You are on page 1of 16
Estudos da Lingua(gem) Linguagem, psicandlise e meméria A especificidade da meméria em psicanilise The specificity of memory in psychoanalysis Angela Courmno* SOCIEDADE Dz PsICANALIS IRacy Doyle (SPID/BRasiL) UNIVERSIDADE DE SaNTA Unsuta (USA/Baasi), RESUMO O artigo trata da especificidade da meméria em Psicanilise, seferida & memiéria inconsciente, memézia de tracos e de diferenca. A originalidade da concepeio freudiana de memeézia é ser fundada nos diferentes arzanjos das vias associativas, isto é,na diferenca, nao constituindo marcas que seproduzem, por semelhanea, a realidade. A meméria é meméria da diferenca, da diferenca em si, como primeira, como principio de constituicko do psiquismo. Meméria é movimento e implica em associagées ¢ relagdes numa combinacao mével e constante. Em Psicandlise, trata-se de meméria-duracio, que persiste © insiste continnamente, nunca a mesma. PALAVRAS-CHAVE: Psicanalise. Memoria. Tracos. Diferenca. Movimento, *Sobre a autosa ver pagina 74 Estudos da Lingua(gem) | Veda da Conquisa [ « ia i jako de 2013 ABSTRACT The article deals mith 2 specificity of memery in peyeboanaisis, referred to the unconscious memory, memory of traces and difference. The originality of the Freudian conception of menwory is to be founded on different arrangements of associative paths, ie, rhe difference does not constitte marks reproducing by similarity t0 reali menvory of te difference, the difference tsef, as the frst as a principle of the constitution of the psyche. Memory is metion and involves associations and relationships in combination mevel constant. In poychoanalysis, it is about memory-duration persisting and continually insists, never the sane The memory is KEYWORDS: Psychoanalysis. Merory. Traces. Difference. Mevenvent. 1 ConsideragGes iniciais Memétia em Psicandlise nao se confunde com memoria como acumulacio de fatos armazenados em arquives na mente, que podem ser revisitados enquanto tais. A pratica psicanalitica se baseia numa concepeao original de meméria que possibilita pensar esta pritica como transformadora, e nao como mera constatacao do que existe, ou seja, mero proceso de autoconhecimento, pela escavacio dos subterrineos da mente, levando a uma atualizagio dessa memoria arquivo. A originalidade da concepgio de meméria em Psicandlise aponta numa outta ditecio. Vou partir dos primérdios da Psicandlise para dai tacar a especificidade da meméria nesse campo. Para pensar a génese do sujeito humano possuidor de um inconsciente e de uma sexualidade, Freud inicialmente elabora uma “teoria da seducao”, partindo da suposta realidade efetiva de uma seducio cometida por um adulto significativo, na maior parte das vezes, o pai. Com esta teoria, ele pretende explicar a totalidade da psicopatologia pela nocio de recalcamento. A Teotia da Seducio pressupée um trauma sexual infantil, que vai engendear o zecalque, e cuja permanéncia no inconsciente vai gerar os sintomas histéricos. E a Teoria do Trauma que se liga a seducao infantil. Desse modo a Teoria da Seducao nao é a simples ficidade da mensiria em psicandilise afirmagio da realidade dos fatos da sedugio. No seu desdobramento, trata-se de uma teoria original e complexa que se desenvolve nos registros temporal, tpico ¢ tradutivo (LAPLANCHE, 1988, p. 108) Freud, 20 remunciar 4 Teotia do Trauma — como acontecimento real —, que seria o termo ultimo a ser disfarcado, passa a substitui-lo pelo conceito de fantasma, onde tudo é disfarce e mascara, tudo é interpretacao. A prépria nocao de original, embora seja uma preocupacio constante em Freud, aunca é inteiramente elucidada. Esse termo, tiltimo ou primeiro — alternando-se entre factual, efetivo, filogenético, mitico —, ¢ algo que sempre escapa, que fica como resto, como enigma. Esse resto pode ser pensado como 0 nao simbolizAvel, isto é, 0 significante — des-significado (LAPLANCHE, 1987, p. 156). De qualquer modo, esse resto vai ser preenchido pelo fantasma, que € em