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VITOR MANUEL DE AGUIAR E SILVA ANTE A Teoria da Litera ratu ra veviela ¢ eomewiate PACOROAOA DH LETRAS Dm Comme Il A CRIACAO POETICA 1—A _natureza € 0 significado do acto criador do a_i conto “dene a : logos e criticos e por parte dos ptdprios poetas, Benes 2 BM © acto criador apresenta-se como um facto racionalmente explicével; para outros, aparece como insondvel mist&. E Ho, cujas rafzes se perdem no mais recdndito da alma NY$ nartontl humana ou no impenetrivel dos segredos divinos. pe Pretender fixar as linhas de forca mais profindas e =~” mais secretas do processo criador & empresa aleatéria, mas possufmos clementos que permitem pelo menos um conhecimento descritivo deste mesmo processo: as refle- xSes € confisses dos préprios criadotes, as revelagdes prepara muitas vezes pela anilise oa spas obras potticas, as cogitacdes de estetas e de sofos, - os Bei fornecidos pelas ciéncias psicolégicas, Uma [os ond = forte ambiguidade ¢ ico segredo, porém, hio-de [zy pupirert. oe a ge us lagen ogre, postin, Mode i gotta. Hats apni ap |” pouco o grande esteta inglés para o qual ain Harold Osborne chamava a atengio; «todos os fenémenos —- 1 — Ursa Pane, AAAS Ween ound Ae ey, Sal prianpe teow? de RON DA HITRNANHINA cameteriitions da inypiragio allo deserltoy em termos idanticns pelos bony e pelos mans artivtay e nenhuma investigaglo psleoldglea, por mais penetrante que seja, conseguly diseernie ay diferengas entre ov procenos men tals que acompanham a erlaglo de uma obra mestra ¢ ax inyplragdes de um aprendis de tereeina ordems (1), de Hor primeiro lugar, vamos analisar um aspecto fundamental da eriagiio podtjea e que se relaciona, pode mos dizer, com a ontologia”de vols a obra literdria, Awe ao sdeulo NVI consideraose que toda a eriagiio ogtica agsenta na | wine uma realidade, de uma nat tera interior on exterior, Na obra de Plato ¢ de Ariix wWreeles, matte de tantos prineipios que tm informado a arte ocidental, encontramese as primeiras elaboragSes teordticas da concepgio imitadva ou mimdétien da poesia, embora o coneeito de mimese em Patio nfo coincida com idénticn conceito em Aristételes, Bm Platio, © voedbulo mimesis apresenta mialtiplas gradagSes de sentido (2), embora nesta diversidade de acep= Possamos descortinar dois signifieados fundamentals: no livto X da Repiiblica, a mimese & considerada como uum edivertimento, no uma coisa sériay, através da qual © artista reproduz a aparéncia — nifo a verdade profunda — das coisas ¢ dos seres; no Gritilo, a mimese é considerada como decorrente da exigéncia humana de exprimir por ima 4 realldade circundante ©, enquanto melo sus ae de apreender as ideias eee nas coisas, dthe (= Harold Osborne, Aestherion orl soo nt and eritotim, London, Routledye ee f, Richant MeKeon, no au etud Md the concept of limitation in Anth io, cana rR R. 8, Crane, Chicago, Phoenix Hooks, 1940, analien eats arndagoen de rf } A GITAQAO PORMION simbélico-gnosioldgico. f indubi- que é 0 conceito. primeiramente referido de mimese que ocupa um lugar central na stética plae tonica, constituindo mesmo, COMO ficou dito (’), um dos elementos determinantes da condenagio a que 0 fild- sofo sujeita a poesia ni Repriblica, Opi escultor ou o poeta estilo afasta ly degraus da verdade Quer deles ¢ apenas ceiro_poletes, pols primeiro t Deus, ate Gfiou, por exemplo, a ideia ‘de cama, 0 segundo & o artifice que ricou a cama, ¢ 0 terceito ¢ enfim © artista que representa esta, mesma cama, Em Aristételes, 0 conceito de mimese desempenha um papel muito importante, quer na caracterizagio natureza da poesia, quer na justificagio desta (iltima, Na énese da poesia, segundo Aristételes, encontra-se a ten- éncia da imitagito, congénita no homem: uParece haver, em geral, duas causas, ¢ duas causas naturais, na génese da Poesia, Uma é que imitar é uma qualidade congénita nos homens, desde a infincia (¢ nisso diferem dos outros animais em serem os mas dados A imitagiio ¢ em adqui- rirem, por meio dela, os seus p imeiros conhecimentos) ; a outra, que todas apreciam as imitagSes» (4). A imitagio odtica incide sobr ¢ «os homens em acgior, sobre ds seus caracteres (ethe), as suas Pp: aixtes (pathe) © as suas acgbes (praxeis). Esta {mitagio, porém, no é urna literal ¢ passiva representagio dos aspectot sensfveis da realidade, pois a mimese podtica apreende © geral presente nas coisas particulares ¢ por isso mesmo A pocsia se aparenta com MMfilosofia, O poeta ¢ a causa eficiente que atribufdo um valor tavel, todavia, capta a forma 0) = Vicap. (4) — Podiica, 1448 b (iend, dA Hélade, p- 40), -m— TEORIA DA LITERATURA segundo as palavras de Richard McKeon, o artista separa determinada forma da matéria com que esté associada na natureza—nio, todavia, a forma substancial, mas certa forma perceptivel através da sensagio—e une-a de novo 4 matéria da sua arte, o meio por ele usado» (5). Apesar das diferengas profundas que distinguem as doutrinas da mimese em Platio e em Aristételes, um ele- mento fundamental ¢ comum a ambas as teorias: a no¢do de que toda a obra poética — como toda a obra de arte — tem de manter uma relacio de semelhanga ¢ de adequacao com uma realidade natural j4 existente. O dito de Siménides, difundido por Plutarco, de que a «pintura é poesia muda ¢ a poesia _pintura falanter, ¢ uma Célebre formula de Hordcio, erréneamente interpre- tada — ut pictura poesis—(6), contribufram para enrai- zat a crenca de que a esséncia da poesia consistia na imi- tagio da natureza. Trata-se, alids, de uma concepcdo estética que facilmente se impunha aos espiritos, sobretudo em estéticas informadas por filosofias do objecto, como foram em geral a filosofia grega ¢ as filosofias ocidentais dela derivadas. Até ao século XVII, a poesia é por conseguinte defi- nida sempre em termos de imita¢io ou outros congéneres, como «cépiar, mage», etc. Piccolomini, importante cri- ()—Richard McKeon, op. cit., 132. ()—A {6rmula horaciana foi errdneamente interpretada devido 20 seu isolamento do contexto verbal em que figura, Lé-se na Epistula ad Pisones, wy. 361-362: Ut pictura poesis; erit quae, si propius stes,|te capiat magis, et quaedam, si longius abstes («Como a pintura é a poesia: coisas ha que de perto mais te agradam ¢ outras, se a distancia estiveres» — trad. de R. M. Rosado Fernandes em Horacio, Arte poética, Lisboa, Livraria Cldssica Editora, s / d., . 109). Quer dizer, tal como hA obras pictéricas que ganham em ser vistas de longe — grandes murais, por exemplo —e outras de perto — miniaturas, ele, — assim hé poemas que solicitam um exame de conjunto ¢ outros que solicitam um exame de pormenor, — 148 — i aida -<. A CRIAQKO PORTICA tico italiano do século XVI, escreve que «a Poesia nko 4 outra coisa seniio imitagio nfo 86 de coisas, ou naturais ow artificiais, mas principalmente de acgies, de costumes ede afectos humanos» ¢ Tasso afirma que a «poesia 6 uma imitagio, realizada em verso, de acgées humanas, feita para ensino da vida»(?). Um critico © poeta francés do século XVII, Colletet, explica que «a poesia é uma viva representa¢io das coisas naturais... O que é 0 poema épico senio uma pérfeita imitagio das acges generosas dos pan heréis? a comédia, senio um espelho dos costumes lo tempo, senio uma imagem da verdade, ¢ numa palavra, seniio uma bela ¢ excelente imitagio da vida?» {) A com- aragio do acto criador com o espelho que reflecte @ rea ¢ ae idade, € comummente usada desde a Renascenga, © esta analogia revela bem © ideal mimético assinalado 4 arte, embora geralmente nunca