944, pags. 19 e segs. Henri e Léon Mazeaud e André Tunc, Traité Theorique et Pratique de la Responsabilité Civil Delictuelle et Contractuelle, if 5.* Ed., Paris, Editions Montchrestien, 1957, pags. 10-12. ©) A via adoptada pela doutrina colocada perante o problema da constante alteracdo dos pressupostos do instituto foi o abandono do conceito analitico, optando- -Se por uma formulagdo mais sintética. Cfr. andlise de José Luis Heredero, La Res- ponsabilidad sin culpa, Barcelona, Ediciones Nauta, 1964, pags. 7 a 28 ea teoriza- Go elaborada por Menezes Cordeiro, Direito das Obrigacées, 2.° Vol., Lisboa, AAEFDL, 1980, pég. 281 que restringe a responsabilidade civil a dois pressupostos: © dano e o nexo de imputacdo. naa 780 Lufs MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO cas (°) e ainda hoje defendida por grande parte da doutrina por- tuguesa (1%), ©) Ao afirmarmos que a distingdo é conhecida nas diversas ordens juridicas n&o queremos dizer que seja pacificamente aceite. Normalmente a distin¢4o assenta numa sistematizac&o legislativa que ¢ seguida por parte da doutrina. Assim: — Em Franca 0 Code Civil dedica os arts. 1146 ¢ segs. & responsabilidade obri- gacional ¢ os arts. 1382 e segs. a delitual. Existe, no entanto, um grande debate sobre esta questo que desde os fins do século passado divide a dou- trina. Segundo Geneviéve Uiney, Traité de Droit Civil, Les Obligations, La Responsabilité: conditions, Paris, Librairie Generale de Droit et Jurispru- dence, 1982, pag. 193 ¢ segs., o debate teve origem na divergéncia que opds Sainctelette a Grandmoulin. Sainctelette em 1894 na sua obra «De la Res- ponsabilité et de La Garantie» defendeu que os fundamentos das duas res- ponsabilidades eram diferentes, sendo um a lei ¢ 0 outro 0 contrato, e que os regimes eram radicalmente distintos, indo ao ponto de recusar a expres- so «responsabilidade contratual» para a substituir pela de garantia. Grand- moulin, em 1892 combateu esta teoria na sua tese «De /’unité de la respon- sabilité de nature delictuelle et de la responsabilité pour violation des obligations contractuelles» onde defendeu que a obrigacdo de reparar o dano causado pela violacdo de um contrato era uma obrigacdo diferente de ante- rior, com base na lei, identificando o regime das responsabilidades delitual e contratual. André Brun teorizou uma tese intermédia na sua obra Rap- ports et Domaines des Responsabilités Contractuelle et Delictuelle, Paris, Recueil Sirey, 1931, pag. 382 € segs. Segundo ele os fundamentos das duas responsabilidades sAo comuns mas existem certas diferengas justificadas de regime. Mais recentemente pronunciaram-se a favor da dualidade René Sava- tier, Traité de la Responsabilité Civile en Droit Francais Civil, Administra- tif, Profissionel, Procédurel, 1, 2 ed., s.l., Presses Universitaires de France, 1951. H. ¢ L. Mazeaud et André Tunc, op. cit., 1, pags. 10 ¢ segs. defen- dem a opinido intermédia. Genevié Uiney, op. cit., pag. 299 e segs. refere que a distingdo tende a perder o seu cardcter de summa divisio, desenvolvendo- se casos de responsabilidades nfo enquadraveis em nenhum dos ramos, como as responsabilidades profissionais. — Em Itélia o Codice Civile dedica os arts. 1218 e segs. ao incumprimento das obrigacdes € os arts. 2043 ¢ segs. A responsabilidade por factos ilicitos extracontractuais. De Cupis, // Danno, I, 2 ed., Milo, Dott. A. Giuffré Ed., 1966 pag. 1 € segs. entende, no entanto, que as duas responsabilidades tém como fundamento comum o dano, justificando-se a diversidade de regi- mes pelo facto de serem diferentes as situagdes subjectivas lesadas. — Na Alemanha a responsabilidade obrigacional é fundada numa cldusula geral, © § 276 do B.G.B. O campo da responsabilidad delitual é coberto por trés cléusulas gerais: o § 823, I, para a violac&o dolosa ou negligente de um direito ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 781 O fundamento de que partem os seus defensores ¢ 0 do que se torna necessario distinguir entre a lei e o contrato enquanto Personalidade, de um dircito real ou de outro direito, o § 823, 2, para a viola¢do dolosa ou negligente de uma norma destinada a protecco de outrém, € 0 § 826 para a violacdo dolosa dos bons costumes. Ao que parece a dou- trina aceita pacificamente a distincAo entre os dois campos de responsabili- dades. Nem Karl Larenz, Derecho de Obligaciones (tradug&io espanhola), Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, Tomo I, pags. 279 e segs. e Tomo II, pags. 562 e segs. nem J. W. Hedemann, Tratado de Dere- cho Civil, Vol. III, Derecho de Obligaciones (tradugdo espanhola, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, pg. 112, referem a existéncia de qualquer debate a pdr em causa a distincdo. Larenz, op. cit. II, a pag. 578 entende que a expresso «outro direito» do § 823, I, pode ser aplicdvel aos casos em que um terceiro impossibilita a realizacAo de um direito de cré- dito, mas que nesse caso hé uma violag&o da esfera juridica do credor e nao do préprio direito de crédito que sé poderia ser violado pelo devedor caindo no Ambito do § 276. — Em Espanha a responsabilidade obrigacional é tratada nos arts. 1101 segs. € a responsabilidade delitual nos arts. 1902 e segs. do Cédigo Civil. Refere Francisco Soto Nieto, La Responsabilidade Civil derivada del ilicito culposo, Madrid, Editorial Montecorvo, 1982, pags. 111 e segs., que apesar das diver- géncias entre as duas ordens de responsabilidades reguladas separadamente a configuragdo incompleta de qualquer deles tem levado a jurisprudéncia, ainda fiel a distingdo, a efectuar intercdmbios de normas que dexam antever uma meta unificadora. — Nos paises do sistema juridico da Comon Law é também cldssica a sistema- tizacdo entre duas areas de Direito: os delitos (Torts) e os contratos (Con- tracts), incluindo-se a responsabilidade contratual na segunda. A concep¢4o de delito (Tort) ¢ normalmente dada pela negativa, como pressupondo a violacdo de um dever nao imposto por um contrato. Notam-se, no entanto, as dificuldades em que incorrem os autores por causa desta delimitacao. Assim, a indug&o ao incumprimento ¢ considerado um delito, bem como se considerou responsabilidade delitual a responsabilidade do produtor por danos causados aos consumidores do produto no célebre caso Donoghue V. Stevenson. Também é considerada um delito a violacdo dos deveres impos- tos por lei na pendéncia da relacdo contratual. Cfr. Clerk & Lindsel, On Torts, 5.* ed. London, Sweet & Maxwell, 1982, pags. 1 a 8, Prosser, Hand- book of the law of torts, 4.* ed., St. Paul Minn, West Publishing Co. 1971, cap. 16, pags. 613 e segs., André Tunc, Capitulo Introdutério ao Vol. XT (Trots) da Internacional Encyclopedia of Comparative Law pags. 20 e segs. ('°) Defenderam entre nés a distingéo Guilherme Moreira, Instituigdes do Direito Civil Portugués, 11, Das Obrigagdes, Coimbra, ed. autor, 1911, pags. 117 782 LU{S MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO formas distintas de regulacao das actividades humanas (!!). Com base nesse fundamento entendem serem diferentes as situacdes em que a responsabilidade civil emerge da violac¢éo de um vin- culo obrigacional daquelas em que a responsabilidade deriva da violacao do principio geral do neminem laedere. No primeiro caso a responsabilidade apareceria como efeito e como modificacéo de uma obrigac&o pré-existente e nado como fonte de uma obriga- ¢4o auténoma. No segundo caso, e por que ndo existe qualquer vinculo entre as partes a responsabilidade civil aparece como fonte de obrigacdes. A par desta distincio fundamental apontam os defensores da teoria cldssica a existéncia de diferencas acessérias entre os dois tipos de responsabilidade que, no nosso Cédigo Civil, se poderiam resumir as seguintes ('2): — Presume-se a culpa na responsabilidade obrigacional (art. 799, n.