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Gramdatica, variag¢ado e normas Dinah Callou No desenvolvimento de quest6es sobre gramatica, variagécs ¢ normas, surgem de imediato algumas indagacOes, umas de cardter geral sobre a relagdo entre pesquisa linguistica € ensino normativo, ¢ outras, dela decorrentes, como a de uma possivel incompatibilidade “entre a isencao distanciada que o linguista deve assumir na observagao dos faros da lingua |...) ¢aatitude presctitiva e mesmo um tanto moralista que se associa vulgarmente aos responsdveis pela normativa” (Castro, 2003: 11). Onde se situa a questo? Por que corregdo, norma ¢ varia¢ao linguisticas devem ser vistas conjuntamente? Camo conciliar varias&o € uniformizagio, nodes aparentemente antitéticas? Como admitir varios usos ¢ apenas um correto? Como vencer o preconccito linguistico por parte da sociedade em geral? Qual éa norma, tendo em vista a polissemia do termo? Norma lingu(stica corresponde ao uso estatisticamente dominante ou ao uso valorizado por um decerminado grupo ~ 0 grupo socialmente dominante —, que produz assim o “bom uso”, que ird eclipsar as normas de outros grupos? Uma norma ou varias normas? Norma ¢ ensino. Que lingua ensinar? E quais as estratégias a serem adotadas para um ensino eficiente ¢ eficaz? Em resumo, 0 que € como ensinar, E claro que as questGes nao so simples ¢ nia hd respostas definitivas. Se houvesse uma receira tinica para tudo isso, ja teria sido posta cm pratica em todas as linguas, em todos os tempos. Hi muita se discute, tanto nos meios académicos quanto 14 Entina de gramatica mos meios de commicagio, a queeao da norma ¢, gada a cha, a questa do empobrecimento do ensino e da aprendizagem da nossa lingua. E verdade gue essa erise nao diz respeito apenas & lingua portuguesa nem est restrita ao nosso pais. Na Franga, nos Estados Unidos, na América Latina aponta-se essa mesma insarisfagio, em todas as dreas de conhecimento ¢ em todos os niveis de escolaridade, ¢ resultados de exames vestibulares ¢ de outros concursos sao frequentemente citados para exemplificar a desescruturagdo do ensino, A preocupagio vem de muito longe ¢ retorna com mais forga de tempos em tempos. Em discurso de posse na cadeira de Portugués do Colégio Pedro 1, em novembro de 1952, 0 fildlogo ¢ gramdtico Celso Cunha chamava a atengio para as causas da crise por que passava, aquela altura, o ensino da lingua, que julgava refletidas, de forma direta, no ensino em geral ¢ afirmava que “O que esté a mazar a estudo do idioma em nossas escolas é que todo o ensino se faz na base do certo ¢ do errado, do que ¢¢do que nao ¢ verndculo [...). Evicem-se os erras, os erros verdadeiros. Mas para isso s6 hi o remédio jd preconizado por Jespersen: ‘Nada de listas ¢ de regras, repita-se o bom muitas ¢ muitas vezes'[...]” (apud Pereira, 2004: 414-6). E ainda recomendava que deixdssemos de lado as regras ¢ as excegdes, pois a lingua de nossas dias reflete a civilizagao arual e é impossivel manter um purismo linguistico, querer forgar a javens — que pertencem aos mais diversos grupos sociais — um padrao idiomitico dissociado da vida... Passados mais de cinquenta anos, a situa¢ao nao se modificou. E ficil comprovar que a crise do ensino se insere no contexto mais amplo das circunstancias culturais ¢ econémicas em que vivem as civilizagdes modernas, sob a influéncia dos mais recentes meios de comunicagdo ¢ sob o impacto da massificagao do ensino, que nao foi acompanhada de novos ebjetivos a perseguir e de nova metodologia a ser adorada. Em Relatéria do Grupo de Trabalho, instituido pela Portaria n, 18 do Ministério de Educagao ¢ Cultura, de 9 de janeiro de 1976, trés tipos de causas foram indicadas para justificar a ineficdcia do ensino de lingua materna, as de fatureza sociocultural, as de natureza socioeconémica ¢ as de natureza pedagdgica. As causas de natureza pedagégica dizem nao sé respeito ao contetdo da disciplina a ser ministrada, mas também e principalmente & formagio do professor. O que vemacontecenda nos cursos de Letras é, cm geral, uma tentativa de recuperagaa das deficiéncias do ensino fundamental e médio, levando a uma formagio fragmentéria e desordenada do professor. Entende-se, desse modo, que a formacao do professor de lingua portuguesa, em qualquer nivel, deva ser radicalmente modificada, passando a fundamentar-se no conhecimento, compreensio e interpretagio das diferengas hoje —e sempre—existentes na escola, a fim de que haja uma mudanga de atitude do professor diante das condigoes sacioculturais ¢ linguisticas dos alunos. Faz-se necessdria também uma reformulacio Graméiica, variagdoenomas =—-15 dos contetidos ¢ dos procedimentos de ensino da lingua, que tem, por objetivo, o dominio da chamada norma culta, sem estigmatizagio, contudo, das variedades linguisticas adquiridas ne processo natural de socializacao. Reconhecendo que uma das prioridades das universidades ptiblicas do pais, na construgio de uma sociedace democratica, deva ser.a educagao