se defenda o principio de que 4 obra artistica deve constituir uma imagem exacta da rea lidade (1a estética clissica, por exemplo, a imitagto da natureza caracteriza-se pelas suas dimensdes idealistas), 2.1 —Na segunda metade, do sesld XV/IIL, 4 doutrina da imitagio comega a sofrer rudes golpes, que pouco 4 pouco determinam o seu declinio, Primeiramente, negado © carfcter imitativo de todas as artes, 0 que constitui js um sério ataque ao proprio principio da mimese, Lon , nos seus Elements of criticism (1762), sus- Tenta que s6 a pintura ¢ a escultura sio imitativas por natureza, a passo que a misica ¢ arquitectura se situasm (0s textos de Plccolominl ¢ de ‘Tasso ssoootnte ae ‘obra de Bernard Welnberg, A history of Merary cortttelsm tn 1 os - ee a ‘sance, The University of Chicago Press, 1961, respootivamien ‘na pig. 685. (@)—Citado em René Bray, La formation France, Paris, Nizet, 1957, p, 142+ de la doctrine elassiaue -we- wk yy TRORIA DA LATERATURA pois nada copiam da natureza, A poesia, blo oposto, vegiado ames, possui uma condi¢gao hfbrida, pois ape- nas copia a natureza Nos casos em que a linguagem pot- tica imita sons ou movimentos. Um outro crltico inglés da mesma época, Thomas Twining, estabelecia, num ensaio que acompanhava a sua tradugio da Poética de Arist6- teles, uma distingio importante entre as artes cujos meios so icdnicos, isto é, que mantém um nexo natural de semne- Ihanga com a realidade designada, ¢ aquelas artes cujos meios $6 significam por convengio. As primeiras, como @ pintura ¢ a escultura, sio efectivamente artes imitativas, © mesmo nio acontecendo com as segundas, A poesia dra~ mitica é a Gnica forma pottica imitativa, porque imita, através de palavras, as palavras das personagens. jo das jecomies A personalidade do artista no acto criador. aveng4o desloca-se do objecto para 0 sujeito ¢ 0 idea pottico deixa de consistir na imitagdo da natureza para s¢ transformar na expressdo dos sentimentos, dos desejos, das aspira~ Bes do poeta. O poema, de reflexo que era do real objec~ tivo ¢ externo, volve-se em revelagio da interioridade do poeta, mediante um processo criador em que a imaginag4o 0 sentimento assumem relevincia fundamental, 4A Poc- ‘sia, escreveWordsworth no reficio das Lyrical ballads, & dar espontineo de sentimentos poderosos(?). O vocal atransbordar» (overflow) uncia a crenga de que a poesia nasce impetuosamente da intimidade pro- Ol Rua brota do interior de uma fonte. A valorizagio do génio ¢ das forgas criadoras natu @)— Wordsworth, «Preface to Lyrleal ballads», Literary eriticlsm* Pope to Croce, &4, Gay Wilson Allen Harry Hayden Clark, Detroit, Wayne Unly, Press, 1962, p, 216 — uw — A ~olowy ~ ak i mks do Kiel, sepennve tun (OR © ; me - Ve Tunio, SrSioboo. ‘A CRIAGKO POBTICA es — trago ‘importante da estética do rre igualmente para © triunfo da ¢ a teoria imitativa da arte. e-americano, na segunda ‘Como observa um critico nort egund ia lil \-! 1p10_ metade do século XVIII_a_pocsia liberta-se_do principio ges A da imitacio ¢, ao mesmo tempo, d¢ qua juer_responsal yi 2 Fidade relativamente ao mundo cmpirico: «0 facto capi st fal neste desenvolvimento foi a substituicao da oro pela do poema como imitagio, um espelho da natureza, . f do poema como heterocosmo, uma segunda natureza, pen criada pelo poeta num acto andlogo a criagao do mundo _ por Deus»(®), Este modo de conceber a criagdo poética Rio comporta sdmente um significado psicolégico — a expressio da interioridade do artista na sua obra, afirma- tio da imaginacio criadora, etc. —, mas encerra também ¢lementos ontoldgicos ¢ metafisicos que serao plenamente desenvolvidos na estética romintica, Prometeu, o rebelde mitico que furtara o fogo divino a Zeus para animar as ees suas estétuas, aparece como o simile exacto_da aventura criadora do Artista, ¢ esta feicio prometaica do poeta zg posta em relevo pelos pré-romanticos em geral ¢ em par- ticular pelos pré-romanticos alemiies do Sturm und Drang“ Fanepsalody © ¢, mais tarde, por romanticos como Shelley ¢ A. Schlegel Lm 2 gence de criacio adquire com o romantismo um, sentido absoluto ¢ a poesia, retomando o significado ori-f, -~ = ; gate ea seu étimo grego, anseia por criar um mundo, ¢ * Cuaner conesi io por descrever, ou mesmo por exprimir, o mundo. Sob .j,,.tb9 “7 7" a influéncia do idealismo filosdfico de Fichte, que afir- mara 0 Eu como a realidade absoluta ¢ como dotado de stam? - uma infinita potencialidade criadora, um _poeta_co) Noxslis recusa 9 mundo empfrico, efémero ¢ ilusério, ¢ tana valninon o devenie, © Promacendirhe « ()—M, H. Abrams, The mirror and the lamp. Romantic theory and the erlileal tradition, New York, Oxford Univ. Press, 1953, p. 272. 2 Gu ume nso —-m- ~S$rhh’ do adda, diode & es x ahve) 2g ervroduna + raise inconscient século XVIII — conco! teoria expressiva sobr TEORIA DA LITERATURA Atuae, suadir dwme (Clolie), dr prioke erige-se em demiurgo de um mundo fantéstico, pura cria~ Lan, gio da magia poética: «A poesia é 0 auténtico real abso- luto. [...] Quanto mais poético, mais verdadeiro».O poeta 7 C € 0 vidente que conhec: ido oculto das coisas ¢ dos Jicnue dn} ‘venta a realidade. Do romantismo alemao até ao moder- Rass» nismo, a criag3o_podtica tende progressivamente a ser rar entendida ‘como uma aventura prometaica, luciferina,) 4 4 o LNA muitas_v ante _de revolta e de desespero. =o) wee ) criador define-se pela sua liberdade ¢ pela sua rebeldia yo” dbus perante os modelos da realidade: «Referindo-se a um dado K* JAI “~ anterior — existente como tal na experiéncia comum —, 0« £. : poema ou o quadro tradicional, antes de ser poema de Soda - Lamartine ou quadro de Poussin, é 0 tema da fuga do tempo ou dos pastores da Arcadia, a narrativa de um amor ou a imagem de uma floresta. A liberdade adquirida em relagao a toda a ordem preestabelecida do real poe em evidéncia 0 poder Reo) qual o artista dispde das palavras e das formas segundo o seu génio préprio: estamos entio perante um poema de Mallarmé ou de René Char, um quadro de Klee ou de Miré—e nada mais. O proprio romance — onde a realidade mais dificilmente se deixa esquecer — poe cada vez mais em evidéncia a soberania do i escritor (11), Zz - 2.2—A estética_moderna_rejeita_unanimemente_as | teorias da imitagio, sobretudo quando implicam a exi- ! (1) —Gagtan Picon, L'usage de la lecture, Paris, Mercure de France, 1961, vol. Il, p. 296. Nao se julgue, porém, que o acto criador seja diferente, rnas suas ralzes profundas, num grande artista do século XVII ¢ num grande artista do sdeulo XX. Picon escreve a este respeito: «O gesto criador, para Racine ou Poussin, é, em profundidade, 0 mesmo que para Mallarmé ou ‘Cézanne, A criagiio clissica nilo ¢ a execugdo técnica de uma percepgio prévia: toda a grande arte dé a ver 0 que alo existia» (op. elt., vol. II, p. 290). ‘A ORIAGKO POBTIC géncia de representar fielmente a natureza, isto ¢, os seres € as coisas que circundam o homem. Evidentemente que as teorias da imitaco nao oferecem necessiriamente um teor tio simplista e grosseiro: em Aristétcles, por exemplo, a mimese artfstica identifica-se no fundo com uma forma de conhecimento do universal. No entanto, é indubitével que qualquer teoria da imitagio falseia a criago pottica, ao jprestupar que o objecto da obra esté- tica existe independentemente desta mesma obra. E ine- gavel que toda a obra literéria tem de manter relagdes - com a realidade existente e que um poema, como uma tela, mR pope tem de se vincular, de bn modo, ao universo em 5 petig gO que se situa o homem. Sob este aspecto, é 