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aO = g = INTRODUGAO AOS ESTUDOS LITERARIOS O nome de Erich Auerbach € familiar Aquéles que se interessam pelos estudos literérios em Be ral. Ele figura entre os mais categorizados inves- tigadores dos problemas de histéria ¢ teoria lite. ria, em nossos dias, sendo as suas obras de consulta obrigatéria a quantos desejem familiarizar-se com as modernas orientagdes nesse fascinante campo de estudos. Neste livro que a Cultrix ora oferece ao publi- co brasileiro, particularmente a estudantes ¢ pro- fessdres de nossas Faculdades de Letras, Erich Auerbach, dentro de um espirito confessadamente didético e numa linguagem expositiva clara e flu. ente, inicia o leitor nos rudimentos da pesquisa literdria, explicando-lhe 0 que é edigéo critica de textos, quais os objetivos e métodos da Lingiifsti- ca, qual a utilidade das informagdes bibliogréficas biogrdficas, qual a natureza e os Propésitos da critica estética, da histéria da literatura e da expli- cago de textos. A seguir, apés dar uma visio geral das origens das linguas romfnicas, que iré interessat particularmente aos estudantes de Filo- logia Romanica Auerbach apresenta a doutrina ge- ral das épocas literdrias, estudando, no quadro das literaturas das linguas neolatinas, as prin- cipais correntes e figuras literérias da Idade Mé- dia, do Renascimento, do Classicismo dos séculos XVII ¢ XVIII, do Romantismo e dos tempos atuais. Completa o volume um util e pormeno- tizado guia bibliogréfico, Como se vé por esta rdpida desctigio do seu contetido, INTRopuGAo sos Estupos LiTerARIos faz plenamente jus ao titulo que ostenta de vez que oferece ao estudante dos cursos de iniciacio a Teoria da Literatura e 8 Filologia Rominica, na medida e ng ordem certas, as informagdes neces- sdrias a um primeiro contacto com a problemiti- ca da Literatura. A presente edigio de Intropugio aos Estupos LirerARios, que foi criteriosamente vertida para a nossa lingua por José Paulo Paes, contou com © apoio_do Fundo Estadual de Cultura, instituido pelo de S. Paulo, o que constitui expres- siva indicago da sua importincia e do seu vali- INTRODUGAO AOS ESTUDOS LITERARIOS z Z IN CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA FUNDO ESTADUAL DE CULTURA Este livro foi editado em colaboracao com o Fundo Estadual de Cultura, da Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do Estado de Sao Paulo, sendo Governador do Estado o Dr. Roberto Costa de Abreu Sodré, Secre- tario de Estado o Dr. Orlando Zancaner, Presidente do Fundo o Dr. Péticles Eugénio da Silya Ramos, e mem- bros do mesmo Fundo os Sts. Alttedo Mesquita, Cyro José Monteiro Brisolla, Joao Barata Simoes e Osmar Pimentel. ERICH AUERBACH INTRODUCAO AOS ESTUDOS LITERARIOS Tradugio de Jost Pavto Pars 1d EDITORA CULTRIX sho PAULO Titulo do original: INTRODUCTION AUX ETUDES DE PHILOLOGIE ROMANE i Copyright by Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, Alemanha Preficio INDICE ‘Primera Pare. A FILOLOGIA E SUAS DIFERENTES FORMAS AL A edigho cca de textos B.A Lingitstica | Cs perp ten 1. Biblografia e biografin _ IL. A celica estética TIT. A histétia da literatura D. A explicagto de textos ‘MCMLXX, Direitos Reservados EDITORA GULTRIX LTDA. Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, $. Paulo, Impreso no Brasil Printed in Brazil Secunpa Parre. AS ORIGENS DAS LINGUAS ROMANICAS A Hoo» Roma e a colonizacio romana © Jatim vulgar © Cristinismo As lnvasses Tendénciss do desenvolvimento lingiistico I. Fonética TL. Morfotogi TI. Voesbuilério Quadro das Mioguas rominicas rt 18 2 38 a & sews oy ‘Tencema Parte. DOUTRINA GERAL DAS EPOCAS LITERARIAS A. A Tdade Média I. Observagdes preliminares Ti, A literatura francesa € provencal TUL. A literatura italiana IV. A literatura na Peninsula Thética B.A Renascenga 1. Observagées preliminares II. A Renascenga na Tilia TIL. 0 séeulo XVI na Franca TV. 0 século de ouro na literatura espanhola C. Os tempos modernos L.A literatura elésica do séoulo XVII na France I, 0 sécalo XVIII TIT, Romantismo YV. Vista de clhos ao sltimo século Quanta Parte. GUIA BIBLIOGRAFICO Indice analitico 101 10 132 142 48 138 166, 178 SNBs mm PREFACIO Bite livro foi escrito em Estambal, em 1943, com a fina Tidade de oferecer aos meus estudantes turcos wm quadro geral que thes permitisse compreender melbor a origem e @ significagio de seus estudos. Isso acontecen dusame a guerra: ex estava Jonge das Biltecs enropéias e norte-americanas; naa tinha quate nenbum contacto com meus colegas no estrangeito, ¢ facia muito tempo que mio lia nem livros nem revistas recém-publicados, Atualmente, encontrome assoberbado por outros trabalkos e pelo ‘ansino e no posso cuidar de rever esta introducdo. Diversos ami (gos que leram o manuscrito créem que, mesmio como esta, poderd Ser itil; todavie, rogo aos leitores eriticos que, ao examiné-lo, Tembrem-se do momento em que foi escrito ¢ da findidade a que se destinava, Essa findlidade € que explica, outrossim, cerlas par- ridades do plano, como, por exemple, o capitulo acérea do M. B. Schalk, meu colega da Universidade de Colénia, apon- tox-me alguns erro: no texto e teve 4 bondude de complelar a bibliografia; agradeco-lhe cordialmente por isso. Néo quero deixar de exprimir aqui minba profunda gratidao aos meus antigos amigos @ colaboradores de Estambul, que me ansiliaram por ocasiéo da primeira redacio: a Sra. Siheyla Bayrev (que féz a tradusao para © turco, publicale em 1944), a Sra, Nesterin Dirvana e 0 St. Maurice Journé. State College, Pensilvania, margo de 1948. Enicn AUERBACH SEGUNDA PARTE AS ORIGENS DAS LINGUAS ROMANICAS A. ROMA EA COLONIZACAO ROMANA Roma foi uma cidade fundada pelos latinos, tribo indo-ger- miinica que penetrou na Itélia por ocasiio da grande invasio indo- -germanica da Europa. No curso de um desenvolvimento varias vézes secular, a cidade adquiriu hegemonia sobre todos os povos que habitavam a peninsula dos Apeninos: populacio bastante cal- deada, visto que, sobre uma camada de pré-indo-europeus, indo- ~eutopcus de diferentes grupos se tinham estabelecido. Ao lado de parentes relativamente préximos dos latinos (os itilicos do grupos osco-timbrio), hhavia ao sul colénias gregas; em varias tegides, sobretudo na atual Toscana, viviam os etruscos, que eram duma camada pré-indo-européia; ¢ no vale do Pé, a0 norte da pe- ninsula, ‘os celtas ou gauleses. E facil compreender, diante déste quadro assaz sumirio, que a conquista e assimilacio de todos ésses Povos durou longo tempo: foi ela favorecida, desde