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rd: Oxford La vor del otro ____. “Testimonio and. postmodernis Gugelberger (ed.), The real thing. Durham: Duke University Press, 1996. ), La vox del otra: testin iva. Lima, Pittsburg: Latinoa 350 LITERATURA E CATASTROFE NO BRASIL: ANOS 70 Renato Franco* Literatura e catdstrofe Em passagem célebre, o filésofo alemio Theodor W. Adorno afirmou em ensaio de 1949 — logo apés o fim da guerra, portanto — que “Escrever poesia apés Ausch- witz é um ato de barbirie”. A frase — polémica, sem di- vida — nao deve ser interpretada de modo literal: a0 contrario, com cla o autor parece antes apontar para 0 desconforto que doravante toda arte ou ¢ talvez até mesmo toda produgio cultural que nio se te- nha degradado em mero entretenimento — teria que en- frentar, visto que, enquanto manifestagio espiritu: + Unes 351 lectuial — regida pelo principio de estilizagio artistien —, cha no pode pe centragio. Afinal, as obras de arte participam da socieda- de ¢, nessa medida, da barbaric, pois esta nio foi ainda superada: uma sociedade que permitiu o aniquilamento planejado de multidées afeta, como uma mancha indelé- vel, toda configuragio estética ¢ converte em escarnio a obra que finge nao ouvir o grito de horror dos massacra dos. Essa situagio desconfortével da literan Epoca exige dela dois aspectos fundamentais: a de lutar contra 0 esquecimento e contra 0 recalque, isto é lutar contra a repetigio da catistrofe por meio da ememoracio do acontecido. A observagio de Adorno parece assim conter uma exigéncia: a de que, mediante tal postura, a arte deve auxiliar os homens a lembrar do que as geracdes passadas foram capazes para, desta maneira, poderem efe- tivamente evitar que a catastrofe possa ainda eclodir. A arte, neste sentido, pode ser considerada uma forma de resisténcia e compreende uma dimensio ética, enquanto manifestacio de indignagio radical diante do horror Como cla, porém, pode apenas resistir 4 légica embrutecedora da sociedade, mas nao eliminé-la, a possi- bilidade de que a catstrofe venha novamente a ocorrer é sempre uma ameaga real: tal fato nio sé nio permite A arte livrar-se dessa condigio desconfortivel, comoa reforga per- manentemente, Assim, embora ela tenha desde entio combatido, sua maneira, para que nenhuma catastrofe pu- desse ocorter, sua objetiva imporéncia — que nio a des- merece — tornou-se manifesta, por exemplo, com o aparecimento das ditaduras militares nos paises da Améri= a Latina — como no Chile, na Argentina ¢ no Brasil — que propiciaram o ressurgimento de novas ondas de cavis- ‘oF © sofrimento ex- mais ignorar nentado pelas vitimas do nazismo nos campos de con- de nossa 352 trofe, as quais implicaram em politicas de exterminio premeditado de contingentes de opositores, em massacre dos humilhados, em supressio dos direitos civis, em tor- tura sistematica contra vitimas indefesas, em repressio ¢ indiscriminada, em imposigao de brutal sofrimen- to fisico a considerdvel parte das populagdes desses pai- ses, entre outras atrocidades. Como conseqiiéncia deste perfodo truculento e sombrio de nossa histéria pol recente, uma das questées que se impée ao pensamento que, de um modo ou de outro, tenta se opor a versio ofi- cial dos acontecimentos — ao contexto de ofuscamento que a reveste — é a de investigar como a produgio cultu- ral — particularmente a literdria — configurou essas atro- cidades perpetradas 4 época da ditadura militar no pais (1964-1985) e como reagiu — literariamente, é claro —a clas, Esta é a matéria central desse ensaio. A cultura da derrota Logo apés a decretagio do AI-3, em dezembro de 1968, o governo militar procurou interferir na vida cul- tural por meio da adogio de rigida censura dirigida tanto 4 seus virios setores como contra todo tipo de obra: essa censura — tentativa de suprimir a voz. da sociedade — no foi sendo a conseqiiéncia, ou mesmo o prolongamento, da politica fortemente repressiva por ele adotada no com- bate aos partidos e organizagdes de esquerda remanescen- tes da década anterior. A censura exigiu da produgio cul- tural da época o rompimento dos lagos