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gens reais recriadas ou apenas viagens imagindrias, normalmente apresentadas sob forma de romances ou contos. A segunda, a litera- tura de viagem, objeto maior de nosso estudo, registra eventos reais, algumas vezes mesclados com fantasia. Esses escritos, por sua natu- reza heterogénea, assumem diferentes formas conforme exemplifica- ‘mos: o Ditirio,de Colombo; a Carta, de Pero Vaz de Caminha; a Re- lasio do Piloro Anénimo; a crénica de frei Gaspar de Carvajal. Analisamos duas historiografiasliterdrias e nos certificamos de que os textos produzidos durante os séculos XVI e XVII sobre 0 Brasil apresentam valiosa contribuigio para a Historia e para a Lite- ratura. Alguns deles podendo se constituir como fonte primaria para pesquisa nas reas da antropologia, da botinica, da zoologia, dentre ‘outros campos do saber. Analisamos separadamente 0 Descobrimento do rio de Orella- 1a, de frei Gaspar de Carvajal, discutimos alguns aspectos presen- tes na obra, como a marcagio temporal, feta a partir de uma perspec- tiva religiosa ~ “dia de Nossa Senhora da Candelécia’, “Quaresma’, “festa da Ressurreigao' “dia de Sio Marcos” ~ a nomeagao dos espa- (408, realizada com indices identificadores ~“rio da Trindade’,“rio Ne- 80; ‘provincia dos Negros, povoagio da Rua’, Além da presenga do mito das amazonas no discurso do cronista. Abordamos algumas teméticas expressas no Novo descobri- mento do grande rio das Amazonas, do padre Cristbal de Acuiia, tais como o clima temperado da terra; as Arvores frutiferas, as raizes comestiveis, as plantas medicinais, nos aspectos da flora; 6 peixe, 0 quelénio, o animal silvestre, com referéncia & fauna. Além do enfo- que cultural concernente ao nativo. Confrontamos os discursos de Carvajal e Acusia e salvaguardan- do as condigées histéricas de quase um século entre os dois escritos e as caracteristicas individuais de cada autor, concluimos que os dois cro- nistas convergem seus textos para o documental, com 0 uso reiterado da primeira pessoa do discurso, com emprego de certo verbos, ‘ver’, “cestemunhar’ “dar f€,€ com maneira clara e objetiva na exposigao de faros. Apesar disso, hd aspectos de esséncia literéria nos dois textos 146 AMAZONIA NA VISAO DOS VIAJANTES DOS SECULOS XVI E XVII percebidos por meio do frequente emprego de figuras de linguagem, na expressio das ideias; da subjetividade na interpretagio de dados e da presenga do maravilhoso, que mescla a ficsio coma realidade. Por tudo isso, podemos afirmar que as crénicas desses espanhéis sio textos pa- ralicerdrios que transitam entre a histéria ea literatura. Concluimos, ainda, que Carvajal e Acuiia podem ser considera- dos os escritores da conquista da Amazénia, iniciada no século XVI «efundada em bases opostas, mas complementares. De um lado hé.o ‘estrangeiro, com valores crencas estabelecidos em padrées da oficia- lidade branca e, de outro, 6 nativo imerso num mundo mental primi- tivo, mitico, com sua vida moldada na prética e na experiéncia de ha- bitar numa regito tio singular, havendo por tudo isto a interferéneia nos registros dos viajantes. As crénicas de Carvajal no século XVIe de ‘Acufia no século XVII representam as primeiras impressbes da Ama- 26nia luso-espanhola e reproduzem o olhar desse viajante estrangeiro sobreaterra. ‘Também pontuamos a maneira de cada cronista organizar © seu trabalho: enquanto Carvajal redige © Descobrimento do rio de Orellana seguindo a ordem dos acontecimentos, Acufa distribui os eventos do Novo descobrimento do grande rio das Amazonas por cordem de assunto. Dessa forma, a obra do dominicano é eminente- ‘mente narrative-temporal e se aproxima de um dirio; a do jesuita é cespecificamente temitico-descritivae se assemelha a um relatério. Carvajal e Acuia, dois tempos, duas histérias que se cruzam sob, «© mesmo objeto, a viagem pelo rio Amazonas, também chamado de Rio Grande, Rio de Orellana, Rio de Maranén, Rio das Amazonas, por alguns viajantes. Se a Carvajal coube o privilégio de ser 0 primeiro anavegiclo em toda sua extensio, Acuia teve a primazia de integré-lo ahidrografia brasileira. AURICLEA OLIVEIRA DAS NEVES »147 tas demonstram que hi a diversidade de etnias e variedade de lin- guas. Retratam o modo de viver desses povos que nio se mostram to diferentes apesar do lapso temporal entre as duas crénicas. Nenhum deles reclama do sabor dos alimentos, do clima; nio registram ne- nhuma tempestade, tio comum naquela regiio; ao contrario, des- lumbram-se diante de alguns fenémenos da natuteza, como o encon- ‘ro das dguas do rio Negro com 0 rio Solimées. Chamam a atengio para alguns elementos da fauna e flora como a mandioca, o peixe-boi, a tartaruga,o peixe-elétrico. Além dos aspectos citados, 0 providen- cialismo divino e a necessidade de carequese sio também demonstra dos nos dois discursos. Os cronistas nio se isentaram dos mitos de viagem, a exemplo disso, Carvajal encontrou as amazonas e Acunagigantes de dezesseis palmos de aleura, andam nus e usam enormes medalhas de ouro nas orelhas e no nariz,* ou seja, 0 maravilhoso™ se fez presente tanto no Descobrimento do rio de Orellana, de frei Gaspar de Carvajal, quanto no Novo descobrimento do grande rio das amazonas, de Cristbbal de Acusia. £244 ACURA, Cistbal de. Novo descobrimento do grand ro das amazonas.Traducdo de Helena Ferrera, Rio de Janeir: Agr, 1994, p. 134 £245 Sobre a presenca do maravithoso em registros de viagens, deve-se confer: GIUCCI, Guillermo. Vigjntes do marovitaso. Sao Faulo: Companhia das Leas, 1992. 144 AMAZONIA NA VISAO DOS VIAJANTES DOS SECULOS XVI E XVIL « CONCLUSAO » A VIAGEM CONTINUA (Os documentos dos descobridores, navegadores, on- uistadores e cientstas que, desde o século XVI até hhoj,tém deixado o seu restemunho sobre a navegagio cdo Grande Rio, revelam, desta forma, ao lado das ver- dies ‘cencas anrpoligcasnoramente idenciadas, a persistencia de muitos t6poi Fhrados na rain epesenes no horizont dea fet eserves rotate memoria anes exo de iniciarem a viagem, estes lugares-comuns incorpo- ram-se ao discurso cientifico. No liv da natureza ca- cdatum de nés lécom os olhos da sua culrura, de sua ex- ppectasio ou, como dizem os semidlogos, do seu regi- rede espera.” ‘Viajando pela Amazénia, nas rotas e trilha deste livro, tivemos a oportunidade de discutir a literatura de viagem que pode ser deno- ‘minada também de escritos de viajantes, "textos de viajantes,"croni- cas de viagens, "literatura de eestemunho' “literatura informativa’, nomenclaturas que historiadores e criticos lierdrios chamaram a0 corpus textual produzido a partir da presenga in loco do viajante ou pelo conhecimento adquirido por intermédio de outrem. Estabelecemos a diferenga entre a narrativa de viagem ¢ a lite- ratura de viagem. A primeira é a literatura ficcional elaborada por um autor, travestido de narrador que relata, por meio de um enredo, via- 246 PICCHIO, Luciana Stegagno. "Rio abairo. Uma navegacdo literiria do Amazonas de ‘Orellana a ules Verne". In: Mor abert. Lisboa: Caminho, 1999, p. 256. AURICLEA OLIVEIRA DAS NEVES 145 Se et cimeetiors nalmente, pode-se contar com a multidio de gente {Le} para conseruirrancos galedes quantos se queiram péremeseaeiro.”" Consciente da missio a ele imposta, 0 jesuita desincumbe-se da tarefa com muita propriedade, por isso é prédigo nos assuntos de que ‘trata sua obra. O éxito da viagem de Pedro Teixeira por toda extensio do rio Amazonas contribui também para isso, Dessa forma, olhar do cronista é“dirigido’ filera aquilo que gostaria de informar ao reino es- panbol, construindo um discurso de persuasio ¢ convencimento. Nos dez meses de exploragio do rio Amazonas, Acufa tem a ‘oportunidade de contrapor sua