° 1) mas nao na delitual (art. 487, n.° 1). — A responsabilidade delitual tem prazos de prescrigdo mais curtos (art. 498). —E diferente o regime de responsabilidade por actos dos auxiliares (art. 500 e 800). ¢ segs., Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relagdo Juridica, Vol. II, Coimbra, Almedina, 1977, pag. 21, Inocéncio Galvao Teles, Direito das Obrigacées, 5.* ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1986, pags. 175-176, Antunes Varela, Das Obrigacdes em Geral, 1, 5.* Edicho, Coimbra, Almedina, 1986, pags. 473 ¢ segs. Jorge Sinde Moreira, Estudos sobre a Responsabilidade Civil, Coimbra, 1983, pags. 8-9, Mota Pinto, Cessdo da Posigdo Contratual, Coimbra, Almedina, 1982, pags. 426 e segs. ¢ Jo&o Calvo da Silva, Cumprimento e Sando Pecunidria Compulsoria, Coimbra, 1987, pags 146 ¢ segs. Pronunciaram-se contra a distin¢do Manuel Gomes da Silva, O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, Lisboa, 1944, pags. 189 e segs., Pes- soa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1968, pégs. 37-42, e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigacées, 2.° Vol., Lisboa, AAFDL, 1980, pags. 263-276 e Da Boa-Fé no Direito Civil, 1, Coimbra, Almedina, 1984, pég. 575 (181) € 637 € segs. Jaime de Gouveia, Da Res- ponsabilidade Contratual, Coimbra, Ed. autor, 1933, pags. 159 e segs., maxime pag. 169 afirmou-se partiddrio da teoria da dualidade de responsabilidades, mas a opinido que defendeu corresponde & formulac&o intermédia adoptada por Brun em Franca. (") Cfr. André Brun, op. cit., pags. 16 € segs. (") Sobre as diferencas acessérias noutras ordens juridicas cfr. Vaz Serra, Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extra-Contratual, no B.M.J. n.° 85, pags. 115 € segs. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 783 — Em caso de pluralidade de responsdveis na responsabili- dade delitual o regime € o da solidariedade (art. 497) ao Passo que na responsabilidade obrigacional tal sé aconte- cera se esse regime ja vigorar para a obrigacdo incumprida. — As duas responsabilidades regem-se por normas de con- flitos diferentes (arts. 41 e 45) bem como por diferentes normas de competéncia jurisdicional (arts. 74, n.° 1 e 2 C.P.C.). Como se pode ver por esta enumerago, estas diferencas aces- sorias, a existirem (3), nfo poderiam comprometer uma teori- zacao unitaria da Responsabilidade Civil. Permitem, no entanto, a existéncia de um regime mais favordvel ao lesado no campo de responsabilidade obrigacional, uma vez que nesta correm em seu favor as regras do onus da prova e da prescricao. A justificagao da existéncia desse regime s6 se podera deter- minar através de uma andlise do fundamento material da distin- ao. Dessa andlise iremos deduzir qual a justificacdo das diferen- gas na medida do seu cardcter mais favordvel para o agente ou para o lesado. 2.2. A Justificagéo Material da Distingéo Refere Gomes da Silva (!*) que a distingdo entre as duas ordens de responsabilidade deriva de uma concep¢do errénea: a de que a responsabilidade delitual teria por base a infracg4o de normas de ordem publica enquanto a responsabilidade obriga- cional resultaria da infraccdo de deveres voluntariamente assu- midos e de interesse particular. (3) Repare-se na andlise de Gomes da Silva, op. cit., pags. 189-211 onde con- clui pela inexisténcia de quaisquer diferencas entre as duas ordens de responsabili- dade, cfr. também Pessoa Jorge, op. cit., pags. 34-41 e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigagées, 2.° Vol., Lisboa, AAFDL, 1980, pags. 273-276, que embora acei- tando as diferengas acessérias entendem que no sdo para si s6 suficientes para justificar a distinco entre as duas responsabilidades. (9 Op. cit., pag. 192. 784 LU{S MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO Na base desta distingdo estaria novamente um pensamento filoséfico individualista ¢ liberal: 0 de que os cidad4os sé estao vinculados em relac&o aos outros por deveres gerais de ordem negativa por forma a evitar a verificagdo de danos. Toda e qual- quer outra vinculacdo teria que ter origem na sua vontade e esta- ria norteada por interesses particulares. Procuraremos examinar em que termos esta concep¢ao se ade- qua a sociedade contempor4nea. A partida poder-se-ia desde logo afirmar que os dados actuais em que se baseia o nosso ordenamento juridico a desmentem. Mas, como iremos ver, essa afirmac&o no seria inteiramente segura. A distinc&o entre as duas ordens de responsabilidades assenta, com efeito, no pressuposto liberal de o Estado se abster de inter- vir na ordem econdmica e social, deixando aos cidadaos a facul- dade de regularem os seus interesses através do contrato (laissez Saire, laissez passer, laissez contracter). O contrato vem a ser a pedra angular do liberalismo econé- mico ('5), Assumindo-se o mercado como o unico modo de coor- denacao econémica, e estando estabelecida a diviséo do traba- lho, a livre troca torna-se a condicdo essencial de funcionamento deste sistema. Dai que o seu instrumento juridico, 0 contrato, adquira importéncia fundamental. Como nota P.S. Atiyah ('%) as consequéncias juridicas deste facto sfo enormes. Em primeiro lugar o conceito de contrato torna- -se cada vez mais abstracto, perdendo os diversos contratos a sua individualidade no meio de uma dogmatica geral da figura. Em segundo lugar, e dada a necessidade liberal de estimular as trocas, consagrou-se em absoluto o principio da autonomia da vontade, com rarissimas restricgdes a liberdade da celebracdo ¢€ estipulacdo, e valorizou-se a forca obrigatéria dos contratos inde- (8) Cf. Jodo Calvo da Silva, Cumprimento e Sangdo Pecunidria Compul- séria, Coimbra, 1987, pags. 34-35 ¢ Gaston Morin, La /oi et le contract, la deca- dence de leur souveraineté, Paris, Libraire Félix Alcan, 1927, pags. 49 € segs. (9) The Rise and Fall of Freedom of Contract, Oxford, Claredon Press, 1979, pags. 398 © segs. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 785 pendentemente da sua justica substancial (}’). Expressio méxima desta concepgao € 0 art. 1134 do Code Civil: o contrato enca- rado como lei das partes. Por ultimo, a abstencao da intervengdo estatal na esfera con- tratual levou a considerar todos os efeitos que neste se produ- ziam como derivados da vinculagao das partes. Chega-se entdo a concepeao base da distincdo entre as duas ordens de respon- sabilidades: a de que o dever de indemnizar derivado da viola- go de uma obrigacdo nao é senfo o dever de prestar modifi- cado ('8), A ascens&o das formas de intervengdo e ordenacdo econd- mica do Estado vieram modificar radicalmente estas concepcdes. Da intervencdo do Estado deriva uma ideia de responsabilizacdo colectiva, o que vem a provocar um declinio da filosofia indivi- dualista e, mais concretamente, da concepedo da responsabilidade individual ('%). O principio da autonomia da vontade, deixa, por isso, de ser concebido em termos absolutos, admitindo-se hoje a existén- cia de relagGes contratuais nado derivadas da vontade das partes, tais como as relagdes contratuais impostas pela lei (°) ou as rela- gGes contratuais de facto ('). (") Daf a consagracdo da autonomia da vontade como expressdo da justica. «Quando alguém decide alguma coisa por outro é poss{vel que cometa uma injus- tiga, mas nenhuma injusti¢a € possivel quando se decide por si proprio» (Kant). «Toda a justica € contratual, quem diz contratual diz justo» (Fouillé), citados por Ripert, La Regie morale dans les obligations civiles, Paris L.G.D.J., 1935, p. 40. (') Para uma justificag4o desta concepgdo cfr. Mota Pinto, Cessdo de Posi- ao Contratual, Coimbra, Almedina, 1982, pags. 426 e segs. Atiyah, op. cit., pag. 406 refere que um autor inglés, Powell, defendeu em 1790 que a obrigacdo de indemni- zar os prejuizos derivados da violagdo do contrato era objecto de uma convencdo tdcita que se acrescentava aos contratos livremente celebrados. (°) Atiah, op. cit., pags. 629 € segs. @) Como, por exemplo, no dominio do arrendamento, os arts. 1095 e 1793 do Cédigo Civil e o art. 28 da Lei 46/85 de 20 de Setembro. @) Sobre as relagdes contratuais de facto cfr. René Savatier, Les Métamor- Phoses économiques et sociales ou droit civil d’Aujourd’hui, 3 ed., Paris, 1964, p. 30, Mota Pinto, Cessio da Posigéo Contratual, Coimbra, Almedina, 1982, pags. 256 e segs. nota (3) Menezes Cordeiro, Direito das Obrigagées, 2.