si interpretacao, encenacao em torno desse vazio de significado, vazio ao redor do qual gravita Nada sabemos nem saberemos sobre o que é original, 0 evento passado, o trauma em si. Est perdido para sempre. Esteve perdido desde sempre. Nio dé para recupezar. Além disso, 0 tempo é inreversivel A memiéria 6, assim, construida em torno desse indecifravel sem volta. Alguns pontos integrantes da Teoria da Seduciio se mantiveram atuais na obra de Freud, mesmo apés 0 abandono dessa teoria, que era apoiada em fatos reais. Os aspectos temporal, tépico ¢ tradutivo permaneceram como uma aquisicio da Psicanalise: a teoria do a posteriori ou do traumatismo em dois tempos, a nocao de localizacao tépica, lagos tradutores ou interpretativos entre os cendrios e as cenas e a perspectiva da memétia como diferenca, como criagdo permanente. O aspecto temporal, 0 a posteriori, permanece como linha diretiva do pensamento e da pratica psicanalitica. A construcao da realidade psiquica e da fantasia introduz uma novidade quanto A questio da origem. Embora Freud jamais tenha desistido de sua busca, no sentido de um realismo factual, hé outros indicios que nos permitem deslocar a problemitica da origem. Nao se trata mais da realidade material, que possibilitaria situar um ponto zero — historicamente determinado (onto ow filogeneticamente). Com a nocio de realidade psiquica, hé um deslocamento da busca de uma histéria cronolégica para um tracado genealogico, cujo comeco é de onde se parte, do ponto de vista de chegada. Uma organizacio psiquica remete sempre a interpretacdes sucessivas, numa cadeia interminavel. Se é em torno do enigma que essa organizacio se da, esse enigma sera sempre passivel de nova interpretacio, sempre outra. A formulacao da origem como producio nao se confunde com a pretensio de se chegar as origens. Desse modo, a nogao de a festeriori nao postula uma primeira ocorréncia, mas uma sucessao de cenas, cuja tensao tradutora entre elas é configurada como a posteriori. A nocio de a pesteriori implica numa tens&o entre os acontecimentos, que é explicada pelo modelo tradutivo. 2 Aspecto Tradutivo: Aparelho da Memoria no Modelo da Carta 52. A Carta 52 de Freud a Fliess, datada de 6 de dezembro de 1896, ou seja, em pleno periodo de desenvolvimento da Teoria da Seducao, apresenta um modelo de apazelho psiquico formado por um proceso de estratificacao, explicativo da nocao de a posteriori. Nessa carta, Freud levanta a hipétese de que “[...] nosso mecanismo psiquico se forma por um processo de estratificacao: o material presente em forma de tracos de memiéria estatia sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstancias - a uma retransericao” (FREUD, 1896, p. 281). A novidade dessa hipotese é “a tese de que a memoria nfo se faz presente de uma sé vez, mas se desdobra em varios tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicacdes” (p. 281). Havendo pelo menos trés registros, eles encontram-se separados de acordo com os neurénios que sao seus veiculos. Trata-se de um modelo semiolégico (plano de linguagem que inclui todos os modos articulados de comunicacio), onde Freud enfatiza as nocées de “signo, inscricao e transcri¢io”. A organizacio do apatelho psiquico, assim, tem inicio nos neuzénios que dio otigem As percepcées, constituindo o sistema W A especiticidade da nembria em peivandlise 63 (cesponsavel pelas percepedes, mais tarde denominado sistema perceptual consciente, Pept.Cs ). Estas se ligam a consciéncia, embora nao conservem nenhum traco dos acontecimentos, uma vez que consciéncia e memétia sio mutuamente excludentes. A percepcio implica numa petmeabilidade constante, o que possibilita a recepcio de novos estimulos. As percepcées pressupdem uma presenca que é captada no confronto com o novo, a impressao do mundo exterior. A partir das percepedes, a memiéria vai se fazendo, a principio pela inscti¢o das percepgées, inacessivel 4 consciéncia ¢ articulada segundo associacdes por simultaneidades sinctdnica