seus primérdios, Pela excelente situacio estratégica e comercial de Roma. Na primei- ta metade do século III a.C, Roma dominava téda a Italia, com excecio do vale do P6, onde os gauleses permaneciam indepen dentes: tinha-se ela tornado uma grande poténcia na bacia ‘oci- dental do Mediterraneo, e como tal, uma rival perigosa da rica cidade comercial de Cartago, fundacio fenicia na costa africana. A luta entre as duas cidades rivais dutou sessenta anos; por volta do ano 200, decidiu-se em favor de Roma, que passou a ser, desde entGo, senhora incontestada da bacia inteira. A Sicilia, a Sardenha, a Cérsega, uma grande parte da Espanha e, a pouco € pouco, o vale do P6 também, foram submetidos ao seu dominio; durante os dois séculos que se seguitam, 0 poderio romano se 43 infiltrou, primeitemente no resto da Espanha e na parte meridio- al da Franca (chamada nessa €poca de Gilia transalpina) ¢, a seguir, por volta de 50 2.C., nas suas regides centrais ¢ seten- trionais. Por téda parte, os romanos encontraram uma situacio nica e politica bastante complicada e por téda parte lograram, paulatinamente, unificar e assimilar os. diferentes povos. Pela mesma época, quer dizer, durante os dois séculos que se segui- fam as guertas contra Cartago, a situacio politica arrastou os romanos também para o leste do Meditersineo, onde a ordem estabelecida por Alexandre o Grande e por scus sucessores se tinha Tentamente desagregado; Roma alcancava assim dominar o que €ntio se denominava orbis terram, o mundo conhecido. ‘Toda- enguanto as conquistas ocidentais eram rematadas pela do- inasio politica, bem como cultural e lingiistica, 0 Oriente, sob a influéncia da civilizacio grega, a mais rica e a mais bela da Antiguidade, embora se submetesse & administragio romana, per: manecia inacessivel & penetracio cultural; continuava grego © exer- ia mesmo uma influéncia profunda sobre a civilizagio dos con- quistadores romanos. Desde entio, 0 império teve duas linguas oficiais, 0 latim ¢ 0 grego, © tornou-se herdeito e protetor da cultura grega; mesmo em Iatim, as cigncias, as letras ¢ a edu- cacio se modelaram pela forma grega. Isso constituiu uma mu danca profunda na vida dos romanos, que haviam sido, até entio, camponeses, militares ¢ administradores; e tal mudanga coincidia com ums alteracio fundamental de sua organizagio politica, Roma tinha sido uma cidade, com uma organizacio oligirquica, como quase tédas as cidades independentes da Antiguidade; ésse quadro servia cada vez menos 2 uma administragio de tal_ma- neira vasta, Merc de uma série de revolucées quase ininter- uptas, que se prolongaram por cérca de um século (133 2 31), Roma se transformou em monarquia e a cidade se tomou, pot ‘sua constituicio, aquilo que ja era de fato: um império, A mo- arquia alargou ainda mais as fronteiras da. dominagio romana: vastos territérios na Germania, nos Alpes, na Gri-Bretanha, e as regibes a0 derredor do curso inferior do Danibio foram conquis- tadas sob os imperadotes; entretanto, no conjunto, a politica dos imperadores tendia mais para a estebilizagio do que para a ex- Pansio do poderio romano. A partir do fim do século II, essa larefa se tomou cada vez mais dificil: © impétio, desde cntio, se colocou francamente na defensiva; por razbes acérea dis quais 4 muito se discutiu, seus recursos se exauritam, enquanto a pressio do exterior cresceu, sobretudo do lado dos germanos, a0 notte, € dos partas, a leste. A luta, entretanto, foi jonga e dura; depois das catistrofes do séulo III, Diocleciano e Constantino (primei- fo imperador cristio) logtaram, pela iltima ver, reorganizar a administragio ¢ consolidar as fronteiras; no foi senio no século V que a parte ocidental do império, com a antiga capital, cain definitivamente (476); 0 império oriental, cuja capital foi Cons- fantinopla, se manteve ainda durante um milénio, até a conquis- fa tarca no século XV. Quanto so ocidente, a queda do impé& tig nfo pds fim A influgacia cultural romana; esta estava por demais enraizads, A lingua latina, a lembranga das instituigbes politicas, juridicas © administrativas romanas, a imitaco das for- mas lterdrias e artisticas da Antiguidade sobreviveram; até nos tempos moderns, téda reforma, todo renascimento da civiliza- ‘sf0 europtia se inspirou na civilizagio romana, que representava, para a Europa central e ocidental, a totalidade da civilizagio an. tiga; pois tudo quanto se podia saber sobre a Grécia antiga chegou 4 Europa, até 0 século XVI, por intermédio da lingua latina, Os romanos nio sio uma nagfo ou um povo no sentido moderno dessas palavras; 0 “povo romano” deixou bem cedo de ser uma nosio geogrifica ou racial para tornar-se um temo juridico que designa um simbolo politico e um sistema de govér. no. Isso € facil de compreender: os descendentes. dos habitantes de uma pequena cidade nfo bastam para conquistar € governat todo um mundo, e 0 que se chamou mais tarde de “os romanos" foi um amilgama de populacdes diferentes, sucessivamente roma niizadas. Originitiamente, Roma fora uma cidade em que cida- dios com plenos direitos civis, outros sem direitos politicos, csctavos, coabitavam, como eta 0 caso na maioria das comunas da Antiguidade. Subseqiientemente, as revolugdes e as _conquis. tas, com alargarem mais e mais 0 quadro dos que eram “cidadios Fomanos", destrufram pouco a pouco a antiga unidade municipal, que no passava por fim de uma ficgio, Ji nos ciltimos tempos da repiblica, quase todos os habitantes livres da Italia eram cida- ios romanos; quando 0 exército comecou a ser recruiado entre 5 provincianos, 0 titulo de civis romaus se disseminon cada vez mais sob a monatquia, le se separou inteiramente de sua base geogsifica: os provincianos de tédas as partes do império 45 ‘© adquiriam e no século IIL foi éle conferido, 20 que parece, ‘a todos os habitantes livres do império. Gregos, geuleses, espa- nhdis, africanos, etc. desempenharam papel de relévo nas Letras; apés 0 estabelecimento da monarquia, provincianes.entravam para © senado € alcingivam os mais altos cargos; a maior parte dos imperadores, durante os siltimos séculos, nio foi de italianos. Os generais que na derradcira crise tentaram defender 0 império con- tra os germanos ram éles proprios, na sua maioria, de origem getminica; a0 pass que 0s primeiros conquistadores _germinicos dda Tilia faziam com que thes fOssem conferidos, pela cétte de Constantinopla, titulos que os enquadrassem no sistema romano. ‘Mais tarde, a partir de Carlos Magno, muitos reis alemfes vinham a Roma