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Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa ISSN 0102-9487 CONSTRUINDO O ESTADO DA EXCLUSAO: os inDIos BRASILEIROS E A CONSTITUICAO DE 1824. Maria Hilda B. Paraiso” RESUMO: Alguma das quesides que atormentaram o Estado portugués e o brasileiro lugar do indio na sociedade e qual seu direito de participar plenamente como stidito ou ci Essa era uma tematica que exigia particular atengo quando da formagdo do Estado brasileiro. © tema foi objeto de propostas apresentadas por José Bonificio de Andrada ¢ Silva ¢ discutido no decorrer dos trabalhos da Assembleia Constituinte suscitando debates ¢ diividas. Neste artigo propusemo-nos a revelar as discussdes e as conclusdes sobre o tema, assim como analisar as decisdes registradas na Constituigo de 1824. Palavras-chave: Estado; indios; Legislagao. ABSTRACT: The portuguese and brazilian State were afflicted by the indian position in society and his rights of being a citizen or king's subject. This issue demand special attention ‘when brazilian state was molded. José Bonificio de Andrada ¢ Silva presented some proposals and Assembléia Constituinte debated and raised doubts. In this article we wanted to reveal the discussions and conclusions about this theme as well as analyze the decisions registered in 1824 Constitution. tate; Indians; Legislation. “So habitanes do Brasil, os nelesnascidos, cidados brasileres. Agora pergunto eu, um Tapuia é habitante do Brasil? E. Um Tapuia ¢ livre? , logo, & cidadio brasileiro? Nao, posto que, ais, se possa chamar brasileiro, pois os Indios no seu estado selvager nao slo, nem se podem considerar como parte da grande familia brasileira; © slo, todavia, ives, nascidos no Brasil © nele habitantes. NOs, & verdade, gue teni0s lei que Ihes outorgue os direitos de cidadio, logo que eles abracem os nossos costumes ¢ a civilizagdo, antes disso, porém, estao fore da ‘nossa sciedade.”! O Iugar do indio e as contradigées do Estado-Nagao. * Universidade Federal da Bahia Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa ISSN 0102-9487 Dentre tantas questdes colocadas para a Assembléia Constituinte de 1823, uma era premente: qual o lugar do indio no Estado-Nacao? Deveria ser-Ihe concedida a condigdo de cidadao e reconhecidos seus plenos direitos como tal? © momento de pensar como construir € ordenar politica ¢ socialmente 0 pais nascente e seu povo, representado, naquela insténcia, por suas elites compostas pela pequena fragio de europeizados livres vivendo sob a ameaga de rebelides dos indios, negros ¢ livres, definiu um modelo que valorizava a autoridade do Estado para manter 0 “status quo”. Dever-se-ia, portanto, construir uma nagio excludente de virios segmentos sociais que deveriam ser mantidos sob vigilancia e controle pelo Estado. ** Os constituintes sentiam-se membros efetivos da nacionalidade e, como tal, posicionavam-se como aqueles capazes de definir os critérios exigidos para o exercicio da cidadania. * O conceito de cidadania e do direito a exercé-la era consoante com as idéias do inicio do XTX que estabeleciam um nexo direto entre cidadania e propriedade privada de terras, sendo a pitria 0 local escolhido pelo homem para exercer suas atividades econ6micas e compartilhar 0 exercicio da liberdade. Concebia-se 0 Estado-Nagao como o resultado da promogiio da unidade territorial e da imposigo de uma cultura comum, processo resultante de uma atuago violenta de conquista de espago ¢ de mecanismos de opressdo, aliangas e acordos usados para eliminar a diversidade étnica, Nesse contexto, as elites pensavam o conjunto das relagdes interétnicas pela dtica da dominacdo voltada para a eliminagdo, de formas varias, das diversidades sécio-culturais em nome da criagao da unidade nacional. Na verdade, para o Estado, visto aqui como o grande articulador politico, seja pela aco ou omissio no tocantes ao destino das populagées indigenas, a questo do lugar a ser ocupado por essas populagdes sempre foi um problema de dificil