expedigio com outras que navegaram pelo mesmo rio anteriormente. Percebe-se que hi conhecimento his- t6rico e geopolitico, e em nenhum momento se descuida da tarefa de arrolar a“riqueza’ existente nas terras percorridas e relaté-la para 0 rei, de quem é sidito. Por tudo isso, é visivel a minudéncia de suas descrigées acerca da terra e de sua gente, que 0 cronista desdobra em vitios outros as- suntos. Sobre a terra, aborda: a penetracao e posse do territério} riedade da fauna e da flora; 0 aproveitamento econdmico dos produ- tos da natureza; a avaliacao do clima e do solo. Sobre o nativo, pon- tua: a diversidade étnico-linguistica; a organizagio tribal; os ritos; as festas; as armas; 0 artesanato; 0 modo de pescar e de se alimentar. A natureza para Acusa é paradisiaca: "Desta aprazibilidade de climas provém sem diivida o frescor de suas margens, que coroadas de virias belas drvores, parecem estar & porfia, desenhando novos paises, em ‘que a natureza se esmere ea arte aprenda’** ‘Nito obstante Acuia ter exaltado os valores existentes no terri- tério amazénico ¢ dedicado seu livro ao Conde-Duque de Olivares, 247 ACUWA, Cristal de. Novo descbvimento do grande ro das Amazonas. Traducio de Helena Ferreira, Rio de Janeiro: Ag, 1994, p. 88-89. 242 ACUINA, Cristobal de. Nova descobrimento do grande ro dos amazones. Traducao de Helena Ferreira, Rio de Janeiro: Ag, 1994, p. 87. 142¢ AMAZONIA NA VISAO DOS VIAIANTES DOS SECULOS XVI poderoso valido do rei Felipe IV, o Novo descobrimento do grande tio das Amazonas tem pouca receptividade em fungao da politica Juso-espanhola, em fase de rompimento da uniso entre as duas co- +0as. O rei da Espanha, temeroso das revelages contidas na obra, no autorizou de imediato sua publicagio. A nova conjuntura politi- ca possibilita a Portugal a posse da Amazénia como parte integrante do Brasil e o livro de Acufia nao seria benquisto, em razio de ter si- do escrito para a coroa espanhola. Trés anos depois da viagem, em 1641, é publicada a primeira edig20 no idioma do autor, em uma ti- ‘ragem pequena, quase indisponivel para o piblico. O texto de Car- vajal, por outro turno, s6 foi publicado integralmente em 1894, tre- ‘zentos anos depois da expedigio. Marcio Souza nao analisa especificamente os discursos desses croniscas, mas o legado escrito deixado por amazonautas de um mo- do geral, Carvajal e Acusia se incluem entre eles, pois €a partir desses textos fundadores que, ‘A Amazénia abria-se aos olhos do Ocidente com seus tos enormes como dantes nunca vstos ea selva pela pi ‘meira vez deixando-se envolver. Uma visio de deslum- i ni esperavam conhecer tantas novidades. @ As nareatvs dos primeiosvigjantes imitaram ess perplexidade e, como representacio — quer fossem uma igri ou necesidade - ofereiam 20 mundo ‘uma nova cosmogonia; dramaturgia de novas vidas ou ceapelho de novas possibilidades, ral era o esprito de todas elas, enunciando e formulando o direto de con- ‘quistar dos desbravadores portugueses.”” Quanto & convergéncia dos discursos, ela & percebida em mui- tos aspectos principalmente em relagio & fareura de casa, pesca, feu- +05, raizes. Embora a expedicio de Orellana passe fome, Carvajal nio afirma que a terra seja pobre em alimentos. Também os dois cronis- 243 SOUZA, Marcio. A expressdo amazonense: do clonialismo ao neocolonalismo. S80 Paulo: Afa-bmega, 1977, p. 53. [AURICLEA OLIVEIRA DAS NEVES » 143 vivencia desenvolvidas pelo capicio Orellana ¢ seus — os ¢ perigosa. Carvajal ext em des- Ereverdetalhadamente os Taos dude pel gros (0 motivos as razbes plas quais 0 aot Beierecisc ness eterna figceabctar ene ot epanhiiseo nos eee: :mordialmente chamando a nossa atengio para aesper- teza, a coragemy a inteligéncia,aforga de vontade, 20 ‘mesmo tempo, para as fraquezas, as desventuras, os medos daqueles homens frente a uma situacio sem precedents, Nao hava lugar para persuasio, Era ‘mais urgenterelarar uma saga. O texto de Carvajal, portanto, se mostra isento da intengio es- pecifica de documentar. O registro do cronisea é circunstancial, seu olhar é “esarmado live de compromissos com quem quer que seja, cembora imbricado de cultura europeiae religiosa. Pelo faro de Orella- na nao visar 4 conquista e sim buscar a ajuda para a expedigao de Gonzalo Pizarro, “nao se pode dizer que o narrador aqui possibilita cexpliciramente a construsio de uma justificativa para que a coroa es- panhola se interessasse pela exploracio daquele lugar’, conforme assi- nla Koch, no mesmo ensaio. Nao ha persuasio para o governo espa nol colonizar as terras, como Cristébal de Acuiiao faz em seu texto. Mesmo sem pretender a meméria histérica, o texto carvajaliano serviu para isentar Orellana da pecha de"traidor’ divulgada na Euro- paena América espanhola, segundo Guillermo Giucci: Para Gonzalo Pizarro, como também para a coroa es- ppanhola, Orelhana conwertia-se num rebelde. Na carta Pizarro enviou 20 Rei em 1542, Orelhana fetratado como tum rebelde desalmado, que concret- ow 2 maior erueldade que nunca homens sem fe te- 239.KOCH, Ingedore Grunfeld Vilaga, BENTES, Anna Christina: FIGUEIREDO, Aldrin Moura. “A descoberta do Brasil pela Amazdria: 0 relato de viagem de Frei Gaspar de Camvajat’ In: 0 discarso do descobriment: 500 e mais anos de dicursos. Diana Luz Pessoa Baros (Org). Sao Paulo: Edusp;Fapesp, 2000, p. 81. 140 AMAZONIA NA VISKO DOS VIAJANTES DOS SECULOS XVI E XVIt ‘nham demonstradet Conhecida na historiografia como “atraigio do zarotho Orelhana, a versio se caracteriza ‘por colocar a ambigio pessoal acima da solidariedade ‘grupal, ea ilusio de riqueza ou fama acima da promes- stedzhonra.™ ‘Apesar de Francisco de Orellana ter recebido do rei da Espanha a Nova Andaluzia, nome com que foi batizada a regiio amazénica que percorreu, nio houve ocupasio, nem conquista daquele territs tio, Orellana e Carvajal apenas seguiram a trilha que pudesse levé-los a satisfazer suas necessidades imediatas: a sobrevivéncia pessoal e de seus companheiros. Diferentemente de Carvajal, 0 texto do padre Cristébal de ‘Acuiia registra a viagem de Pedro Teixeira pelo rio Amazonas no petiodo de 16.2. a 12.12.1639, no mesmo trajeto de Francisco de Orellana. © cronista se apresenta ao comandante da armada, na condigao de cronista do rei de Espanha, Felipe IV. Para a execugio desse encargo era necessirio ser um pesquisador atento ¢ minucioso, focalizar com precisio 0 objeto ¢ ser criterioso para relatar aquilo que seria mais importante & sua majestade, Seu discurso se mostra hiperbolicamente positivo, persuasivo, conclamando 0 monarca es- panhol a assumir nao sé a posse da terra, como também melhor aproveitar os bens de sua propriedade, conforme demonstra num tzecho sobre a construsio de navios: ‘Sito iniimeras as érvores neste rio, tio altas, que pare- ‘cem subir até as nuvens, e ei grossas, que causam es- ‘panto, como o cedro com trinta palmos de circunfe- réncia que medi com minhas maos. Na maioria, pro- duzem tio boas madeiras, que melhores nao se pode- slam desejar[~] paraa construgio de embarcagoes. Quanto a cordas, hé a da enxircia que € tio forte quanto a do cinhamo, e a obtida de certas cascas de Arvores [..] Aqui, 0 piche e o breu sio tio perfeitos 240 GIUCEL, Guillermo. Frei Gospar de Carvajal. Sao Paula: Scitta, 1992, p. 25. AURICLEA OLIVEIRA DAS NEVES »141 felizes anos, contribuiri de sua parte, com a liberali- dade que cowrura cer no empora para asustencasio De um modo geral, ranco os aspectos gerais da terra quanto elemento humano sio tratados por Acusia de forma positiva. Nos trechos que se reportam a esses elementos, sio referidas mais de cin- quenta expressdes clogiosas sobre a terra “infinitas riquezas’“aprazi- veis jardins, “excelentes campinas; “abundantes pastos' e sobre o ho- membons obreiros;“bem-dispostos e afiveis’ apesar de lamentar 0 habieo dos indigenas nao usarem roupas, mesmo as etnias sendo pro- vidas de algodio. 