entre a cultura ea politica, os quais foram tecidos nos anos 1960 a0 sabor de acentuada radicalizaga¢ ideolégica de alguns dos setores da classe média, como os estudantes. Desta maneira, se, 353 na década anterior, a prosa romanesea pode experimentar uma pluralidade de rumos — entre os quais se destacam tanto a via da desilusio urbana”, a qual inclui obras como Engertaria do casamento, de E. Nascimento (1968), ou Bebel que a cidadle comeu, de I. L. Brandio (1968), como a do romance propriamente politico, como Quarup, de A. Callado (1967), ou Pessach: a travessia, de C. H. Cony —, no inicio d década de 1970 a literatura se tensa sensagio de sufoco (“de esquartejamento”) que conta- ava a atmosfera truculenta de entio — tarefa que pre- ria, que pode ser denominada de “romance ut forcada ou a elaborar it dominou na poesia, hoje chamada de “marginal” ou de “ge- racio do mime6grafo” —owa narrar os impasses do escritor que nio sabia decidir se cra mais necessério escrever ou fazer politica, constituindo assim um tipo de romance desiludido tanto com as possibilidades de transformagio revolucionstia da sociedade como com sua prépria condigio, do qual Os novos, de L. Vilela (1971), Combati 0 bom combate, de A. Quintella (1971), ¢ Bar Don Juan, de A. Callado, sio os mais representativos. Essa cultura despolitizada, vigiada ¢ adminiserada pela censura, desiludida com a derrota das es- querdas, podemos chamar de “cultura da derrota” Enquanto alguns dos romances dos anos 1960 re- correram, por forca de seu proprio movimento, 4 adogio de procedimentos literirios pouco explorados em nossa historia literdria — como a fragmentagio e a montagem, que constitufram representagées diversas do processo revo- lucionério ou, ainda, profissional em militante revolucionsrio, configurando des se modo 0 ideal do escritor engajado —, os romances da cultura da derrota aparentam maior apego &s formas consa- gradas em nossa prosa de ficgio e elegem como temas fun- damentais alguns dos dilemas ou dos aspectos tipicos dessa tive condtz o leitor & indignagéo diante do horror, mas, a0 contririo, parece desencadear um efeito “de desre gio” temas seja res, seu desenvol 359 dos acontecimentos que reconforta ¢ trangiiliza — ja que sempre é possivel sobreviver — quem o é A “eeragio da repressio”: literatura de testemunbo Outro modo literitio de reagir 4 brutalidade de nossa histéria politica da década de 1970 € constituido pelo que poderiamos chamar de romance da “geracio da repres- sio” (conforme sugestio de A. Candido), composto por obras de ex-militantes revolucionérios que, apés serem presos ¢ torturados, constituindo assim uma verdadeira literatura do testemu- nnho: dentre estas, merecem destaque Em camara lenta, de R. Tapajés (1977), ¢ O que isso, companbeiro?, de ¥ Gabeira (1979). Esses dois livros atualizam uma constante em nossa literatura: cles sio, em certo sentido, textos me- morialistas. Entretanto, se, no mais das vezes, a presenca deste tipo de obra entre nds deve-se ao fato de que a paisa- gem social brasileira muda muito rapidamente — particu larmente no século passado, tornando assim necessiria a Jembranga do que desapareceu—, estes dois testemunham esolvem relatar suas experiéncias, experiéncias trauméticas verificadas na luta revolucior ria e, em especial, nas pris6es organizadas pela repressto politica do Estado militar — matéria semelhante a de Me- mérias do earcere, de G. Ramos. Desse modo, eles teste- munham acontecimentos excepcionais que, para um leitor incrédulo ou politicamente nio-desconfiado o suficiente, podem parecer, por sua natureza absurda, barbara, quase inverossimeis, fato que cria dificuldades consideraveis a este tipo de obra. A tarefa de lembrar a tragédia, de narrar 6 niicleo dos fatos — enfim, de narrar a historia a con- trapelo —, envolve ainda o enfrentamento, por parte do 360 narrador, do sofrimento experimentado, além de alimentar rele esperanga de que tal narracio seja um meio de acusar 0 inimigo pela barbaric perpetrada, impedindo-o assim de continvar a adotar tais préticas. O livro-depoimento de F. Gabeira é amplamente cignificativo nfo s6 