6bvio que qual- pase s quer obra de arte é «ealistar, Afirmar, todavia, que a obra! yon a literdria tem de manter relagdes de admibatidade ede subordi- +” a nagdo, na sua estrutura e na natureza e significado do @) "4 seu objecto, com a realidade das coisas ¢ dos seres naturais, ees é ignorar o cardcter simbélico ¢ imagindrio ¢ a novidade| 5m 1 dessa obra literaria. O Hquido espremido pela prensa do gu yw vinho $6 € possivel porque antes havia uvas e Ee ue um Coat inado acto o origina, mas nio se co: l¢ com o&* qualquer destes factores, como agudamente observa Dewey (12). A obra literéria tem de possuir, por conseguinte, uma conexio com objectos, seres ¢ factos reais, deve mergulhar na experiéncia humana ¢ na realidade social, mas de modo nenhum é sinal destes elementos no sentido eae eiPale: vra da linguagem referencial é sinal do seu designado: neste caso, a palavra é simplesmente um substituto con- ee eet econ aeons. mente para esta realidade designada. A literatura nio mere (8) —Jobn , arte México Buenos Aires, rl cia ce eros qWORIA DA 1 nomeia o real do mesmo modo que o nomelam o historia- dor ovo socidlogo, embora a sua nature imagindria, inten« cional ¢ dimbélica nio se realize na auséncia do real ¢ reconduza sempre, afinal de contas, a este mesmo real, Ro- land Barthes exprime formosamente esta ideia através de uma analogia Get Podersets dizer, segundo creio, que a literatura ¢ Orfeu subindo dos infernos; enquanto cami~ nha diante de si, sabendo no entanto que conduz alguém, 0 real que est atras dela ¢ que cla arranca pouco a poucd do inominado, respira, marcha, dirige-se para a claridade de um sentido; mas logo que ela se volta para o que ama, nada mais resta nas suas mfos do que um sentido nomeado, isto é, um sentido morto» (8). Quer dizer, temos de admitir na obra literdria dimen- ses gue a realidade, a_natureza_animada_ou_inanimada e “Um esteta norte-americano contemporineo, Bliseo Vivas, ao analisar este problema, com uma lucidez admirdvel, declara que a tcoria da imitagio & errénea pelo menos em. dois pontos: «1) a obra de arte d4 provas de Ewe novidade, originalidade, ou frescura, 0 que constitui a Pele ~) tribuigio do artista as formas ¢ A matéria que extrai da = experiéncia. A criagio, portanto, nio um puro ¢ simples fazer, mas um. género de fazer particular que merece um nome particular, excepto se sc quiser omitir distingdes importantes; 2) 0 objecto.da obra de arte sdmente pode ser expresso adequadamente dentro ¢ através da propria obra, e qualquer pardfrase ou tradugio desse objecto fort da propria obra implicam uma perda para 0 objecto ¢ sob este aspecto, a destruigio da obra [...) a diferenga entre ‘a arte que é imitagfo (¢ por isso mA arte) ¢ a arte que nio o 4 nfo reside no grav de literalidade da represen~ (13) — Rotand Barthes, Evsals eritiques, Paris, fd, du Soult, 1964, Ps 265. — mM yo~ ‘A CRIAGKO POETICA tagio que ela pode implicar. Tal diferenga est4 no facto de que, quando a obra nao é pura € simples imitagio, o seu objecto — aquilo de que ela trata ou o que diz — é perce- bido dentro ¢ através da propria obra. [-..] Nao posso ler poesia ou contemplar quadros do mesmo modo que olho uma fotografia ou leio a historia. Nestes casos, através da representacio, penso no sujeito do retrato ou nos acon tecimentos reais que 0 historiador descreve. Na poesia ou na pintura nfo’ acontece assim...» (4). O proceso criador nao pode, por conseguinte, con- finar-se a uma actividade imitativa, como se entre © real- mente dado e a obra estética existisse uma mera relacio de adaequatio. Marcel Proust, a0 referir-se no seu gran romance as telas do pintor Elstir, sublinhou_a transforma- Gao que o artista supe + realidade. Nos quadros de Elstir, | ~ eo as coisas representadas sofriam uma espécie de metamor- fose, pois se Deus as criara dando-lhes um nome, Elstir recriava-as, tirando-lhes o nome ou concedendo-ihes um outro (15), E tal metamorfose era imposta as coisas atra~ vés da interioridade do artista, pois Elstir, quando con- templava uma flor, transplantava-a ptimeiro «para esse jardim interior onde somos forcados a ficar sempre (!4). 2.3—A_teoria_expressiva_da_cria cio_postica, tio difundida no perlodo_xomintico, parece-nos constituir sinda um avatar da teoria imitativa, pois se reduz a trans- Be Bologna, I Mulino, 1958, (16) — Eliseo Vivas, Creaslone ¢ scoperta, pp. 305.306 ¢ 309. aig rche du temps perdu, Paris, Gallimard, (5) — Mared Proust, A la recherc 1955, t. I, p. 835. B Proust observa Bibliotbaque de la Pltiade, 4 te coinas correspondem sempre a ums NOD Wy Wk \ THE Db AATERATITED ferir para o dominio.da subjectividede 0 que 2 teoria mimética afirma no plano da realidade objective. Com efcito, a teoria expressiva tende a conceber o poema como osicae. gsroenmite, homélogs da expedinais vids, assim 4 emosso_ fee experimentata pelo corasio como.gerattiz da expresizo pobtica. O conbes- Preaek £ inde woe form de concept tam constitua uma tra- SG ducdo fe das’ emocbes ensdes pelo. pocta_Ns tworia| mumbo KVL pee perfcitamente 0 que fica exposto, quando faz a apologia do coragio, da emogéo realmente sentida, como ne inexerivel da crtagSo. poste No poema Namouna, de 1632, j4 2 exprewZo pottica ¢ enten- Bis como a exacts conrapondencs do’ que 0 coracso sente — Sachez-le,—c'est le coeur qui parle eae pire | lorsque la main terit, — c'est le coeur qui se fond a echo Nal ane Aled de Mas ma longamente expoe 2 ideia de que o moe h* belo quanto mais carr estiver is plus desesptrés sont les chants les B53 ae a“ fe imal te sala Ldade Sasso, Pee a nese pocia—e Eercescsiste ontse de ieee meer” aca hg de pobies funda pm “eres gn ompR Rene veremos adiante parnasianismo, ead an anno, dene W)— Wome carta » Choussd Rocher, om VE92, excrehe veveiahor mente Musser: “Ab\ Crappetol le comut, cost te qu'est \e ybnien, OV, 0 963 bo preannse caplndo, i 7 — Wm A CWIAGKO PORTION {ntima do artista, rejeitando a crueza ¢o desalinho das confissbes exaltadas, contribui também para o deserédito da teoria expressiva. Na poesia moderna, tho frequente- mente preocupada com a sua propria natureza, a ponto de muitas vezes se transformar numa metalinguagem, a Tejei Gio da teoria expressiva tem sido repetid ¢ claramente afirmada, acentuando-se a sua falsidade ¢ as suas desas- we trosas consequéncias para a propria poesia, Antes, porém, de analisarmos os teitemuntin te ‘yuna poctas, ‘ltenhas “ mo-nos no depoimento muito esclarecedor que acerca deste problema deixou um romancista considerado como um dos grandes representantes do realismo curopeu — Thomas Mann. No romance Sua Alteza Real, existe um pocta, Axel Martini, que umn dia concorre aos jogos florais do pequeno remo descrito pela obra de Mann. O poema que Axel Martini apresentou, era um caloroso hino a beleza ¢ a deggia da vida, um canto de entusiasmo, uma exaltagio da eneryja ¢ da fecundidade vital, Martini foi proclamado vencedor dos jogos, recebeu a taga de prata oferecida pelo woberano pata eat 0 melhor poema ¢ foi rece 3 bido pelo principe Nicolau Henrique. O didlogo travado Nas eutze os dois constitui uma aguda reflexdo sobre as ralzes | Sw" 5 os motivos da poesia, ar a irdnicamente T. Mann om zB entanto 0 seu poema... — insistiu et — Bisse belo no 3 vida... Agra~ STORIA DA LITERATURA © poeta sorri, depois passou os dedos pels cantos da boca para ocultar 0 sorriso. BE tudo isso estd escrito na primeira pessoa — prosseguiu Nicolau Henrique. — Mas, pelos vistos, mnie se trata de impressbes pessoais... Nem de expe- riéncias... — $6 raramente, Alteza Real. Quase