e, mais especificamente, oensino da lingua marerna, cabe 4s faculdades de Letras a efetivacio de investigagbes aprofundadas sobre a realidade linguistica do Brasil, seja da forma falada, popular ou culta, seja da forma escrita, jornalistica, académica ou literdria, E tarefa fundamental, pois, da universidade promaver a renovagia dos métodos de ensino/aprendizegem da lingua. E esse 0 desafio! A propésito de gramdtica e norma Joao Ubaldo Ribeiro, em artigo publicado em © Globe (11/08/1985), intitulado “Questdes gramaticais’, diz: A gramitica ¢a mais perfeita das loucuras, sempre inacabada e perplexa, vitima eterna de si mesma e tendo de estar formulada antes de poder ser formulada — especialmente se se acredita que no principio era o Verba. Estou, como ja conrei, estudando gramdtica e fico pasmo com os milagres de raciocinio empregados para enquadrar em linguagem “objetiva” os fatos da lingua. Alguns convencem, outros nao, Estes podem constituir esforgos meritérios, mas se trata de explicagées que a genre sente serem meras aproximagées de algo no fundo inexprimivel, irrotuldvel, inclassificavel, impossivel de compreender integralmente, Mas vou estudando, sou ignorante, hi que aprender. Meu consolo é que muitas das cai s que me afligem devem afligir vocés também. Ou pelo menos coisas parecidas. Nessa afirmagio, 0 termo gramitica, por si sé ambiguo, seria equivalente as caracteristicas de uma lingua que nos so apresentadas em forma de regras e principios que nao se propdem a fornecer uma explicagio mas, antes, um modelo, que nao conseguimos nunca abarcar e dominar integralmente. Pode-se dizer que essa concepcdo corresponde a um s6 tempo a gramética (i) descritiva, que pretende depreender o sistema de uma lingua, através do esrabelecimento de unidades no interior de cada sistema ¢ de suas relagGes opositivas; (ii) geratina, que constitui um sistema formalizado de regras correspondentes 4 competéncia linguistica; (iti) fisncional, que consiste em um conjunto de estrarégias que o Falante emprega com a finalidade de produzir comunicagio coerente; ¢ ainda (iv) sermutiva, que focaliza a lingua como um modelo ou padrio ideal de comportamento compulsério em qualquer situagio de fala ou escrita, 16 Ensino de gramédtica Normalmente se diz que se ensina gramdtica para tornar as individuos capazes de conhecer o funcionamento da linguagem ¢ de falar ¢ escrever bem. A forma coma isso se da ¢ a grande questio, em fungao do conceito de gramatica que estd af implicito, uma gramdtica normativa que presereve normas que serio vilidas em todos os contextas, nao levando em conta a variagio em qualquer dimensio ou nivel. Esse ensino centrade no cédigo tem por tris um juizo de valor. Se pensarmos em gramdtica em termas descritives, de levantamento das unidades opositivas do sistema da lingua ¢ da gramdtica internalizada que a crianga jé traz consigo, terfamos um ensino centrado na utilizagao do cédigo, no uso, propriamente dito, por sua vez, mais eficiente ¢ mais objetivo. Se gramdtica pode ser vista sob varios @ngulos, da mesma forma a norma lingufstica, que ora ¢ associada ao que se deve dizer compulsoriamente, portanto, associada & corre¢ao, ofa a0 que se disse e tradicionalmente se diz numa determinada comunidade, associada por sua vez ao uso objetiva, normal, usual do falante. Essas diferentes concepgdes de Ifngua e de norma deram lugar a orientagGes ¢ objetives pedagdgicos diferenciados, nao estando © objeto de ensino claramente definido nao se pondo de acordo com os linguistas no que se refere & modalidade de uso que deve ser ensinada. A norma culta, a padrao? Norma culta ¢ equivalente a norma padrao? Substitui-sc uma norma por outra? Ou ensinam-se todas as possibilidades de realizagio? Levam-se em conta as variagées, faz-se uma sistematizagao, uma nivelacao, tendo em vista que a escola tem uma misao nacional ¢ a imprensa, o radio ¢ a televisio se dirigem a todos os habitantes do pais? Tenta-se chegar a um denominador comum? A sociedade € insenstvel a esses questionamentos e a nossa agdo ¢ descontinua ¢ limirada a alguns momentos, Para o falante comum, usudrio da lingua, nao ha variacdo, s6 uma dualidade opositiva, o “certo”, a “norma” (prescritiva) ¢ 0 “erro”. A questa de norma e variagao, pluralidade de normas, fica restrita aqueles especialistas que possuem maior conhecimento de ¢ sobre a Ifngua, Eafinal, o que ¢ norma? Consultanda léxicos gerais, verifica-se que as acepgGes mais frequentes sio a de “regra’, “fungdo", “modelo”, “principio”, “lei”. Em um léxico especializado, como o Diciondrio de Lingnistiea de Mattoso Camara (1978), su. norma, ese: ‘Conjunto de hibitos lingulsticos vigentes no lugar ou na classe mais prestigiosa do pats [grifos nossos]. O esforgo [...] para manter a norma e estendé-la aos deniais lugaves ¢ classed ¢ um dot fitores do que se chamaa rrp. [4] Do ponto de vista da norma; 2-variabilidade que a:contraria:consticul o e770. [uJ A norma é uma forga conservadora na linguagem, mas ndo impede a evolugio