solugdo. Admiti-las como os primitives proprietétios do pais, implicava no reconhecimento do seu direito ao territério que ocupavam, 0 que contrariava os interesses das elites e da populagdo em geral, segmentos sociais defensores da expansio continuada do processo de conquista e exploragdo das terras que compunham, como um todo, 0 territério nacional, e na negagio da razio de ser do Estado ~ a unificagao do territério sob efetivo controle estatal e a legitimacio desse possuir. Outro aspecto contraditério na concep¢ao defendida pelo Estado-Nagao quanto a0 compartilhamento cultural e de tradigdes entre os ocupantes do territério unificado e sob efetivo controle, pois, tais agdes resultariam na eliminagdo das diversidades étnicas. 2 Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa ISSN 0102-9487 Tal medida implicaria na negagdo da imagem simbolicamente atribuida aos indios no contexto da nacionalidade e da formacao do carater nacional: 0 sentimento de liberdade € autonomia, elementos basilares do imagingrio das razdes atévicas das Iutas pela independéncia, Também era conilituosa tomar a decisio sobre preservar os indigenas ou climiné-los fisicamente, particularmente aqueles definidos como mais selvagens ¢ resistentes aos projetos de incorporagio social e econdmica. Para determinados segmentos de proprietirios de terras, ocupantes de dreas periféricas, a mao-de-obra indfgena era vital e, por isso deveriam ser criados _mecanismos preservadores de sua existéncia e de formas de apropriagdo do seu trabalho. J4 os ocupantes de freas de ‘ocupagao mais antiga e economicamente inseridas no mercado, a presenca indigena significava um obstéculo a ser eliminado em nome do progresso ¢ da expanséo econdmica e da civilizacao. Essa preocupagiio, na realidade, jé estava expressa no Regimento de Tomé de Souza de 1548. E 0 que se constata é que o Estado portugués e 0 brasileiro, este a partir de 1822, buscaram equacionar essa contradigdo através da elaboragZo de uma legislagao flexivel que atendesse aos miiltiplos interesses das elites ou da adogo de uma atitude de omissio ¢ siléncio em relago as préticas adotadas por particulares na solugdo de questdes localizadas e pontuais, apesar dos direitos firmados pela legisla¢io vigente serem desrespeitados. Apesar dessa flexibilidade, ha alguns pontos comuns a toda a legislagao criada a partir de 1548: 0 no reconhecimento do direito & propriedade das terras que esses povos ocupavam, & autonomia politica e & preservagdo de suas peculiaridades séci culturais. Uma politica indigenista indefinida: 0s tiltimos anos do regime colonial Entre 1800 ¢ 1822 varias leis atinentes & administragéo dos indigenas estavam. em vigor e eram aparentemente contradit6rias e complementares quando as pensarmos num eixo espacial-temporal. A legislagio da Coroa portuguesa fora constituida dentro de parametros l6gicos ¢ coerentes com os projetos metropolitanos. Havia leis de cardter geral ¢ outras de cunho especifico e até localizadas espacialmente, fazendo com que a articulagdo entre os diversos instrumentos juridicos s6 fosse percebida a0 se destacar 0 alcance ¢ 0 objetivo de cada uma delas. Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa ISSN 0102-9487 O outro eixo de raciocinio, para que se tome compreensivel e permita identificar a l6gica do conjunto de leis, € a caracterizacao atribufda aos grupos indfgenas pelos colonos nas suas correspondéncias as autoridades para justificar suas agdes € pleitos, particularmente, quando se referiam & autorizagao para a decretagdo de guerra justa, Os interesses dos colonos ¢ a reago dos indigenas definiam as categorias nas quais essas populagdes eram enquadradas e era em fungio dessa categorizagio em mansos/aldeados/aliados ou bravios/ errantes/inimigos e da capacidade de convencimento desenvolvida pelos colonos quanto 8 ferocidade de uma populagio em particular que a Coroa determinava a politica a ser adotada e 0 tratamento a ser dispensado. E este podia variar no tempo € no espago, conforme o estigio da