por apresentar uma prosa depurada, como também por reconstituir os varios aspectos implica- dos na experiéncia traumética daqueles que aderiram 3 guerrilha ¢& luta armada, além de desvendar a brutalidade extrema das priticas adotadas pelos 6rgios de repressio politica. Apresentam também extraordinario interesse tanto o relato do despreparo pratico dos revolucionétios ou das condigdes precarias em que atuavam como o do len- to.e rervivel processo de fuga e de insulamento a que foram submetidos. O livro é, neste sentido, 0 relato “de uma ver- dadeita descida 2o inferno”, conforme assinalou D Arrigucci (1987, pp. 119-40). Se Gabeira optou pelo depoimento direto, ou seja, pelo testemunho, olivro de R. Tapajés — que também deve ser incluido na literatura de restemunho — opta pela vi cstética para desenvolver a narragio do trauma fundamental sofrido pelo narrador-personagem. Vale aqui lembrar que ‘0 trauma € 0 acontecimento que n4o pode ser assimilado rem enquanto ocorre, n a nao ser de modo pouco satisfatério, conforme assinalou M. Seligmann-Silva (1999, pp. 40-47). O trauma, no caso, resulta da prisio e da barbara tortura sofrida por sua com- panheira — que, como ele, era também militante da mesma organizagio revolucionaria —, seguida de sua execugio cruel, em estabelecimento militar. Incapaz tanto de enfrentar tal acontecimento como de entender a cadeia de fatos que culminaram com tal acontecimento trigico, 0 niicleo do trau- ma — a execugio, sob tortura, da sua companheira — & ia 7 mesmo em tempos posteriores, 361 freqiientemente repetido na narragio, como se fosse um flash back cinematogrifico exibido em cimera lenta. A narragio € assi n a tentativa, por um lado, de eselarecer tal eragédia c, por outro, a de narrar sua prépria prisio ¢ 0 simultineo desmoronamento do projeto politico revolucionirio aca- lentado pela organizacao em que militou. Ela 6, sobretudo, isto é, um esforgo descomunal para narrara histéria inte para recompor todos os nexos que teceram a fina malha dos acontecimentos que culminaram na execugio de sua companheira. O ato de narrar assemelha-se portanto a um instigante quebra-cabega, que, pouco a pouco, por meio do acréscimo de detalhes minimos a experiéncia traumstica, acaba poradquirir configuragio nitida, Reconstruit essa his- t6ria — salvi-la do esquecimento — é, no entanto, tam- bem um formidavel ataque ao inimigo, uma vez. que ela abrange tanto a dentincia da barbétie e das atrocidades por cle cometidas como a reconstituigao do rosto desfigurado dos mortos, os quais tentaram, no passado, construir uma vida diversa da do atual presente. Narrar as unas dessa tentativa € um modo de atualizé-las. O livro nao realiza assim apenas a tarefa de cultuar e redimit os mortos, j& que, ao mesmo tempo, inscreve no céu atual o brilho de relimpago daquilo que em outro tempo foi sonhado ou pensado: ele libera, nesse claro, a centelha de vida que ainda pulsa no coragio gelado daquilo que se converteu em ruina, O romance de resisténcia A produgio literiria, apés 0 inicio da politica de abertura, nao se resumiua esses tipos de obras: ela conheceu também o aparecimento de uma formidével safra de roman- 362 ces originals, que superou tanto a pouca ousadia estética predominante no inicio da década como o universo temitico caracteristico da cultura da derrota. Ela retomou a elabo- ragio do que denominei de “linguagem de prontidio” (Fran- co, 1998) — isto é, de uma linguagem literaria capaz de incorporar, em seu corpo de signos, os clementos do pre- ‘ente (como cartazes, manchetes de jornais etc.) ou os procedimentos técnicos oriundos de outros meios expres- sivos (como radio, cinema ou televisio) —, a qual confere a0 romance um valor de atualidade, mesmo diante do imenso poder da televisio: assim, essa safra recorreu a0 uso da montagem, da fragmentacio, 3 multiplicagio dos pontos de vista narrativos — modo de diferenciar sua lin- guagem da televisiva — e, ao mesmo tempo, narrou a contrapelo a histéria politica pés-1968, esmiugando seus virios aspectos e constituindo, desse modo, uma figuragao desse universo até entio reprimido ou recalcado. A essa