° Vol., Lis- boa, AAFDL, 1980, pags. 29-41 e Da Boa-Fé no Direito Civil, 1, Coimbra, Alme- 786 LU{S MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO O conceito de contrato entra entéo em crise, desdogmati- zando-se. Por um lado, os sujeitos da relagéo contratual indi- vidualizam-se, reconhecendo-se em intimeros casos a extraordi- néria desigualdade econémica das partes. A consequéncia deste facto vai ser a intervengdo do Estado através de normas de ordem publica destinadas a proteger a parte mais fraca nas relagdes con- tratuais. Daf a teorizacdo dos contratos da adesdo, do principio do tratamento mais favordével ao trabalhador e ao arrendatario. Por outro lado, é reconhecida a fungdo social dos contratos © que vem a pdr em causa 0 dogma da relatividade da obrigacdo. O contrato deixa de ser visto como um assunto que s6 diz res- peito as partes, admitindo-se em certos termos a eficdcia externa das obrigacées (7). Esta evolucdo das concepgées juridicas vem a questionar 0 pressuposto fundamental da teoria da dualidade de responsabili- dades: a distingdo entre a lei e o contrato como meios de regular a actividade humana. A lei vem a penetrar nos intersticios de qual- quer contrato e a propria autonomia privada é concebida como apenas permitida face ao seu cardcter funcional (3) em relacao a assunc&o pelo Estado das tarefas de ordenacdo e de interven- g&o econdémica. O fundamento da distingdo entre as duas responsabilidades desaparece entdo a partir do momento em que surge o Estado Social de Direito. Mas a verdade é que, como hoje se reconhece, essa concepcdo de Estado entrou em crise, por se verificar a sua incapacidade para resolver os problemas econdémicos que afligem @ nossa sociedade (*). Assistimos hoje ao desenvolvimento do dina, 1984, pags. 641 e segs., ¢ Antunes Varela, Das Obrigapdes em Geral, I, 5.* ed., Coimbra, Almedina, pigs. 223 € segs. (@) Cfr. Rita Amaral Cabral, A Eficdcia da Obrigacdo e 0 n.° 2 do art. 406 do Cédigo Civil, Braga, Livraria Cruz, s.d., maxime, pags. 23 ¢ segs. @) Cfr. Wieacker, Histéria do Direito Privado Moderno, (traducao) Lisboa, Fundag&o Calouste Gulbenkian, s.d., pag. 623. @) Problemas econémicos que séo derivados da propria intervenciio do Estado. O aumento das despesas piiblicas ¢ dos encargos fiscais tem vindo a fazer regredir progressivamente a iniciativa privada, restringido-se, em consequéncia a produg&o € o consumo. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 787 chamado Estado Pés-Social com uma nova teorizaco das rela- ¢6es individuo-Estado fundada em torno do regresso das concep- ges liberais, individualistas e contratualistas 5), que deverdo inspirar a sociedade nos préximos tempos. E justo ent&o que nos interroguemos se este regredir da inter- ven¢éo econédmica do Estado nao deverd corresponder a um regresso da teoria da dualidade de responsabilidades. Nao ha diivida que um novo desenvolvimento do mercado como modo de coordenagdo econémica acarretaré um aumento substancial da importancia do contrato enquanto instrumento juri- dico (5). Mas o facto € que a concep¢ao actual do contrato é radicalmente diferente da existente no Estado Liberal. O contrato deixou de ser visto como instrumento de uma vontade absoluta das partes para passar a ser encarado como uma forma de a socie- dade assegurar a satisfac&o das necessidades econdémicas dos seus membros e se desenvolver. O contrato ¢ assim racionalizado @) Chr. Rosanvallon, A Crise do Estado-Providéncia (trad. portu- guesa), Lisboa, Editorial Inquérito, 1984 € Jo&oj Calvao da Silva, Cumprimento e Sanedo Pecunidria Compulséria, Coimbra, 1987, pag. 51 e nota (97). O debate filos6fico neo-liberal tem sido orientado, especialmente, em face do livro de John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Massachussetts, 1971 (cfr. a trad. portu- guesa no Brasil sob o titulo Uma Teoria da Justiga, Brasilia, Editora Universidade de Brasilia s.d.) Rawls procura explicar a justiga de uma economia liberal e de um Estado nao redistribuidor de riqueza elevando ao mais alto nivel de abstraccdo € de racionalidade a concepcao do contrato social defendida por Locke e Rousseau (Rawls cit., p. 33). Rawls imagina os cidadaos numa situacdo original hipotética (0 chamado estado de natureza em Rousseau) onde no saberiam qual a posi¢ao que detinham na sociedade por estarem cobertos por «um véu de ignorfncia» (op. cit., pag. 133 € segs.). A questo que se coloca é saber se os cidadaos nessa situago original aceitariam que a sociedade tivesse desigualdades entre os seus membros. E Rawls responde: os cidaddos deverdo accitar desigualdades sociais se estas corres- ponderem a dois principios de justiga: — maxima liberdade em tudo 0 que ndo colida com a liberdade dos outros — exigéncia que as desigualdades sociais tragam vantagens para todos ¢ correspondam a uma igualdade de oportunidades (op. cit., p. 67). E curioso notar 0 quanto esta justificacdo filos6fica difere do pensamento liberal classico. Enquanto os autores cldssicos entendiam que a igualdade de opor- tunidade correspondia a uma igualdade real, Rawls assume que a igualdade de opor- tunidade pode corresponder a uma desigualdade efectiva mas que seré justa enquanto trouxer mais vantagens a toda a colectividade. @) E esta também a opinido de Joao Calvao da Silva, op. cit., pags. 48 © segs. 788 LUfs MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO por forma a servir os fins de toda a sociedade (7) e nao unica e simplesmente das partes que o celebram. N&o devem ser subestimados os efeitos que a concepcao da telatividade dos contratos tem na distingdo entre as duas ordens de responsabilidades (78). Pode mesmo dizer-se que essa concep- g&o é a estrutura da teoria da dualidade. Deixando de se admitir a dogma da relatividade da obriga- ¢4o nao ha qualquer suporte material ou légico para a distincao, que como veremos adiante, passa a suscitar inimeros problemas tedricos. 2.3. Os problemas técnicos suscitados pela distingdo 2.3.1. A delimitagdo do dominio das duas responsabilidades Questionados os fundamentos material e légico da distincdo examinemos muito sucintamente os problemas técnicos susci- tados pela admisséo de duas categorias de responsabilidades. Neste ponto a questdo que se coloca é a delimitagZo dos domi- nios das duas responsabilidades, que levanta um conjunto de pro- blemas de muito complexa solugdo técnica. Do confronto entre o art. 483 e o art. 798 verificamos que © campo da responsabilidade delitual é delimitada por exclusio de partes. Enquanto o art. 483 abrange todos os danos derivados da violacao ilicita de um direito ou de uma disposic&o legal desti- nada a proteger interesses alheios o art. 798 diz textualmente: «O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigacao torna-se responsdvel pelo prejuizo que causa ao credor». @) Cir. neste sentido Atiyah, op. cit., pags. 726 ¢ segs. @) Cfr. L. Solyom, op. cit., pag. 40. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 789 Da conjugacao destas duas disposicées podemos retirar as seguintes conclusées (2): a) Para haver responsabilidade obrigacional é necessario que seja violada uma obrigaco em sentido técnico. Sera ent&o necessdrio que uma obrigacdo exista e se tenha validamente constituido. b) Aresponsabilidade obrigacional, s6 existe quando a vio- lagdo da obrigaco é imputada ao devedor (*). c) S6 ha responsabilidade obrigacional pelos danos causa- dos ao credor. Os danos derivados da inexecucdo de uma obrigacdo que se verifiquem noutros sujeitos sao cober- tos pela responsabilidade delitual. d) Para haver responsabilidade obrigacional é necessdério um. nexo de causalidade entre a violac&o da obrigacdo e os danos causados ao credor. Vejamos as situagdes onde nos leva esta delimitacdo: a) A falta de cumprimento da prestacdo da lugar a respon- sabilidade obrigacional (art. 798 n.° 1). Mas a violacdo dos deveres acessérios de protec¢do, informagio e leal- dade, fundados na boa-fé e vigentes no perfodo pré- -contratual (art. 277.°) no cumprimento da obrigacio e, apés a sua conclusdo (art. 762 n.° 2) dao lugar a res- ponsabilidade delitual () fundada no art. 483 n.° 1, uma vez que sao deveres impostos por lei. Pense-se na complexidade de regimes derivados desta conclusdo se nao se admitir o cardcter unitdrio da responsabilidade. 6) A delimitacao entre as duas responsabilidades esquece o problema da eficdcia externa da obrigacao, hoje ampla- @®) Cfr. H. e L. Mazeaud e André Tune, op. cit., pags. 132 ¢ segs. e Gene- vive Uiney, op. cit., pags. 210 ¢ segs. (®) Salvo o caso do art. 800. @!) Besta a conclusdio de Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 1, Coimbra, Almedina, 1984, pags. 527-660 maxime pags. 639 e 646 e 7, contra Mota Pinto, Cessdo da Posi¢éo Contratual, Coimbra, Almedina, 198, pags. 402 e segs. que funda a violagdo destes deveres no art. 798. Reconhece, no entanto que so deveres que nao se confundem com o dever de prestacdo, sendo independentes dele. 790 LUfS MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO mente admitida pela doutrina (). Entende-se, por isso, que a violac&o do direito de crédito por outrém que nao o devedor cai na previsio do art. 483 n.° 1 (3) e é, portanto, delitual. A admitir-se como delitual a respon- sabilidade do terceiro cimplice (4), que se limitou a auxiliar o devedor no incumprimento, chega-se a con- cluséo absurda que o acto do cumplice tem natureza dife- rente do acto praticado pelo autor. c) A restrigéo efectuada no art. 798 que limita a tutela da responsabilidade obrigacional aos prejuizos causados ao credor, parece ignorar que em regra aproveitam da pres- tacdo terceiros que nao o credor. Se nos chamados con- tratos com eficacia de proteccdo para terceiros (*5), como o arrendamento, ainda se admite uma extensio de tutela contratual a terceiros em clara oposicaio ao art. 798, que dizer em sede de responsabilidade do pro- dutor face aos consumidores finais do produto? d) Exigindo o art. 798 um nexo de caudalidade entre a inexecucdo da obrigacdo e os danos causados ao credor e vigorando na pendéncia de relacdo obrigacional, como vimos atrds, deveres cuja infraccGio da lugar a respon- sabilidade delitual, a determinagao do contetido da vin- () Cfr. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigacdes, 1.° Vol., Lisboa, AAFDL, 1980, pigs. 251 ¢ segs. ¢ Rita Amaral Cabral, op. cit, €) Menezes Cordeiro, op. ult. cit., pag. 259. (4) Neste sentido, H. ¢ L. Mazeaud € A.-Tune op. cit., pag. 176 ¢ segs. € Genevieve Uiney, op. ult. cit., pags. 236 © segs. Menezes Cordeiro, op. ult. cit., pags. 262 ¢ segs. maxime 265 parece defender a posico contréria. A verdade é que © art. 483 n.° 1 estd constituido em termos muito mais latos que o art. 798 ¢ este liltimo restringe a imputag&o ao devedor. Karl Prelhaz Natsheradetz, «A Responsa- bilidade do Terceiro Cimplice», na Revista Juridica, n.° 5 pags. 17 ¢ segs. maxime 38-39 defende que o termo cimplice no € empregado em sentido técnico e refere uma lesio auténoma do direito de crédito por terceiro, causadora de responsabili- dade delitual. Mas cabe perguntar o que se passa em casos de verdadeira cumplici- dade? Em que termos é que se pode conceber que seja delitual a colaboracio num acto causador de responsabilidade obrigacional? 9) Cfr. Menezes Cordeiro, Boa Fé, I (cit.), pags. 619 e segs. e Mota Pinto, op. cit., pigs. 419 e segs., onde entende que s6 por argumento formalista se pode entender nfo existir aqui uma responsabilidade obrigacional. Pensamos, pelo con- trério, que © formalismo reside na propria teoria da dualidade. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL m2 culagao das partes e dos danos que forem causados pela violagdo da obrigacdo pode tornar-se muito dificil de efec- tuar. Pense-se na quantidade de situacdes de concausa- lidade que se podem verificar e na complexidade de regi- mes dai derivada. Por esta delimitagao j4 podemos verificar os problemas cau- sados pela delimitagao de dominios entre as duas categorias de responsabilidades. A abolic¢&o da distingéo permite uma muito maior harmonia de solucdes. 2.3.2. O concurso de responsabilidades Verificamos atrés que na pendéncia de uma relagao obriga- cional podem surgir casos de responsabilidade delitual por infrac- ¢&o dos deveres fundados na boa fé. Pretendemos ocupar-nos agora de outra questdo: a de saber se a falta de cumprimento de uma obrigac4o ndo se podera também em certos casos consi- derar uma infraccdo do dever geral de ndo causar danos a outrem € Se, messe caso, nao se podera fazer uma aplicacdo dos dois regi- mes de responsabilidade (*). E o problema tradiconalmente cha- mado do concurso de responsabilidades. A doutrina tem colocado a questo de, em caso de concurso de responsabilidades, dever ser ou ndo possivel ao lesado optar pelo regime que considerasse mais favoravel ou, inclusivamente, misturar regras de dois regimes (27). A questao apresenta-se a nosso ver, completamente absurda. E ébvio que toda a sua situagao abrangida pelo art. 798 cai tam- bém sob a alcada do art. 483 n.° 1, uma vez que este esta cons- truido em termos suficientemente amplos para abranger a viola- @) Cfr. Thomas Weir, «Multiple Grounds of Claim», Cap. 12 do Vol. XI (Torts) da International Encyclopedia of Comparative Law, H. e L. Mazeaud e A. Tunc, op. cit. I, pags. 224 e segs., Genevieve Uiney, op. ult. cit. pags. 259 e segs., Jaime de Gouveia, op. cit., pags. 215 ¢ segs., Vaz Serra, Responsabilidade Contratual — Responsabilidade Extracontratual, no BMJ n.° 85, pags. 208 ¢ segs. (7) Foi a solugao proposta por Vaz Serra num projecto de articulado do futuro Cédigo Civil, B.M.J. n.° 85 a pags. 238-239. mm. LU{S MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO g4o do direito de crédito (**). Simplesmente, em face da teoria da dualidade, dever-se-ia entender, em nossa opinido, que se tra- taria apenas de um concurso de normas, uma vez que existe uma relacdo de subsidiariedade ébvia do art. 483 n.° 1 face ao art. 798. A nao ser assim ndéo conseguimos imaginar nenhuma situacdo de responsabilidade obrigacional onde nao seja simultaneamente violado o art. 483 n.