conquista e da dominagao, da capacidade de oposigo do grupo indigena e da estratégia que adotavam ante as exigéncias dos colonos. No inicio do século XTX trés grandes leis regiam a administragao indigena: 0 Diretério Pombalino (1757), que orientava a administraglo de aldeamentos consolidados, a Carta Régia de 1798, ordenadora dos mecanismos de atraciio e aldeamento dos grupos indigenas definidos pelos colonos como mansos ¢ desejosos de aceitarem a administragZo dos proprietdrios de terras, ¢ as Cartas Régias de 1808 e 1809 que decretavam Guerra Justa a alguns povos que ocupavam reas de fronteira econdmica e que opunham resisténcia & conquista. Apesar da flexibilidade e da adaptagao as necessidades dos moradores de cada regido, esse conjunto de leis nao satisfazia plenamente as necessidades e as modalidades de relagdes estabelecidas nas duas primeiras décadas do XIX. Assim, havia questionamentos quanto & validade da manutengo de determinagdes legais vigentes: proprietérios de terras que no concordavam com os mecanismos que garantiam o direito de posse das terras dos aldeamentos pelos indios, como previa o Diretério, outros que consideravam ser necessério ampliar sua esfera de dominio sobre os grupos aldeados, ampliando, portanto, as determinagdes da Carta Régia de 1798, © os comandantes das tropas encarregadas de efetivar as determinagdes das Cartas Régias de 1808 e 1809 que argumentavam ser esse método de conquista dispendioso e incapaz de promover a civilizacdo dos indigenas e de transforma-los em mao-de-obra ttil ao pais e a0s agricultores. Pensando as populacies indigenas. Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 Para melhor compreendermos as discusses e decisGes estabelecidas pelos Constituintes de 1823 ha que se considerar que esse perfodo foi marcado pela retomada dos questionamentos da legalidade da esctavidao indigena. Na verdade, desde 0 século XVI ndo havia consenso entre os defensores dos chamados argumentos motais - a escravidio era destinada aos pecadores, categoria na qual os amerindios nfo eram enquadrados — ¢ aqueles que a justificavam pela necessidade da guerra defensiva e da obtengio de mio-de-obra como forma de garantir 0 sucesso do empreendimento colonial. No inicio do XIX essa discuss assumiu outras conotagdes. A deciséo de decretar guerra justa em 1808 baseou-se nos valores tradicionalmente aceitos pela sociedade e pelo governo metropolitano ¢ significou a retomada dos questionamentos acerca da humanidade dos indios. As bases dessa discuss4o cram os denominados princfpios cientificos em vigor ¢ que tentavam estabelecer uma distingdo, com linhas demarcatérias bastante controversas, entre 0 que era o ser humano e os antropéides. Os debates sobre este tema acentuaram-se a partir de entio ¢ envolviam posturas distintas. Cabe, entretanto, ressaltar que a definiggo do status a ser ocupado pelos indios, nfo era uma discussfo nova. Porém, adquiria nova urgéncia num momento de definigdes que buscavam promover a governabilidade a partir da constituigo de aliangas entre aqueles grupos que compartilhavam interesses e projetos comuns - a manutengao do status quo dos privilégios para poucos, de uma hierarquizagio social rigida e de um sistema de governo autocratic e com rigidos mecanismos de seguranga - embora discordassem com relago A manutengo do regime escravista € 0 direito a ‘manter a posse improdutiva da terra, s defensores da manutengdo da escravidio indigena justificavam-na, apesar de considerd-la anacrOnica, afirmando o caréter excepcional das relagdes implantadas na fronteira, nas zonas de conquista, onde a escravidio era um “mal necessirio” que deveria ser suportado como uma etapa necesséria ao progresso da humanidade em geral e do povo brasileiro em particular. © Constitufa-se, portanto, um dever dos bem intencionados filantropos promover @ nova ordem civilizada e iluminada e a ocupagao/civilizagao da fronteira/selva, onde nao se havia constituido a sociedade ¢ as atividades econdmicas calcavam-se no desperdicio ena