fazer-se coroar “imperador romano"; éste titulo, simbolo da dominagio universal, s6 desaparecen em 1803, na crise napo- edna, ‘Se 0 térmo “povo romano” no € um conceito racial, inclui, no obstante, alguimas qualidades da antiga raga latina, que torna- ram possivel a formacio désse império tornado modélo e simbolo do poderio politico e dos métodos de govérno. Tais qualidades, disseminadas ¢ infiltradas por uma vigorosa tradicio, nos dife- rentes grupos de homens que, mudando de gerasio para geraci constitufram a classe reinante do império, sio, sobretudo, de ordem administrativa, juridica © militar. Roma nio deve seu podetio a uma conquista ripida; durante dez séculos, de etapa em etapa, sofrendo reveses tetriveis e revolugdes sangrentas, 0 povo roma- no realizou uma tarefa acérca da qual nio tisha qualquer divida, desde os seus primérdios, © poder-seia pensar numa seqiéncia de acasos, se cada vez, em condigics as mais diferentes, por vézes cm situagées em que tudo parecia estar perdido, a superioridade poli- tica do génio romano nao se tivesse revelado de maneira incon- testivel. Os romanos nao quiscram dominar 0 mundo; seu desti- ‘no 95 atrastou a isso malgrado seu. A tenacidade, 0 bom. senso, ‘uma coragem sustentada ¢ fria, um conservantismo extremo nas formas, aliado a uma capacidade de adaptagio que no recuava em face de neshuma revolugio fundamental, um instinto. divi- nat6rio para o ponto importante de uma situagio complicada — tais fo, a meu ver, as qualidades principais que os Ievaram até onde les chegaram € que puderam contrabalangar 0 efeito de eros inu- meriveis e situacdes peculiares, de uma corrupcio por vézes enor- 16 me € de contendas interiores quase ininterruptas até o fim’ da repiblica, Por causa da cstrutura peculiar do Estado romano, de sua base cada vez mais jutidica ¢ ideolégica ¢ cada vez menos racial © geogrifica, a colonizagio romana se distingue claramente da maior parte das colonizacées anteriores e posteriores, por exemplo da dos germanos. A colonizagio romana foi uma “romanizagao”, vale dizer: os povos submetidos se tornaram a poco e potco romanos. Embora fossem amitide cruelmente explorados pelos funcionirios € pelo fisco, conservaram, em geral, suas terras, suas cidades, scu culto e mesmo, freqiientemente, sua administracio local; como nio cra um povo fvido de terra que os havia sub- metido, a colonizacio niio se féz por intermédio de colonos ro- manos que se apoderassem do pafs; “coldniss romenas” que tais no foram fundadas senZo cm casos relativamente raros, por razOes politicas © militares especiais. Na imensa maioria dos casos, a romanizagio se efetuava lentamente e de cima pata baixo. Ofi- ais da guacnicfo, funcionétios, negociantes, vioham estabelecer-se nos centros principais do povo submetido: tratavase de romanos ‘ou de pessoas anteriormente romanizadas. As escolas, os estabe- Tecimentos de recreacio, de esporte, de luxo, um teatro, os seguiams © centro principal se convertia numa cidade. A lngua da ad- ministragio ¢ dos altos negécios se tornava o latim; dessarte, 0 prestigio da civilizagio romana eo interésse cooperavam para fazer com que o latim fésse aceito, em primeiro lugar pelas classes elevadas do povo que, para facilitar a carreira de seus filhos, os enviavam as escolas romanas; a arraia-mitida as acompanhava © uma vez tornada romana a cidade, 0 campo, que mais ainda do que hoje dependia da cidade central, se tomanizava também, conquanto mais lentamente; tal proceso durava por vézes séculos. ‘A unidade econdmica € administrativa do impétio favorecia seme- Thante desenvolvimento; mesmo 0s cultos se aproximavam uns dos outros; os deuses locais eram identificados a Jipiter, a Mer- ciirio, a Venus, etc. E verdade que, na bacia oriental’ do Me diterrineo, a lingua comum permanccea sendo 0 grego, que de sempenhava tal papel havia muito tempo; sew prestigio foi talvez superior 20 do latim. Mas nas provincias ocidentais, a lingua Tatina destruin a pouco e pouco, até os tiltimos vestigios, as dife- rentes linguas independentes em uso antes da conquista romana; na maior parte dessas provincias, o latim se manteve defi a mente: sio aquéles paises chamados rominicos, ou, conforme um nome que aparece pela primeira vez em textos Iatinos de entre 330 © 442, a Rominia, Esta abarca a peninsula ibésica, a Franga, uma parte’da Bélgica, o oeste e 0 sul dos paises alpinos, a Itilia ‘com suas ilhas, e por fim a Rumania, No’ que se sefere a esta filtima, foi o Gnico pafs da Europa oriental definitivamente roma- nizado, € 0 foi muito mais tarde que os outros paises e em con- digGes ‘especiais de que falaremos brevemente. — Cumpre acres- centar a lista de paises rominicos da Europa as colGnias trans- ocednicas que ésses paises fundaram, mesmo que tais colénias tenham adquirid mais tarde a independéncia politica, pois seus hhabitantes continuam a falar a lingua da nacio colonizadora. A se nimero pertencem os paises americanos colonizados pelos ‘espanhdis e pelos portuguéses, € o Canadi francés, Em todos asses pafses, europeus ¢ transoceinicos, falase uma lingua neo- latina ou romanica. B. O LATIM VULGAR Téda gente pode fazer a observagio de que escrevemos de forma diversa daquela por que falamos. Numa carta. familiar, © estilo se aproxima por vézes da linguagem falada; no momento fem que se escreve a estranhos, © sobretudo quando se exteve ata o piblico, a diferenca se’ tora muito mais acentuada. A escolha das expresses & mais cuidada, a sintaxe mais completa € mais légica; as locucdes familiares, as formas abreviadas, espon- tineas e afetivas que abundam na conversicio, tornamse ara tudo aquilo que a entonagio, a expressio do rosto © 0s gesios dio a compreender quando se fala e se escuts, 0 texto exctito deve complementar por via da precisio e da coeréacia do estilo. Essa diferenca entre o falar € 0 texto escrito foi muito maior muito mais consciente na Antiguidade que nos dias de hoje Hoje, aspiramos a escrever 0 mais “naturalmente” possivel; é verdade que a maioria das ciéncias, com sua terminologia especial, constitui excegio, e € yerdade também que parte dos grandes poctas modernos, sobretudo os grandes liricos do século passado, escre- ‘eram seus poemas num estilo extrememente seleto e refinado, Fastante distanciado da linguagem corrente; todavia, 20 lado déles, existe uma arte literiria bem mais divulgada, comumente chamada de “realismo", que procura imitar a lingua falada, esfor 48, ‘g2se por sugerit ao leitor as éntonagdes € os gestos, ¢ utiliza mes- ‘mo 05 dialetos e as gitias; e que faz tudo isso no sbmente em obras cémicas mas também, ¢ sobretudo, quando se trata de temas tré- gcos € muito sérios; basta pensar no romance moderno. Ora, a8 coisas se passavam de modo muito diverso na Anti- guidade.’ Jé fiz mencio, no capitulo precedente, i doutrina dos diferentes generos de estilo de que era mister servirse para cada enero literdrio; essa doutrina, elaborada em todos os seus porme- fhores por uma longa tradicio cujas origens remontam aos escri- tores gregos do século Va.C., no admitia o uso da Kingua falada no estilo “baixo” da comédia popular, do qual pouca coisa chegon até nés; no testante das obras literirias, tendia-se, nio fat a linguagem falada de todos os dias, mas, bem 20 con- a dela afastar-se, © latim que os alunos do curso se cundirio aprendem hoje & o latim literirio da época durea da literatura romana; 0s modelos de estilo que Ihes sio recomen- ddados compreendem, em primeiro Iugar, 0 escritor Marcus Tullius Cicero (106-43 a.C.), célebre por seus discursos politicos © judi- iitios, seus tratados actrea da arte oratéria e Filosofia, e suas cartas, ¢ o poeta Publius Virgilius Maro (71-19 a.C.), que escre- Yeu a epopéia nacional do impétio romano, a Eneida, ¢ que na dade Média passava, devido a uma de suas poesias bucblicas fem que celebrava_o nascimento de uma crianga miraculosa, por jum profeta do Cristo. Bsses autores, “seus pares, escreviam tum estilo paramente literirio — cheio de matizes, € bem verdade, pois Cicero, por exemplo, se serve is vézes, em suas cartas, de tum estilo familiar; trata-se, porém, de uma familiaridade elegante € artistica. Em todo caso, o latim que escrevem esti muito dis- tanciado da linguagem cortente. Todavia, o latim que serviu de base as diferentes aguas romfnicis que thes constitui a forma originisia, aio foi ésse latim literdtio; foi, como & muito natural, a lingua falada corrente. Para designar ése latim falado, os eruditos se servem do térmo “Iatim vulgar". Nio foram os eruditos modemnos, € verdade, gue inventaram a expressio; na baixa Antiguidade, ¢ nos primei- 10s séculos da Idade Média, designava-se a linguagem do povo, por oposicéo a linguagem literiria, como lingua “ristica” ou “vulgar” (lingua latina rustica, vulgaris); e, de igual mancira, utilizou-se 0 térmo, durante longo tempo, para designar as_ pr pias Tinguas rominicas; a lingua materna de um italiano, de 49 tum espanol, de um francés da dade Média foi, longo tempo, conhecida por “lingua vulgar”; Dante dea a um de seus escritos, onde fala da mancira de compor obras literirias em lingua ver- nicula, o titulo de De valgari eloguemtia; até o século XVI, vale dizer, até a Renascenga, tal maneira de designar as linguas romd- niieas cra corrente, ¢, de fato, elas nfo sio senfo a forma atual do desenvolvimento do latim vulgar. ‘Uma das nocées fundamentais da Filologia rominica € a de que as linguas romnicas ow neolatinas se desenvolveram do lati vulgar, “‘Tentemos, agora, descrever de maneira um pouco mais exata 0 que isso quer dizer. Que € 0 latim vulgar? £ 0 Iatim falado — portanto, nfo se trata de algo fixo e estivel Quanto as diferencas locais, elas foram, na maioria dos paises, bem mais consideriveis antes do advento da imprensa e do ensino obtigatério. Hoje, os jornais, as publicagies oficiais e 0s ma nmuais de escola priméria, escritos na lingua literéria comum do pals inteiro, levam a (Oda parte a consciéncia ¢ © conhecimento dessa lingua comam; a leitura de tais impressos, tornando-se acessivel 2 todos, padroniza nos espitites a imagem da lingua nacional ¢ contribui para minar, pouco a pouco, as diferencas Jocais ou dialetais, Estas subsisiem, todavia; mantém-se mesmo apesar do cinema ¢ do ridio; ram, porém, bem mais profun- das antes do advento da imprensa. Imaginem-se, agora, as dife- engas locais do latim vulgat: dle era falado na Mélia, na Gélia, na Espanha, na Africa do Norte ¢ em vitios outros paises; ¢ em cada ‘um désses paises, tinhase superposto a uma outra. lingua, a Lingua ibérica ow céltica, por exemplo, que os habitantes fala: vam antes da conquiste romana; superpés-se cada ver, para servit- -me do térmo cientifico, a outra lingua de substrato. A Tingua de substrato, com cessar pouco a pouco de ser falda, deixara uum residuo de habitos articulatérios, de processos motfoldgicos sintéticos que 05 novos romanizados faziam entrar na. lingua Jatina que falavam; conservavam. Ges, outrossim, algumas_pala- vras de sua antiga lingua, fésse posque estivessem profunda- mente enraizadas, f0sse porque nio existissem equivalentes em Iatim; € 0 caso, sobretudo, de denominagées de plantas, instra- ‘mentos agricolas, vestimentas, comidas, ete. — em suma, de tédas as coisas que estio cstreitamente ligadas as diferengas de clima, 0s hibitos rurais ¢ is tradig5es nacionais. Enquanto 0 impétio Toman se manteve’intacto, a comunicagio permanente entre as 50 i diferentes provincias — 0 comércio no Mediterrinco era muito Florescente — impedia uma separagio linglifstica completa; as pessoas se compreendiam mituamente. Mas depois da queda de- finitiva do império, a partir do sé&ulo V, as comunicagées se tornaram dificeis ¢ raras, 0s paises s¢ isolaram, ¢, cada vex mais ‘cada regio teve seu desenvolvimento peculiar; como, ‘0. mesmo tempo, a cultura litericia, que teria podido ‘continuar a servit de vinculo entre as diferentes. partes do mundo romanizado, cafa em extrema decadéncia, nfo restava mais nada para contrabalangar ‘© progresso do isolamento lingiistico, para 0 qual cooperavam, ademas, a diversidade dos acontecimentos ¢ desenvolvimentos his. t6ricos nas diferentes provincias, Isso no que respeita A diferenciagio local do Iatim vulgar; consideremos agora a diferenciagio temporal. As linguas vivem com ‘0s homens que as falam ¢ mudam com éles. Cada individuo yue fala, cada familia, cada grupo social ou profissional erin formas linglifsticas novas, das quais uma parte entea na lingua comum da nacio; uma nova situacio politica, uma nova iaven- io, uma nova forma de atividade (0 socialismo, © ridio, os esportes, por exemplo) fazem surgir novas expressbes e, por vézes, Pei linge eee pe mdifia 4 ecru geal da linguagem. Cada lingua, portanto, se modifica de geracio Um exemplo bem conhecido na ‘Turquia é forne- ido pelos judeus espanhéis que ali chegaram hi quatro séculos € gue continuaram, durante todo ésse perfodo, a falar espanhol; fentretanto, como sett contato com a Espanha se tinha interrom- ido, sua lingua se desenvolveu de maneira muito diversa da da