3.3. OS DISCURSOS DE CARVAJAL E DE ACUNA: ‘CONVERGENCIA E DIVERGENCIA ‘Apés a descrisio do percurso realizado por Carvajal e por Acu- fia, serio confrontados os discursos que esses cronistas utilizaram «em suas obras. Para verificar esse aspecto é necessério levar em conta as condigSes objetivas para a produsio desses textos, a quem foi diri- gido e com quais objerivos. O texto de frei Gaspar de Carvajal relataa viagem de Francisco de Orellana ao longo do rio Amazonas, entre os anos de 1541/1542. Hi lividas quanto A época que o religioso redigiu os escitos, segundo a opi- nifo do etno-historiador Anténio Porro, nas Crénicas do rio Amazonas: “INao sabemos se Carvajal escreveuo seu re- lato durante a propria viagem ou seo fez na sua ever a ne deo Peru. O mais provive, éque tenha mantido um didvio dos principais contecimentos, dando- the apésa viagem melhor forma eo tilo'?” 236 ACUNA, CrstBbal. Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazones. Taducdo de Helena Ferreira, Rio de Janeiro: Agit, 1994, p. 169-170. 237 PORRO, Antinio. As cdnicas do rio Amazonas. Petropolis: Vozes, 1982, p. 37 138 AMAZONIA NA VISAO DOS VIAJANTES DOS SECULOS XVI E XVI ‘Mesmo sem precisar 0 perfodo que o dominicano elaborou a crénica, é provavel que a colera de dados tenha sido realizada de ma neira fortuita durante a viagem, jé que nio estava na expedi¢io com esse objetivo. Carvajal exercia a funcio de conselheiro espiritual do governador de Quito, Gonzalo Pizarro, e assume a mesma condigio na expedigao de Orellana, dai os varios momentos de entregaa Deus, com missas, oragdes, confissées, além do discurso acentuadamente religioso: Estivamos em grande perigo de morrer ls tenes eee mentando a nossa afligio ¢ trabalhos, resol- ‘yeu-se que escolhéssemos de dois males aque- le que a0 captio e a todos nés parecia 0 me- SE ererati ce Noss ‘Senhor que serviria por bem conservar as -nossas vidas até ver 0 nosso remédio.”* Carvajal fazia parte de um grupo de cinguenta e sete homens «que lutavam pela sobrevivéncia, por este fato o contaro com os nati- vos era sempre motivo de tensio, razio pela qual muitos relatos se apresentain permeados de medo e quase nao se percebe satisfagio no _que o cronista vé, analisa e discorre. ‘Todas as privagdes pelas quais passaram os homens de Orella- nna durante a viagem, somadas 3 situagio desses conquistadores para navegar em condigées tio adversas, dao 4 expedigi0 uma feigio de aventura de fomee de remor, conforme registra aanalista do discurso Ingedore Grunfeld Villaga Koch (ee al} no ensaio“A descoberta do Brasil pela Amaztinia: orelato de viagem de Gaspar de Carvajal": | _ Nossa leitura do texto nos permite dizer que um dos |) Bris secon prousios na cna de Gaspar | de Carvajal é2 apresentagao das estratégias de sobre~ 238 [ Gaspr.Descobrimento do rio de Orellana. Traducso de C. de Mllo-Leitdo. Nacional, 1961, p. 19. ‘com uma vida eterna prazerosa, apés a morte, onde “nao fazem outra coisa senio bailar’? Acuita afirma que os nativos tém grande respeito e afeisao pelos. {eiticeiros (pajés), néo tanto pela amizade que Ihes devotam, mas pe- Jo temor ao mal que os pajés Ihes possam fazer. Descreve a ambienta- ‘sao da casa desses xamis, numa visio mistica e sobrenatural. Nesses locais, 0s pajés guardam ossos de feticeiros falecidos e alguns objetos pessoais como rede, 0 maraci, dentre outros: Os ritos de toda esta so quase sempre 0s _mesmos:adoram os dolos que fabricam com suas ped vias mos, atribuinde a uns poder sobre as Sguasc,28- ‘sim, pem-lhes por emblema um peixe na mio: esco- hem outros como padroeiros das plantagdes: e outros, ainda, como procetores de suas batalhas. Dizem que tne deunesdesceram do cla para acompanht-los ef (O religioso cuida de cada detalhe sobre a culeura dos nativ armas e ferramentas utilizadas; as bebidas e comidas de que se ‘mentam a forma de realizarem 0 comércio; os modos de pescar e ca- gar; oculto aos seus mortos. A técnica de guardar e conservar alimentos durante as enchentes, centerrando-os em buracos ou silos profundos, é um dos aspectos que ‘mais chama a atengio de Acufiaeeste se situa na condigio de explicador do fato, condicionando o nativo a realizé-la de forma instintva. inte- ressante a conclusio do cronista acerca do acontecimento: Da mesma maneira que a natureza ensinow 3 formiga a guardar nas entranhas da terra, como em celeros, 0 40 que hi de servir-lhe de alimento a ano inteio, su também ao indio, por mais birbaro que seja, meios de evitar seu prejuizo e garantir seu sustento, 231 CARDIM, op. ct 232 ACURA, Cristobal de. Novo descobvimento do grande ro das Amazonas. Tadusdo de Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Agir, 1994, p. 100. certo € qua Divina Provide cida mais dou etene qu dos animals baton ‘Acufa elogia a inteligéncia ¢ habilidade que o indigena possui para realizar trabalhos manuais, a maneira cvilizada de se relacionar com as pessoas e,principalmente, a hospitalidade com que trata seus visitantes, oferecendo-lhes as suas casas. A cortesia ¢trago recorrente «em Léry:"Mostram os selvagens sua caridade natural presenteando- se diariamente uns aos outros (..] e prezam de tal forma essa virrude «que morreriam de vergonha se vissem o vizinho sofrer falta do que possuen.?" Para Thevet, a hospitalidade ¢ sindnimo de troca, os na tivos so muito curiosos:"O que mais apreciam & receber presentes ddos estrangeiros, para tanto, tratam-nos com tais amabilidades e gen- tilezas que se torna dificil recusar-lhes algo.”” ‘No capitulo final, “Entra no Mar o rio das Amazonas, 0 cronis- ta, depois de ter sintetizado 0 caminho do rio Amazonas até o mar, convoca a todos para uma grande evangelizagéo daqueles povos, sob o comando de Felipe IV a quem Acusia, na condigao de vassalo, deve prestar contas: Entretanto, quem mais interessado se ha de mostrar nesta: ‘sho 08 zelosos da honra de Deus e do bem das almas, pois uma multidéo delas est claman- do por figis miniseros do Santo Evangelho, para quem, com a claridade deste, sejam afugentadas as Sombras da morte, em que hi tempo jaz esta pobre gente. E que ninguém se escuse desta empresa, pois todos ha campo descoberto ¢, quanto mais traba- res se tragam, maior sera a colheita; sempre nnecessitard esta vinha de novos e fervorosos obreiros jue a culver até sujeiti-a sob as chaves da Igreja nana. isso, sem diva, noso grande re calico Felipe Quarto, que Deus nos conserve por muitos € 233 ACUNA, Cristobal de. Novo descobrimento do grande rio das Amazonas. TraducSo de Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Agi, 1994, p. 74. 234.UERY, Jean de, Viagem @ tera do Brasil. Taducao de Sergio Milit. Séo Paulo: usp, 1972, p. 182. 