baixa produtividade porque as terras no eram exploradas de forma racional. Para que a civilizagao atingisse essas dreas indspitas deveriam ser viabilizadas a ocupagdo ¢ a Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 colonizagio através das atividades agricolas, da exploracZo da natureza e da apropriagao da terra, sua reparticZo e acumulaco por homens mais bem-dotados intelectualmente € previdentes que seus ocupantes indfgenas. Argumentavam ainda que nesses espacos selvagens, onde havia abundancia de terras e escassez de mio-de-obra, as condigdes nfo eram "adequadas" para promover a conquista e colonizagao devido A auséneia de homens dispostos a abdicarem do direito de se apropriarem das terras e, como conseqiiéncia, resistiam tornarem-se trabalhadores nas propriedades dos outros. Af, € s6 af, em nome da necessidade do ocupar/explorar terras ¢ retird-las do seu estado de natureza pela individualizagio, o que geraria maior produtividade, riqueza, interdependéncia, harmonia e felicidade geral € que se justificava a escravidio indigena. Até os poucos idedlogos que brandiam prinefpios humanitérios ¢ iluministas para questionar a manutengio da escravidio indfgena no conseguiam veicular idéias precisas quando analisavam as sociedades denominadas selvagens. Os valores ¢ as crengas na necessidade e importincia da civilizagio faziam-se presentes em sentimentos contraditérios: 0 horror e a compaixio em relago ao estado e as situagdes vividas pelos ‘grupos indigenas que conheciam. Ao mesmo tempo em que questionavam a legislagao colonial e condenavam as violéncias de toda a sorte praticadas contra os autéctones, a crenga na inevitabilidade do progresso fazia com que fosse considerado essencial ressocializar os indigenas consoante os padres europeus. De acordo com essa perspectiva, as sociedades silvicolas, como tal, estavam destinadas ao desaparecimento, fosse pela extingdo fisica ou pela destruigao das suas formas tradicionais de organizagio social.” Caso os constituintes buscassem dialogar com os cfnones cientificos dominantes nos nascentes museus naturais ¢ faculdades de medicina na Europa no fim do século XVIII e inicio do XIX, também a resposta nfo teria sido favorivel aos indios. Para esses cientistas as diferengas entre os povos decorriam de fatores naturais e as desigualdades entre os cidadios conformariam uma sociedade harmonizada pela hierarquizagdo. A articulagdo das inegiiidades Ievaria a cooperagio entre desiguais, reforgando a concepgao da necessidade de ser promovida a integragao forgada dos indigenas sempre que as determinagées biol6gicas responsdveis por suas caracteristicas exclusivas nfo inviabilizassem esse projeto. Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 ‘As informagdes que alimentavam essas reflexes eram, dentre outras mais antigas, a fornecidas pelos viajantes naturalistas que haviam circulado pela América portuguesa entre os anos de 1815 ¢ 1817. Citaremos, por exemplo, o Principe Wied- Neuwied * que afirmava que os indigenas possuiam suas “faculdades intelectuais dominadas pela sensualidade mais grosseira, 0 que nilo impede que sejam as vezes capazes de julgamento sensato ¢ até de uma cera agudeza de espirito.” Da mesma forma, Spix e Martius * conclufam que esses povos, particularmente os botocudos, objeto central das andlises no inicio do século XIX, eram “arraigados ao presente, quase nunca elevavam o olhar para o firmamento”, 0 que pode ser interpretado como se fossem seres compariveis aos animais e sem qualquer forma de raciocinio abstrato ou crenga espiritual. Para Cunha, ' essas perspectivas coadunavam-se com a orientagao mais ampla da questao indigena no Brasil nesse periodo que define como voltada para promover a conquista e “desinfecgio dos sertdes”, e, assim, promover o alargamento de espagos transitdveis e/ou apropridveis pelos colonos. Logo, na concepgio dominante da época, 0 Estado deveria criar mecanismos de combate, controle ou aldeamento dos bravios para, dessa forma, garantir aos interessados 0 