Formam os “signos das percepedes” (WZ), que constituem o primeito registro mnémico. Estio no presente sem estarem, necessariamente, na presenca, isto é, estao & disposicao, atualizados, constituindo uma meméria perceptual (KATZ, 1993, p. 289) O registro seguinte, da inconsciéncia (Ub), é uma segunda inscricao, ordenada, talvez, segundo relagées causais, ligada a tracos conceituais. Ignalmente sem acesso 4 consciéncia. A terceira transcri¢io é pré-consciente (Vb), ligada as epresentacdes verbais (tepresentacées- palavras), corzespondendo a nosso eu oficial. A partir desse pré- consciente, os investimentos tornam-se conscientes segundo certas regras. Dos trés registros assinalados por Freud, este é 0 tinico capaz de acesso a consciéncia. Desse modo, os diferentes registros se sucedem no tempo, num re- ordenamento constante € sao constituidos de sinais, de tracos de natureza diferente. Os sinais linguisticos aparecem com a terceira reescritura, a do pré-consciente. A passagem de um sistema a outro pressupde uma nova inscrit , segundo um cédigo heterogéneo aquele que o precede, sendo 0 recalcamento, isto é, a manutenc@o no inconsciente, o fracasso, 0 obstaculo, a recusa da traducio (LAPLANCHE, 1988, p. 93). A importincia desse modelo ¢ a apresentacio do aparelho psiquico se originando nas percepgées, constituindo a partir dai signos que serio inseritos e retranscritos num processo de reordenacio sem fim. Os sucessivos registros correspondem a conquistas psiquicas de épocas sucessivas da vida, devendo ocorrer uma traducao do material psiquico na fronteira entre essas épocas. Essa tradugao equivale aum reordenamento (cetranscrigio) desse matetial, e a constitui¢o da meméria, como algo ndo imutivel, 20 contritio. Meméria, nessa perspectiva, implica em proceso criativo. No caso das psiconeuroses, essa traducio falha, para evitar o desprazer que seria gerado por uma traducao. Trata-se de uma defesa — que Freud concebe nessa época como patolégica — contra um traco de memoria de uma fase anterior — traumatica que ainda nio foi traduzido. Por faltar uma transcrigSo subsequente (em fungio da defesa), a excitacio é manejada obedecendo is leis que vigoravam no periodo anterior. Desse modo, hd um anacronismo no sentido de persistir organizacdes anteriores, caducas em relacao 4 realidade. Se um determinado evento desperta certa quantidade de desprazer, em seu registro mnémico € inibida a producio de desprazer quando a lembranca ¢ redespertada, num processo natural de desgaste. Contudo, se um evento produzin desprazer e, ao ser redespertado, produz um novo desprazer, pode-se afirmar que a lembranca se comporta como se tratasse de evento atual. Isso ocorre em relacio a eventos sesuais, em funcio da magnitude das excitacées que eles causam, aumentando com o tempo. Desse modo, um evento sexual ocorrido numa fase determinada pode atuar sobre a fase seguinte como se fosse um evento atual, nao sendo passivel de inibicao. A detesa ual do evento patologica (recalque) ¢ determinada pela natureza ser ocorrido numa fase anterior. FREUD, 1896). As experiéncias sexuais podem provocar prazer ou desprazer ou ambos, isto é, podem ter gerado prazer quando ocorreram e desprazer quando sio lembradas. Nesse caso, estao liberando, numa época posterior, um desprazer que nao foi liberado em primeira instancia. Desse modo, so os afetos sexuais ¢ sua dinimica produzida pelo diferencial prazer/desprazex, isto é, a sexualidade € sua dinimica, que determinam 0 mecanismo do recalcamento. A teoria da meméria em Freud se acha intimamente ligada A quest&o da repeticao. ficidade da mensiria em psicandilise 3 Teoria da Meméria, Repeticao ¢ Principio da Diferenga. A Teoria da Meméria elaborada por Freud! nao se confunde com memoria-lembranca, memoria da consciéncia. A memoria a que Freud se refere é memértia inconsciente, memoria de tracos e de diferencas. A condi¢fio para que a mem6Gria se constitua é 0 investimento, isto é, a ligacio de uma energia