235 THEVEL, André de, As Singularidodes da Franca Antética. Tadugdo de Eugenio ‘Amado, Belo Horizonte: Iataia: So Paulo: Edusp, 1978, p. 145. “Eimias da Amazénia’, por Paul Marcoy Nas vastas povoagées por onde passou, Acussa registra a pre- senga de mais de cento e cinquenta linguas diferentes, fato confirma- do por um contemporineo seu e também companheiro de Ordem, e, Anténio Vieira, em carta que este enderegou 20s seus superiores sobre uma missio realizada no Pari, em 1639: Pela variedade das linguas houve quem chamou 20 tio das Amazonas de io Babel mas veh tocar. t0 0 nome de Babel, como de rio. Vem-lhe curto 0 nome de rio, porque verdadeiramente é um mar do- ‘ce, maior que o mar mediterrneo no comprimento € naboca. (+) ‘Vem também curto a0 Grio-Paré o nome de Babe, porque na torre de Babel, como diz Sio Jeronimo, thouve somente secentae duas linguas, as que se fax Iam no io dae Amazonas so tants e to divers quese hes nio sabe o nome, nemo nimero.” Sobre o aspecto religioso, Acuiia descreve o indigena como idé- latra de deuses criados por ele préprio e adorador de seres da nature- za. Em suas necessidades, langa mio desses elementos ¢invoca aque- les em quem deposita confianga; nao compreende o Deus cristdo, tampouco o simbolismo da Cruz. ‘A ideia de que os nativos nio tinham religido, como os euro- peus conheciam, vinha sendo alardeada desde a época do descobri- ‘mento no século XVI com a famosa auséncia de F L R na lingua dos indigenas: cousa digna de espanto porque assi nio tém Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiga e desordenadamente’™ ( religioso calvinista Jean de Léry vai mais além e opina a au- séncia de qualquer credo, 20 comentar sobre a religiio dos selvagens dda América: ois além de nao ter conhecimento algum do verda- deiro Deus, nao adoram quaisquer divindades reres- tres ou celestes, como of antigos pagios, nem como (0s iddlatras de hoje, ras 08 indios do Peru, que a 500 léguas do Brasil, veneram 0 sol ealua.” No século XVII, 0 jesuita Cardim reitera a ideia de Léry sobre falta de rligido do nativo com o seguinte comentitio:“nio tém co- nnhecimento algum de seu Criador, nem de cousa do céu, nem se hé pena nem gloria depois desta vida e, portanto, nao tém adoragio ne- nhuma nem ceriménia, ou culto divine”? Em outro momento de sua andlise, afirma que os indios acreditam na imortalidade da alma 227 VIEIRA, Pe. Antno. Semmes e Cotas. Rio de Janeiro: Ediouo, 1990, p. 136 226 GANDAVO, Pero de Magalhies de. Tretado da Tera do Brasil. Histrio da Provincia Santa Cruz. Belo Horizonte: Iatiaia; io Paulo: Edusp, 1980, p. 52. 229 LERY, Jean de. Viagem 6 tera do Brasil. Traducio de Sérgio Miliet. S80 Paulo: éusp, 1972, p. 157. 230 CARDIM, Pe. Fema. Tatodos da ter e gente do Bras. Belo Horizonte: Tetiis: Sho Paulo: Edusp, 1980, p. 87. (Cardim também faz referéncia As tartarugas, acrescentando da- dos sobre o aproveitamento de seus cascos, “hi nesta costa muitas ‘artarugas; tomam-se muitas, de que se fazem cofres, caixas de hés- tias, copos, etc além de Cardim mencionar o tamanho delas, as covas feitas para depésito da desova,o sabor da carne e dos ovos. No capitulo vinte ¢ oito, Acuia faz um longo discurso sobre os animais silvestres que os nativos utilizam em suas refeigbes. Mesmo quando 0 cronisea tenta descrever o que era apropriado para a ali- mentasio, as especificidades das espécies, o sabor das carnes, hia preocupagio de passar para a posteridade a ideia de que hi diversida- dee abundancia de alimentos, possibilitando as pessoas escolherem 0 «que mais lhes convém: Pde aconeceraeates nats por exarcmenjoados de ws Seo sempre de eixe, apesar de muito bom, apetea comer de vr cn quand algun oa tra care € assim & que, prevenindo seu desejo, a nat. reza contemplou esta terra firme como muitos géneros de caga, como a anta que é do tamanho de uma mula de tum ato eaibém oporco-monts, existe em guase tds eat Indias que ni 0 jai Hib vata acu heat 6 ign Hoa cues nics Pred coat fad do ba Gene c eso bores gas em nada fica a dever as mais finas da Europa. Ha perdi 3 capone linha igus ts noras- OF sa tos | eae rigam uma infinidade de pa- geen aetna intone Temps tunes quadoton queen ‘Apesar de haver alguns exageros na descrisio de fatos ¢ peque- ‘nos equivocos na anilise de alguns assuntos, Acuiia apresenta seu re- ZEKCAROIN, Femi. tates da tor gente do Bes. Blo Hane: at: ‘Séo Paulo: Edusp, 1980, p. 45. oa Caane 225 ACU, Cis de. Noo deca do gonde no des Anz. Tigo Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Agit, 1994, p.83. 4 eed Jato com muita clareza num ténus excessivamente otimista, acerca da terra, da flora eda fauna amazénicas. ‘Acufia se preocupa em mostrar a variedade de nagées ¢ de linguas, para tanto inticula o capfeulo XXXVI de"Muita gente, © de diferentes nagbes’. Apesar de estar na expedigao de Teixeira co- ‘mo emissério real, nao deixa de levar em conta sua condigio tam- bém de missionério, por isso se preocupa com as guerras que os indios promovem entre si, se inquieta com a supremacia de algu- as tribos impondo a escravidao entre os povos vencidos e a ma- neira desumana pela qual os nativos eram tratados pelos portu- gueses. Assinala a povoagio ostensiva daquelas plagas em comen- tirios dessa natureza: Todo este novo mundo, chamemo-lo assim, é hal tado por birbaros de distintas provincias e nagses, das quais posso dar fé, mencionando-as pelos no- ies assinalando sua fcalizagio aguas de vista { outras por informagées dos indios que nelas esti- ‘eram: EesasnagGes fam to préximas umas das butras, que, em muitas dela, dos tltimos povoados de uma se pode ouvir o lavrar da madeira nas ou- tras, sem que tal vizinhanga as obrigue a fazer as ppazes, de vez que mantém perenemente constantes fuerras entre si,nas quais 2 cada dia se mata eapri- ma tim sem-numero de almas, num dessangtar de tais proporgies, que sem ele nao caberiam todas naquela terra." 226 NOUN, Gitibal de. Nowe descobrimento de grande ro das Amazonas. Taducio de elena Feria. Rode Janeio: Aa, 1996, p. #3. ‘Sobre “tazdo e experiéncia’ de que fala Acufa, ressalta-se que até o século XVI os cronistas registravam os fatos a partir de uma visio empirica; partir do século XVIII, a anilise era realizada numa perspectiva cientifica. ‘Além de relacara existéncia de vegetais e minerais que demons- tram a riqueza da terra, Acufia discorre sobre a abundancia de ani- ‘mais que servem para a alimentagio:"Entretanto, do que mais se ali- ‘mentam, ou como dizem, Ihe faz 0 prato é o peixe, incrivelmente abundante, neste rio, onde o pescam a mancheias’”" Da fauna aqua- tca, chama-lhe a atengio dois animais,o peixe-boi ea tartaruga Para ele, o peixe-boi é um dos animais de melhor aproveita- ‘mento de toda a sua estrutura e como um rei, se assenhoreia do rio das Amazonas, 0 enche todo, desde seu comeso até quando deségua xno mar’ © tamanho € comparado com o de um bezerro de ano ¢ meio; 0 couro é grosso ¢, apés ser curtido, fazem os guerreitos adat- £5 tio resistentes, que ndo as transpassa uma bala de arcabuz"” a came além de muito saborosa é bastante nutrtiva e pode ser consu- mida por mais de um més pela técnica de assé-la em postas médias “numa grelha de madeira’®" O’senhor do rio” de Acuiia nao passa despercebido ao olhar de outros cronistas. Para Gandavo, na Histéria da Provincia Santa Cruz, é um peixe notivel cujo peso varia entre quarenta e cinquenta arrobas. Descreve as caracteristicas fisicas do animal, onde vive, como procria, de que forma a sua caprura e dé atengio especial ao sabor de carne: “este peixe he muito gostoso em grande maneira, e total- ‘mente parece carne, assi na semelhanea, como no sabor e assado nio tem nenhuma differenga de lombo de porco”” 215 Toidem, p. 83. 216 Ibidem, p74. 