acesso a sua forga de trabalho. Apesar da preocupagdo com o provimento da mao-de-obra necesséria aos novos empreendimentos, a legislacZo, reflexo das exigéncias da ideologia dominante no inicio do século XIX, estava mais voltada para permitir 0 combate e a extingao dos indios do que para preservi-los e transformd-los em elemento de ocupagio e colonizacio do novo pais, como ocorrera nos meados do século anterior, Questionava-se, ainda, a possibilidade de retomo dos investimentos realizados para atrai-los a0 chamado convivio social devido as vérias formas de resisténcia desenvolvidas pelos grupos aldeados: fugas, revoltas e recusa as condig6es de trabalho que lhes eram impostas."' As justificativas de ordem filos6fica para a manutengio do estado de guerra aos grupos resistentes ao contato partiam do pressuposto de que 86 seria possivel tratar com esse segmento populacional através da imposicdo de escola severa para que pudessem esquecer “sua natural rudeza” e, assim, tomarem-se civilizados. Caso contrério, no compensaria conserva-los vivos. Para que esse objetivo fosse alcangado, era essencial transformé-los em prisioneiros de guerra, destiné-los ao servigo que conviesse aos moradores por um perfodo considerado como necessirio para tomé-los stiditos adequados aos projetos dos seus proprietérios e, por conseqiiéncia, do Estado, A Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa ISSN 0102-9487 manutengo da escravidio, portanto, era defendida pelo seu “cardter pedaggico”: fazer com que os silvicolas perdessem sua atrocidade e rudeza naturais, prepard-los para 0 exercicio de atividades titeis, fazé-los aceitarem sua sujeigao as leis para clevé-los & condigdo de humanos. Construir-se-ia, dessa forma, o “melhor mundo possivel” que exigia uma nova ordem baseada no efetivo controle das camadas sociais excluidas, na disciplina que mantivesse uma ordem social que privilegiasse seus arautos. A Igreja Catélica, caso tivesse sido consultada, nfo teria apresentado uma proposta diferente. Os dirigentes romanos ¢ seus representantes na nascente nacio brasileira persistiam na associagdo entre a prética do cristianismo © 0 exercicio conformado e pacifico da cidadania. Assim, o catolicismo era pré-condigdo para a paz € a ordem e a garantia da unidade nacional e trangiiilidade dos povos. E, de acordo com essa_visdo, 0 cristianismo imposto aos indigenas compunha um dos elementos do quadro de promogao da nacionalizagao, sendo um dos seus efeitos levar esses povos a aceitarem as exigéncias do grupo dominante quanto & invasfio de suas terras ¢ sua transformagio em mio-de-obra décil e disponfvel. A Igreja, ou pelo menos seus dirigentes, continuava a atuar como sacralizadora do status quo. .'* Além dessa diversidade de visdes acerca da politica a ser adotada para os povos indigenas, outros fatores divergentes contribufam para dificultar a tomada de deciséo pelos constituintes. A alianga formada entre os segmentos sociais dominantes nos momentos que precederam a Independéncia, dada a diversidade de visdes acerca do modelo politico a ser adotado e dos interesses econdmicos que buscavam priorizar nas politicas a serem formuladas pelo Estado, ndo era, por sua propria caracterfstica de composi¢io temporiria ¢ parcial, uma base estivel de governo. E um dos problemas enfrentados resultava das dificuldades de conciliar as idéias de liberdade politica, ainda que restrita a determinados setores populacionais, ¢ os interesses de ordem econdmica calcados nos princfpios escravistas. '* Ante tantas contradigées no que tange & legislagdo, a emancipagao politica nao representou uma ruptura do ordenamento juridico anterior. Optou-se por fazer os ajustes necessirios no conjunto juridico herdado do perfodo colonial: as Ordenagdes Filipinas e a maioria das leis, regimentos, alvards, decretos e resolugées. ‘* Definindo cidadiis: qual o lugar dos indios? Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa ISSN 0102-9487 ‘Na Assembléia Constituinte, o tema abordado - a politica indigenista ~ resultou em discussGes por pressuporem definigdes essenciais, como a questo da cidadania, da participagao politica de segmentos sociais até entdo marginalizados e, enfim, a definigao de uma nova orientago oficial que deveria incorporar os questionamentos levantados nas provinciais que vivenciavam os conflitos gerados pelas Cartas Régias de 1808 1809 que decretaram guerra justa a alguns grupos indigenas. A preocupagio em definir esse estatuto remete-nos A concepgio de independéncia e formagio de nagio na América. Podemos afirmar que uma das grandes motivagdes dos movimentos de Independéncia foi o receio das sublevagdes das camadas dominadas e a perda do controle e privilégios pelas camadas dominantes a partir do momento em que as metrépoles tornaram-se menos capazes de deter essa suposta ameaga. '* E também nesse sentido que se deve relembrar ser conflituoso 0 conjunto de relagdes sociais entre os vérios grupos sociais em disputa pelo controle da produgao € distribuicao dos bens e que esta realidade constituiu-se no grande motor explicativo da existéncia das politicas mutdveis, a curto prazo, e da fluidez nas aliangas constituidas naquele momento. Portanto, a questio das relagdes com as classes marginalizadas do processo decisério era uma questo central na definigao do Brasil como uma nago em construgao.'® Diante desse quadro de instabilidade, a definig&o de quem se constituia cidadao e das gradacGes dessa condicado com seus correspondentes direitos e deveres merecia atengao especial. Considerando essa categoria - cidadéo - como uma construgao historicamente definida, pode-se observar que houve mudangas significativas quanto aos critérios usados para defini-la e quanto a sua relagiio com a Nagiio. No caso das colonias, 0 fato de preexistir 4 conquista um conjunto de etnias diferenciadas, com Iingua propria e sentimentos de pertinéncia particulares, em nada influenciou a definigéo dos limites dos territérios coloniais. Foi a capacidade de expansio de conquista de cada metrépole que estabeleceu até onde e sobre quem o Estado poderia exercer seu poder, no havendo, portanto, qualquer coincidéncia entre 0 étnico nativo e 0 politico-administrativo construfdo. Dessa maneira, a relagdo de constituigao recfproca entre Estado-Nagio ¢ sua comunidade, no caso das ex-coldnias americanas, estava, no momento da Independéncia, em aberto, exigindo uma definigiio acerca das etnias nativas. E Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 importante que se diga que, em nenhum momento, chegou a se considerar a possibilidade de usar essa diversidade étnica como critério de classificagio do grau de cidadania a ser atribuido aos grupos. © que interessava, ja que as particularidades étnicas eram consideradas como etapas que deveriam ser superadas em nome de uma homogeneizago cultural, era o nivel em que se encontravam as relagdes interétnicas ¢ 0 grau de aceitagio por parte dos grupos indfgenas dos chamados padrées civilizados. Assim como nas metrépoles, a nogao de pitria estava intimamente associada & do patrimdnio do monarca e, s6 posteriormente, é que a nogo de patriotismo comegou a ser formada a partir da veiculagdo de idéias liberais e da formagdo de sentimentos relativos & nova nogio de patria e de sentimentos coletivos de pertenga a uma coletividade. ‘Como conseqiiéncia, pode-se afirmar que a Nagao, no scu sentido moderno, € uma comunidade politica imaginada por seus idealizadores ¢ que se efetiva através da insistente veiculagiio de informagdes articuladoras que fazem com que determinado grupo humano, situado dentro de limites fisicos definidos, ainda que exclufdo social, politica e economicamente, sinta-se partilhante de sentimento de pertinéncia, valores e crengas comuns, 0 que passa a se constituir no referencial ordenador e articulador das relag6es internas ¢ externas.'” Essas questes estavam por ser pensudas e resolvidas no Brasil. Como superar a falta de unidade e a fragmentagao regionalista que nao haviam dado margem ao surgimento de uma consciéncia