psiquica a uma representacdo ou a forca/ intensidade de uma representacio. Derrida ([1967] 1971) pensa a representacio da meméria como traco que nao pode ser recuperado como presenca elementaz. A memoria é memoria da diferenca. Desse modo, “a vida psiquica nao é nem a transparéncia do sentido nem a opacidade da forca, mas a diferenca no trabalho da forga” (p.185). Falar em trabalho das forcas é falar em movimento. Memoria em Psicanilise, portant, nao é algo esttico, e sim dinamico. Memézia é movimento, implicando em associacées e relacdes numa combinacio movel e constante. A originalidade da concepgao freudiana de memoria ¢ ser fundada nos diferentes atranjos das vias associativas, isto é, na diferenga, nao constituindo, assim, marcas que reproduzem, por semelhanga, a realidade. Para Freud ([1895] 1976, p. 344), “a meméria est4 constituida pelas diferencas nas facilitacdes entre os neurénios.” O traco mnémico se constitui como uma diferenca entre as facilitacdes, marcando as vias preferenciais de um caminho em detrimento de outros. E essas vias, embora preferenciais, jamais se reproduzem como cépias. E na diferenca qe elas se repetem. A nocio de diferenca ¢ aqui fundamental. Diferenga no em relacao a entidades previamente existentes, mas diferenga como puineipio de constituicio do psiquismo. A trama das facilitagdes é um sistema de diferencas (GARCIA-ROZA, 1991, p. 202). Por um lado, temos a recepcio permanente de novos estimulos pela via da percepcio, havendo sempre a possibilidade da inscricao de novos tracos; por outro lado, temos a permanéncia de tracos ja inseritos que constituem a memséria. Como articular as fiungdes da percepeio ¢ da meméria? Qual ¥ Sobre a questio ver Nachbin (1990), a influéncia das novas percepcdes na meméria ja dada, ¢, inversamente, quala influéncia da meméria nas novas percepcées? E, sobretudo, existe possibilidade de se alterar a meméria? Desde 0 Projeto, Freud se depara com uma dificuldade para explicar ameméria 10, 08 neurénios omo se pode conceber que, apés a excitac fiquem permanentemente modificados em relacio a seu estado anterior, ao mesmo tempo em que as novas excitacdes encontram nos neurénios as condicées anteriores de recepciio? Os neurénios sio influenciados ¢ inalterados, constimindo, assim, um paradoxo que Freud soluciona separando duias classes de neurdnios: neurdnios permedveis e neurénios impermesveis. O apazelho psiquico é assim impermesvel e, ao mesmo tempo, capaz de conducio. Impermeabilidade que implica em alteracto permanente, uma vez que a excitaciio deixa marca. No Projeto, aparece a nocao de tracos mnémicos, através dos quais os acontecimentos psiquicos ficam permanentemente gravados na meméria. Esses tragos mnémicos se constitnem como neurénios impermeaveis, em contraposigio aos neurénios permeéveis, proprios da percepeio, que implica em recepeao permanente de novos estimulos. Embora os tracos mnémicos constituam marcas indeléveis, nio podendo ser apagadas, estas sio permanentemente re-significadas, reordenadas no confronto com as impressoes recentes. A preocupacio que vemos em Freud de separar percepcio de memoria aparece também no seu texto sobre o Bloco Magico, de 1925, onde desenvolve um aparelho mental que “possui uma capacidade receptiva ilimitada para novas percepcées e, nao obstante, registra delas tracos mnémicos permanentes, embora nio inalterdveis” (FREUD, 1925, p- 286). Nesse mesmo artigo, refere-se ao Sistema Perceptual Consciente (Pept.Cs) como inteiramente permedvel. Ao ser catexizado, esse sistema recebe percepcées que sfio acompanhadas de consciéncia, transmitindo a excitacdo para os sistemas mnémicos inconscientes. Assim que deixa de ser catexizado, o sistema Pept. Cs. se detém, deixando de funcionar. Através do sistema Pept. Cs, o inconsciente recebe excitagdes do mundo externo enquanto houver catexizacio do sistema (FREUD, 1925, p. 286). A especiticidade da nembria em peivandlise 67 Deztida alia a fugacidade das impressées de