247 ACURA, Cristobal de. Novo descobrimento do grande ro das Amazonas. Traducdo de Helena Feria. Rio de Janeiro: Agi, 1994, p. 78, 218 Ibidem, p. 83, 219 GANOAVO, Pero de MagalhSes de, Tatodo da Tera do Brasil. Histria da Provincia Santa Cr. Belo Horizonte: Itataia; S30 Palo: Edusp, 1980, p. 48. Para Cardim, 0 peixe-boi é mais apreciado sobre todos os ou- tos peixes:“para se comer muito sadio, e de muito bom gosto, ora se- ja salgado, ora fresco; e mais parece carne de vaca que peixe’"” ‘Quanto as tartarugas, Acuiia escreve um pequeno tratado so- bre a captura, o transporte ¢ o armazenamento dos quelénios. A cap- ‘ura se faz quando estas saem para a desova nas praias e“caindo de improviso sobre elas, em pouco tempo se apoderam de grande quan- tidade sem outro trabalho senio o de i virando-as de ventre para ci- ‘ma, sem que possam mexer-se’" Apés a captura, os indios fazem pe- ‘quenos orificios em seus cascos, pelos quais passa uma corda que ser- ‘ve para manté-las cativas e levi-las atadas até o rio por onde sio rebo- cadas e langadas em viveiros previamente preparados: ‘ali, elas tém por prisio aquele pequeno circere, onde sio alimentadas com galhos e folhas de devores e permanecem vivas 0 tempo que eles ulgarem su- ficientes’ Mais adiante, Acufta comenta sobre o tamanho e sobre 0 valor alimenticio das tartarugas: Essascartarugas costumam ser tio grandes ou até ‘maloes que ceadoe de bom tamanbos sua cane seas semelha de vitela, © bucho de cada femea morta cos- fa come deen re um coos ‘equase io bons quanto os de gala, embora de mais Ail digas mo gr, gue dss apenas pode-se exrair ama botja de mantega, a qual, temperada como sl, é cio boa e mais saboros,além de dlrar muito mais, do que aquela que se obtém do ete devaca, serve para rear pete e prepara qualquer po de guisado, nos quas, por aque costuma usar ame- Thor emai efinada mantega: 220 CARDIM, Pe, Fernlo. Tetados do ter e gente do Bras. Belo Horizonte: Itatiaa: Sto Paulo: Edusp, 1980, p. 45. 221A, Ctl Noe descobrinet do ase i os Amazonas. Tuo de Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Air, 1994, p. 80. 222 ACUNA, Cristobal de. Novo descotrimento do grande rio das Amazonas. Traducao de Helena Feria, Rio de Janeiro: Agi, 1994, p. 80. 223 ACUNA, op. cit. ‘Mandica, por Albert Eckhour Cardim & outro entusiasmado com 0 cultivo da mandiocae de seu aproveitamento alimentar:“O mantimento ordindrio desta terra que serve de pio se chama mandioca, e sio tumas rafzes como de cenoura, ainda que mais grossas ¢ compridas’*" A mandioca, além de parte dos relatos de viajantes, se inclui no acervo iconogrifico do século XVII, conforme a obra do artista plistico do Brasil holandés, Albert Eck- hhout/ que regisrou a mandioca entre as suas doze naturezas-mortas. Acuita também faz referéncia ao aproveitamento econdmico da flora amazénica e suscita 0 governo espanhol realizé-lo com alguns ve- getais. Verificando com maior acuidade, constata-se que esses produ- tos contribuicam por muito tempo com a economia nao s6 da Amaz6- nia, como também do Brasil. Ojesuita nao se limiea a analisar somente aqueles de maior rentabilidade, mas informa 4 coroa espanhola que & 211 CARDIM, Pe. Fedo. Tatados do tera e gente do Brasil Belo Horizonte: Itatiaa; Sto Pavia: Edusp, 1980, p. 32. 212 Albert Eckhout nasceu possvelmente em 1610, na Holanda. Esteve no Brasil entre 1637-1644, a servi do governo de Johan Maurits van Nassau Siegen como pintor documentarista da fauna, da flora ede tipos humanos brasileira. possivel aproveitar economicamente o algodio, o urucum, 0 gaftio, a canafistula,a salsaparrilha,dleos, resinas e gomas diversas: Hi neste grande rio das Amazonas quatro coisas (gos ne bem cultivadas, sero sem davida suficientes fenriquecer nio apenas um, mas muitos feinos. Ein primsire lugar as madeias, que sio muitas eva- ligsas, como o melhor ébano... Em segundo, 0 cacau, cde que estio suas margens cheias..eneficiado, ele se torna de tanto proveit, que cada cacaneiro pode ren- A analente, oo fea de pata ies de quis juer despesas.. Em terceito, 0 tabaco, que se encon- Hiyem grande quantidade ¢ bem desenvolvido nas plantagbes dos habicantes rbeitinhos... No entanto, S maior cultivo que se deveria fazer neste rio, é a meu ‘er 0 da cana-de-agticat, ue vem em quarto hagas, como a coisa mais nobre, mais proveitoss, mais segu- raede maior hiro para a Coroa Real.” ‘Acufia presume haver minerais nobres, contudo ¢ precavido em dizer que tal hipétese se dé pelo faro de se ter encontrado minerais pre- ciosos em virios ros que desiguam no Amazonas. Além desse ato, hia copinio de alguns nativos que confirmam essa suposigio ea expedigio anterior 4 sua, comentada no item 1.3.,a de Pedro de Ursia/Lopo de [Aguitre, que se certficon da existencia de minerais preciosos: ‘Nio trato das muitas minas de ouro e prata das quais fe tem nodiia no mundo deacoberto, e das que forgo- samente se descobririo daqui por diante. Acho, se ‘no me engana, ue serio em maior ndime- tec mais rics que todas ae do Peru, embora entre tas esteam as do afamado Cerro de Potosi. E tal nao digo i toa e sem fundamento, levado apenas, como al- {guém que poderia pensar, pelo entusiasmo que mos- Beet co tis omens aioe nnaexperiéncia."* PAS ACUNA, Gstbal de. Novo descobvimento do grande rio das Amazonas. Traducko de Helena Feria, Rio de Janeiro: Agi, 1994, p. 91. i 214 ACURA, Grstbal de. Nowe descobrimento do grande rio das Amazonas. Traducio de Helena Ferreira, Rio de Janeiro: Agi, 1996, p. 92 §, nem sofrimento, ‘disso posso ser boa testemunba, pois durante todo o tempo que naveguei nao passei noites em claro por causa das intempéries, nem tive qualquer dor de cabesa como tive em outros lugares’ © autor questiona como um lugar tao préximo a linha equatorial pode ter tio agradivel temperatura, O jesuta Pe. Ferno Cardmn™ em uma série de esritos, organiza- dos sob o titulo Tratados da terra eda gente do Brasil também declang 2 exceléncia do cima, mesmo fazendo referencia ao Sudeste brasileiro, encontrar novas formas de aplicagio do que a narureza oferta: “Nessas florestasincultas os nativos encontram para seus males a methor fare cis natural que hi no descobereo** Grande parte do que registou co. ‘mo farmacopeia popular ainda hoje éutilizado pelo homem ammazbnice, Sobre ese aspecto, di atengio especial ao mel silvestre ea dls produroe ‘muitos espectficos da floresta amazénica:‘a éleo de andiroba, extraido 4a drvore dese nome de valor incalculivel para curat feidas, assim co. 203 ACURA, op. ct. 204 Padre Femi Cardin nasceu em 705 CAROIN. Fe. Femfo. Tratados da tena e gente do Sas Inzoducio de Rodolfo Gatea. Belo Horizonte: Itatiai; S80 Paulo: Edusp, 1980, p. 25 26 ACURA, Cristal de. Noo descabrimento do rade ro des Amazons. Yaduco de ‘Helena Ferra. Rio de Janeiro: Agi, 1994, p87, 207 ACUIIA, op. cit ‘Quanto a flora alimenticia, discorre sobre a variedade de rvo- res frutiferas com seus apetitosos frutos como castanhas, cocos, ba- nanas, abius, goiabas, assim com as raizes comestiveis: cari, batata- doce, mandioca-mansa, ou macaxeira e outros alimentos que, segun- do sua opinio, além de saborosos, sio nutrtivos, sejam assados, se- jam cosidos. ars a enorme diesidade de plantas, cronitaencon- tra explicagio no clima temperado, no relevo diversificado na umi- dade de solo. Dentre esses produtos, destaca a mandioea que € uma raiz, que prepara a cacava, farinha com a ual se fo plo geraltenee coumamide naquela costas do Brasil. Cavam na terra uns buracos ou silos ado alenteram ag raz tapando-a ico ema, a fn de pro lurante todo o tempo das aber epaiereacn tits ora se alimentam, sem que isso em nada as afee.™ Enquanto 0 milho foi um dos alimentos mais citados nas crénicas da América espanhola, a mandioca foi o grande destaque dos que che- garam pare ceste do coninente americana. Gindavo dedi a maior parte do quarto capitulo de seu Tratado para discorrer sobre o cultivo e utlizagio da mandioca. Segundo ele, o pio dos nativos’se faz da raiz cduma planta que se chama mandioca,a qual he como inhame’*” Léty comenta sobre a fabricagio de farinha, beiju, mingau, bolo,a partir de“duas espécies de raizes chamadas aypie maniott que crescem dentro da terra em trés ou quatro meses, ornando-se tio grossas como coxa de um homem elongas de pé e meio mais ou menos’ 208 ACURA, op. cit. 209 GANDAVO, Pero de Magalhées de. Totado do Terra do Brasil Hstria da Provincia ‘Santa Guz. Belo Horizonte: Itataia; Séo Pale: Edusp, 1980, p. 48. 