tudo intuigao, apenas intuigiio. A verdade & que se eu fosse homem com experiéncia de tudo isso nao 6 nio escre- veria tais poemas como desprezaria a minha maneira de viver. Tenho um amigo chamado Weber, um rapaz novo, rico, grande gozador da vide. O seu maior prazer consiste em voar a toda a velocidade fo seu automdvel e percorrer os campos € as aldeias em busca de raparigas formosas, mas isso ndo vem para aqui, Ora esse mancebo ria bom rir mal me vé ao longe, tao ridiculas acha a minha vida e a ‘minha actividade, Quanto a mim, compreendo perfei~ tanente a sua alegria e invejona. Posso afirmar tar- bém que 0 desprezo um pouco, mas ido tanto quanto 0 invejo ¢ admiro... — Admira-o? —Pois decerto, Alteza Real. Nem podia ser doutro modo. Gasta como um perdulério, & leviano e egolsta, enquanto eu tenho medo, sou poupado, quase avarenio, em nome de princlpios higiénicos. Sim, porque a higiene & do que mais necessito, € toda a minha moral. E ndo hd nada menos higiénico do que a vida... —Entdo, nunca chegard a beber pela tasa que © grito-duque ofereceu? — Beber vinho por ela? Oh! Isso nifo, Alteza Real. Seria um belo. gesto, mas nio bebo vinke. Vou para a cama as dex horas da noite ¢ levo wma — 5 eee] A caugho POPTICA vida prudente. Sendo, nunca ganharia a taga de prata... Deve ser assim, senhor Martini. De longe, da a nossa imaginagéio constrSi wm quadro errado vida dum poeta ('9). O principe, partindo da en de que o Eu do poems se identifica com a pessoa social do autor, considera 2 poesia como a confissio de ‘uma experiéncia pessoa con- “creta ¢ vivida, quando conhece, porém, a cist cia que medeia entre o poema premiado nos jogos florais, hino entusiistico papio 3 alegria de viver, ea existéncia real do homem Axel Martini, compreende que_a_pocsia no se confunde com os elementos biogré ta_que 2 cra Catlos Drummond de Andrade, num dos seus mais belos poemas acerca da esséncia ¢ origem da poesia, adverte que esta nao deve ser procurada nos acontecimentos ow nos incidentes pessoais, nem no goz0 ou dor real- z — mente sentidos. Ainda nao é poesia a confissio imediata | Povav dos sentimentos: pores Bh on Néo fagas versos sobre acontecimentos. ne pee ois Nio hi criagio es morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estitico, ae Nido aguece nem ilumina, As afinidades, os aniversirios, os incidentes pessoais ndo contam. Nao facas poesia com 0 corpo, Esse exatlente, completo e confortdvel corpo, (ao infenso a cfusto Mrica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro Sto ee : (Tomas Mana, Sua Alexa Res, Usdoe, Porselit Editors, ft, 9p. WAST. — “9 TEORIA DA LITERATURA Nem me reveles teys sentimentos, Que se prevalecem do equivoco ¢ tentam a longa viagem, O que pensas ¢ sentes, isso ainda nio & poesia (20), A poesia mora no reino das palavras — «dé estio os Poemas que esperam ser escritos» — ¢ af ter4 © poeta de a procurar, sabendo que © seu poema é uma criagdo, um acto intencional, e nio uma confissio, A distancia que separa Os sentimentos que se prevalecem do equfvoco» ¢ os auténticos elementos Poematicos, constitui_o cfingimento oéticor, que nio se identifica com mentira ou lh A ida, pois representa apenas um cardcter funda- mental de toda a literatura: ser criagio imaginéria (21), Raramente um poeta, em qualquer literatura, teve tio licida consciéncia do problema do «fingimento» pottico como Fernando Pessoa. A invengio dos seus heterénimos, embora envolva outros aspectos, representa fundamen- talmente um desenvolvimento extremo da natureza ima- gindria de toda a criagio poética. Numa breve nota, iné~ dita até h4 poucos anos, escreveu Fernando Pessoa, justifi- cando os seus heterénimos: ‘Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expresso 4 alma de Lady Macbeth, com © funda- mento de que ele, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba, histero-epiléptico, ou de the atribuir uma tendén- cia alucinatéria e uma ambigio que nfo recua perante o crime. Se assim é das Personagens fictfcias de um drama, ¢ igualmente lfcito das Personagens ficticias sem drama, @) — Carlos Drummond de Andrade, «Procura da Poesia», Antologla pottica, 2.* €4., Rio de Janeiro, 1963, ‘Dp, 186, 0) ~ Sobre 0 udingimento posticon,v. dols belos estudos do Prof, Joss G. Herculano de Carvalho: Bobre a erlaglo poética», in Rumo, 0.° 86, Abril 6 1964, 9p, 310-16, ¢ «0 fingineato podticon, in Ruma, n.° 87, Maio de 196, Pp. 394-98, ‘A ORIAQKO POETICA pois que ¢ lfcito porque elas sio ficticias e no porque estio num drama» fy, Ante a ideia tradicional, tio aceita nas nossas letras, do poeta espontineo, sentimental ¢ con- fidencialista, Fernando Pessoa tinha de constituir um escindalo e de ser acusado de «insincero». Ele sabia, porém, que a sinceridade do coragio, a sinceridade psicolégica nio possui valor no plano da cria¢io pottica: O poeta & um fingidor. Finge tao completamente Que chega a fingir que € dor A dor que deveras sente (23). Este iiltimo verso claramente revela que o elemento existencial nfo & anulado na criago poética, mas superado e transformado, pois a dor fingida, a dor que figura no poema, mesmo quando se prende a uma dor real, no se identifica com esta. A autenticidade da poesia nio se subordina & sinceridade do coragio ¢ 0 poeta, como cria~ dor, nio se subordina aos incidentes pessoais ¢ aos senti- mentos que nele, enquanto homem, realmente se veri- ficam (2). (@2) — Femando Pessoa, Obra poética, Rio de Janeiro, Aguilar, 1960, p. 132, Sobre o problema dos heterSnimos, encontra-se um bom estudo em Adolfo Casais Monteiro, Estudos sobre a poesia de Fernando Pessoa, Rio de Janeiro, Agir, 1958. @) —Femando Pessoa, op. cit», p. 97. ‘Max-Pol Fouchet: «Que ae poupem sobretudo qualquer referéacia & minha vida diplomitica. Nilo é sem Taso que adoptel o peeudénimo literdrio © pratique empre o sais eeifo esdobramento da peronalidade... De facto, qualquer liapto estabeleiéa entre Saioi-Joha Perse e Alexis Sant-Léget conduz irreitvelmente 0 ise 8 vislo do Ieior, a vicar fundameotalmeate a sua inteprealo potion (Git por Roger Garaudy,D’un rallome sans rivages, Pari, Plo, 196 P 18). -u— ‘TTEORIA DA LITERATURA 3 — Nio se pode esquecer gee em todo 0 poeta existe um homem ¢ que na actividade deste operam _miltiplo: elementos psicossomaticos. E compreensivel, portanto, que ates a Intervenham de modo na ctiacio ica € se tenha procurado explicar 0 processo pede a ect dos conbecimen tos fornecidos por disci- plinas que estudam esses factores psicossomiticos, tais como 2 caracterologia e a tipologia. Dentro desta perspectiva, © estudo dos temperamentos e dos caracteres é considerado por alguns autores como elemento fundamental. O temperamento poder-se-4 definir como 0 conjunto das disposigdes congénitas, quer fisiolégicas quer psico- légicas, que caracterizam o individuo. O cardcter, vin- calendo-se embora 2 estas disposigdes congénitas, isto é, 2 Gisiologia e até 2 morfologia do individuo, é constituido basilarmente pelos elementos de ordem sobretudo psiquica que ee © comportamento do homem, tratando-se por- tanto de um complexo de factores conjuntamente inatos ¢ wwiridos. Em virtude destes factores adquiridos é que suceder que num individuo se verifique uma disso- néncia ow conflito entre o temperamento ¢ o cardcter, embora na generalidade dos casos se constate uma sinto- nia mais ou menos perfeita entre estas duas parcelas do A titulo de exemplificacio, vamos resumir a classi- ficagio € descrigio caracteres expostas por Gu Michaud na sua obra Introduction 4 une science de la lité- rature (4), pondo em relevo