superficie, que implica a manutencio da virgindade da superficie receptora, a inscri¢o do traco duradouro. Afirma também que “a escrita substitui a percep¢ao antes mesmo desta aparecer a si propria. A ‘meméria’ ou a escrita so a abertura desse préprio aparecer, O ‘percebido’ sé se daa ler no passado, abaixo da percepcio e depois dela” (DERRIDA, [1967] 1971, p. 218-219). Para ele, a condicao da escritura — que pressup6e o recalque — € nao haver contacto permanente nem ruptura absoluta entre as camadas do psiquismo. Os tracos mnémicos sao imutaveis, mas formam uma rede de infinitas combinagGes. Essa rede é aberta 4 recepcao de novos tracos, havendo uma incessante mobilidade quanto A sua configuracio. Derrida ({1967] 1971) assinala que, na Carta 52, “o traco comeca a tornar-se escritura” (p. 192) pelas nocdes que sito ai enfatizadas: signo, inscrigio, transcricao. A ideia de escritura referida a forca do trilhamento implica a conquista de um caminho, trabalho do traco mnémico, producto. Vimos que o ptimeiro registro mnémico, fisncionando como signo de percepgio, ainda nio é estrutuado como linguagem. A impressio é exterior A lingnagem e A significagao. A impressio em si mesma nfo constitui lembranca, no podendo, portanto, ser reconstituida. Sendo considerada como um signo, a impressio é mais da ordem do sinal ou indice do que da ordem do significante. As impressoes podem ser entendidas como afeccées psiquicas que vio depois formar um sistema de tracos. Seria possivel a impressio permanecer enquanto pura intensidade, memoria da pura impressio, independente do traco que a representa? Garcia Roza discute essa questi, indagando sobre a possibilidade de a impressio ser conservada pela memétia sem ser como taco ou como representacio. Trata-se, aqui, da permanéncia de algo que nio foi inscrito no inconsciente, mas que permaneceu como pura intensidade, meméria da pura impressio, sem contetido. Se essa possibilidade for aceita, onde se conserva tal meméria? (GARCIA-ROZA, 1993, p. 56). E remetendo-se a Carta 52 que Garcia Roza identifica as impresses como a primeira inscrico das percepgédes, constituindo os signos de percepcio. Os tracos corresponderiam as inscriges desses signos no sistema inconsciente enquanto sistema de tracos. E 0 que se denomina segunda transcricio de tragos. Katz (1993, p. 305) aponta a experiéncia do sentido, da memoria ndo simbélica remetendo a experiéncias pulsionais que niio se inscrevem simbolicamente, embora deixem marcas. Resolve a questio da inscricao dessas marcas recorrendo a uma no¢&o que aparece no texto freudiano, embora pouco conhecida em funcao de traducdes que, segundo 0 autor, descaracterizam-na. E a nocio de representacio limite. Freud aponta a existéncia de uma “representagio-limite”, situada no entrecruzamento dos afetos e do sistema de representagées. Ea partir da intensificacio de uma representacio-limite que ocorre 0 recalque e dai em diante representa a lembranca recalcada. “Deve-se chamé-la representacio- limite pois, por um lado, pertence ao eu consciente, por outro se constitui numa parte nao distorcida de lembranca traumética” (FREUD, 1896, p. 177-178, apud KATZ, 1993, p. 305). As representacdes, nessa perspectiva, iniciam-se nessas “representagdes-limite”, constituindo assim um psiquismo em criacko permanente e niio homogéneo nem completo. Katz (1993) afirma ainda que a formacao da meméria é iniciada através de representac6es-limites, pontos emergenciais de colecdes, que fabricam vazios e lacunas. Mesmo que elas deyam se encontrar e se haver a posteriori com o sistema de significacio, as lacunas e vazios nio séo previamente dados enquanto “contetidos representacionais”, mas enquanto processo fabricante de diferengas (KATZ, 1993, p. 307-309). A meméria, em Freud, é meméria de tracos. Cada traco é traco de uma impressio, ea trama dos tracos forma um texto. A impressio é considerada como 0 momento primirio da elaboracio mnémica, isto é, S40 como marcas que vao formar os tracos. O