safra literdria — que inclui obras como Cabeca de papel (1976) ¢ Cabega de negro (1978), ambos de P. Francis; Reflexos do baile (1976), de A. Callado; Zero (1979), de I. L. Brandao; Confissoes de Ralfo (1975), de S. Sant’Ana; Operagao siléncio (1979), de M. Souza; A luz do dia (1977), de O. Louzada; Lavowra arcaica (1976), de R. Nassar, entre outros —, podemos chamar de “romance de resisténcia”, visto que de fato essas obras souberam ofere- cer respostas literdrias tanto as atrocidades do perfodo di- tatorial como 4 modernizagio econdmica e social, autori- téria e conservadora, que o pais entéo conheceu. Parte desse romance de resisténcia, porém, nao se limitou a elaborar a linguagem de prontidio ou a narrar os aspectos mais sombrios origindrios dos conflitos politicos do periodo — como a cortura, a perseguigio politic pressio violenta (que nao atingiu somente os militants), are 363 as prises, 0» seqestrosy a inimidade dhs organiiaghe™ ou “trios, o funcionamento do aparato dos partidos revolucio repressivo do Estado, a violencia eotidiana, 0 sofrimento re camadas populares ou o insulamento dos militantes,¢ Toucura, 0 exercicio arbitririo do poder —, mas também se propos a produzir ‘uma consciéneia literiria original acerca th prépria condigio ealeance do romanceem wr sociedade sutoritaria e na qual viceja a poderosa indisteia cultural: @ are omance — parte do “de resistencia” —, podemos cha- sar de “fiegao radical”. Seus melhores exemplos si0 dados por A festa (1976), de I Angelo, Quatro-Olbos (1978), de R. Pompeu, e Armadilha para Lamartine (1976)+ de Carlos Sussekind "A festa pode ser considerado © romance paradig- nitica da cada de 1970: de fato, nele se cruzam, de modo Complexo € nem sempre bem articulado, tanto 2 adigio Socumental de nossa literatura — que © anima a nArrar © tieiverso politicamente conflitante do perfodo ua denun- Gara violencia nele contida—como a tendéncia que obriga © romance a refletir sobre sua natureza ou sobre sua condigao de existéncia em uma sociedade que The ¢ hostil ‘Com jeso, ele apresenta uma estrutura complex cOmPOS ta, de um lado, por fragmentos & moda de contes autdno- mos que, porém, estio relacionados na parte final, ¢, de Guero, por rellexdes fragmentérias do narrador ni0 36 s0- care Faboragio da pr6pria obra, mas também sobre 08 iumpasses gerais da literatura nessa éPoc. A festa, nesse papecto, € umn romance alegoricd, isto 6 NO apresenta srry uma roralidade orginica, mas, 20 contrério, Ams roan vomizagao de cada parte, o que requer tanto 2 Frage mentagio como a montagem (Franco, 1998). Quatro-Clbos 6, sem davida, um dos romancet anais instigantes da época, embora talvez, mio se dos mais 364 prestigindos pelo paiblico leitor. Nesse aspecto, a8 obras do pesrnorialismo suplantam-no, assim como acorre em A festa, que teve grande repercussio, No entanto, embora © Tiwre de R. Pompeu ocupe lugar destacado — por sua ore sinalidade —na constelacio literiria dos anos 1970, ee nie “Teina de desenvolver temas andlogos aos de muitos roman ces do perfodo. Pode-se inclusive, observar que ele maném relagGes estreitas com Em cimeralenta: como este, é também ‘bra que pode ser classifieada como “iteratura do trauma” (Geligmann-Silva, 1999, pp. 40-47). Em certo sentido, 0 de Ie Tapaids, por efetuar uma espécie de critica a Pessach mvessia, de C. H. Cony — visto que seu narrador € um ee mltance revolucionario que narra para entender a légica flos acontecimentos que o vitimaram, enquanto o deste se transforma em revolucionério—, ajuda na tarefa de superar t narragio politica rumo a valorizagao da politica da narrae Gao, ou Sea, 20 reconhecimento das possibilidades eriicls contidas no ato rativo, o que nao deixa de ser um modo oh resist 3 censura — que, apesar de tudo, ainda nao fora completamente extinta — € & repressio politica. Quatro-Olos é obra elaborada e bastante singular: articula varias narrativas simulténeas, fragmentirias, pouco vfetas a um coragio cronolgico, freqientemente susten- tadas por urna linguagem aparentemente de cardver ane realist, que, porém, provém da natureza rarefeita das pro pras relagbes socinis