° 1. Nao haveria, por isso, nenhuma situa- g&o pura de responsabilidade obrigacional. Ora, para chegar a esta conclusdo parece mais vidvel defender a teoria da unidade. Poderiamos, ent&o, pensar que a teoria da opcdo representa o reconhimento doutrindrio da irrelevancia da distingdo entre as duas responsabilidades e da aplicagdo de um ou de outro regime. Mas tratar-se-ia de uma verificacao infundada, como iremos ver de seguida (?%). 3. A DISTINCAO NO AMBITO DA REPARACAO DOS DANOS PESSOAIS A teorizacdo da op¢ao em caso de concurso de responsabili- dades é uma questéo completamente destituida de interesse pra- tico, uma vez que s6 permite ao lesado aplicar o regime que, precisamente, lhe é mais gravoso: o da responsabilidade deli- tual (“), CO unico interesse que o lesado poderia ter seria, pelo contra- rio, a aplicac&o do regime da responsabilidade obrigacional, uma ¢*)_E, como vimos, este wtimo artigo 0 aplicdvel em caso de lesdo do direito de crédito por terceiros. () N&el Martine, L’Option entre la Responsabilité Contractuelle et la Res- ponsabilité Delictuelle, Paris, L.G.D.J., 1957 a pags. 200, depois de ter examinado profundamente este problema conclui pela inadmissibilidade da opgo ¢ entende que esta representa uma tentativa dos juristas do séc. XIX de reforcar o regime da responsabilidade face ao aumento de numero de acidentes. (@) Refere Vaz Serra, op. cit., pég. 209, (nota 198) que o lesado pode ter interesse na opcSo para levar a questio ao Tribunal competente para apreciar a responsabilidade extracontratual (1!!). N&o conseguimos conceber, por muito inte- Tesse que o lesado tenha em escolher o Tribunal, que por causa disso se va sujeitar @ que o énus da prova passe a correr por sua conta. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 793 vez que neste as regras da prescricaéo e do énus da prova correm a seu favor. Compreende-se, por isso, a vantagem daquele que em caso de verificacdo de um acidente esta sob a proteccaio de um contrato em face dos outros lesados que teréo que provar a culpa do agente. O aumento substancial do numero de acidentes derivado da industrializaco da sociedade levou a que a doutrina tentasse atri- buir uma reparacdo pelos acidentes sofridos mesmo em casos em que nao se verificariam os seus pressupostos. Uma solucao foi a aplicacéo das regras da responsabilidade obrigacional a todos os casos de danos pessoais verificados entre contratantes. Sendo certo, no entanto, como vimos atrds, que, em caso de falta de ligagdo entre o dano e a inexecucao da obrigacio, a responsabilidade seria delitual, a doutrina francesa do inicio deste século procurou alargar o circulo de protec¢do dos contra- tos, incluindo neles uma obrigacdo de seguranca por forma a que a protecc4o contratual abrangesse também os danos sofridos pelo credor sem ligacdo com o contrato (“!), Nesses danos onde se verifica uma maior preméncia de reparacdo, a responsabilidade obrigacional apareceu assim como uma valvula de escape da neces- sidade de reparacdo entretanto surgida. Porém, desenvolvendo a idéia de que todo o dano sofrido Por uma pessoa exige social e humanamente uma reparacdo (*) deixa de se compreender a diversidade de situacdes das duas res- ponsabilidades (“*) e a diversidade de tratamento atribuido aos lesados. O alargamento da proteccdo concedida pela responsabi- () Dai a teorizagdo efectuada em Franca por forma a encontrar uma obri- gacdo de seguranca no contrato de trabalho, no contrato de transporte, no contrato de aprendizagem desportiva, etc. Cfr. André Brun op. cit., pags. 202 ¢ segs., René Savatier, Traité de la Responsabilité Civile, Paris, L.G.D.J., 1951, I, pégs. 175 e segs... (®) Cir. René Savatier, Les Metamorphoses Econémiques et sociales du Droit Civil d’Aujourd’hui, 1.* série, 3." ed., Paris, Dalloz, 1964, pag. 332-333. (“) Fala-se a este propésito na doutrina na existéncia de um principio final da reparacdo dos danos pessoais oposi¢ao ao principio causal, base ainda do mosso sistema de responsabilidade. A idéia é que no dominio dos danos pessoais a reparagdo deve depender unicamente do dano, independentemente da sua causa, basear-se em igual tratamento para todos os lesados, Cfr. Jorge Sinde Monteiro, Estudos Sobre a Responsabilidade Civil, Coimbra, 1983, pags. 58-61 e¢ 91-92. 7194 LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO lidade obrigacional nao resolve a situacéo dos danos pessoais ocor- ridos fora duma relacdo contratual e veio demonstrar que, neste campo, 0 importante ndo é a situacdo de credor mas sim a de lesado. Pensamos que a distinc4o entre as duas responsabilidades 86 faz sentido vista do prisma do agente. Pode-se pensar em ins- tituir um regime mais gravoso se o agente se vinculou a uma obri- gacdo. Ja nao faz, porém, qualquer sentido encarada sob o ponto de vista do lesado. N&o se concebe a raz4o por que o tratamento atribuido deva ser diferente quando a causa do dano é a violagao de uma obrigacao (“). A alteracdo ocorrida neste século (“5) da fungao da respon- sabilidade civil que passa a ser concebida como meio de repara- ¢&o dos danos pée em crise a distingéo. No dominio dos danos pessoais essa crise é profunda, tendo-se verificado a insuficiéncia de responsabilidades civil para corresponder ao direito do lesado a reparacgaio. Neste capitulo ha uma situacdo cuja especialidade exigiu mais cedo um tratamento particular: a do acidente de trabalho. A neces- sidade de dar resposta a situacdo do trabalhador vitima de um acidente impés de forma absoluta a atribuigéo de um direito a reparacao, direito esse que tem sido assegurado através de varios sistemas reparatérios. E essa a situacdo que procuraremos analisar ao longo dos proximos capitulos. (“) Cfr. Manuel Gomes da Silva, op. cit. pags. 206-207. (4) Refere G. Eduard White, Tort Law in America-An Intellectual History, Nova York e Oxford, Oxford University Press, 1980, p. 62 que antes de 1900 a principal func&o da responsabilidade civil era sancionatéria. A concepeao da res- ponsabilidade civil como um sistema reparatério é uma concepcdo deste século, baseada na alterag&o das consequéncia sociais dos danos sofridos. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 795 Il. OS VARIOS SISTEMAS DE REPARACAO DOS ACI- DENTES DE TRABALHO 1. GENERALIDADES O conceito juridico de acidente de trabalho surge-nos com o advento da sociedade industrial. O desenvolvimento das indus- trias em escala e a concorréncia desenfreada entre as empresas vieram obrigar cada vez mais a utilizacfo de mdquinas comple- xas, muitas vezes em face ainda experimental, de manejo dificil e com riscos de utilizacdo imprevisiveis que, por sua vez, desen- cadearam um aumento substancial do numero de acidentes rela- cionado com a prestag&o de trabalho (“). Por outro lado, a celebracado do contrato de trabalho assu- miu cada vez mais importancia, sendo na maior parte dos casos a unica fonte de subsisténcia do trabalhador, e da sua fami- lia (7). E, por isso, corrente o trabalhador minimizar os riscos derivados desse contrato e, no local de trabalho, por forcga da sua habituacdo ao perigo, tornar-se inconsciente e temerario, pos- sibilitando a ocorréncia de um acidente a todo o momento (*). () André Tunc, «Les Problémes Contemporains de la Responsabilité Civile Delictuelle» na Revue Internationale de Droit Comparé, 1967, pags. 1967, pags. 755 © segs. maxime pags. 766-768. () A prestacdo de trabalho nao apresenta especificidades juridicas em face das outras prestacdes contratuais. As suas especificidades sao sociais, derivantes do facto de ser a forca de trabalho a unica mercadoria de que habitualmente as pessoas dispdem, tendo que ser colocada no mercado para garantir a sobrevivéncia dio seu titular (Cfr. Menezes Cordeiro, Da situagao juridica laboral; perspectivas dogmdticas do Direito do Trabalho, separata da Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1982, p. 52). () Nao é correcta a ideia de que os acidentes de trabalho sejam eventos essencialmente fortuitos. As estatisticas demonstram que o grande niimero desses acidentes € devido a erro dos préprios lesados podendo, portanto, ser imputado aum acto humano. Jorge Sinde Monteiro, Estudos Sobre a Responsabilidade Civil, Coimbra, 198, pags. 48-49 defende, no entanto, ser absurdo neste caso responsabi- lizar o trabalhador pelos seus actos. Equivaleria a sustentar que é possivel a um operario trabalhar horas ¢ horas seguidas sem cometer uma falha ou desatencdo. Daf que este autor defenda que a chamada «falha humana» ndo corresponde a um acto culposo em face do art. 487 n.