linguistica, que estd na esséncia do dinamismo da lingua [.... Gramatica, variagdaenormas = «17 Pode- levar pelo preconceito, no momento em que considera que ha um local ¢ uma classe de maior prestigio que serd tomada como modelo. A escolha desse local ‘prestigioso’ recaiu sobre a cidade do Rio de Janeiro e se deveu, prioritariamente, a raz6es extralingu(sticas: situar-sc o Rio de Janciro geograficamente no centro de uma polaridade norte/sul; ser centro politico ha mais tempo, capital da colénia desde 1763; e area cuja linguagem culta tenderia, salvo a famoso chiado carioca, a apresentar menor numero de marcas locais ¢ regionais. A norma linguistica deve ser vista, assim, no quadro mais amplo dos perceber, pelo enunciado do verbete, que mesmo um linguista se deixa comportamentos sociais, sem desconsiderar o papel do prestigio ¢ da corregao linguistica ¢ as condigdes histéricas que antecedem a constituiggo de uma norma explicita. Assim, ao lidarmos com norma, corregao, lidamos com preconceito, € preconceito em relacao 4 lingua ¢ equivalence a muitos outros, como 0 social (de que estrato provém?), regional (qual o dialeto mais prestigiado no pais?), religioso, racial, ¢, como qualquer um deles, estd muito enraizado ¢ ¢ dificil de ser vencido. No sao poucas as pesquisas que levaram 4 conclusio de que mao existe uma norma tinica, mas sim uma pluralidade de normas, normas distintas segundo os niveis sociolinguisticos e as cireunstincias da comunicagio. E necessdria, portanto, que se faga uma reavaliagao do lugar da norma padrio, ideal, de referéncia a ourras normas, reavaliagdo essa que pressup6e levar em conta a variacio e observar essa norma padrao como o produto de uma hierarquizagzo de milriplas formas variantes possiveis, segundo uma escala de valores baseada na adequagao de uma forma linguistica, com relagao as exigéncias de interagao. Avariacio existente hoje no portugués do Brasil, que nos permite reconhecer uma pluralidade de falares, ¢ fruto da dindmica populacional ¢ da natureza do contato dos diversos grupos étnicos ¢ sociais, nos diferentes periodos da nossa histéria, So fatas dessa natureza que demonstram que nio se pode pensar no uso de uma lingua em termos de “certo” e “errado” ¢ em variante regional “melhor” ou “pior”, “bonita” ou “feia”, Olhando um pouco para tris ¢ além dos limites de nosso pats, vé-se, mais uma Vez, que essa preocupagao com variagio ¢ norma nao é recente ¢ nao diz respeito apenas 4 lingua portuguesa. Os crabalhos de Rona (1965), sobre a relag3o entre a investigacio dialectolégica — leia-se também sociolinguistica — e 0 ensino da lingua materna, o de Rasenblat (1967}, sobre o critéria de corregao ¢ a unidade ¢ pluralidade de normas no espanho! de Espanha ¢ América, a coletinea organizada por Bédard (1983), sobre norma linguistica, publicada pela Universidade de Québec, entre outros, dio testemunho a respeito da questo de norma ¢ ensino em outras linguas, mais especil icamente o espanhol na América co francés no Canada. 8 — Ensino de gramética Rona introduz 0 tema dizendo que nos Estados Unidos jd se chegara a conclusio de que o falante, depois de completar a sua aprendizagem, deveria ser capaz de falar de tal forma que a sociedade o considerasse um falante culo, em outras palavras, deveria falar a nerma culta da regiao em que vivesse. Acrescenta que, infelizmente, nas paises hispano-americanos, o ensino estaria baseado na lingua literdria extradiassistematica, atépica, e, desse modo, dais resultados seriam possiveis ao final de seu aprendizado bdsico: o falante possuir dois sistemas, o do nivel mais baixo de sua regido e o da lingua académica, nenhum dos quais corresponderia ao do nivel culto local; ou o falante continuar possuindo um sistema —o anterior a0 de sua aprendizagem = por nfo conseguir levar © outro sistema ao grau intuitivo, Se pravém do nivel culro, nd haveria problema, exceto a desperdicio de esforgas. Propde entdo o autor que o ensino da lingtia materna se faga em duas etapas, primeiro, tomando-se por base a norma culta local e sé depois a liverdria. Se partimos desse pressuposto, ¢ necessario, antes de mais nada, descrever essas normas cultas locais ¢ para isso terfamos de contar com o auxilio do dialectélogo e/ou do sociolinguista, que assumiria a responsabilidade de fornecer gencralizagdes descritivas a partir de seus resultados de pesquisa. O autor apresenta como uma iniciativa bem- sucedida o trabalho de Mattoso Camara, Erres de escolares coma sintomas de tendéncias Jinguisticas no portugués do Rio de Janeiro (1972), ¢ afirma que a questao estaria bem encaminhada no Brasil, Quem dera! Uma atuacdo isolada, sem apoio institucional, governamental, nao frucifica. Nao obstante, € positivo o interesse por parte de sociolinguistas, nos tiltimos anos, em levar os resultados de pesquisa para a sala de aula, 0 que jd vinha sendo feito por muitos professores, embora de forma assistemitica. Nao se pode dizer, contudo, que se conseguiu mudar a mentalidade