210 LERY, Jean de. Viagem @ tera do Brasil. Traducdo de Sergio Miliet. Séo Paulo: usp, 1972, p. 85. Bes Aseercose perce tania we tas leas fcc povoadas eas de toda © np. rio do Peru, aquele que, de hoje em diante, sem usar hipérboles, Pelence classificar de maior e mais céle- ‘bre do orbe, [...] O rio das Amazonas banha reinos Pe heli es planet neta, IR eee ceo dus octooes pe caudalosos,[..] 56} ie a origem no Paraiso (..] teajuda a fecundidade do solo, todo ele eed apras veis jardins”’” Apés este salmo de louvor ao rio Amazonas, 0 cronista in me- dia res inicia a narrativa no capitulo dezenove que ainda faz referén- cia ao objeto tematico de sua crénica, 0 rio Amazonas, para o qual nao deixa de tecer elogios: “Dou, pois, inicio ao relato, a partir do nascimento e origem deste grande rio das Amazonas, até agora sem- pre oculto, pois cada terra quer fazer-se mae de tal filho e atribui As suas entranhas o primeiro sustento que lhe dé existéncia’*® A partir deste ponto, Acufa relata os pormenores de suas ob- servagdes, analisando aspectos geogrificos do rio Amazonas como: seu curso, latitude e longitude; o estreitamento e a profundidade; as ilhas que se formam ao longo do trajeto. Em sua anilise, avalia, espe- cula, compara, faz conjecturas e organiza seu relato por temas, devi- damente articulados sob duas vertentes, a terra eo homem. 3.2. SINGULARIDADES DA TERRA, DA FAUNA, DA FLORA EDO HOMEM O titulo deste capitulo remete aos temas abordados por Acuiia no Descobrimento do grande rio das Amazonas que sio desdobra- dos em virios outros, dentre eles o”Clima e temperatura do rio’, con- forme intitula 0 capitulo XXIX:"O clima deste rio e de todas as re- 1199 Ibidem, p. 68-69. 200 Ibidem,p. 70. sides a ele circunvizinhas € temperado, de sorte que nio hi calor que aborreca, nem frio que canse, nem variagio que seja incémoda‘.*"* Capa da obra de Crsesbal de Acasa ‘Acuiia analisa a tegiio e define como um lugar aprazivel, em ra- 240 de seu clima, cuja temperatura proporciona a vantagem de no estragar os alimentos. O cronistaafirma que em cinco meses as hés- tias permaneceram “tio frescas como se tivesse sido fabricadas pou cos dias antes’** O clima nao é somente um bom aliado dos alimen- 0s, 0s homens também se aproveitam da excelente climatologia re- sional para viver numa espécie de paraiso rerreal, onde nao hi doen- 201 ACURA, Cistbbal de, Novo descabrimento do grande rio das Amazonas. Tradugto de Helena Ferreira, Rio de Janeiro: Agi, 1994, p. 85. i 202 ACUNA, Cristbal de. Novo descobrimento do grande io das Amazonas. Traducso de Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Agi, 1994, p. 86. 225 a ferilidade do solo, amenidade do clima, a densidade demogrifi- ‘ae principalmente por ser a via natural de acesso a0 Peru. Usa os seis ‘ce sobre sua vida e ascendénca familar, antes de 1615, época da expulsso dos Fran- cases do Maranhio. Apés ese feito, 0 govero lsitano envia uma expedigso 8 for do rio Amazonas com o objetivo de consolidar a posse da tera. Entre os expedicio- ‘itis esta Pedro Teixeira, que, em 1616, participa da fundacio do Forte do Prestpio. Nos anos que se sequen, realza varias entradas na regido amazOnica com batendo e expulsando estrageiros que se achavam instalados naquela regio. Em 1637, inci a viagem de subida pelo rio Amazonas, da qual Acufa feria parte no retorno. Ao completa vintee cinco anos de servis prestados a coroa portuguesa, ‘em Fevereiro de 1640, & nomesdo capitio-mor do Grio-Pard, cargo que exerceu at rmaio de 1641, quando vem a falecer em Belém. Texsra€ everenciado no Comando Nita da Amazinia como simbolo da lta pela preservac3o da soberena brasileira sobre @ Amazénia. Iiinerseio da expedicio de Pedro Teiteira!™ “Teixeira e Acuna sio fiéis representantes de uma época, de um modelo cultural e de um legado politico das grandes monar- quias ibéricas ~ Portugal Espanha ~ que dividiram o mundo pa- rai pelo Tratado de Tordesilhas de 1494, e, por questées dindsti- cas, foram unificadas, sob a égide do espanhol Felipe Il, em 1580. Esses dois homens se encontram no limiar das relagbes luso-caste- Ihanas, cujo rompimento ocorreria em 1640. A viagem de ambos pelo rio Amazonas nao é um trabalho de integragio, com objetivo ‘nico, mas demonstra interesses diferenciados. Constata-se, em vrias passagens do texto, criticas de Acuiia 4 colonizagio portu- ‘guesa no litoral do Brasil. ‘Além disso, o texto do missionério nio é um relato qualquer, de alguém com boa vontade e entusiasmo, mas um documento bem ela borado para que a Espanha pudesse fundamentar estratégias de con- trole e ocupasio da Amazénia. Diferentemente de Carvajal que redi- ge seu relatério na ordem dos acontecimentos, Acuiia pe em discus- soa ordem temitica do que deseja tratar. {14 Mapa recriadoe adaptado por Maco Antnio Lima Sales, a partir da obra Fre Gaspar de Conia, de Guillermo Giuci. Sao Palo: Editora Scrita,Conseera de Educacion ala Embaja de Espana, 1992. va sicuagio tem como precedente o desaparecimento de D. Sebastio, rei de Portugal, na expedigao organizada, em 1578, para conquistar 0 norte da Africa, cujo desfecho foi a fragorosa derrota dos portugue- ses em Alcécer-Quibir e 0 retorno dos combatentes sem 0 seu mo- narca. Em razio de o rei lusitano nao ter herdeiros, sucedem 3 coroa ‘portuguesa seu tio, o cardeal D. Henrique, e D. Felipe Il, rei da Espa- ‘nha, em 1580, apés a morte daquele. No aspecto religioso, o catolicismo disputa espago com outros ‘matizes do cristianismo. Iniciados com a Reforma, o luteranismo, 0 anglicanismo e 0 calvinismo sio duramente combatidos pela Igreja romana com 0 movimento da Contrarreforme, na tentativa de impe- dir a expansio do protestantismo, sobretudo em locais de coloniza- ‘20 catdlica. A criagio de ordens religiosas e 0 envio de missionarios aos tervitdrios conquistados para reinos cristios sio algumas estraté- gias usadas pela Igreja primitiva crista, sendo a fundagio da Compa- nhia de Jesus por Ignicio de Loyola, em 1534, um dos desses meca- nismos de luca contra a difusio reformista. Acusia faz parte do geupo de missionarios jesuitas que vém as novas terras zelar pelo bem das almas, sob as chaves da Igreja romana. No aspecto literério, um relativo ntimero de obras & publicado, sob olhares diversos ¢ com diferentes vertentes. Algumas propalam as riquezas da terra, como os Didlogos das grandezas da Brasil (1618), de Ambrésio Feenandes Brandio; a liveratura incipience de ‘Manuel de Nobrega e de José de Anchieta circula na Colénia e obje- tivaa catequese dos nativos; a primeira obra de estética barroca, Pro- sopopeia, de Bento Teixeira, vem a hume em 1601. ‘A Amaz6nia, antes possessio espanhola, agora pertence tam- ‘bém aos portugueses e estes fixam o olhar para o novo espago territo- tial, estando o primeiro passo consolidado, em 1616, com a fundagio do Forte do Presépio, na fea da atual Belém, capital do Estado do Paré, por Francisco Caldeira Castelo Branco. A presenca portuguesa, no extremo oeste de suas possessées, representa nao s6 a demarcacio dos limites fixados pelo Tratado de Tordesilhas, mas também o cer- ceamento de ingleses, holandeses e franceses que se estabeleciam na rea com postos de comércio e fortificagses. Além disso, em Madei, mesmo antes da unio ibérica, a Espanha jé havia consignado alguns aspectos que permitiam a Portugal defender baixo Amazonas em nome das duas coroas, pelo fato de essas terras ficarem mais proxi- ‘mas de suas colénias, sem contar a enorme extensio da Cordilheira dos Andes, que representava um entrave natural para a expansio da colonizagio espanhola na bacia amaz6nica, via Peru. ‘Acuiia nao desconhece esses fatos e, no memorial apresenta~ do ao Conselho das fndias, insiste para seu rei assumir a adminis- tragio da rea, antes que os portugueses o fizessem, aliados aos holandeses, ou ajudados por algumas tribos que estavam sob 0 seu