Espanha; conservou, mesmo, algumas particularidades arcaicas que (© espanhol de hoje nto mais possui, de sorte que os especialistas estudam 0 judew-espanhol para reconstrufrem 0 estado lingiistico do espanhol no séulo XV. Ora, compreende-se ficilmente 1 lingua falda onde muito mais depressa que 2 Kingua escrita ¢ literaria; esta iltima € 0 elemento. conservador ¢ retardatitio do desenvolvimento. A lingua literitia tende a ser correta; isso quer dizer que cla tende a estabelecer, de uma yee por t6das, © que seja certo ¢ etrado; a ortografia, 0 significado das palavcas fe dos torneios, 2 sintaxe da Iingua’literitia obedecem a uma estivel, algumas vézes mesmo a uma regulamentagio oficial; ela hesita em seguir a evolucio lingiistica, que € em petal (existem excegdes) obra gemiconsciente do povo ou de 51 alguns grupos do povo. A lingua literéria 6 adota, em regra _geral, a5 inovagdes lingiisticas muito tempo depois de seu ingres- 50 no uso corrente da lingua falada, Em nossa época, isso se ‘modificou um pouco, porque muitos escritores procuram assenho- sear-se 0 mais depressa possivel das inovagGes populares € mesmo ultrapassilas com suas préprias.criagSes; trata-se, porém, de um fendmeno recente. Na Antiguidade (e em todas 2s épocas forte- mente influenciadas por idéias antigas sbbre a. lingua literéria), esta foi extremamente conservadora; hesitava longo tempo em. seguit 0 desenvolvimento popular, ¢ na maioria dos casos nio © seguia absolutamente. Lembrese aqui 0 que eu jé disse ante- riormente (p. 27) acérca da critica estética da Antiguidade: ela considerava 0 belo como um modélo estivel, perfeito, que nio podia perder parte de suz beleza por via de uma mudanca; isso se aplicaya, bem cntendido, a Kingua literéria também. O- latim falado (oa vulgar) mudou, por conseguinte, mais depres- sa ¢ mais radicalmente que 0 latim literitio. As tendéncias con- servadoras nio conseguiram proteger inteiramente o Iatim literi- rio de téda mudanca; de também se modificou no decurso dos séculos, Todavia, essas modificacdes sio insignificantes quando ‘comparadas com as alterecSes profundas que sofreu o latim vulgar, © que, juntamente com as diferenciagdes locais, constituiram pouco 2 pouco o francés, o italiano, 0 espanhol, etc. Os sons, as formas, ‘65 significados da maioria das palavras permanecem’ inalterados ‘no latim litericio das épocss posteriores; smente a estrutura da frase se alterou considerivelmente; 0 passo que, no latim vulgar, 4 fonética, a morfologia, 0 emprégo ¢ 0 significado das palavras e, bem entendido, a sintaxe, ficaram inteiramente subvertidos. Se se desejar estabelecer de mancica suméria uma classificasio das formas ‘mais importantes do latim, podem-se distinguir: 1) 0 latim lite- ratio clissico, cuja época de apogeu vai aproximadamente de 100 aC. até 100 d.C. e que foi imitado, como o veremos mais tarde, pelos humanistas da Renascenca; 2) 0 latim literitio do. declt- fio da civilizaco antiga e da Tdade Média, chamado, em geral, “baixo Iatim” ou latim da Igreja, porque era, ¢ 0 € ainda, a ingua da greja catélica; 3) 0 latim vulgar, que é o Jatim falado de t6das as épocas da lingua latina, e que evolui gradualmente até suas diferentes formas neolatinas ou rominicas. Da exposicio que acabemos de fazer acérca da diferenciasio local € temporal do latim vulgar, verificase que éle nfo € uma ingua, mas antes uma concepcio que compreende os falares mais cd diversos. Um camponés romano do século IIT aC. falava de ma- rncira muito diferente da de uim camponés gaulés do século III d.C. ‘6, no obstante, ambos falavam o latim vulgar. Pode-se aprender 0 latim literério, tanto o latim cléssico quanto o baixo latim; no se pode, entretanto, aprender o Iatim vulgar; pode-se tio simente es- tudar uma ow outra de suas formas ou tentar verificar quais quali- dades ou quais tendéncias sZo comuns a tédas as suas formas conhe- ‘idas. No fundo, € a mesma coisa para tédas as linguas vivas ¢ fae Jadas, Um turco que aprenda o alemio aprende 0 alemfo atual tal como € escrito ¢ tal como o falam as pessoas cultas das grandes ci- dades; mas isso nio todo 0 alemiio; nao inclui 0 alto alemio me- dieval do século XII ou do século XIII, nem o alemio da Re- nascenca; nfo inclui tampouco os numerosos.dialetos atualmen- te falados na Prissia oriental, na Reninia, na Baviera, na Suica, na Austria, etc. © estudo de uma lingua falada, no sew conjun- to, comporta longas e dificeis pesquisis, para as quais se tem necessidade de uma formacio lingiiistica especial. Tal estudo se torna muito mais diffcil no caso de uma lingua da Antiguidade que de uma lingua moderna; em primeiro lugar porque, confor- ‘me acabo de explicar, a diferenca entre a lingua literati e a lin- gua falada era maior antes do que hoje; ofa, possuimos um ni mero bastante grande de documentos da lingua literiria da Anti- ‘guidade Iatina, mas faltam-nos quase completamente fontes para estado da lingua falada; s6 por obra do caso foi que se conser varam alguns vestigios. Nao se cogitava de fixi-la para a poste- Fidade, porque nao era ela julgads digna disso, ¢ nio se dispunha de instrumentos exatos para tanto, mesmo que se quisesse fazé-lo; ‘no existiam entio os discos nos quais fixamos hoje 2s linguas € dialetos falados que nos interessam, E a dificuldade primor- dial, bem entendido, € que nio se fala mais 0 latim vulgat. Po- de-se estudar a lingua falada dos franceses, dos alemies ou dos ingléses, pelo menos em tédas as suas formas stualmente em uso, como 0 fazem aquéles que preparam os atlas lingiisticos — o latim ‘vulgar. subsiste sémente nas linguas rominicas, que sio. apenas, por assim dizer, svas netas, suas descendentes longinquas. Toda. via, 0 estudo comparado das linguas rominicas é€ nossa fonte mais rica paca o conhecimento do latim vulgar; © que elas possuem em comum, tanto no que respeita & evolucio dos sons como as formas morfolégicas ¢ 10 vocabulitio, ov, enfim, a estrutura da frase, pode ser atribuido, com bastante vverossimilhanga, a0 latim vulgar 53 das épocas em que a diferenciacie lingiistica das provincias do impétio nio havia ainda feito progressos suficientes para impedir compreensio. miitua ¢ 0 sentimento de que se falava uma sé lingua, Mas possuimos também algumas fontes antigas e diretas do latim vulgic. Os falares vulgares, dos quais. se encontram tragos nas linguas rominicas, sio {reqiicntes nas coméias do poeta Plauto (cérca de 200 a.C.); encontram-se por vézes mas cartas de Cicero; um escritor contemporineo de Nero, Petsénio, compos um romance