sistema perceptivo recebe as impressées, sendo os sistemas mnémicos os responsaveis pela meméria dos tracos. Com a simultaneidade de impressées perceptivas, havera cones io de tracos, isto €, associaco por simultaneidade. Sendo 0 traco, por sua vez, a forma pela qual a impressio mantém seus efeitos, Na Edi¢ao Imago, a0 invés de “repcesentacio-limite”, encontea-se “idéia limitrofe’ que, segundo Katz (1993, p. 305), descasactesza 0 pensamento de Freud. p 170), 0 A especiticidade da nembria em peivandlise 69 sua constituicio depende da intensidade da impressio ¢ da repeticio. Os tracgos de memoria se formam a partir da passagem de um quantum de afeto que fica mais ou menos acumulado. A rede de tracos € efeito de uma conjugacio de fatores: frequéncia com que se repete uma impressio € mais 0 investimento relativo. InscricZo mais intensidade. Na interpretacio de Derrida, é a forca atuante de um trilhamento que vem a constituir a meméria, dependendo da intensidade da impressao eda frequéncia da repeticao. A intensidade da impressio possibilita a formacio das barreiras de contato, que controlam o fluxo de passagem de Q (quantidade) em todas as direcdes, estabelecendo facilitacdes e resist€ncias para tal passagem. E, a diferenca entre as cilitacdes /resisténcias que determina a direcao do fluso de excitacao. E essa mobilidade oferecida pelas barreiras de contato que vai fazer com que a meméria nao seja estitica, e, sim, meméria diferencial, na qual os tracos, de tempos em tempos, sio submetidos a retranscriges (GARCIA-ROZA, 1993, p. 59). Desse modo, a meméria nfo resulta da reten¢io mas das diferencas das facilitagdes. Tiilhamento (facilitacao) e diferenca constituem, portanto, a meméria O outro fator do qual depende a constitui¢ao da meméria, além da intensidade da impressio, é a repeticio (DELEUZE, 1968). Se o que caracteriza a meméria é a facilitacao do percurso em determinadas direcdes, ¢ niio em outras, se a meméria se constitui pelas “diferencas dentro das facilitacdes” entéo como pensar a repeticdo dos percursos ja facilitados? Uma vez sulcada a tulha — como via facilitada — essa repeticao nao se daria enquanto repeticao do mesmo? Caso a percepcaio nfio atuasse concomitantemente 4 memédria, a recepcao de novos estimulos, suscitando novas impress6es, nfo se daria e, por conseguinte, 36 poderiamos falar de repeticao do mesmo, ow seja, repeticao da via facilitada, uma repeticio mecanica, mera reproducio. Ocorre, contudo, que essa via facilitada, ao ser repetida, j4 o sera em confronto com outras vias, marcadas a partir das novas percepedes, novas intensidades de impressio. Desse modo, a meméria nunca cessa de se constituir, esta permanentemente em processo de construcio, pelas diferencas entre as facilitacdes. Por isso podemos falar em repeticao diferencial, por se tratar de um processo que implica um diferencial de valor entre os caminhos possiveis, € esse processo € ininterrupto. As vias facilitadas, embora preferenciais em detrimento de outras, nao se reproduzem como as mesmas, como cépias em relacao a um modelo. E na diferenca que as vias facilitadas se repetem. Desse modo, a repeticio exata de um mesmo percurso é praticamente impossivel por se tratar de uma rede complexa com caminhos privilegiados que se intercruzam. Sendo a memé6ria constituida por caminhos eles mesmos méveis, no poderia ser confundida com a reproducio mecinica idéntica de um traco elementar concebido como imutivel Assim, 0 que se repete como memiéria é a “diferenca indiscernivel € invisivel entre os trilhamentos” (DERRIDA, [1967] 1971, p. 185); emboza reeditando a mesma impressao e mantendo com isso o poder de trilhamento, a repeticdo € origindria, isto é, fandante. E nae pela repeticao que o poder de trilhamento/resisténcia se constitui e, portanto, a propria memoria. Desde 0 inicio a meméria se constitui pela “preferéncia do caminho”, portanto, pela diferenca. Neste sentido é que ...”antes de qualquer tentativa de repeticio do