jjugo. Assim, é da pena desse religioso os dados extraidos por mui- ‘tos autores, que escreveram sobre a insergao da Amazénia na colo- nizagio portuguesa, conforme opinido de C. de Mello-Leitéo no preficio do livro Descobrimentos do rio das Amazonas:"Se para a viagem de Orellana houve outros dados, além dos fornecidos por frei Gaspar de Carvajal, para a de Pedro Teixeira nao fazem os au- tores mais que resumir a obra de Cristobal de Acuifia, quando néo a transcrevem ipsis litteris" Para melhor usufruir o texto do religioso é importante reme- morar de que grupo social Acusia fazia parte, para quem escreve ¢ qual é seu objetivo. Cristébal de Acusia"™' nasceu em Burgos, em 1597, ingressou na Companhia de Jesus em 1612. Apés receber as ordens sacerdotais, foi enviado & América para realizar trabalhos missionitios no Chile e no Peru. Exerceu o cargo de Qualificador do Santo Oficio, na fungio de censor de livros; foi professor de Teologia WO ELLO-EITAG, C de. Descobrimentos do Rio das Amazonas. Sio Paulo: Editora Nacional, 1941, p. 9 ‘181 LINHARES, Maria Yedda Leite “Prefcio™ In: ACURA, Cristobal. Novo Descbrimento do Grande Rio das Amazonas. Taduca0 de Helena Ferrera, Rio de Janeiro: Agi 1994, ‘mével na intimidade, O exercicio da escrtura tem seu ‘rr estimulo nas descripcs aque tendo oi ‘em eternizar momentos heterogéneos, paradisia. cos infernais.™ ps Nio se pretende defender a existéncia das amazonas, mas rea- irmar que é da pena de Carvajal que o mito das guerreiras se corpo- tificou no rio e no Estado do Amazonas. O SECULO XVILEO NOVO DESCOBRIMENTO DO GRANDE RIO DAS AMAZONAS Oval amaznic relent, uma mgrvihosa me sa que se guarnece e renova por si. Ela supre abun- dlantemente as menores nevesidades do rel da crac 0, Sua fauna ¢infinica: sua flora, inesgordvel suas iquezas minerais, misteriosas. As pesquisas dos si- bios serao insuficientes para desvendi-la. A Ama- zénia € 0 encanto dos naturalistas. Muitos anos pas- sario ainda antes que se tenha feito inventario das riquezas que ela encerra. Esse trabalho #6 poderd ser realizado por uma legido de pioneiros.”” 3.1. OTTINERARIO DE PEDRO TEIXEIRA E OS ESCRITOS DE ACUNA © Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, do padre Cristébal de Acufia, é 0 relato da viagem empreendida por Pedro “Teixeira, entre 16 de fevereiro a 12 de dezembro de 1639, no mesmo trajeto de Francisco de Orellana. Os escritos de Acufa vivenciam um, momento histérico, politico e socioculeural muito diferente da época de Carvajal. No aspecto histérico-politico, Portugal e Espanha, que dispu- tavam a hegemonia das viagens maritimas e expansio de seus territ6- ios no século XVI, se encontram sob a égide da mesma coroa. A no- 79 NER, F José de SantAnna. 0 pats das Amazonas. Belo Horizonte: Itatiai; SSo 178 GONOIM, Neide. A invengdo do Amazénia, Sto Paulo: Maco Zero, 1996, . 138. Paulo: Edusp, 1979, p. 63. Pe ‘Obviamente que a descricio da culeura material des- i subdlcias aes SGolimmermatcsticpouds aseem ape fs Scja pela esratégiadiscursiva, usada por Carvajal ea por dar ede wor &lenda em seus eseritos,0 mito das amazonas permancceu vivo € de logiadas ribos da loresta amazdnica, peso qu Pree Jnfluenciou o imagindsio de vajantes por muitos éculos,ranto € que ‘uro e prata, cecidos finos de [a de ovelhas do Peru’ ° : (vicunhas, Ihamas ¢ alpacas). Por mais fantasiosos. no século XVII, Acufa comenta que ninguém poderia nomear o rio geet ine decals do cronies, como ce ‘vaizonas, se no houvesse a presenca das guerreiras homénimas no Peeing prcion ee Jocal, com tantos atributos positivos que ele possui“Os argumentos Be peeapleso culcned incaico erwinca ds cribos aque h para eatfcaraexistncia da provincia das Amazonas nest rio coletoras-cagadoras amazénicas. As terras frias e al- tas, com pouca lenha, onde moravam as tais mt Iheres ilustres, os grandes ¢ altfssimos morros ¢ a tho tao fortes, que nao Thes dar crédito seria falear& fé humana’ 1s adiante define o local onde vivem, relata o que ouviu a respeito ros onde se situava a capital das belicosas coni : z Fuerocant claramence accologha do antiplano arcing delas e conclui ‘em vez da paisagem plana e tropical da hileia amaz0- ‘Nao ha coisa mais corriqueira e por todos sabida do ‘ia aid Ggue dizer que nela [tera] habitam essas mulheres, ‘A meu ver, portant, 0 que ocorreu foi uma fusio ou 3 ee elas sda cidentes, amélgama na tradigio oral de virios poves indigenas rye nao & crivel possa uma mentia ter-s difundido ddonorte da América do Sul.” SArcanras linguas,e em tantas nagOes, com tantascO- res de verdade.'” Além do que foi mencionado, Carvajal conhecia o culto a0 Sol e os beneficios que recebiam os devotos da religiio incaica. No inicio do relatério, o dominicano registra © momento em que Orellana usouo io da Amazénia, artificio de cultuar essa divindade para impressionar os nativos: ‘zbnia e crénica de Carvajal com suas imagindrias guerreiras: 'A narrativa maravilhosa de Carvajal deixou como he- ‘A estudiosa de literatura Neide Gondim, em sua obra A Inven- ‘assim se reporta 8 literatura de viagem, A Ama- ky tere grate pao ey pie me des cepeey shea deo a etsiaca Mase # ID Cars eda ‘Amazonas no império dourado de Canhori. Quase panha, de quem Orellana falara} querendo informar- frees anos dep ines serio ds pal temelhor ever seo Capo dscepavaem teu dae. ses ands perguntavam peas guereias oitiriay pondewthe o Capo, eptino 2 ut pal ‘Yeaminbs de Acufa. Os pontoscontrovesns 5 reir cares Smee Seoece eae a fe aaa a eaiidade de a regido imensa ser ‘nos por santos ou pessoas celestiais, porque eles ado- ee rameetém por Deus a0 Sol, que chamam Chise.” Tasculhada totalmente e descobercos todos 0s seus se- : [redos. Cada um acreditava que podria abarcaro in~ Ejmensurivel, mas registraram as mutagoes de uma fpatureza imével na aparénca e profandamence viva€ I74MOTT Luiz, “As Amazonas: um mito e algunas hipéteses” In: VAINFAS, Ronaldo aconas. Taducs (Org). América em tempo de conqusta. Rio de Janeiro: Jorge Zahat, 1992, p. 45. FTE ACUI, CrstSbal de. Novo descbrimento do grande rio das Amazonas. Traducie de {175 CARVARAL, Gaspar. Descabrimento do rode Orellana. Treduca0 de C. de Melo-eito, Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Agit 1994, p. 152. Sto Paulo: Editora Nacional, 1941, p. 31. q 177 Tidem, p. 353. uusos ¢ costumes daquelas que eram o objero de seu discurso, confor- ao obj liscurso, confor: Ek diss questa nis coubitam com inioe de fempos em tempos, e quando hes vem aquele dese jantam grande porio de gente de gues evi facet {Guerra a um grande senhor que reside e tem asua te +a juncoa destas mulheres, ¢&forga os trazem as suas terras eos rém consigo o tempo que thes agrada, de- pois que se acham prenhas os tornam a manda’ para sua terra sem thes fazer outro mal; e depois quando Yam ofempo de pars stim filboomaram 9 man: 20 pai; se é fia, a criam com grande solen cacdacamnas cisasdeguera™ ase Disse mais que entre todas estas mulheres hi senho- a que domina e tem todas demais debaixo da sua ‘mio ejurisdigdo, a qual senhora se chama Conhati."” Disse que hé ld imensa riqueza de ouro e prata,e to- das as senhoras principais e de mancira possuem um {itp too de oro ou pat que as meres ple ias se servem em vasilhas de pau, exceto as que vio Salven aminton ase que na capital principal cidade, onde reside a Senhora hi cinco cass mute andes que io adore ‘trios e casas dedicadas a0 sol, as quaissio por elas chamadas caranat, e que estas casas so assoalhadas no solo e até mea altura eque os tetossioforrados de pin. fu deseo qu esac tm el or OURO e pata para o serv a ‘Andam vescidas de fnissi ima els, porque hi an tascv dd er Sen ae ‘ums mantas apertadas dos pet - 1,0 busto descoberro,e um como mato, sao