os elementos que mais inte- ve 40 a i es Ti mético — Calmo, frio, movido pelo ins- 0 Me netto tea sehoen ein (05) ~ Guy Micha, Introduction & une selence de la littérature, Ystazy- ‘, Patan Viatbansl, 1990, p. 210 08, ‘A CRIAGKO POBTICA a sistematizagio (Kant, Leibniz). Neste tipo aparecem pensadores rigorosos, analistas subtis— Bayle, Renan, Bergson —, mas nfo grandes criadores literdrios. #) Tipo apético —Passivo e indolente. O pendor para a inércia pode conduzi-lo 4 simples preguiga ou ao sonho e, portanto, 4 vida artistica e em particular 4 misica. Raramente, porém, possui auténticos dons criadores e René Le Senne, no seu Traité de caractérologie (Paris, P. U. FB, 1945), nfo indica nenhum representante famoso. Guy Michaud aventa a hipétese de Verlaine se integrar parcialmente neste tipo. c) Tipo feminino — Caracterizado fundamentalmente pelo instinto sexual, que ora se apresenta sob 0 aspecto da seduco, ora sob o aspecto do instinto maternal. Expansivo, optimista, amando o encanto da vida, é domi- nado pela afectividade. Anne de Noailles ¢, talver, Francis Jjammes podem ser apontados como seus representantes. d) Tipo sanguineo — Activo, pratico, mediocremente emotivo, de raciocinio répido, irénico, cépticamente sorridente. Profundamente marcado pelo instinto social — claro sintoma da sua extroversio —, possui em alto grau © sentido do equilfbrio ¢ da sintese. Mm de Sévigné, Fontenelle, Anatole France ilustram este tipo. 9) Tipo colérico—Possuidor de uma vitalidade exu- berante, combativo e mesmo agressivo, susceptivel de cdle- ras ardentes, é dotado de uma yontade muito forte. A sua impulsividade alia-se quer ao gosto ee aventura, quer a uma singular capacidade de trabalho e de produgao. Rabelais, Corneille, Beaumarchais, Balzac, etc., surgem como seus expocntes. f) Tipo apaixonado — Provido de um conjunto eter mamente rico de qualidades. Activo, din’mico, bie mente emotivo, mas sabendo disciplinar esta rar le, distingue-se por uma acentuada vontade de poder. Os seus TBORIA DA LITERATURA representantes so espiritos dotados de grande capacidade criadora — Dante, Pascal, Bossuet, Goethe, Claudel. 8) Tipo nervoso—Impulsivo, instavel, receptivo 4 moda, Provido de grande curiosidade mental ¢ de invengio fértil. Gosto pela vagabundagem afectiva ¢ pelo exético e pelo raro; dandismo (Byron, Musset, Wilde). Os seus Tepresentantes caracterizam-se reo desfasamento entre © que so € o que aspiram ser, donde derivam acessos de angustiada melancolia e obras literdrias em que a tris- teza e€ a amargura se aliam ao cinismo ¢ ao sarcasmo. René Le Senne cita como representantes deste tipo Cha- teaubriand, Rimbaud, André Gide. h) Tipo sentimental — René Le Senne define-o como «um nervoso recalcado por um fleumstico». Exteriormente frio ¢ reservado, ¢ intimamente dotado de uma aguda emotividade. Profundamente introvertido, amante da soli- dio, voluptuosamente debrugado sobre a sua existéncia ea sua fabjeardade, tem um pendor invencfvel para se auto-analisar em didrios intimos. Muitas vezes pessimista ¢ misantropo, quase sempre rofdo por um indefinfvel tédio. E 0 caso de Rousseau, de Senancour, de Vigny, de Amiel. Bascando-se igualmente em elementos temperamen- tais e caracterolégicos, Henri Morier, professor da Uni- versidade de Genéve, procura construir, uma «classificagio das estéticas subordinadas a0 temperamento», na convic- a0 de que todas as estéticas se vinculam a uma fisiologia, @ um temperamento, a uma sexualidade. Deste modo, a criagfo literiria ¢ colocada na estreita dependéncia de factores sexuais ¢ fisiolégicos (26), fic: tipoldgica dos caracteres como a encerre um certo inte- Fiend Moten 1a papcholoate de pls, Cente, ‘Gears, 1900 58 os, A catagho PoeTICA resse_para o estudo psicolégico da criacio poética, mas é “Galmente Giolbgica, nio possuem signif icado pene “mnehte estético, ao contrario do que pent fenri Morier. Colocar 0 acto da criagio poética na dependéncia imediata destes factores, seria tombar num genéticismo grosseiro e desconhecer o cardcter intencional ¢ imagindrio do objecto estético e equivaleria a identificar, no fundo, a ersonalidade do artista com um conjunto de dados fisio~ Sgicos, ignorando os caracteres diferenciais do artista enquanto tal. Por outro lado, esta perspectiva conduz necessiriamente a uma visio anti-histérica do fenémeno estético, como dos fenémenos da cultura em geral, pois os dados temperamentais e caracteriolégicos pertencem exclusiva ou essencialmente a uma esfera natural e por- tanto alheia ao processo histérico, plano da acti ise cultural ¢ artfstica. Seria absurdo admitir, por exemplo, que a criag3o de René tenha sido determinada fundamen- talmente pelos factores caracteriolégicos préprios de Cha- teaubriand! 4—Procuremos uma via mais segura para o estudo da criagZo poética. Situemo-nos na histéria, aceitemos a diversidade histérica da poesia e tentemos encontrar os liames que aproximam as diferentes experiéncias potticas de um determinado periodo ou de determinados perfodos histérico-literdrios — liames que nos permitam afirmar a existéncia de estruturas gerais no modo de conceber a ctiagio poética dentro desses determinados perfodos hist6rico-literdrios. Esta perspectiva metodolégica re simultineamente a queda no facto isolado ¢ individual, cuja insergio numa categoria se torna imposs{vel, ¢ @ ueda nas «constantes» supra-histéricas, que esmagam 4 iversidade ¢ a ceeds dos fenémenos estéticos. THORIA DA LITERATURA Deve ser este, aliés, 0 método de toda a pottica, como ainda h4 pouco acentuava um eminente professor italiano: a relacZo pottica-poesia wt sempre prospectiva de poética através da poesia, estudo da poética pela compreensio, individuacio ¢ valoracio da poesia na sua génese his- térica € na sua consisténcia realizada» (27). Ao estudar-se a cria¢do_poética, uma polaridade, de h4_muito estabelecida, nos chama_a_atengao— por_um lado, 0 autor possesso, por outro, o autor arlifice: aquele, ctiando num estado de agitagao ¢ de éxtase, como pos- suido por forgas estranhas ¢ irreprim{veis, em revolta contra cnones ¢ preceitos; este, criando num estado de lucidez, de equilfbrio, de disciplina mental, realizando a sua obra através de um vigilante esforco ¢ da voluntaria aceitacio de regras, e nela depondo uma intima e harmo- niosa medida. A famosa dicotomia de «espfrito apolineo» e de «espirito dionisfaco», langada por Nietzsche em A ori- gem da tragédia, & uma versio mitica daquela polaridade: de um lado, Apolo, deus das energias plisticas, da escul- tura, da luz e do sonho; do outro, Dioniso, deus das ener- gias ocultas ¢ arracionais, da misica, da sombra ¢ da embriaguez. Apolo conhece a mesura e 0 repouso; Dioniso despedaga os limites comuns do homem, compraz-se no delirio, nos excessos orgidsticos e na inquictacio frené- tica de todo o ser. Esta dicotomia, entendida como uma abstracta dua- Jidade de constantes as suy ricamente partilham a eiaglo pottica, revela-se desprovida de valor critico ¢ fautora de equivocos. Com efeito, embora 0 poeta neopla~ ténico € o poeta surrealista se possam abrigar sob 0 vasto rétulo de criadores sdionisiacos,, a concepcio neoplats- 7) — Walter Bini, Poetica, critica ¢ storla letteraria, Firenze, Laterza, 1963, p. 143, — 6 = wer 2 rol ‘ TRORIA DA LITERATURA sacto, Nao esté em condigées de criar antes que um deus Son, Me © inspire, vindo de fora ¢ privando-o da razio. Enquanto } Liga». gu ca faculdade, todo o ser humano é incapaz de obra podtica ¢ de cantar oriculos...». Assim Platio, no Jon, caracteriza 0 estado do poeta