geral. Atingimos alguns ¢ apenas alguns. A pressio social ¢ continua ¢ poderosa ¢ os meios de comunicagao estao a seu favor. E frequente encontrarmos artigos em jornais em que aparecem consideragdes do tipo *Q verndculo vai mal", “A crise de nossa lingua de cultura”, “Querem assassinar 0 portugués”, “A lingua fica confusa”, assinados por pessoas que gozam de prestigio cultar ainda mais a atuagao junto & comunidade em que vivem, 0 que acaba por do professor e do linguista, Por outro lado, esta “febre” de trazer para a sala de aula os resultados de pesquisas, de aplicagao ao ensino, deve ser ‘tratada’ com cautela, para que nao se cometam erros ainda maiores na condugio do problema. Se foram necess jos tantos anos para chegar cia coletiva, muitos € muitos anos ainda serio necessirios para tragar estratégias que conduzam a uma mudanea de postura da sociedade, como um todo, e também da escola, sempre mais reaciondria, uma vez que nao se obreve sucesso no empreendimento em relagdo a um niimero razodvel de professores da disciplina de a essa cons Gramatice, variagae enomes — 19 lingua portuguesa. Uma atuagdo mais agressiva, mais eficiente, faz-se necessdria para que 0 ensino se torne mais eficaz, mas sem generalizagées apressadas que, mesmo imbuidas das melhores intengGes, conduzem, muitas vezes, a equivecos. © trabalho de Rosenblar segue uma ourra diretriz ¢ levanta inicialmente duas questées bisicas: a primeira delas, a de atribuir 4 nogao de corregao um cardtet extralinguistico, uma espécie de sancao cultural ou social que corresponda, de preferéncia, a uma chamada linguistica externa; a segunda, a de que o ensino da variedade culta deve prevalecer sobre o de outras variedades, jd que opera em toda comunidade certo ideal expressivo ¢ todo uso corresponde a um paradigma imposto pelo consenso social. Outros aspectos apontados sio o da necessdria convivéncia ¢ colaboragio de setores sociais diversos que acabam por conduzir a uma nivelagao eo fato de essa nivelacéo poder se dar de cima para baixo (por imposigéo) ow de baixo para cima (por forga do uso). Defende o autor o ponte de vista de que ¢ mais democratico e unificador fazer com que o falante domine também a variedade padrio, de prestigio, j4 quea lingua, como qualquer instituigio social, ¢ regida por uma hierarquia de valores, A sociedade nao ¢ um conglomerado de linguistas ¢, ao defender suas normas, que constituem sua esséncia, pode ser implacdvel. No texto de Gagné (1983), que faz parte da coletanea referida anteriormente, ressaltam-se dois momentos, nos quais o autor afirma (i) que um dos abjetivos importantes do ensino da lingua materna se situa precisamente no nivel das atirudes, fo que concerne & variagao linguistica, ¢ (ii) que aquele ensino que se inspira em uma nova orientago menos prescritiva, centrada no uso do eddigo, nao consegue por vezes evitar uma certa improvisagao... Muitas questées séo levantadas, nenhuma agao objetiva e continuada é apresentada, Ao fim, o bom senso € que deve prevalecet. A norma nao pode ser rigida, monolitica, a lingua muda, as normas gramaticais se modificam ¢ nada ¢ mais prejudicial que um purismo estreito, quase sempre baseado num conhecimento deficiente da propria lingua. Legisla-se, na verdade, sem real conhecimento da complexidade dos faros que caracterizam cada falar, cada variedade, cada variante. Toda lingua, em qualquer pais, em qualquer cidade, possui sua propria norma culta, sua propria linguagem comum, que nao coincide totalmente com a norma literdria, ideal, ¢ funciona, por sua vez, apenas como ponto de referéncia ¢ come forca unificadora e conservadora. Cunha, referindo-se & oposigao entre norma culta ¢ norma purista, reafirmava em 1985 as suas palavras de 1952, sobre ser impossivel querer manter a quimera de uma norma purista no mundo atual, conturbado e interligado. Como se vé, a existéncia de diferengas de uso numa mesma lingua ¢ um fato incontestdvel ¢ nao uma anomalia, restrita 4 lingua portuguesa. Anomalia seria nao. 20 Ensino de gramatica haver diversidade, uma vex que uma Iingua se define como lingua na medida em que seus usudrios se comunicam por meio dela para conviverem socialmente, ¢ 0s contaros sociais so, por sua ver, de natureza plural. A variagao das linguas resulta, principalmente, da flexibilidade inerente ac proprio cddigo lingufstico e da multiplicidade de usuarios que dele se servem, A populacio brasileira, hoje estimada em mais de 170 milhées de habitantes, distribufda por um territério de 8,5 milhoes de quilémetras quadrados, nfo poderia deixar de fazer uso de variag6es de todo tipo. Aaparente unidade linguistica que permite que os falantes se comuniquem ¢, por sua ver, composta de uma infinidade de passibilidades. © paradoxo estd em que cada falar, mesmo o culto, tem sua norma, variances que prevalecem estatisticamente, mas que no anulam a ocorréncia de outras. Em fungao de uma realidade lingufstica que abarca uma pluralidade de normas verndculas, de nocmas cultas ¢ — dadas as contradi¢Ges