° 2. Este artigo define como culposo o acto 196 LUfS MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO A ocorréncia do acidente vem desencadear a ruina econé- mica do trabalhador da sua familia que ficam sem meios de sub- sisténcia. S6 numa sociedade individualista se poderia defender a aplicacéo do principio casum sentit dominus a esta situacdo, idéia que hoja se recusa. Corresponde a doutrina do Estado Social de Direito a concep¢fio de que o acidente vem romper um equili- brio juridico existente no contacto social e que se trata, portanto, de um assunto que diz respeito no sé ao lesado mas a toda a colectividade (“). Desenvolve-se assim a consciéncia de.que se torna juridica- mente necessdria a atribuigdo de uma reparacdo pelos acidentes de trabalho. No intuito de dar resposta a essa necessidade foram-se desenvolvendo varios sistemas reparatérios que, atribuindo maiores ou menores garantias consoante os casos, tutelaram a situacdo do trabalhador vitima de um acidente. Iremos, neste capitulo examinar criticamente cada um des- ses sistemas, procurando averiguar a sua justica e a forma pela qual dao resposta a situacgdo do trabalhador lesado. N&o nos inte- ressa nessa investigagaéo um exame descritivo dos varios sistemas mas sim uma andlise do seu funcionamento a luz de uma pers- pectiva funcional do Direito (). que um bom pai de familia ndo cometeria em face das circunstncias do caso. Ora, © erro ¢ inerente as consequéncias do set humano e, portanto, passivel de cometer por qualquer homem normal. Concordamos com a nao responsabilizagdo do traba- Ihador neste caso, embora nfo com esta interpretacdo do art. 487.°, n.° 2, que parece esquecer 0 seu cardcter deontolégico. (®) Jorge Sindo Monteiro, op. cit., pags. 19-22. () Trata-se da forma de pensamento juridico a que Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, |, Coimbra, Almedina, 1984, pag. 39, chama de sinépica. Cfr. a este ponto a obra notével de Guido Calabresi, The Cast of Accidents, A Legal and Economic Analysis, New Haven e Londres, Yale University Press, 1970 (traduco espanhola sob o titulo EI Coste de las Accidentes, Analisis econdmico juridico de la responsabilidad civil, Barcelona, Ariel, 1984) onde analisa os custos ‘econémicos ¢ sociais de funcionamento dos sistemas reparatérios. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 197 2. A RESPONSABILIDADE CIVIL COMO SISTEMA DE REPA- RAGAO DOS ACIDENTES DE TRABALHO 2.1. Pressuposto: a necessidade de um nexo de imputacdo A utilizagaéo de Responsabilidade Civil como sistema repa- ratério dos acidentes de trabalho é condicionada pela verificagéo dos pressupostos do instituto. Seguindo a sua formulacéo mais sintética (*!), que restringe esses pressupostos a dois (0 dano e © nexo de imputac4o), poderemos dizer que € necessdrio que 0 acidente possa ser imputado a outro sujeito através dos diversos titulos de imputacdo reconhecidos. Este sistema permite repercutir 0 acidente na esfera juridica de outrém através do surgimento de uma obrigagao de indemni- zagao (arts. 562 e segs. do C.C.), por meio da qual a reparacdo se efectiva. Neste processo tem cabal importancia a escolha do titulo de imputagao uma vez que dele depende nao sé a existén- cia de reparacdo como também a determinacdo do préprio sujeito responsavel e, consequentemente, do modo como responde a impu- tacdo que efectua o Direito (°7). Torna-se, por isso, necessdrio efectuar um exame critico dos diversos titulos de imputagao existentes, em fungo da tutela que atribuem ao trabalhador lesado. 2.2. A culpa como nexo de imputacao 2.2.1. Consequéncias deste sistema J& foi abandonada em todos os paises industrializados a uti- lizagdo do sistema da responsabilidade por culpa como meio para () Menezes Cordeiro, Direito das Obrigacées, 2.° Vol., Lisboa, AAFDL., 1980, pags. 280 ¢ segs. e Teoria Geral do Direito Civil, 1.° Vol., Lisboa, AAFDL, 1987, p. 401. () Seria por exemplo platénico face a pretendida protecedo da situaco de caréncia da vitima, imputar a responsabilidade pelo acidente de trabalho a uma pessoa insolvente. 78 LUfS MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO atribufr uma reparagdo de danos emergentes de acidentes de tra- balho. é As caracteristicas deste sistema mostram-se, com efeito, pre- judiciais para uma suficiente tutela da situagdo do trabalhador lesado. Vejamos por que razdo. No entender de Calabresi (°°) o sistema de responsabilidade por culpa apresenta trés caracteristicas essenciais: @) Pretende prosseguir outros fins além do fim reparaté- rio, designadamente fins de prevencdo e sancionaté- rios (*); b) Encara o acidente, numa perspectiva individualista (°5), como um assunto que diz respeito unicamente 4s partes envolvidas imputando os seus custos de acordo com esse entendimento e por forma casuistica; c) Permite que se segurem contra os custos dos acidentes tanto os ofensores como as vitimas. As consequéncias deste sistema em matéria de acidentes de trabalho s&o os seguintes: a) Relativamente a primeira caracteristica a prossecugdo acesséria de um fim sancionatario implica que se faca do acidente um juizo moral em termos de culpa. Ora, a exigéncia desse juizo vem prejudicar a atribuigdo da (©) Calabresi, EY Coste de los Acidentes (tradugdo espanhola), cit., pags. 243 © segs. (4) Sobre a fungiio de Responsabilidade Civil, cfr. Manuel Gomes da Silva, O Dever de Prestar e 0 Dever de Indemnizar, Lisboa, 1944, pags. 151 € segs., Pes- soa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos de Responsabilidade Civil, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1968, pags. 47 ¢ segs., Menezes Cordeiro, Direito das Obriga- $6es, 2.° Vol., Lisboa, AAFDL, 1980, pigs. 276 ¢ segs. A doutrina é undnime no entendimento de que a func&o principal de responsabilidade civil é hoje reparatoria. Concordamos mas pensamos que tem faltado uma anélise das fungdes acessérias prosseguidas pelos diversos titulos de imputaco, fundamental para a compreensao das suas caracteristicas (contra, Menezes Cordeiro, op. cit., pég. 278). () Dispensamo-nos de repetir 0 que referimos supra sobre a fundamenta- sho liberal deste sistema, Cfr. além dos autores entio citados G. Alpa e M. Bes- sone, La Responsabilitdé Civile, Milio, Giuffré, 1976, pags. 78 e segs. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 799 reparacao. Sendo esta de uma necessidade absoluta, como vimos atrés, nfo poderd ficar dependente da prosse- cucdo destes fins acessérios devendo antes ter por base um sistema exclusivamente reparatorio. A isto acresce que se torna muito dificil elaborar um juizo moral do acidente (°°). Tendo-se tornado este num fenédmeno normal da nossa sociedade, inerente a actividade social, s6 se pode efectuar uma condenacao do acto praticado em termos de culpa, quando este fér considerado social- mente inaceitdvel, independentemente da possibilidade de conduzir ou nao ao acidente (°7). O resultado é que os acidentes sé se considerarao culposos em casos cho- cantes ou no caso de infraccéo de normas especificas de prevencdo e seguranga (8); 5) Relativamente a segunda caracteristica surgem-nos as seguintes consideracdes: Por um lado a concepgdo de que o acidente sé diz respeito 4s partes envolvidas é contraria 4s concepgdes de solidariedade social vigentes no ordenamento juri- dico (°). Por outro lado, a imputacao dos custos do acidente de acordo com a contribuig&o culposa das partes para €) Cfr. Calabresi, op. cit., pag. 270 € segs. (7) Isto por que a possibilidade de se verificar um acidente existe em actos que se praticam diariamente que sé admitidos por serem socialmente aceitdveis. Calabresi, op. cit., p. 35 refere a este ponto um exemplo curioso: aceitou-se como necessidade econémica a construcdo do tiinel de Monte Branco embora se soubesse que um trabalhador morreria por cada quilémetro de tunel construido. (*) Dai a extraordindria difusdo dessas normas que se poderiam considerar desnecessarias face ao método das clausulas gerais como o art. 483 n.° 1. Nao 0 so pela razdo que expomos no texto. Cir. art. $4 do Decreto n.° 360/71 de 21 de Agosto que, em matéria de acidentes de trabalho adopta esse sistema. () Cfr. 0 que a este respeito dissémos supra. Verdadeiramente esta critica poderia fazer-se a todo o sistema de responsabilidade civil uma vez que este se estru- tura em termos bilaterais na obrigac%o de indemnizacdo. No sistema de responsabi- lidade por culpa a situdo é, no entanto, mais flagrante uma vez que ai se tem ape- nas em conta a relagdo entre as partes ao contrario da responsabilidade pelo risco assente em motivacdes sociais de distribuigao do risco. 900 LU{S MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO a sua verificacéo (art. 570 do Cédigo Civil) esquece a situagdo de necessidade da vitima e é assim forma insu- ficiente de tutela do trabalhador lesado. Por ultimo o casuismo no funcionamento deste sis- tema vem reduzir ainda mais as possibilidades de repa- tag&o dos danos derivados de acidentes (©). Basta dizer que face ao art. 483 n.° 1 essa reparacdo vai defender da causa particular de cada acidente, individualizadora do sujeito responsavel a titulo de culpa. Em consequén- cia, nfo sé a obrigacao de indemnizac4o pode ser atri- buida a qualquer sujeito independemente da sua solvén- cia, como também é exigido o funcionamento (tradi- cionalmente lento) dos tribunais, uma vez que nao é pre- visivel que os cidaddos reajam pacificamente a imputa- g4o baseada na culpa. A efectividade da reparacdo dos danos emergentes de trabalho fica assim muito depen- dente de factores aleatérios. c) Finalmente, é platénica a idéia de deixar 4 consideragao de ambas as partes o segurar-se contra os custos do acidente (5'). Para os trabalhadores a contratacdo do seguro representa uma diminuicdo do valor liquido do salario, dai que subestimem a possibilidade de verifica- ¢4o de um acidente. Para o empresdrio o seguro é um custo a onerar a producdo, repercutivel sobre os consu- midores do produto, mas nao existe justificacéo para esse contrato se a sua responsabilidade ficar dependente dos factores aleatérios referidos atras. O resultado é que nenhuma das partes se segura. 2.2.2. Consequéncias de qualificagao de reparacao dos acidentes de trabalho como responsabilidade delitual. Todas as criticas apontadas ao sistema de responsabilidade por culpa, que demonstram a sua insuficiéncia como sistema () Calabresi, op. cit., pags. 258 e segs. ©) Calabresi, op. cit., pags. 248. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 801 reparatério dos danos emergentes de acidentes de trabalho, sio agravados se essa responsabilidade se qualificar como delitual, uma vez que ai passa a correr por conta do trabalhador lesado o 6nus de prova de culpa do agente (®). As dificuldades de prova dessa culpa séo enormes pela razéio atrds referida de ser extraordinariamente dificil a efectivagéo um juizo moral do acidente, pelo que o trabalhador fica completa- mente desprotegido em caso de verificac&o de um acidente de tra- balho. 2.2.3. Consequéncias de qualificagdo da reparagdo dos acidentes de trabalho como responsabilidade obrigacional Uma primeira reaccéo empreendida no século passado con- tra esta situacdo foi a qualificagao da responsabilidade emergente de um acidente de trabalho como responsabilidade obrigacional, fundada no contrato de trabalho. A defesa desta solucdo foi empreendida por Sauzet em Franca € por Sainctelette na Bélgica (). Para estes autores, em conse- quéncia do nexo de subordinacdo existente no contrato de traba- lho, incumbiria tacitamente a entidade patronal uma obrigacdo de garantir a seguranga do trabalhador. O trabalhador vitima de um acidente podia, por isso, dirigir-se 4 entidade patronal que pagaria a indemnizacdo, salvo se conseguisse provar que 0 aci- dente nao era devido a culpa sua (*). Esta teoria foi consagrada legislativamente na Suica em 1881 e abandonada trinta anos depois, tendo também obtido algum ©) Cfr. o art. 487 n.° 1. (©) Sauzet, Responsabilité des patrons envers les ouvriers, Revue critique, 1883; Sainctelette, De La Responsabilité et de La Garantie, Bruxelas, 1844, obras estas a que ndo pudemos ter acesso. () Para uma referéncia a esta teorizacdo cfr. Yves Saint Jours — Traité de Securité Sociale, Tomo III — Les Accidents du Travail, Paris, Librairie Générale du Droit et de Jurisprudence, 1982, pags. 9 € segs. e Renée Jaillet, La faute inex- cusable en matitre d’accident du travail et de maladie professionelle, Paris, L.G.D.J., 1980, pags. 22 e segs. 802 LUfS MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO sucesso nos tribunais belgas (6). Em Franca nunca chegou a ser aceite, tendo a jurisprudéncia sempre defendido que a entidade patronal sé se obrigava pelo contrato ao pagamento do salario. O problema desta construgdo é, para além da sua artificiali- dade, o ndo tutelar suficientemente os interesses do trabalhador. Por um lado ¢ irreal a idéia de que do contrato de trabalho deriva tacitamente uma obrigacdo de seguranga. Mesmo que assim fosse as entidades patronais facilmente a elidiriam através da aposicao de cldusulas expressas de ndo garantia (%). Por outro lado esta construgdo deixa o trabalhador desprotegido em face dos aciden- tes derivados da sua culpa ou de caso fortuito, sendo esses, como vimos, a grande maioria dos acidentes de trabalho, pelo que a protecc&éo que atribui se revela insuficiente. (8) Saint-Jours, loc. cit., ¢ Jaillet, loc. cit., referem uma decisio da Cour de Cassation belga de 8 de Janeiro de 1886, 5.86.5.2.5, que admite a existéncia de uma obrigagfo de seguranca no contrato de trabalho embora sustentasse que era ao trabalhador que competia provar a culpa da entidade patronal, o que vem a inutilizar a construcdo. () A doutrina francesa acabou no entanto por admitir a existéncia de uma obrigaciio de seguranca em certos contratos como 0 contrato de transporte de pes- soas. Cfr. H. e L. Mazeaud e A. Tunc. Traité Thedrique et Pratique de La Respon- sabilité Civile Délictuelle e Contractuelle, 1, 5.