durante 0 acto cria- dor. Ji Homero afirmara_que a_criacio ica _encerra gu iva, ou de Apolo, ou Musas, ¢ fo, nos wv versos liminares ‘ogonia, explictamente se refere a0 * dom que recebera das Musas Helicénias: Foram elas que ars uma vez ensinaram um belo canto a Heslodo, | quando ele apascentava os seus cordeiros nas faldas do Hélicon divino (28), no Quer em Homero quer em Hesfodo, portanto, as Musas,| A& filhas de Zeus ¢ da Meméria, sio a fonte da poesia, ¢} so ~~ considera-e que o poeta haure nelas um conhecimento “~ supra-normal, embora, como observa o Prof. Dodds, % > jamais 0 pocta seja representado como caindo em éxtase " ou como sendo possuido pelas Musas (2). Ora, no pen= A CHIAYAO HORTICA fy musa exprime simultincamente a transcendéncia da inspiragio ¢ a distincia que medcia entre o homem ¢ o artista, A posse de uma techne, de um saber adquirido ¢ organizado, nfo condiciona a criagio do pocma, pois este 0 fruto da mensagem que o poeta, em Cxtase ¢ na alie~ nagio de si préprio, recebe de uma divindade. Esta visio do pocta ¢ da criagio pottica cxerceu uma acentuada influéncia nas tcorias literdrias da cultura oci- dental. Ora accita, ora repelida, de acordo com a orien- tagfo geral das artes, da estética ¢ do pensamento vigente nos diversos perfodos hist6ricos, a sua presenga pode ras trear-se ao longo dos séculos, desde a Idade Média até aos tempos mais préximos, cmbora sob formas diversas. Cons- tituiu sempre um clemento de magnificagio do poeta, devido A relagio que estabelece entre cle ¢ um poder transcendente, de preservagio do mistério da poesia, gra ao carhcter sacral de que a reveste, c um clemento de repidio do formalismo ¢ do academismo, - Na segunda metade do stculo XV, a teoria platinics ctiagio podtica conheceu uma importante rcinterpre- taglo ews do chamado neoplatonismo florentino, cujo reptesentante mais destacado € Manslio Ficino (14))- we coloca o pocta cm relagio com o transcendente: 6 mit pr ‘THORIA DA LITERATUBA musarum, liberta-o da comum condi¢Zo humana ¢ sagra~o como um ente de privilégio que na sua obra fixa uma essencialidade misteriosa ¢ irredutivel aos preceitos ¢ tanto, de um furor animi, de um ivinus € a sua fonte > ros, principio iasmo_criador. > Fsta doutrina neoplaténica influenciou grandemente a pottica ¢ a poesia do século XVI europeu, ¢ em Franga, a por exemplo, & muito importante 0 seu papel nas teorias ae potticas da Pléiade, grupo de escritores, que introduziu o fenascimento na literatura francesa. Ronsard, um dos oe \ Soo” poetas da Pléiade, na sua Ode 4 Michel de l'Hospital, poe pow em relevo o cardcter de dom absoluto, de puro rapto, de i” saincte fureur, proprio da poesia ¢ acentua assim a impos- f sibilidade de se alcanc meio a exer mca, doestudo, do esforco metédico, das regras c arte: Sse Te | Par art, le Navigateur Dans la Mer manie, & vire La bride de son navire, Par art, playde [’Orateur, Par art, les Roys sont guerriers, Par art, se font les ouvriers: Mais si vaine experience Vous n’aurez de tel erreur, Sans plus ma saincte fureur Polira vostre science (2). 52—Tanto na estética platénica como na estética neoplaténica de Ficino, a inspiragio e a criagio pottica (@%) —Ronsard, Oeuvres completes, ed, Laumonier, 8, T. P.M, t. 1, pp. 141-142, ae | A cRIAGKO POBTICA p yy" angcendente: num caso, constituem o dom de um poder tr: a Musa, noutro, © proprio Deus ‘0, No século XVII, em reacgio contra 0 intelectualismé da estética neoclAssica e contra o racionalismo da aus aoe novamente_a_crla~ gio pottica entendida como uma forga_misterlos4, 2S “primivel, primitiva, que nao obedece-a Fe ras nem modelos “e que se manifesta no poeta inde endentemente da cultura, da arte e da razao, Esta forca, porém, j4 ndo € explica ‘em termos transcendentais, como sendo uma dadiva de que o poeta é o mero receptor: é explicada em termos psico- légicos, através da andlise das faculdades do homem, em especial da imaginagao ¢ da energia da actividade incons- ciente. O conceito de génio é 0 clemento fulcral desta nove interpretagio do proceso criador, desempenhando um papel proeminente na estética europeia, sobretudo na Franga, na Inglaterra ¢ na ‘Alemanha, a partir da segunda metade do século XVII. Alifs, a propria estética clissica, no obstante o seu intelectualismo, reconhecera na criago pottica a existén- cia e a importancia de um clemento indefinivel, um we ne sais quoi, que ¢ gtaga € que & mistério. Bouhours (1628- 1702), teorizador literério que exerceu uma ampla influén- cia no classicismo e cuja opinido Racine admirava, tentara jf caracterizar esse elemento subtil: «acontece com 0 nio-sei-qué o que sucede com aquelas belezas cobertas com um véu, que sdo tanto mais estimadas quanto menos aco acrescenta s¢m= expostas 4 vista € as quais a imagin: pre alguma coisa. De modo que, se por acaso se acabasse por descobrir esse niio-sei-qué que surpreende ¢ que encanta © coragio & primeira vista, nao se ficaria talvez tio como- vido nem to encantado como se fica: mas ainda nio foi descoberto ¢ jamais seré descoberto, ao que parece pois que, se fosse possivel descobrilo, deixaria de ser © 40° DA Tuynin de Gurwe (wea & Porergse sty ade v otslo wave astol. ‘THORIA DA LITERATURA &..0(). Deste ndo-sei-qué 4 teoria do génio natural, nio era longa a caninhads Em Franga, j4 o P.* Dubos (1670-1742), nas suas Réflexions critiques sur la potsie et sur la peinture, se referira explicitamente ao génio como uma qualidade natural | absolutamente necesséria ao criador artistico: «Chama-se ‘énio = al rid jue_ um homem recebeu_da natureza para t_bem ¢€ aclinente certas coisas que os outros 86 poderiam fazer muito mal, mesmo com aunts esforgo». , porém, Diderot quem mais sdlida e profundamente estabelece em Franga a tcoria do génio, sbisds através do artigo Génie, com que contribuiu para a Enciclopédia Francesa. O génio, segundo Diderot, é a forca da imagi- nagio, 0 « da alma, o entusiasmo que inflama © coragio, capacidade de vibrar com as sensei de todos tt o com umia espécie de_espirité pro! uro dom da natureza ¢ sibita ane , distingue-se do gosto, fruto da cultura, do estudo, do tempo, de regras ¢ de modelos. O génio é rebelde a regras, despedaca todos os obstdculos, ¢ a prépria voz das emogées ¢ das paixdes, voa para o sublime ¢ para © patético, «Para que uma coisa seja bela segundo as regras do gosto, é necessdrio que seja clegante, acabada, trabalhada sem o parecer: para ser de génio, é necessirio por vezes que seja descuidada; que tenha o aspecto irre- gular, escarpado, selvagem. {...] Enfim, a forga e a abun- dancia, no sei que rudeza, a irregularidade, o sublime, © patético, cis nas artes o cardcter do génio; nio comove fracamente, no agrada sem espantar, espanta até pelos 0!) —Citado por Arstne Sorell, Introduction & I"hlstolre de Mesthétlque Srangalse, Bruxelles, Palais des Académies, 1955, p. 75. A ORIAGKO oBrtCA , Co seus erros (%), Comer’ e Ghakespeate representam 0 autor de génio; Vergilio e Racine sio apontados como protstipos dos autores de gosto. Na Inglaterra, a doutrina do génio desenvolve-se acentuadamente desde os meados do século XVII: Ho- garth, na sua Analysis of beauty (1753), combate as dou- trinas de Johnson, segundo as quais a tnica novidade nee de uma obra consistia no arranjo e na disposigio | a matétia, ¢_reivindica a liberdade ctiadora do _génio; | Joseph Warton, no seu Essay on Pope (1756), considera a imaginagio (creative imagination), 0 sublime e o pat& fico como os elementos dorsais de toda a poesia auténtica; Young, com as Conjectures on original composition (1759), contribui poderosamente para difundir a estética do génio. «Sacer nobis inest Deus, diz Séneca. Este deus interior, em relagio A esfera moral, ¢ a consciéncia, em relagio ao mundo intelectual, ¢ 0 génio», escreve Young (8), Tal como para Diderot, Sh: espeate tepresenta para Young | a su encarnagao do 0, sendo a natureza a pi diga matriz da sua ences criadora, independente~ ,.. oh - mente do estudo ¢ da aprendizagem. Como observa M. H. Abrams, é muito revelador que Young empregue frequen- temente, a respeito da criagio podtica, metéforas extrafdas do crescimento vegetal: «Um original pode ser conside- () — Diderot, Oeuvres esthériques, Paris, Garnier, 1959, p, 11 ¢ p. 12 TEORIA DA LITERATURA rado de natureza vegetal ergue-se es jontineamente do terreno vital do génio; cresce, nao é feiton, Estas meti- foras significam que a criagio pottica nto é 0 resultado de uma actividade racional, de regras ¢ de modelos, de um desfgnio explicito, mas 0 fruto de uma forga obscura, de uma vitalidade que actua inconscientemente, tal como a vitalidade cega que anima o reino vegetal (34). Os esctitores ¢ estetas alemaes tomaram do francés, juntamente com 0 respectivo cénceito, 0 vocibulo Genie, ¢ depois de 1751, data em que a palavra é pela primeira vez usada em alemo, multiplicaram-se na Alemanha os estudos acerca da natureza e do significado do génio. Sulzer, na Teoria geral das belas artes (Allgemeine Theo- rie der schonen Kunste, 1771), sublinha a importincia do elemento irracional que actua_na_criacdo_art «0 omem de genio sente a presenga de uma chama de entu- siasmo que anima todo o seu espirito: descobre em si pen- samentos, imagens, emog6es que langariam outros no espanto, mas que cle acha admirdveis, pois, que mais do que té-las inventado, tomou sdmente consciéncia da sua presenga cm. si proprion(%5). Hamann, espirito fortemente anti-intelectualista, concebe 0 génio como uma sabedoria mistica capaz de devassar as prdprias profundidades de Deus ¢ vé nele a forca que explica as criagdes literdrias de Homero ¢ de Shakespeare. Herder, um dos vultos mais proeminentes do pré-romantismo europeu, enlaga natural~ mente com a doutrnia do Gite a concepgio prometcica do poeta, derivada de Shaftesbury, ¢ considera o pocta como um «segundo criador, poietes, aquele que faz», agindo (4) —M. HL Abrams, The mirror and the lamp, ed, cit., p. 199. (08) —Citado por Vittorio Enzo Alfieri, «L‘estetica dall'illuminismo al romantlelsmo fuori d'ttalin», Momenti ¢ problem! di storia dell'estetica, Milano, Marzorati, 195%, voi. Il, p. 645. — Mm aes A OWIAGKO PORTICA le de um dinamismo ¢ de um saber inconscientes, tal como Shakespeare, que pinta a paixio até aos seus mais profundos abismos, sem o saber, ¢ que descreve Hamlet inconsclentemente, até ao mfnimo pormenor. Segundo Herder, a poesia & a expressiio metafbrica € alegénica da natureza, is elementos primitivos € origindrios do uni- verso, ¢ por isso considera a poesia popular, expresso Iidima destes clementos, como a auténtica poesia, em oposigio A poesia de arte (Kulturdichtung), artificial ¢ fi le 1776, accitou ardorosamente agitou a Alemanha cerca a teoria do génio, proclimow a revolta contra as regras Eexaltou a poesia «que broti da plenitude do coragios,' Sob a influgacia de Rousseau, particularmente da sua dou- trina sobre o homem natural, o Sturm magnificou a forga livre, fecunda ¢ generosa da natureza Mensa a influén- cia da cultura, dhs duzes, a opressio das regras ¢ da dis- Gplina impostas pelo intelecto humano. em virtud und Drang (¥), movimento literdrio que 5,3 —O_romantismo constitui um momento funda- mental na evolugio dos valores estéticos do Ocidente ¢ podemos afirmar que instaura_uma_noya ordem estética cujas pee ainda perduram, Relativamente a cfiagio podtica, 0 romantismo inicia um modo novo de entender a actividade criadora ¢ a sua influéncia, neste dominio, é fundamental na pottica dos séculos XIX ¢ XX: © simbolismo ¢ surtealismo, sob diversos aspectos, so “tim desenvolvimento de prinelpios romanticos, ja doutrina romintica da criagiO podtica confluem alguns elementos atrés mencionados; a nogio do poeta 06) —Designago do movimento pré-romAntico alemio, extraids do titulo de um drama de Klinger, ‘Traduglo: Tempertade « pete, — Wm TRORIA DA LITERATURA como criador ¢ no como imitador ¢ a visio prometeica do artista, Estes clementos relacionam-se ¢ associam-se com outros factores muito relevantes:_a_imaginacio, o sonho, o inconsciente, etc. Oconccito d imagina¢ao adquire no romantismo uma importancia particular. (37) O século XVIII, ¢ em espe- ali estética do empirismo inglés, considera a imaginagio como a faculdade que permite conjugar, segundo uma ordem inédita, as imagens ou os fragmentos das imagens apresentados aos sentidos ,de maneira a construir uma nova totalidade. A imaginacio, portanto, dissocia os elementos da experiéncia sensivel ¢ agrega depois as diversas partes num novo objecto. Homero, por exemplo, ao imaginar a Quimera, associara num nico animal elementos perten~ centes a varios animais: a cabe¢a do leio, o corpo da cabra ea cauda do dragio. A originalidade da criagio resulta, nesta perspectiva, do modo como os objectos sio dissocia- dos ¢ depois novamente associados, de forma a conseguir-se uma combinagio invulgar ou inédita. Ora na estética rom/ntica, a imaginagio emancipa-se da meméria, com a qual era frequentemente confundida, deixa de ser uma faculdade serva dos clementos forneci- dos pelos sentidos ¢ transforma-se em forga auténtica- mente criadora, capaz de libertar 0 homem dos limites do mundo sens{vel ¢ de o transportar até Deus. A imagina- éo da arte (34) ¢ proporciona uma forma f mento, pols através dela o espirito «penetra na , Te a natureza como s{mbolo de 01) — Veja-se, em particular, C. M. Bowra, The romantle Imagina- ‘New York, Oxford Univ, Press, 1961. ey (9)—«O esplrito raciocinador, ao destrulr a imaginaglo, sapa o» fundamentos das belas artes» (Chateaubriand, Le génle du christlanisme, Paris, Furne et Gosselin, 1837-39, t, Il, p, 121), ‘A CRIAGKO POETICA algo que esta para além ou dentro da prépria natureza» (39) e assim alcanca a beleza ideal. Esta teoria da imaginacao esti presente em muitos poetas ¢ criticos roménticos, devendo no entanto ser especialmente referidas as famo- sas paginas que a este assunto dedicou Coleridge na sua Biographia literaria (1817). Coleridge distingue a imaginagao («imaginatiom) ¢ a fantasia (efancys). A fantasia € uma_faculdade cacumula dora e associadora, € «ama forma de meméria emanci- pada da ordem do tempo e do espago» ¢ que, tal como a meméria normal, «tem de receber todos os seus materiais 4 preparados pela lei da associacio». A_imaginacio, pelo contrario, é auténtica potencialidade criadora: “Condes pois a imagina¢Zo ou como priméria, ou como secundéria, Afirmo que a imaginacio priméria ¢ 0 poder vital e 0 prtimeiro agente de toda a percepgdo humana e é como que a repeti¢io no espirito finito do acto eterno da criagio no infinito «eu sow, Considero a imaginacio secundaria como um eco da primeira, coexistindo com a vontade cons- ciente [...] e diferindo sé em grav e no modo da sua forma de operam. A imaginacio, por conseguinte, é 0 equivalente, no plano humano, da prépria forca criadora infinita que plasmou o universo, repetindo o poeta, na cria¢io do poema, © divino acto da criagao originaria ¢ absoluta, A imagina- go secundaria, faculdade propria do poeta, reclabora ¢ confere expresso simbélica aos elementos fornecidos pela imaginagio prim4ria ¢ a sua genufna tensio criadora