modernizadas. Sua maréria principal evulta de experiéncia traumética do narrador, a qual the é vocialmente imposta: Quatro-Olhos teve 0 apartamento invadido pela policia politica que tentava capturar sua mulher -— professora Universitaria € militante revolucion nria que, no entanto, conseguiu fugit. A policia vaseu- Theta resdéncia e confiscou um liv, que ele diseiplinada- mente havia escrito “durante todos os dias, exceto numa 365 segunda-feira em que foraacometido de fi entre os 16 ¢ 29 anos, Como a mulher ¢ tinicos elos com a re ia de aco ;0¢ brutal como con- tra o dese 4 de- senvolveu c a lade, sendo entio internado em uma cl Ao se rea i saver 0 livro perdido; entretanto, aps indimeras tentativas — algumas verdadeiramente extrava- gantes —coneluiu que tal proeza sei possivel. Decidiu, entio, reescrevé-lo, mas ao tentar fazé- lo percebeu que nao se lembrava de nada dele. Reescrever o livro perdido, cuja substincia fora frencar nova ordem de difi- culdade que, no entanto, realga a natureza de seu esforgo: este tem conseqiiéncias politicas. De fato, ao tentar lem- brar-se que outrora cle préprio narrou, ¢ obrigado, nesse movimento, a se deparar com sua condigio de homem cindido: o contetido do esquecimento esti relacionado & sua propria identidade, a0 que, no passado, ele mesmo foi Torna-se, assim, consciente de como esti dilacerado, inca- paz de unir o passado ao presente. Desta maneira,a narragio agora comporta duplo sentido: a luta pela reconstituigio ‘ro original é tanto a luta para superar 0 esquecimen- to — para recuperar a matéria socialmente recaleada — como para reconstruir sua prépria histéria e, nessa medida, sua identidade, 0 que talvez s6 seja vidvel em outra condigio social. Esse aspecto confere 4 narracio tanto a dimensio de deniincia do sofrimento a que a sociedade o submete — 0 que a transforma em um modo de criticar a realidade po! tica de entio — como, por inversio dialética, a de manter 366 .s esperangas de que um dia a vida nao seja assim. A 11} felicidade: "Me pus a ese para criar um mundo correto em meio ao mundo falso em que vivia” (Pompeu, 1976, p. 127). © narrador narra, portanto, porque presente que algo de fundamental foi esquecido; mas, enquanto io puder eliminar esse esquecimento, s6 poder narrar tomado por forte sentimento de desorientagio, de angus tiante sensagio de “desmoronamento do mundo”: “vi a minha vida como uma casa desabada”, afirma (Pompeu, 1976, p. 100). Nesse sentido, ele implica diferentes tenta- tivas inGteis para reescrever o livro perdido: essas tentativas io 0s (des)caminhos necessirios da narragio e remerem 40s itinersrios imprevistos das narrativas kafkianas, as quais jo mitam alvo algum. Esses (des)caminhos do texto, ainda que no conduzam A recuperagio do livro original, sao um modo de manter vivaa chama que aquece o desejo de narrar. Nesta medida, o alvo seereto do narrador nao € mais recuperar o material esquecido, o saber ea experiencia nele eventualmente contidos, mas o de comunicar que algo de fundamental foi esquecido. ‘A narracio final —a do livro verdadeiramente es- crito — nio coincide com a do livro original. Vista desse Angulo, ela reitera a situagio inicial ¢ redunda em fracasso. Entretanco, a existéncia mesma do livro é um modo de re- sistir aquelas forcas sociais do presente que exigem oesface- lamento do individuo, da subjetividade ou de tudo aquilo que elas nio podem submeter, por nao tolerarem o que di- fere delas mesmas. Dessa maneira, o livro de R. Pompeu pode também ser visto como um modo de narrat mente os impedimentos sociais do ato nartativo e, portanto, como forma de resisténcia as atrocidades da época: contra ‘a sociedade repressiva, ele privilegia o proprio ato de escre- 367 essa medida, como outros s contidas na Barcelo- diea, 1975, Cattapo, A. Bar Dor leira, 1977. rap, 8 ed. Rio def 1978, —____. Reflexos do baile, ¥ ed. Rio de J Tapajos, R. Em can 1977, Conv, C. H. Pesach: « travessia. Rio de J a, 1967. Pilatas. Rio de Ou 0 Riv, dis RANGA JUN 1981 _ . Cabe; 3, 1979 gro, 26d. Ri e papel. Rio de | romance pi 369

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