de autor para autor — de normas subjetivas das gramdticas escolares, constatam-se wirios polos cultos ¢ populares sobrepastos, em varios niveis e, por isso mesma, as vezes, de dificil reuniao em um mesmo extremo. Lidar com Iingua, pois, € lidar com variago, Em dicionarios gerais, 5.2. variagdo, leem-se as acepcdes; 1. ato ou feito de variar; 2, varidvel que se adiciona a outra varidvel, out Fungo adicionada a outra fungao; 3. diferenca, genética au nao, relativa a decerminado cardter entre individuos da mesma gera¢ao ou de sucessivas geragdes, etc, Em diciondrio especializado (Camara Jr, 1978) sv, eariagda, registra se uma definicdo mais especifica: “consequéncia da propriedade da linguagem de nunca ser idéntica em suas formas através da multip! . Cada elemento padronizado da lingua tem as suas VARIANTES...” E essa mudtiplicidade diz ictdade do discurso respeito também:a oposicéo fala ¢ escrita, com suas especificidades, semelhangas ¢ diferengas. Hoje em dia, a posigao que prevalece é a de que representam cédigos distintos, uma vez que, na fala, lidamos com instabilidade, naturalidade, rapider de produgao, riqueza de prosddia ¢, na escrita, com a sistematicidade e o permanente. ‘A ideia de que na fala “vale tudo”, contudo, é uma total fiegio. © que ocorre é que, na fala, a busca por formas claras, abjetivas, adequadas ¢ precisas de emprega dos recursos da lingua ¢ visivel, audivel, portanto, mais pereeptivel. Repetigdes, hesitagdes, quebras ¢ tetamadas da sequéncia discursiva tornam os pracessas de selegao ¢ de estruturagio dos meios de expressdo linguistica mais transparentes, Tanto a escrita quanto a fala podem se apresentar de diversas formas, porém no ensino da lingua escrica busca-se neutralizar as marcas identificadoras de cada grupo social, no intuito de atingir um padrao unico abstrato idealizado, que seja supranacional. Uma lingua “é assim, um bem comum que serd tanto mais meu quanto mais for de todos, 0 que sé se faz possivel porque cada um ‘pode’ fazer do bem comum um uso pessoal sem que o bem comum sofra, mas, ao contrdrio, se faga mais bem comum ainda” (Houaiss, 1977: 11), Gramética, variagGeenomas 21 A diversidade, nao s6 regional, existente hoje, que nos permite reconhecer uma pluralidade de normas locais, nao apenas na fala popular, mas também na fala culta, nada tem de ‘espantosa’, “dadas as caracteristicas pluriculturais tanto do nosso passado quanto do nosso presente” (Rossi, 1980: 40). Entretanto, a essa pluralidade contrapoe- se o papel unificador, de centros irradiadores de cultura, exercido por algumas capitais, notadamente o Rio de Janeiro, que, a despeito de renovar constanremente sua parcela de populacgo oriunda de virios pontos do pafs, acaba por neutralizar as marcas caracterizadoras de cada um desses pontos, na busca de atingir no ensino um padraa tinico abstrata ¢ idealizado. O ensino e a constituigGo de normas no Brasil Em entrevista ao Jornal do Brasil, Houaiss afirmava que, até algum tempo atrés — antes de 1981 -, ensinar significava aceitar o eédigo ¢ transmiti-lo, Porém, de um lado, a partir da massificagio dos professores, sobre uma massificagaio dos alunos, 0 eddigo tornou-se algo bem mais complexo, em fungae do perfil dos préprios professores —antes uma minoria, com formagao rigida—, ¢ veio dererminar uma mudanga na forma de expresséo dos alunos, Mattos (1998: 93), ao enfocar a experiéncia de trabalhar ¢ viver no Rio de Janeiro nas ltimas décadas, corrabora essa ponderagdo, afirmanda que varios farores geraram uma nitida sensagio de decréscimo no padrio de qualidade do ensino, Formados na tradi¢ao do ensino fundamental como repassador de contetidos estabelecidos nas distantes instincias produtoras do saber oficial, as professores, que jd se esforgavam para dominar estes contetidos de cuja produgao estavam alheios, teriam enormes dificuldades em relacionar-se com os cédigos, comportamentos ¢ saberes da cultura gestada no scio das classes trabalhadoras. Existe, sem diivida, um abismo entre a norma idealizada c a norma efetivamente praticada, mesmo pelos falances mais escolarizados, trazendo a necessidade de repensat ‘o nosso oddigo gramatical ¢ atualizd-lo. A fala brasileira se diferencia, substancialmente, da portuguesa, ¢ os padroes vigentes, calcados na tradi¢ao dos classics, impostas de cima para baixo, jé no sfo tao bem aceitos. A partir dessa ruptura emergiu o fendmeno da Ifngua falada no Brasil, na sua varianre culta, como modelo, como norma, pata a lingua escrita nao literdria. Essa nova pratica punha, antes de mais nada, em contraste, as variantes culras ¢ as variantes populares. Assim, a lingua portuguesa nao é homogénea, como nenhuma lingua é homogénea, mas sim “heterogénea, plural ¢ polarizada, sc se considerar © todo 22 Ensino de gramatica do portugués brasileiro ¢ nao apenas a idealizada norma padrio...” (Mactos e Silva, 1999), Na designacao de Lucchesi (1994), terfamos, em um polo, as mormas verndculas ¢, em outro, as normas cultas. Lucchesi & Lobo (1988) propéem também uma distingio entre norma padrio ¢ norma culta, a padrae correspondendo aos modelos contides nas gramdticas normativas, a ct/a, aos usos dos falantes mais escolarizados. As normas populares ou verndculas corresponderiam aos usos dos falantes menos escolarizados, Afirma Pagotto (1998; 50) que, a partir das andlises do portugués do Brasil, mais ce mais se constata a distincia entre as formas usuais no nosso verndculo ¢ 0 portugués exigido na escrita € prescrita nos manuais de gramdtica ¢ argumenta que durante o século xix uma norma culta escrita foi codificada, Para confirmar essa hipétese, o autor tomou por base duas versdes da Constituicao brasileira, a do Império, de 1824, ¢ ada Republica, de 1892, ¢ comparou certos usos lingulsticos emblematicos, como o da posigao de proneme dtono, chegando 4 conclusio de que a primeira versio foi escrita no que ficou conhecido como portugués classico c, a segunda, no que se tem. considerado como a atual norma culta. O resultado desse confronta —2 Constituigao do Império ¢ essencialmente proclitica ea da Repuiblica enelitica— permite inferir que a norma brasileira teria sido construfda, paradoxalmente, a partir do modelo curopeu, ainda que em um momento de afirmacao nacional. ‘A lingua ¢ infinitamente variada e os ideais linguisticos do final do século x1x ¢ comego do século xx nao podem permanecer os mesmos, uma vez que a sociedade atual se estrutura de modo totalmente diverso ¢ as relages que se estabelecem entre os divetsos niveis da piramide social sao hoje muito mais intensas ¢ profundas, gragas 205 meios de comunicagio de massa. A respeito dessa questo, confirma Castro, em 2003, a sua prépria convicgao de que uma norma esté destinada a vigorar por algum tempo, pois sofre mudangas em determinados espacos, no podendo ser estendida auromaticamente a todos os pontos, E ressalta que, se os gramdticos do século xvi podiam dizer que a norma emanava da Corte e os do xrx que ela cmanava de Coimbra porque tinha a Universidade, teriam hoje de reconhecer que a norma portuguesa (europeia), de maior vitalidade e capacidade de fazer adeptos, ¢ a que transmitem os jornais, o ridio ¢ a televisio. Por outro lado, a gramitica normativa, veiculada na escola, vé a lingua como. algo homogénco, imurivel, ¢ ¢ essa a ideia que ¢ passada no ensino em tedos os niveis. © estudo de lingua portuguesa é quase sempre associado 4 nogio do ‘certo! ¢ do ‘ertado’, como se s6 houvesse uma tinica possibilidade de utilizagio normal da lingua. Os nio-especialistas ¢ os préprios alunos, nas escolas, costumam dizer que no sabem ‘falar portugués’. Varios especialistas, profissionais que trabalham com a lingua, no dia a dia, tais como Jodo Ubaldo Ribeiro ¢ Luis Fernando Verissimo, destacam, desde a década de 1980, o fato de que falar ¢ escrever certo é como falam os Gramética, varlagao enemas 23 praticantes da norma culta de determinado local, norma culta essa que nio pode ser definida por legislagao, mas antes levantada, pesquisada, aferida, avaliada ¢ estudada. E ainda quea sintaxe é uma questéo de uso, ndo de principios: escrever bem ¢ escrever claro, nao necessariamente certo. A proposito de variag¢Go e mudan¢ca A heterogeneidade do portugués brasileiro, fato hoje incontestavel, vem sendo observada pela sociolinguistica—que, no Brasil, comecou ater destaquena década de 1970— de forma ampla e efetiva, nfo $6 qualitativa, mas também quantitativamente. Antes disso, embora existissem varios trabalhos, no Brasil ¢ fora dele, que chamassem a aten¢ao para a diversidade sociocultural, toda a énfase era dada & variagao regional, dentro da tradigio dialectolégica. A partir da década de 1960, comegam a sutgit varios projetos coletivos, como os de atlas linguisticos, em novos moldes, ¢ outros como © da Norma Lingufstica Urbana Culta (Projeto Nurc),! 0 do Mobral, a do Censo da variagio linguistica, o do Programa de Estudos do Uso da Lingua (Peul), 0 do Projeto Variagio Linguistica Urbana no Sul do Brasil (Varsul), 0 da Gramdtica do Portugués Falado, 0 de Para uma Histéria do Portugues Brasileiro (pups),? eo do Projeto Andlise Contrativa de Variedades do Portugués (Varport). Esses projetos analisam corpora diferenciados que do conta, de uma forma ou de outra, da chamada polarizagao sociolinguistic. Teyssier (1982) jd dizia que as diferengas entre falantes, com diferentes graus de escolaridade, de uma mesmia regido, eram mais significarivas que aquelas que existiam entre falantes, de um mesmo grau de escolaridade, de regides distintas. Hi certos usos consagrados na fala, ¢ até na escrita, que, a depender do estrato social ¢ do nivel de escolaridade do falante, sio, sem diivida, previsiveis. Ocorrem até mesmo em falantes que dominam a variedade padraa, pois, na verdade, revelam tendéncias existentes na lingua em seu processo de mudanca que nao podem ser bloqueadas em nome de um “ideal linguistico” que estaria representado pelas regras da gramdtica normativa. Usos camo o de fer por haver em