de que a parte que se conservou contém a descrigio sati- rica de um festim de novos ricos a falarem o jargio dos homens de negicios, jargio repleto de vulgarismos; sobre 0s muros de Pompéia, cidade soterrada pela erupcio do Vesivio em 64 d.C. fe emumada gragas as escavagies dos tiltimos séculos, encontrou-se grande nfimero de garatujas que, desprovidas de ambigio. litecé- ria ¢ amide chulas, dio uma imagem fiel, se bem que incom- peta, da lingua falada da poca; encontram-se também vulgatis- ‘mos nos escritos que logracam chegar até nés_acérea de assuntos técnicos € priticos, como por exemplo sobre arquitetura, agricul- ‘ura, medicina ou medicina veterinétia, pois aquéles que os escre- veram no cram, as mais das vézes, pessoas que possuissem uma formacio literétia, © 0s assuntos sdbre que escreviam forgava-os por vézes a servirem-se de térmos e locugées da lingua corrente. Durante 0 petiodo de declinio da civilizacio antiga, as fontes do latim vulgar tornam-se mesmo um pouco mais abundantes, porque mmitos escritores désse period utilizam vulgarismos malgrado seu, orquanto sua educacSo literiria era insuficiente pata permitie-Ihes escrever um cstilo puro. Encontram-se também muitas formas valgares os escritos de alguns pais da Ipeeja, nas tradugSes latinas da Biblia, nas inscricBes de téda espécie, sobretudo funerinias, es- palhadas por tédas as provincias do império, Chegou até nds ‘uma relacéo da viagem que uma religiosa, provivelmente origind- tia da Franca meridional, fez & Palestina, provivelmente no século VI (nem 2 origem da religiosa nema época da viagem puderam ser estabelecidas com exatidio); essa narrativa, Peregrinatio Aetbe- ride ad loca sancta, revela a cada momento as formas da lingua falada; 0 mesmo acontece na Hidria dos Francos, escrita em fins do século VI pelo Bispo Grégoire de Tours. Outros, testemunhos Provém dos escritos dos gramiticos; ciosos de salvar a boa tradi- $40, muito descontentes com a decadéncia do estilo elegante, éles compunham manuais da linguagem correta, ¢ as formas que citam, 5e condenando-as como ettadas, revelam o que era cfetivamente a pritica oral. Com todos ésses testemunhos, a par daqucles que hos fornecem as linguas rominicas, podemos reconstituie uma ima- gem do latim vulgar que, embora bastante incompleta e sumiria, permite-nos estudarlhe as tendéncias e as qualidades principais. Mas, para continuar nossa exposicio do desenvolvimento das Hinguas romfnicas, cumpre-nos falar aqui dos fatos historicos que tiveram uma repercussio profunda sébre a civilizagio dos povos romanizados, ¢, por conseguinte, sObre suas linguas, igualmente: 4@ expansio do Cristianismo ¢ a invasio dos germanos, C. O CRISTIANISMO Os judeus da Palestina viviam, desde os ltimos tempos da fepiblica, sob a hegemonia romana, Muitos déles nao residiam , pa Palestina; viviam antes nas grandes cidades do impétio, sobretu- do em sua’ parte oriental. Mas em téda parte, a miioria dos judeus se conservava separada do restante da populacio, recusan- do-se 4 helenizacio ow & romanizacio ¢ conservando, com um zélo feror, suas tradigdes religiosas. Essas tradicSes, conquanto houves sem’ sofrido em épocas anteriores diversas influéncias estrangeicas, tinham-se por fim cristalizado numa forma que contrastava de ma. ‘neira chocante com os hibitos de seu meio ambiente e que susci- tavam neste, 20 mesmo tempo, 0 desprézo, 0 dio, a cutiosidade € 0 interésse. O culto dos judeus parecia estranho, tanto do ponto de vista da forma quanto do fundo. Extetiormente, les se distinguiam de seu ambiente pelo costume de circuncidar os vardes © por seus preceitos extremamente rigidos no que concernia 4 alimentagio, preceitos que tornavam imposstvel qualquer vida em comum com éles; no que tangia a0 contetido de suas ctengas, adoravam um deus tinico que, embora nio sendo de modo algum corporal (detestavam a imaginiria religiosa, e um de seus manda- mentos principais proibia expressamente a feitura de imagens de Deus), no eta tampouco uma concepcio filoséfica © abstrata, mas uma personagem nitidamente caractetizada, professando’ predile- ‘g6cs_¢ céleras amiiide incompreenstveis, 36, todo-podetoso,. justo niio obstante, inescrutivel A rszio humana: wm deus ciumento, Ora, 0s gregos ¢ 0s romanos, ou, melhor dizendo, os povos heleni- zados ou romanizados da bacia do Meditersineo, compreen muito bem a adoragio de imagens de deuses da religiio popular; compreendiam também, pelo menos as pessoas instruidas, 0 culto de uma divindade filos6fica, sintese da razio ou da sabedoria perfcitss, pura idéia incorpérea e impessoal. Mas um deus que ‘nfo efa nem uma coisa nem outra, nem imagem concreta nem idéia filos6fica; que era um ser pessoal sem corpo, de vontades inescrutiveis, que exigia obediéncia cegn — tal concepgao Ihes ers ‘strangcira, ‘suspeita, inquietante, néles exercia, nio obstante, sobretudo na populagio grega, certo encanto sugestivo. Entre tanto, 0 ddio e 0 desprézo prevaleciam, tanto mais que os judeus esperavam o advento de um rei libertador, de um Messias, que 0 livraria da dominagio estrangeira e os tomatia, a éles ¢ a seu deus, 08 tinicos senhores do mundo, De resto, conquanto man- tendo-se separados de todos aquéles que nao féssem de sua reli ‘gio, 05 judcus nfo estavam absolutamente de acérdo, entre si, quanto i interpretacio de seu dogma, /e punham, em suas lutas intestinas, um espirito de fanatismo minucioso, que os tornava deveras antipiticos aos outros povos, em sia maioria tolerantes, ‘nessa época, cm matéria de religido, ¢ antes curiosos de novas expe- ritncias religiosis. Sobretudo 0s funciondrios romanos encarrega- dos da administragio da Palestina, inquietalos a todo momento ppelas perturbacdes de ordem religiosa cujo sentido no compreen- Giam, parecem ter detestado francamente ésse povo dificil, inassi- milivel e bravio. Nas classes dominantes dos judeus da Palestina, hhayia dois partidos opostos um a0 outro, ¢, além disso, freqiien- tes movimentos populares suscitados por profetas extremistas com- plicavam a situacio, Nos iiltimos anos do teinado do segundo imperador, ‘Tibério (1437), um grupo de homens vindos do norte do pais, gente simples © pouco instrufda, discipulos de um de seus compatriotas, Jesus de Nazaré, susciton perturbagdes em Jerusalém com procamar ‘que Jesus era 0 Messias. A simplicidade ¢ a f0rca das palavras de Jesus, seus milagres ¢ sua doutrina da caridade, impressionaram (05 espiritos, © parece que éle conquistoa, por alguns momentos, muitos partidirios em Jerusalém. Mas os dois