idéntico, o que ocorre é uma repeticio diferencial [...] Repeticio e diferenca jd esto presentes desde o comeco”(GARCIA-ROZA, 1991, p. 206) A magnitude da impressao, que, juntamente com a repeticio, constitui a memoria, é de ordem quantitativa, enquanto a repeticao é de outra ordem, heterogénea 4 intensidade da impressio. Por outro lado, a repeticio nfo se apresenta como o fator qualitative junto ao fator quantitativo representado pela intensidade da enezgia psiquica, Paza explicar a diferenca de qualidade — diferenca pura —, Freud introduz a dimensao temporal por meio do conceito de petiodo. A nocio de periodo esta presente em Freud no Projeto, como caracteristica temporal da passagem da energia psiquice: [.] admixe que os neurénios w sejam incapazes de receber Qh, mas que, em compensacio, assumem © periodo de excitagio © que essa sua condicao de screm afetados por um pesiodo ficidade da mensiria em psicandilise enquanto admitem uma carga minima de Qh, constitui a base fundamental da cousciéncia. [..] Os desvios desse periodo psiquico especifico chegam & consciéncia como qualidade (FREUD, [1895] 1976, p. 413) A temporalidade a que se refere 0 periodo nfo ¢ redutivel a quantidade, e, sim, a uma temporalidade descontinua e periddica, isto ¢, pura qualidade, tempo puro (GARCIA-ROZA, 1991, p. 110).. A distincio qualidade /quantidade decorre da nocio de perfodo que condiciona esta polaridade. No entanto, é pela prépria nocio de periodo que tal distincio se esfumaca e que a nocio de intensidade se interpée justamente entre © que seria quantidade e qualidade. Desse modo, 0 conceito de periodo, embora referido a quantidades, diz respeito a diferenga entre essas quantidades, mudangas do ritmo temporal das alteragdes quantitativas. Em resume, o perfodo refere-se a mudanca dessas grandezas num periodo de tempo (GARCIA-ROZA, 1991, p. 116) Freud utiliza tal nocao (periodo) em outros momentos a fim de esclarecer as sensacoes de prazer e desprazer, cuja distincao é fundamental para compreensio do funcionamento mental? O afeto em Psicanilise nao se confunde com 0 termo sentimento, que designa a expresso do afeto no pré-consciente/consciente. O afeto em psicandlis é um conceito que inclui aspectos quantitativos e qualitativos. Os primeiros dizem respeito a descargas enquanto acées motoras ocorridas; os aspectos qualitativos referem-se as sensacdes de prazer e desprazer (e nao apenas as experiéncias desagradaveis, conforme Freud afirmava no Projeto). Podemos, na conjugacio dos aspectos quantitativos ¢ qualitativos, considerar os afetos como puras intensidades. As sensagées de prazer/desprazer fornecidas pelo sistema petceptivo resultam da aptidio desse sistema para receber 0 periodo le excitacio. Em outuas palavras, as sensacSes conscientes de prazer d itacao. Ei tras pal: 7 C tes di / lesprazer decorrem de um fator qualitativo, relacionado ao ritmo, ao ciclo de de de fator qualitativo, rel: ce itn k temporal das altetacdes, elevacdes e quedas da quantidade de estimulo, $c FREUD (1920; 1928) 4 Concluindo... Pensar a memoria como sistema de tragos que sao insctitos, transcritos e retranscritos nfo é concilidvel com a ideia de uma permanéncia imutavel sob a forma do original. Nao se trata de uma meméria arquivo que iria buscar num passado estitico a marca de um sto acontecimento vivido. Nao se pode conceber, em Psicanilise, um te: que permaneca imutavel como um documento a que se possa recorrer. A suposicao de um texto original em relac¢io ao qual os outros seriam cOpias parte da premissa de que ele € idéntico a si mesmo, como um modelo imével para as cépias cada vez mais distorcidas 4 medida que se distanciem desse ponto primeiro, que seria o significado derradeiro dos demais. Sendo a memoria entendida como diferenca, o que se tem. na “origem” é pura diferenca, e nao identidade, Desse modo, longe de se tratar de uma memiéria arquivo, temos em Psicandlise uma meméria- duracao, que persiste e insiste continuamente, nunca € a