construgies existenciais (sem muitos livros na estante), o do pronome objeto na posicao de sujcito (para mim fazer o wabalho), a nZo-concordincia das passivas com se (aluga-se casas) sao indicios da existéncia, ndo de uma norma unica, mas de uma pluralidade de normas, entendida, mais uma vez, norma como conjunto de hdbitos linguisticos, sem implicar jufzo de valor: Motivadas ou nao historicamente, normas urbanas ¢ nao-urbanas, prestigiadas ‘ou estigmatizadas pela comunidade, sobreptem-se ao longo do territério, seja numa relagio de opasicaa, seja de complemencaridade, sem, contudo, anular a intersegao de usos que configuram uma norma nacional distintada do portugués europeu. Ao focalizar 24 Ensino dle gramditica ssa questao, que opde nao sd as normas do portugues europeu as normas do portugués brasileiro, mas também as chamadas normas cultas locais as populares ou verniculas, deve-se insistir na ideia de que essas normas se consolidaram em diferentes momentos da nossa historia ¢ que 36 a partir do século xvimt se pode comegara pensar na bifurcagao das variantes continentais, ora em consequéncia de mudangas ocorridas no Brasil, ora em Portugal, ora, ainda, em ambos os territérias. A andlise de alguns aspectos linguisticos mostra que se pode recuar, em alguns casos, para o século xvii, ¢ nfo para o xD — coma tem sido em geral afirmado —, 0 momento em que se implementam algumas das mudangas ocorridas na lingua portuguesa, como um todo. De um lado, siua-se © uso do artigo definido diante de nomes prdprios (0 Jode, a Maria), que se torna mais salienre na passagem do século xv1t para o xvi, paralelamente & posposigio do pronome objeto (déme) ¢ o uso do infinitive gerundivo (estar a fazer), em Portugal, que passaram a configurar normas nacionais distintas a partir do século xvi, Alguns usos que se tornaram frequentes entre nds nao tiveram origem apenas em formas da oralidade brasileira: “Muitos dos nossos brasileirismos, ¢ muito da nossa gramatica, no passam de arca/smos preservados na América” (Ribeiro, 1933), Como se pode ver na Figura 1, 0 porrugués do Brasil apresenta, hoje, um percentual mais préximo de uso do pronome proclitico do século xvi — época em que se iniciou a colonizagio portuguesa no Brasil — que 0 préprio portugués europeu. O ponto de divergéncia torna-se mais n{tido na passagem do século xvi para o xix, embora ja se apresente uma queda acentuada da préclise do século xvi para oxvir. A calocagio do pronome no portugués falado de hoje ¢ objeto de andlise em capitulo subsequente. Figura | AnteposicGo do pronome ao verbo no percurso histérico em textos n@o-literdrios (Fe). 100% Gramética, vorlagéoencmes 25 De outro lado, destaca-se 0 uso de rer por Aaver, em estruturas existenciais, que se intensifica no Brasil apenas no século x1x, ¢poca em que jd se registra um percentual de 25% na lingua escrita jornalistica, Essa substicuigao constitui uma das marcas que caracterizam o portugués do Brasil, afastando-o do portugués de Portugal ce aproximando-o do de Angola ¢ Mocambique. Em relagio a0 portugués atual, o uso do artigo no contexta referido, no Brasil, um dos tragos linguistics definidores da regio de origem do falante. A distribuicao regional ¢ praticamente idéntica na lingua falada culta ¢ na lingua escrita literdria, mostrando uma nitida oposicao entre Norte ¢ Sul do pais ¢ 0 Rio de Janeiro em uma posigao intermedidria (Figuras 2 ¢ 3). Figura 2 Frequéncia de uso do artigo de acorde com a regido de origerm do falante. Lingua falada/Regiao on psp wPOA ssa wre Figura 3 Frequéncia de use do-artiga de acordo com a regiGo de origem do escritor. Lingua escrita/Regiao oR wsP mRGS mBA mPe 26 Ensino de gramatica Para ilustrar outro aspecto, tomemos 0 uso cada vex mais difundido de rer por Adver, que atinge pessoas de todos os niveis ¢ estratas sociais e que, na fala, no ¢ sequer estigmatizado. No maximo ocorre estigmatizagao quando o verbo Adver ¢ flexionado, em exemplos do tipo “howveramr muitos acidentes ontem”, E isso nao se aplica apenas ao portugués do Brasil, a julgar pelas palavras do fildlogo e linguista portugués Ivo Castro (2003: 13), jd citado. Desconhego as circunstancias exatas em que se inseriu na gramética portuguesa a ideia de que Saver com o sentido de “existir, ter existéncia” € um verbo exclusivamente impessaal, quando pelo menos alguns esctitores ¢ muitos falances pensam ¢ agem de outro modo |...) se a norma fosse fixada por linguistas, ¢ no por gramdticos, seria certamente mais respeitadora dos fendmenos de variacio ¢ dos atos de fala reais e verificdveis, Na fala culta, com base em dados do Projeto Nurc no Rio de Janciro, comprova- seo predominio cada vez maior do ¢er-existencial (Figura 4). Figura 4 Uso de ter/haver-existencial em duas décadas. 