grandes partidos, ‘embora desunidos em geral, concertaram-se contra ée; esperando, ‘com perdé-lo, atrainar todo 0 movimento; pois 0 Messias, tal como éles ¢ a grande maioria dos judeus concebiam, devia set um tei vitorioso; se Jesus sucumbisse, seria prova de que era um impostor. Portanto, fizeram-no prender, arrancaram 20 governa- 56 dor romano uma sentenga de morte, ¢ Jesus foi crucificado apés aver softido um tratamento extremamente ignominioso. Entretanto, os grupos dominantes viram suas expectativas lo- ‘gradas: 0 movimento nio foi destrufdo. Parece que, apés um momento de desespéro e desencorajamento, os discipulos mais figis de Jesus — entre les, 0 personagem que melhor se pode destacar € Simio Cefas, o futuro apdstolo Sio Pedro — recordaram-se de que He proprio havia previsto sua paisio, ¢ que a predissera como lum acontecimento necessirio, como uma parte essencial de sua missio. Visdes que thes asseguravam nfo estar Jesus morto, mas ressuscitado © clevado aos céus, confirmaram-nos em sua_crenca, ‘e uma concepsio muito mais profunda do Messias — a de Deus se sactificando ‘para resgatar 0 pecedo dos homens, encarnando-se_ na forma humana a mais humilde, sofrendo as mais terrfveis € igno- ‘miniosas torturas para a salvacio do genero humano — formou-se ro espirito déles. A idéia de um deus sacrificado nao era inteira mente nova; encontramd-la, sob diversas formas, nos mitos ante- riores; porém, nessa combinacio com a queda do Homem pelo pecado, ligada’a um acontecimento atual, sustentada pela lembran- a da personalidade ¢ das palavras de Jesus, constituiu-se numa fhova revelagio, extremamente sugestiva € fecunda, © movimento se difundiu entre os judeus palestinianos, malgrado a oposigio da ortodoxia oficial, ‘Todavia, nao teria provivelmente jamais ul- trapassado os limites de uma scita judaica se um novo personagem, ‘0 futuro apéstolo So Paulo, no Ihe tivesse dado 20 desenvol ‘mento nova e imprevista diregio, Si Paulo no era palestiniano, sim um judeu da didspora, natural da cidade de Tarso, na Cill ia, provindo, a0 que pacece, de uma familia abastada e prestigio- sa, pois ji seu pai, como éle préprio, era cidadio romano, Era um homem bem mais instraido que os primeiros discipulos de Jesus; tinha um conhecimento do mundo ¢ um horizonte bem mais Targos que 0s déles; conhecia 0 grego, como a maioria dos judeus que habitavam fora da Palestina, ¢ havia estudado a teologia judaica com um célebre professor de Jerusalém, Era muito orto doxo e estava entre os perseguidores mais encarnicados dos pti- ‘meiros cristios. Enteetanto, uma crise sibita, provocada por uma visio, abalou-o profundemente; éle se tornou_cristio e concebeu, por via de um desenvolvimento interior cujos pormenores nos ‘escapam, a idéia de pregar o evangélho a todo 0 universo — nio sBmente aos judeus, mas também 20s pagios. E verdade que, a7 nessa resolugio, éle nfo féx mais que tirar 2 conclusio inevitivel da caridade pregada por Jesus; parece, porém, que nenhum dos ‘outros judeus tornados. cristios imaginara idéia de tal mancira revolucioniria, Pois ela comportava uma separagio nitida das formas ¢ mesmo dma parte do fundo judaico. Sem dtivida, Sto Paulo conservava, do Judatsmo, a concepcio de Deus que, embora sendo espirito, portant incorpéteo, nfo era sbsolutamente uma abstragio filos6fica, mas um ser pessoal, que hevia mesmo podido encarnar-se num homem. Mas era mister renunciar a circuncisio € aos preceitos sdbre a alimentacio, ¢ Sio Paulo foi ainda mais Jonge: ensinou que tOda a religiio judaica nao era mais que uma tapa preparatéria, que sua lei se tinha tornado mula pelo advento do Messias, © que sdmente a f€ em Jesus Cristo e na catidade contavam. Uma doutrina que tal prcvocou nfo apenas 0 furor da ortodoxia judaica, mas também uma oposigio forte ¢ tenaz dos primeitos cristios de Jerusalém que, por acteditarem em Jesus Gristo como Mesias, nio queriam deixar de ser judeus fiis & lei, Mas Sio Paulo nfo era apenas um inspirado que agitava as almas ppor via de uma elogiéncia assaz pessoal ¢ extitica; era igualmente tum politico muito abil, capzz de avaliar © por em agio as fércas da sociedade, as tendéncias © as paixies dos homens; era, enfim, lum cariter to corajoso quanto flexivel, pronto a fazer face as situagées mais dificeis. No curso de uma vida de viagens deveras agitads, cujas etapas se refletem nas suas cartas € 0s Atos dos “Apéstolos, alvo da perseguicio irseconciliiyel da ortodoxia judsica, tendo sempre de contar com a atitude hesitante ¢ por vézes host dos judeus cristios de Jerusalém, com a desconfianga das autori- dades romanas, com a incompreensio, 0 desprézo ¢ is vézes a8 vvioléncias dos pagios 20s quais pregou o Evangelho, com as fra ‘quezas € desfalecimentos dos novos convertidos, logrou éle no en- tanto, com a ajuda de alguns colaboradores, fundar comunidades ristis em muitas cidades importantes do império ¢ estabelecer assim a base da organizacéo universal do Cristianismo. Durante (5 trés séculos que se seguiram, o Cristianismo, se difundiu gra- dualmente por todo o império romano, por vézes muito ripida- mente, por vézes num ritmo mais hesitante, Acabara por ser adotado por uma parte muito grande da populacio quando © Impe- rador Constantino {é-lo a seligiio oficial do império (325). As razbes désse éxito fulminante nio sio ficeis de resumir em algu- mas palavias. A antiga religifo popular dos gregos e dos roma- ‘nos nfo satisfazia mais, hhavia bastante tempo, as nccessidades taligioms do porn; os sistemas flies que_peopagsram um deismo racionalists no convinham sen a uma minoria de pessoas instruidas; e entre as diferentes religides baseadss numa revelacio istica, t8das de origem oriental, que se infiltravam por essa €poca ‘no império romano, 0 Cristianismo era a mais sugestiva por causa de sua doutrina a0 mesmo. tempo mistica e simples, ou, como se exprimiam os Pats da Igreja, a0 mesmo tempo sublime ¢ humilde; a doutrina da fé e da caridade, da queda e da redencio, que todos compreendiam, estava ligada a uma concepeio mistica do Deus que se encarnava ¢ se sacrificava; e essa concepgio se vin- culava a um acontecimento histérico ¢ concreto, a um personage também sublime e humilde, e a quem se podia amar como a um hhomem, embora 0 adorando como Deus. Cumpre acrescentar a isso que os escritos cristios fotncciam, com a ajuda da tradigio judaica, que interpretavam de modo figurativo, uma explicagio da Histéria universal que impressionava por sua unidade, sua simpli- Cidade e sua’ grandeza. As petseguigGes nfo