mesma (cf. GARCIA-ROZA, 1993, GONDAR, 1993), A nogio de diferenca, nesse caso, nio esté referida a um pensamento de identidade, nio sendo portanto uma nocio secundésia. Trata-se da diferenca em si, como principio de constituicao do aparelho psiquico, a diferenca como primeira, e nao em relacao a alguma identidade com a qual se compara. Trata-se de uma concepcio da Psicanélise em movimento, ¢ nio como um saber estanque, anacrénico. A insergéo da Psicandlise no pensamento da diferenca atende a uma necessidade imperiosa frente aos avancos dos tempos modernos, abrindo novos horizontes para se pensar a clinica hoje. REFERENCIAS DELEUZE, G. Diferenga e Repeticao. Sao Paulo: Graal, 1988. Edicao original: 1968 inde da meritria em DERRIDA, J. Freud ¢ a cena de escritura. In: A Escritura ¢ a Diferenga. Sao Paulo: Perspectiva, 1971. Edicao original: 1967. FREUD, S. Projeto para uma psicologia cientifica. In: . Edigao Standard brasileira das obras psicolégicas completas de Sigmund Freud . v. 1. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1979. Edicao original: 1895. FREUD, S. Carta 52. In: EdigSo Standard brasileira das obras psicoldgicas completas de Sigmund Freud. x. 1, Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976. Edicao original 1896. FREUD, S, Manuscrito K. In Edigao Standard brasileira das obras psicolégicas completas de Sigmund Freud. |. Rio de Janeizo: Ed, Imago, 1976. Edicao original: 1896 FREUD, S. Além do principio do prazer. In: . Edigao Standard brasileira das obras psicolégicas completas de Sigmund Freud. v. 18. Rio de Janeizo: Ed. Imago, 1976. Edicio original: 1920 FREUD, S. O Problema Econémico do Masoquismo. In: . Edigio Standard brasileira das obras psicolégicas completas de Sigmund Freud. v. 19. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976. Edicio original: 1924a. FREUD, S. Uma nota sobre 0 “Bloco Mégico”. In: . Edigao Standard brasileira das obras psicolégicas completas de Sigmund Freud. v: 19. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976. Edicao original: 1924b. GARCIA-ROZA, L. A. Introdugao 4 Metapsicologia Freudiana 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991 GARCIA-ROZA, L. A. Introdugio 4 Metapsicologia Freudiana 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993 GARCIA-ROZA, L. A. Acaso ¢ Repetigo em Psicanilise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. GONDAR, J. Os Tempos de Freud. Tese. Doutorado em Psicologia Clinica) - Pontificia Universidade Catélica do Rio de Janeiro, 1993. KATZ, C. S. Freud ¢ 0 caso Schreber: algumas delimitagées. Tese. (Doutorado em Comunicacio) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993. 4 Angela Coutinin LAPLANCHE, J. Novos Fundamentos para a Psicanilise. Lisboa: Edicédes 70, 1987 LAPLANCHE, J. Da Teoria da Seducao Restrita 4 Teoria da Seducio. Genetalizada. In: Teoria da Sedugi0 Generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988. LAPLANCHE, J. Traumatismo, Traducio, Tiansferéncia ¢ outros Trans (es). In: Teoria da Sedug&o Generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Astes Médicas, 1988. NACHBIN, L. Freud ea Meméria. Monografia (Curso de Especializagao em Psicanilise) - Universidade Santa Ursula, Rio de Janeiro, 1994. Recebide ens abril de 2013. Aprovade em main de 2013. SOBRE A AUTORA ANGELA COUTINHO € dontora em Psicologia Clinica pela Pontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). E psicanalista, membro titular da Sociedade de Psicandlise Inacy Doyle (SPID). E docente da Universidade de Santa Ursula, onde atua no Centro de Encino Pesquisa e Clinica em Psicanilise (Cepco) do Lastituto de Psicologia ¢ Psicandlise, ¢ no Programa de Pés-Graduacio em Fonoandiologia. Publicon varios artigos em petiddicos cientificos nacionais e internacionais; ministrou aulas aa Franca (2007 ¢ 2008) ¢, atualmente, coosdena Semindtios de Psicandlise na SPID. Temas principais de pesquisa: Psicologia clinica e psicanélise, E-mail: spid@unisys.combr

You might also like