100% a0% 60% 40% 20% ot OTER HAVER pec, bec 70: a0 Esse uso nao se limita 8 fala, conforme a.andlise empreendida por Rocha et al. (1999), no periodo de 29 de outubro a8 de novembro de 1999, em trés jormais cariocas, valtadas para leitores de classes socioeconémicas diferenciadas — O Globo (classe a), O Dia (classe ») ¢ Povo (classe c), Pode-se observar (Figura 5) que o jarnal O Globe 0 tinico em que se verifica uma preferéncia pela variante padrio, com predominio do verbo Aaver em estrururas existenciais, mas concortendo com ser. Gramatica, variagaoenomes 27 Figura § Distrioui¢Go de uso (ier e haver) por tipo de jomal (década de 1990}, 80% anne! 40% OTER HAVER 20% 0% O GLOBO ODA Povo Jé cm gramiticos do final do século x1x, inicio do século xx, registra-se a observagao de que a substituigao de Aaver por rer vern “se tornando geral no Brasil, até mesmo entre as pessoas illustradas” (Ribeiro, 1914: 296), 0 que demonstra que a mudanga ja se vinha processando ha mais tempo. Outros aspectos exemplificadores dos fenémenos de variagio e mudanga no portugués do Brasil serio enfocadas em diversos capftulos deste livro, como os que tratam dos pronomes pessoais, da concordancia nominal e verbal. O ideal e o uso linguisticos Atingimos o inicio do milénio com crescimento efetivo dos indices de escalarizagao e com intensa penetragaa dos meias de comunicagao de massa, fatores esses que poderiam, se nao anular, pelo menos atenuar a chamada polarizagao sociolinguéstica. E. ucopia, contude, pensar que o ensine de lingua portuguesa se dard em contexto de homogeneidade ¢ que se poderd chegar algum dia a uma globalizagito linguistica, mesmo que em uma sociedade globalizada, Se qualquer falante jd possui uma gramaética internalizada — sistema de regras ¢ principios universais — ao ingressar na escola, ele deve desenvolver a sua competéncia comunicativa de tal modo que possa “utilizar melhor" a sua lingua em todas as situagGes de fala ¢ escrita, isto ¢, possa ser capaz de refletir sobre a capacidade linguistica que ele j4 possui ¢ domina no nivel intuitivo, mas sobre a qual nunca antes se tinha debrugado para analisar a funcionamento, A aula de portugués seria entio um exercicio continue de descrigao ¢ andlise desse instrumento de comunicagio. Para isso, varias estratégias podem ser utilizadas, entre elas, a de levar o aluno a reconhecer a variagdo inerente a [ngua que faz com que cada grupo social possua sua prépria variedade, mas ao mesmo tempo seja capaz de conviver com tadas as outras. Viver é conviver, sobretuda em matéria de linguagem, jd dizia Rosenblat em 1967. 28 = — Ensino de gramatica Essa reflexdo sobre a lingua deve ir além da observagia do que é “certo” e “errado”, A prdtica da leitura ¢ da escrita seré fundamental para atingir os objetivos, pois fara com que o individuo entre ¢m contato com uma pluralidade de normas, além da sua prépria. Quando se fala em “usar melhor”, pode-se pensar em ser capaz de usar a chamada norma culta padrao, mas também se pode pensar apenas em eficdcia comunicativa, O ensino da lingua deveria centrar-se menos em exercicios gramaticais, de ensino de metalinguagem e mais em possibilicar ao aluno o dominio das varias modalidades de uso e da modalidade culta da comunidade de que ele faz parte. A primeira forma de “concretizar” este “usar melhor” é fazé-lo reconhecer a diversidace linguistica, os usos linguisticos, para além da unidade, do ideal linguistico, E fundamental em sala de aula fazer o aluno ter contate com a lingua falada ¢ escrita ¢ fazé-lo produzir textos os mais variados, levando-o sempre 4 compreensao do sentida global do texta ¢ dos mecanismos produtores desse sentido, Os parametros curticulares chamam a atengao para o fato de o ensino de lingua dever ser baseado no texto € que a lingua nao ¢ sé uma estrutura abstrata, mas um fendmeno sécio- histérico, nao é apenas eddiga, mas também fonte de ensino. Desenvolver a capacidade ¢ condigées de expresso oral ¢ eserita seria uma forma concreta de ober um resultado melhor no ensino ¢ na aprendizagem. A énfase na lingua falada ja estd expressa em documentos do préprio Ministério de Educagio desde pelo menos a década de 1970, jd que a oralidade ¢ a nossa base primeira de identificagao. O reconhecimento das diferengas entre as normas da fala ¢ da escrita, das diferengas entre os varios textos, literdtio, jornalistico, cientifico ete., ind contribuir para tornar o falante mais capaz de se situar no mundo. F através da linguagem que uma sociedade se comunica ¢ retrata o conhecimento e entendimento de si prépria e do mundo que a cerca. Notas ' Projeto URC, Confira mais informagGes em wor letras. uf be/nure-t » Projeto Para uma Histdria do Portugués Brasileira, confira mais informaghes em wowilettia ufr befphpberj Referéncias bibliogrdficas Béparp, E.; Maurais, J. (orgs.). La Norme lingnistique, Paris: Collection L'ordre des mots, 1983. CAmana Jr, J. M. Erros de escolares coma sintomas de tendéncias lingufsticas no portugués do Rio de Janeiro. Dispersos. Rio de Janeiro: Fundacao Getiilio Vargas, 1972. pp. 35-46. Gramatica, variagao'enomas 27 . Diciomirio de linguistica e gramdética, 8. ed. Petrépolis: Vozes, 1978. ‘Castro, I. 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