serviam, cin suma, Seno para fortalecer a £6; era uma gléria sofrer o martiio, tanto ‘mais que se imitava, 20 softé-lo, a paixio do Cristo; muitos crentes ambicionavam uma morte que tal, forcando, por fatos e palavras provocadoras, as autoridades a condeni-los, ¢ recusando todo meio de salvar-se. Em principio, 2s autoridades romanas eram toleran- tes € evitavam as perseguigées religiosas. Mas, nos primeiros tempos, o culto cristio cevestia o cardier de um misticismo secreto; ora, todo Estado policiado destesta as sociedades secretas; tanto mais que uma parte da populacio, os judeus primeiramente, a seguir 0s sacerdotes pagios ¢ todo o comércio interessado nos sactificios, € no culto antigo, imputava 20s cristios téda 2 sorte de_ crimes ‘Outras complicagées advinham do fato de que 0s cristios se. re- ccusavam a sacrificar diante da imagem do imperador, 0 que cons- titufa a forma oficial de professar lealdade a0 govémno, Por fim, quando, mercé de suz crescente expansio, o Cristianismo ameacou tomar-se um fator importante na politica, tdda a espécie de. ins- tintos tradicionalistas, de intrigas e de, paixdes entraram em jogo, ¢ fizeram-se tentativas em larga escala para deter-the os progressos pela violencia. Quando, no coméco do século IV, a vitbria do Cristianismo se revelou definitiva, a tarefa de fixar o dogma e reorganizar 4 Tgreja se impunha, A partic “do século TI, as disputas acérca 50 da interptetagio do dogma tinham sido muito vivas; numerosas correntes filos6ficas e religiosas atravessaram 0 mundo no fim da ‘Antiguidade; 0 Cristianismo as afastow a pouco ¢ pouco, mas elas exerciam influéncia. sdbre os. te6logos tistics, multiplicando as dissensies, A estabilizacio do dogma e a organizagio da Igreja foram obras dos grandes concilios dos séculos IV © V ¢ dos Pais da Igreja; no Ocidente, os mais importantes entre éles foram Sio Jeronimo’ (antes de 350-420), o principal tredutor da Biblia em latim, ¢ Santo Agostinho (354-430) 0 génio mais poderoso do declinio da Antiguidade. Nascido pagio, mas de mie cristd, que exerceu grande influéncia sébre éle durante a sua juventude, estudou Letras e tornou-se professor de Retérica, primeiro na “Africa, sua terta natal, depois em Roma ¢ Miléo; foi nessa época de sua vida que éle veio, através de muitas crises interiores — diversas correntes filos6f ss Ihe disputavam a alma — fa abracar definitivamente 0 Cristianismo (387), a abandonar, sua itedra ea se tornar padre; 0 declinio progressivo do poderio fomano ¢ da civilizagio antiga, durante a sua vida, impressionow-o profundamente. 1 um grande escritor; suas obras — citemos seus livros sobre a Trindade, sobre a doutrina cristi, sobre a cidade de Deus, suas Confissbes, suas cartas ¢ seus sermbes — refletem © combate que entio se travava entre a tradisio antiga ¢ o Crista: nismo; dio-the uma solugio que, embora sendo profundamente cristd, utiliza todos os recursos da civilizacio antiga; ¢ criam uma concep¢io do Homem muito mais racionalista, muito mais intima, voluntarista ¢ sintética que a dos sistemas filos6ficos anteriores. Santo Agostinho morreu em 430, bispo de Hipona, a0 norte da Africa, durante 0 assédio dessa cidade pela tribo germinica dos Vindalos. Sua influéacia foi das maiores, aio sbmente sébre os contemporineos, nio sdmente sbbre a [dade Média, mas sobre t0da 1 cultura européia; téda a tradigio européia da introspecgio exspon- tinea, da investigagio do cu, remonta a éle. De resto, nem 0s concilios nem os Pais da Tgreja logearam afastar em definitive as dissensdes sobre o dogma; as perturba- (Ges © 0s cismas continuavam, Pode-se dizer que, no curso de sua Jonga histéria, 0 Cristianismo s6 teve raras épocas de calma € con- cérdia interior; desenvolwen-se € subsistiu atravessando lutas ¢ crises das mais terriveis, e creio ser mais por causa que a despeito delas que alcangon le manter por tio longo tempo sua tOrca f sua juventude, transformando-se com os homens, as. situacbes histéricas ¢ as idéias. Logrou-se todavia ctiar, durante os derta- deiros séculos da Antiguidade, uma certa unidade da Igreja do Ocidente, com Roma por centro. © bispo de Roma, sucessor do aptstolo’ So Pedro, que ali passara os ltimos anos de vida € ali sofrera o martitio, desfrutava havia muito tempo de grande prestigio; a éste se acrescentava o prestigio da prOpria cidade. Tal € a origem do papado; € Roma, cujo podetio politico nfo foi, a partic de entio, mais que um simbolo ¢ uma recordasio, adquiriu um império espiritual que, com ser espiritual, nem por isso tinha menor importincia pritica. Roms, sede do papado, se cons- tituiu num centro de organizacio; a partir dela foi que se funda- ram e dirigitam os centros provinciais de onde saicam 08 missio- nitios encarregados de converter os paises barbaros; A romaniza- Gio sucedeu a cristianizacio, que também era uma espécie de ro- manizagio. A essa mesma época € que remonta a organizagio de conventos no Ocidente (regia de Sio Bento, pot volta de 529), quer dizer, a organizacio de comunidades dos que deseja- vam ‘deixar © mundo para se consegrar inteitamente ao servigo de Deus. Os conventos tiveram grande importincia para a lizagio ocidental. No declinio da cultura antiga, foram 0 nico centro de atividade literiria e cientifica; néles era que se conser- vavam e copiavam as obras da Antiguidade, néles era que se desenvolviam as atividades que preparavam a atte, a literatura € 1 filosofia da Idade Média cristi. Mas os conventos tiveram também tarefas bem mais préticas 2 cumprit. Num mundo em ‘que, apés a queda do império romano ¢ as invasbes dos bésbaros, a nocio de dircito privado tinha quase deixado de existit, em que a violéncia individual dominava, constitulam éles um centro de paz, de asilo e de arbitragem; amitide, foram também centro econtmico: ensinavam os melhores métodos de agticultura, em- Preendiam acroteamentos, favoreciam 0s offcios ¢ protegiam os estos de comércio que tinham sobrevivido & ruina das vias de comunicagio, Encontravam-se também nos convents, certamente, téda sorte de vicios, ¢ sobretudo os vicios peculiares dessa época: a violéncia, @ avareza, a ambigio, nas suas formas mais primitivas ¢ ferozes. Mas a idéia que os inspirava foi mais forte que as imperfeigSes dos homens ¢ pode-se supor que sein sua atividade SBPZemn a afividede pritica & organizalora da Igreja em geral —, a propria idéia da civilizagio € da justica teria perecido. De tudo quanto acabamos de dizer, verificase que a Igreja cristi 61

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