* ed., Paris, Editions Montchrestien, 1957, pdgs. 190 ¢ segs. Geneviéve Viney, Le Déclin de La Responsabilité Indivi- duelle, Paris, L.G.D.3., 1965, pags. 27 segs. critica, com muita justiga, esta teori- zacio da obrigacdo de seguranca como conteiido de certos contratos em vez de a considerar inerente a uma actividade profissional. Poder-se-4, por exemplo, consi- derar diferente a responsabilidade do médico em relaco a um doente pelo facto de entre os dois no ter sido celebrado contrato de servigo médico? E Sbvio que a responsabilidade neste caso nao deriva do contrato mas do exercicio da profissdo. © advento desta concepgao de responsabilidade profissional é mais um rombo na teoria da dualidade de responsabilidades, que tio injustas consequéncias acar- reta neste campo. Note-se o absurdissimo art. 504 do nosso Cédigo Civil (citado como cristalino exemplo das concepgdes dualistas na International Encyclopedia of Comparative Law, Vol. XI, Torts, Cap. 12, p. 6) que, no caso de morte de pessoas transportadas em virtude de contrato, impede que sejam beneficidrias de responsa- bilidade objectiva as pessoas a que se refere o art. 495 n.° 3 € 0 art. 496 n.* 2 € 3. ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 803 2.2.4. A teoria da inversdo do énus da prova O insucesso das teorias contratualistas neste dominio leva- ram a consagracdo da ideia de que a responsabilidade da enti- dade patronal sé poderia ser delitual. A dificuldade de prova dos acidentes a que aludimos atrds levou, no entanto, certa doutrina a defender (°7) que neste campo se deveria admitir uma inver- sao do dnus da prova, passando a correr por conta da entidade patronal a prova de que nao tinha tido culpa na verificagao do acidente. Esta formulacao padece exactamente das mesmas criticas que referimos em relagao a teoria contratualista, dai que nao asse- gure uma suficiente tutela dos acidentes de trabalho. 2.3. O risco como nexo de imputaco dos acidentes de trabalho 2.3.1, Generalidades A injustica do sistema da responsabilidade por culpa, que fazia a reparacdo depender de um juizo moral dificil de efectuar e ainda mais de provar, levou a que se tentasse fundamentar a responsabilidade pelo acidente de trabalho em critérios objectivos. Surge assim a teoria do risco (6) que consagrou uma res- ponsabilidade objectiva de entidade patronal neste dominio. (®) S6 encontramos referéncias a esta teoria no livro de Miguel Hernainz Marquez, Accidentes del Trabajo Y Enfermedades Profissionales, Madrid, Edito- tial Revista de Derecho Privado, 1945, p. 10-11 que nem sequer refere os seus defen- sores. Daf que pensemos que tenha tido muito pouca aceitacao. () Sobre os precursores ¢ primeiros defensores das doutrinas do risco Cfr. Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, 1, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1944, pags. 49 ¢ segs. A sua aplicagdo aos acidentes de trabalho dé-se em Franca por influéncia da escola positivista do Direito Penal, primeiro através da descoberta jurisprudencial do art. 1384 do Code Civil como consagrando uma ampla responsa- bilidade objectiva, sendo defendida por Saleilles, Les Accidents du Travail et La Responsabilité Civile, Paris, Arthur Rousseau 1897 e Josserand, De La Responsabi- lité des choses inanimées, Paris, 1897 (nao pudémos ter acesso a esta ultima obra). Posteriormente a Lei de 9 de Abril de 1898 vem instituir um regime de responsa- 804 LU{S MANUEL TELES DE MENEZES LEITAO 2.3.2. As diversas concep¢des do risco O conceito de risco é, no entanto, sé por si insuficiente. Sendo toda a actividade susceptivel de causar riscos a responsabilidade tornar-se-ia um fenémeno puramente causal. Dai que para res- ponsabilizar o agente s6 sejam tomados em consideragdo certos tipos de risco, varidveis de acordo com as diversas concepgdes da teoria. A primeira concepgdo de teoria do risco (risque-profit) cor- responde ao principio ubi commoda, ibi incommoda. Deriva das ideias de Josserand e Saleilles () segundo os quais se toda a actividade humana é susceptivel de criar riscos vem a ser justo que cada um assuma os riscos derivados das actividades de onde tira proveito. A existéncia de uma vantagem para a entidade patro- nal torna-se assim a base sobre a qual se efectua a imputacgao do acidente de trabalho. Outra teoria do risco muito difundida em mateéria de aci- dente de trabalho foi a teoria do risco profissional (). Para os seus defensores a entidade patronal deve assumir os riscos do tra- balho perigoso efectuado pelos operdrios, dado o facto de esses riscos representarem um encargo geral da industria, um custo a onerar a producdo que, como tal, deve ser repercutido nos con- sumidores do produto. bilidade pelo risco. Leis semelhantes j4 tinham sido aprovadas em Inglaterra em 1897 € nos diversos Estados dos Estados Unidos, tendo em 1921 todos leis deste tipo (G. Alpa e M. Bessone, La Responsabilitd Civile, Milio, Giuffré, 1976, p. 114). Entre nds a introdug&o desse critério em matéria de acidentes de trabalho foi efec- tuada pela Lei 1942 de 27 de Julho de 1936 que derrogou neste dominio o art. 2398 do Cédigo Civil de 1867, ainda baseado na culpa. Sobre o seu regime Cfr. Cunha Gongalves, Tratado de Direito Civil, Vol. XIII, Coimbra, Coimbra Editora, 1940, pags. 240 € segs. (®) Ao contrério da de Josserand a doutrina de Saleilles nfo se funda no art. 1384 do Code Civil, partindo antes de uma interpretagdo objectiva da palavra Saute do art. 1382 (op. cit. pags. 8 ¢ segs.). Para este autor as actividades prossegui- ‘das num interesse, as mais das vezes econémico, devem custear as suas perdas da mesma forma que receberiam as vantagens dai derivadas (op. cit., pag. 79). (*) Foram seus principais defensores Cabouet ¢ Faure (cfr. Jaillet, op. cit., p. 44), ACIDENTES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL 805 Por ultimo surge a teoria do risco de autoridade (“!). Se- gundo esta formulacao a assuncAo do risco dos acidentes por parte da entidade patronal é uma consequéncia de autoridade que esta exerce sobre o trabalhador no Ambito do contrato de trabalho. Como se pode verificar, a separacdo destas formulagdes é muito pouco nitida. E impossivel conceber 0 risco profissional dissociado do proveito ou de autoridade. Também é irreal sepa- rar o principio «ubi commoda, ibi incommoda» do risco profis- sional ou do risco de autoridade (’). Por aqui ja se pode ver a imprecisdo do risco como nexo de imputacao. 2.3.3. Consequéncias deste sistema O sistema de responsabilidade pelo risco representa uma forma mais justa de imputacdo do acidente de trabalho, permi- tindo conseguir trés objectivos (3): a) Uma maior distribuicdo dos custos dos acidentes tanto entre as pessoas como no tempo, uma vez que a sua con- sideracéo como custos de uma actividade possibilita a sua repercussdo nos consumidores através do preco dos produtos, a constituigéo de poupangas para os suportar e estimula a efectuacéo de um seguro; b) Efectua a imputacdo do acidente a categorias abstractas de sujeitos que so normalmente solventes, neste caso a entidade patronal; ©) Permite atribuir 0 custo dos acidentes ds actividades que normalmente os engendram, prosseguindo assim funcdes acessérias de prevengdo. A teoria do risco ainda se mostra, no entanto, insuficiente forma de tutela dos acidentes de trabalho. A funcdo acesséria de prevencao que prossegue vem limitar a sua protecc4o aos ris- (") Foi seu principal defensor Rouast (Jaillet, op. cit., p. 45). (@) Cfr. Moise Dahan, Securité Sociale et Responsabilité, p. 23, nota (23). (®) Calabresi, op. cit., p. 38-39.

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