rts no seu poder de sintese ou de conciliagio dos contririos (#0): adunagio do consciente ¢ do inconsciente, do sujeito ¢ do objecto, do geral ¢ do concreto, etc. 0%) —L. A. Richards, Coleridge on imagination, London, 1935, p. 145. ()—Por isso Coleridge cunhou a palavra esemplastic, isto 6, uni- ficante, coadunante, para qualificar a imnginagio. — WT 7\ PRORIA DA LITERATURA Igualmente Shelley, na sua Defense of poetry (1821), define a poesia como a «expressio da imaginacao» ¢ pro- lama que © «poeta participa do eterno, do infinito, do uno: relativamente 4s suas concep¢6es, no existe tempo, nem espago, nem mediday. A poesia € visio, é visitacdo divina & alma do poeta ¢ a imaginagao criadora ¢ o instru- mento privilegiado do conhecimento do real. Esta crenga no poder demitirgico da imaginagio poética encontra-se em rominticos alemies como Schelling e A. Schlegel, fontes, alids, da teoria de Coleridge sobre a imaginacao. Este modo de conceber a natureza da imaginagio poé- tica conexiona-se com uma determinada visio cosmolé- gica: 0 universo surge povoado de coisas ¢ de seres que, ara além das suas formas aparentes, representam simbd- icamente uma realidade invisivel ¢ divina, constituindo a imaginago o meio adequado de conhecimento desta rea lidade. A arte, escreve Jouffroy, «esforca-se por reprodu- zit, ndo as aparéncias fenomenais, mas o seu arquétipo ideal, tal como subsiste em Deus, imutavel, cterno como ele» (#1). © sonho, nas suas_misteriosas potencialidades, cons- titur_um el to de 3 importincla na estrutura da alma romintica € na concise romantica da casio por ve como jonstrou rt Béguin num estudo nota- vel (#). A criagio poética, no romantismo, me pro- te no dom{nio onfrico ¢ esta irrup¢io do incons- ciente na poesia assume nio sdmente uma dimensio psi- colégica, mas também uma dimensio mistica, integran- do-se na concepgio da poesia como uma revelagio do invi- (41) — Citado por Frangols Germain, L'imagination d' Alfred de Vigny, een en pene arma ite mocmetidin one mentees e . (2) — Albert Béguin, L'dme romantique et le réve, Paris, J. Corti, 1960. lem Bo A ORIAQKO POPTICA sivel ¢ na concep¢io do universo como um vasto quadro hieroglifico onde se reflecte uma realidade transcendente. Por outro lado, o clemento onirico oferece um meio ideal de realizar a aspiracio criadora, no sentido mais profundo da palavra, do poeta, permitindo identificar poesia ¢ vengio da realidade. Como observa Albert Béguin, na obra citada, os rominticos nio foram os primeiros a introduzir o sonho na literatura, pois desde os Persas de Esquilo até a0 Wilhelm Meister de Goethe, 0 sonho aparece frequente- mente no drama, na lirica, na epopeia ¢ no romance: apa- rece quase sempre como um artificio literério— como no canto IV de Os Lusladas, por exemplo—, como usa consttugio alegérica, de quando em quando como um ele- mento premonitério. Foi o romantismo, porém, que con- feriu um novo significado a0 sonho, pondo em relevo ¢ explorando as suas secretas virtualidades ¢ delineando uma estética do sonho em que o fendmeno onirico ¢ 0 fenémeno pottico sio estreitamente aproximados ou mesmo identificados: «Se alguma coisa distingue o romén- tico de todos os seus predecessores ¢ faz dele o verdadeiro iniciador da estética moderna, ¢ precisamente a alta cons- ciéncia que tem sempre do seu enraizamento nas trevas interiores. O poeta romntico ¢ aquele que, sabendo que nio é 0 tinico autor da sua obra, tendo aprendido que toda a poesia & primeiramente o canto erguido dos abismos, procura deliberadamente © com toda a Iucidez provocar 2 ascensio das vozes misteriosas» (4). © sonho, para o romintico, ¢ 0 estado ideal em zm pode comunicar_com a realidade pro! ptivel de ser apreend (©) — Albert Béguin, 0p. lly B. N55. wo TEORIA DA LITERATURA inserg3o da alma humana no ritmo césmico ¢ efectiva-se um contacto profundo ¢ imediato do homem com a alma que anima a natureza. A abolicio das categorias do espago e do tempo, prdpria do sonho, ¢ uma libertag3o das bar- reiras terrestres ¢ uma abertura para o infinito ¢ para o invisivel, ideais para que se eleva a indefinfvel nostalgia da alma romintica, Este infinito ¢ este invisivel situam-se no proprio eu ¢ a descida ao abismo da sua interioridade é a condi¢ao essencial para 0 poeta suscitar 0 seu canto: «© poeta é literalmente _insensato— em contrapartida tudo se pas nele, Ele € hiteralmente sujeito ¢ objecto ao mes] € universo». Estas pa. lavras de Nova~ lis, 0 mais alto representante da estética roméntica do sonho, ao exprimirem a identificacio do sujeito e do objecto, exprimem igualmente a identificagio da poesia com a magia e explicam como através do sonho o poeta reinventa a realidade. E por isso, tendo em mente este processo de identificagio da subjectividade ¢ da objecti- vidade, de simbiosé do eu e do universo, ¢ preten lendo acentuar a actividade demidrgica do poeta, Novalis pode ainda escrever que «o mundo transforma-se em sonho, 0 sonho transforma-se em mundo». ‘As imagens ¢ as aparigGes verificadas nos sonhos prd- riamente ditos, pela sua beleza e pela sua lberdade, Eames © poeta romintico, que vé nelas a nocturna flo- ragio dos sentimentos ¢ dos desejos mais obscuros ¢ mais seeretos da sua personalidade, como escreve Jean Paul: «O sonho langa ies aterradoras nas profundidades das cavalarigas de Augias ¢ de Epicuro construidas dentro de nn6s; vemos errar em liberdade, durante a noite, as tou- peiras selvagens ¢ os lobos que a razio do dia mantinha acorrentados (4), Os dramas, as visdes ¢ as vozes que (4) — Albert Béguin, op. elf,, p. 188. — 10 — 4 CRIAGKO PoeTTCA nascem ¢ se movem nos estados oniricos aparecem assim como uma espécie de poesia involuntiria, a cuja eclosio © poeta assiste muravilhado, Alids, 0 sonho propicio a0 acto_poéticn_niio_é forgosamente mecenc onirica decorrida durante 0 sono, pais os estados de sonho que se Vetificam noutras condigoes, como os éxtases provocados pela misica, por uma recordagio especial, etc., so igual- mente importantes, A criag3o poética, no romantismo, é sempre irmi do sonho, porque em ambos os casos a beleza ¢ 0 mistério revelados nio se filiam numa elaboragio cons- Gente, mas constituem algo que floresce no poeta € no sonhador sem qualquer En voluntirio por parte des- tes: «O_verdadeiro poeta, afirma Jean Paul, nio_é 20 escrever, senio_o na0_O c- © ‘teres; quer dizer que nio compée 0 didlogo cosendo ponta 2 ponta as réplicas, segundo uma estilistica da alma que teria penosamente aprendido; mas, como no sonho, vé-os | agir totalmente vivos, ¢ escuta-s...»('8). A criagio po& tica pode m as suas raizes, portanto, no sonho nocturno, partilhando o poema das revelagdes obtidas pelo poeta durante o sono. A obra poética assenta fundamen- talmente, nesta perspectiva, na transposi¢io operada pelo autor, durante a vigilia, dos elementos oniricos. Por outro lado, 0s estados de sonho, de réverie, verificiveis fora do sono € izados pelo enfraquecimento da fangio do real ¢ do sentido da exterioridade, ¢ ainda por uma poten- Gagio anormal das faculdades da alma, ¢ da imaginagio em particular, igualmente sio considerados como momen- tos ideais da criagio poética. me i Frequentemente, alids, © romintico provoca - cialmente estes estados oniricos a fim de colher, no éxtase que acompanha tais experiéncias, 0 segredo do acto cria- (8) — Albert Béguia, op. cit. p. 189. -m— PEORIA DA LITERATURA dor. O 6pio constitui_ uma droga utilizada_com esta fina- lidade ¢ Coleridge parece dever, segundo _a sua répria

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