adian. te por uns cordées. Trazem os cabelos sols atéo chao « postas na cabesa cotoas de ouro, da largura de dois 16 ARVOAL Gaspar erie dor de rn. ode rena, Tadt de 7 ‘Sao Paulo: Editora Nacional, 1941, p.66. pietiieinatees 167 CAROL op: Je@ CARMA, op 168 mF T7OCARWOAL Gaspar Desctrinento do ed rela. Tc h eel Tac eC de Melo Ltn, ‘So Paulo: Editora Nacional, 1941, p. 66, ee Os fatos descritos falam por si mesmos, mas merecem atengio es- pecial, em razao de Carvajal utilizar um outro narrador para difundir "um assunto tio controverso, eximindo-se, dessa forma, da responsabili- dade coma verdade. Carvajal reproduz aquilo que era muito comum na época, 0 “ouvi dizer Por ourro lado, seguindo o seu relat, afirma que o assunto € conhecido no territério peruano, usando a mesma estratégia cdo"}é haviam nos contado a umas seis léguas de Quito, porque ali fala ‘muito nestas mulheres, para vé-las vem muitos indios 1.400 léguas rio abaixo'" ou aindaz“nos diziam (..J que quem tivesse de descer a terra estas mulheres tinha de ir rapaze voltar velho""* Luiz Mott, no ensaio“As amazonas: um mito e algumas hipéte- ses comenta que as descrgées Feitas por Carvajal sio bastante similares |4s encontradas em textos de cronistas peruanos, quando se referem as Virgens do Sol, percencentes a0 séquito do grande sacerdore do Sol, 0 Vilea-Oma. De acordo com esses registros, havia cerca de trés a quatro ‘mil dessas sacerdotisas em Cuzco, por ocasio da conquista do Peru. ‘As Virgens do Sol” viviam em comunidades femininas, sob a protecio da mama-cuna, considerada esposa do deus Ini. Esse gru- po de vestais era muito conhecido na regio, dai o“sidito das amazo- nas’ fazer a descrisio para Orellana e para Carvajal como sendo a s0- ciedade das guerreiras. Varios fatores contribuem para que as amazo- nas sejamas virgens do sol, dentre eles a descricio de sua indument4- ria e de suas aldeias. Na voz de Mott: i idem, p. 68. 172 CARVAIAL, op. cit. 173 Conforme Liz Matt, no ensaio supramencionado, as virgens do sol chamavam-se ‘elacuna “mutheres escolhidae”, Cram recrutadas e eleitas para vverem em co- Imunidades matrarais, como tecellse costureras, enquanto cada escolhida aguar- tava determinado destino. Certo mero era consagrado 20 culto de Inti; poucas fram resenadas para sacrifcis humanos, algunas se tomavam concubinas do Jmperador,outas se destnavam a altos funcionérios do Estado. As allacunas con- ‘sagradaseram responsdvels pela preparacio dos alimentos cerimonais dedicados a0 deus Sol. culto ao Solera o centro da relgio incaica, cujo templo,situado em Cuzco, possuia grandes dimensdese era emamentado em our. Depois da conquts: ta do impéro, a suntuosa eifiacdo foi transformada em igreja dedicada a S. Domingos, o crador da Ordem religiosa de Carvajal. sees desta ance aminhando«prora um lugar: ‘para folgar ¢ celebrar a festa do bem- aventurado Séo Jodo Barista, precursor de Crist fi servido Deus que, dobrando uma ponta que # {fazia,vissemos alvejando mutase grandes aldcias bbeirinhas. Aqui demos de chofre na boa terra e se- nnhorio das amazonas."” ‘A terrae senhorio das amazonas, conforme descrigio de Carva- jal, so as reas préximas & foz do rio Nhamundé, no baixo Amazo- nas, Depois de descrever os embates com tribos locas ¢ apés ser atin- gido por uma lecha, Carvajal se situa na condigio de testemunha ocu- lardos acontecimentos e relaraa pritica de guerras das amazonas, que vieram em auxilio das tribos combatentes. Carvajal informa que dez cou doze chegaram a0 combate e"luravam tio corajosamente que 0s in- dios nao ousavam mostrar as espaduas’" Em seguida, descreve-lhes as feigbes, em nada se assemelhando as tibos conhecidas da regio: Estas mulheres sio muito lvas e alts, com o cabelo muito comprido, entrancado ¢ enrolado na cabeya.Sio ‘ruito membradas e andam nuas em pelo, capadas as Fe ee inden Eon nae fhouve wma destas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins,e as outras um pouco menos, de modo que os nosss bergantins pareciam porco-espinh.” para Porta no iow omit, mas judo a deni por meio de sus relatos que“as amazonats fram nahistria lo novo mundo e passaram a fazer parte do seu imaginirio, Os re- gisros do dominican sobre as amazonas sio deseitos sob das formas: aqueles nos quais o religioso diz ter visto, 2 iz ter visto, ou participado, € aqueles informados por um indio caprurado que se dizia ses das ‘guerreiras. q _Acavajal faza primeira alusio as amazonas no dia 24 de jun val : no) 0, aps ‘uma sequéncta de tes dias pontuados com a data eo dia da semana, fat curioso, pois s6 ocorre essa tinica vez durante toda a crbnica: [A partir desse trecho, Carvajal deixa a condigao de testemunha dos fatos e passa a reproduzir a fala de um ‘sidito das amazonas; in- quirido por Orellana. © indio capturado nao s6 responde as pergun- tas do capitio, como rambém afirma que conhece pelo nome as se~ tenta aldeias, onde as guerreiras viviam. Mais adiante, discorre sobre a organizagio das aldeias, 0 governo, a religiio, a indumentéria, os 12> pina grr pt a Anno: un mane envio ‘para seduzi-las @ atacado para ser devorado”, segund ra: CUNHA, Ma ca re, segunda ob: CUM, Man Game ds. Wise dor ndor no Be. io Ps Comporhia dos Lee, ) Secreara Mankpl de at apes, 1092 {63 CARVAIAL, Gaspar. Descobriment do rode Oelana Traducdo de C. de Wello-Leitio. So Paul: Edtora Nacional, 1941, p. 58. 164 Bbidem, p. 60. 165 Dbidem,p. 61. bolizando os profetas; a0 mesmo tempo a voz do Pai informa aos presentes que Jesus € seu filho amado. Esse evento é narrado nos trés ‘evangelhos sinéticos. ‘Além das festas litdirgicas associadas a figura de Cristo, Carva- jal se reporta a0 dia 6 de maio, dia de So Joio Ante-portam-lati- nam; a0 dia de Séo Luis, 6 de agosto ¢ dispensa atengio especial 2 Sio Joao Batista a quem chama de bem-aventurado, precursor de Cristo. Joio Batista é 0 tinico santo que tem seu dia fixado no nasci- mento, os demais santos 0 evento ¢ registrado na data de sua morte, provavelmenteseja esta uma das razbes para o dominicano referirse 20s dois eventos: ao nascimento, iamos desta maneira Eas procurando um lugar aprazivel para folgare celebrar a festa do bem- tventurado Sao Joao Batista, precursor de Cristo" em 24 de junho, ‘eA morte“no dia da degolacio de Sio Jodo Barisca, 4 noite se afastou tum bergantim do outro, de tal modo que nunca mais nos pudemos ver e pensivamos que se tivesse perdido’ em 29 de agosto. , 'Nio somente o tempo assume fator significative no Descobri- mento do rio de Orellana, Carvajal se poe na condigéo de um novo ‘Adio e nomeia 0 que ve. © lugar lhe é desconhecido, hé pouca refe- réncia anterior, assim Carvajal, 1 medida que avanga na viagem, vai observando os lugares por onde passa e d nome a eles. Alguns per- ‘manecem, outros se modificam ao longo dos séculos, o nome empre- subjetiva do cronista, mas pauta- gado tem 0 suporte da observagio subjeiva d do na construsio objetiva dos sentidos, seguindo os modelos culeu- rais do perfodo, conforme a opiniao de Michel Foucault, na obra As palaveas eas coisas: uma arqueologia das ciéncias humanas: ‘ser bruto ¢ histérico do século XVI, a linguagem Mo om sistema arbitiios ea fi deposited no mundo ¢ faz dele as proprias coisas ocul- {ime ana oe eg como una lingagen porque as palavras se oferecem aos homens cor pes ‘a decifrar (..] Deve ser estudada como uma coi- sada natureza.'” {a5 CARVAIAL, Gaspar. Descobrimento do rode Orellana, Traduclo de C. de Mello-Leitdo. ‘So Paulo: Eaitora Nacional, 1941, p. 63. 146 Ibidem, p. 78. 47 FOUCAULT, Miche. “A prosa do mundo" In: As polavase as coisas: uma arqueolo- iia dos céncas humanos. ao Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 47

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