nacional? Que segmentos sociais estariam preparados para esse compartilhamento? O que fazer com os indios ¢ os escravos, considerados incapazes e despreparados para esse exercicio? Seria essa uma condigo transitéria ou definitiva? Qual o papel ¢ a importancia da imposigao a esses grupos da lingua oficial, 0 grande mapeador dos limites de uma nagdo? E se os indios apreendessem a falar portugués, seria esse um claro sinal de que haviam passado a ter um sentimento de pertinéncia € compartilhamento de valores ¢ crengas? Todas essas questes estavam diretamente correlacionadas com a vontade de “se constituir e sobreviver como nagio civilizada européia nos trépicos, apesar da sociedade escravocrata e mestiga”.'* Em contrapartida, se a lingua falada era considerada como um dos elementos confirmadores da existéncia de uma comunidade com trajetéria hist6rica diferenciadas € controladora de um espago auténomo, constituindo uma fratenidade de iguais e, portanto, uma nagdo politicamente organizada, dever-se-ia aplicar esse principio as 10 Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 populacdes indfgenas e garantir-lhes a condigdo de comunidades aut6nomas? Tal fato sequer era considerado e as linguas indigenas eram vistas como obstaculos & unificagao, a0 estabelecimento ¢ solidificagdo de aliangas em torno do segmento dominante, definido, nese caso, como sendo formado pelos primeitos dentre os compatriotas. A estes cabia o dever de impor um nacionalismo oficial voltado para a incorporagio de grandes massas heterogéneas ocupantes do espaco politicamente conquistado e sua exclusio quando considerados incapazes de se ajustar 4s novas exigéncias. Por forga do cardter conservador e elitista dos constituintes e seus representados, sua preocupago central, ao pensar o Estado, era a de criar mecanismos preservadores de seus direitos e privilégios, o que, em contrapartida, significava impor mecanismos de controle aos excluidos socialmente através de um governo forte e voltado para a realizagao de investimentos que promovessem a integracdo territorial. E o grande roteiro para definir 0s marcos de incluso ou exclusdo de um determinado segmento social, no caso brasileiro, como, aliés, ocorreu em varios outros paises, estava intimamente associado As crengas etnocéntricas, racistas e sexistas que podem ser identificadas nos papéis histéricos destinados aos personagens em narrativas a respeito do Brasil nas quais se reflete 0 modelo hierérquico pensado e implantado pelos representantes privilegiados da nacido. Em conformidade com a crenga dominante no periodo, as diferencas eram naturalizadas e, dentro de uma dimensao ut6pica, as desigualdades entre os cidadaos, legitimadas pela via politica e potencializadas pela distribuigo de fungdes de acordo com aptidoes ¢ capacidades especificas, eram as bases de uma sociedade harmonizada pela hierarquizagio e da articulagdo das inigilidades a partir da cooperagio entre partes dissimilares. Desse modo, 0 esforgo coletivo proposto era o de garantir uma homogeneidade cultural, o que implicava um processo de integragio forgada dos indigenas sempre que as determinagdes biolégicas e/ou invariantes ontolégicas responsdveis por suas caracterfsticas exclusivas ndo inviabilizassem esse projeto ‘A definigo do status a ser ocupado pelos indios j4 fora objeto de vérias propostas, como a apresentada por um representante de Sdo Paulo - José Bonifécio de Andrada e Silva -, capitania onde também vigoravam as determinagGes de guerra justa 0s chamados Botocudos do Sul. A primeira apresentagdo do seu texto as Cortes Constituintes - Apontamentos 1! para a civilizagdo dos tndios bravios do Império do Brasit '” - ocorreu em Portugal, W Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 sem que Andrada ¢ Silva obtivesse sucesso no seu intento de transformé-lo em lei. O texto foi reapresentado em 1823 a Assembléia Constituinte Nacional e novamente foi rejeitado, apesar dos elogios da Comiss4o de Colonizagao, Civilizagao ¢ Catequizagao dos fndios.” A Comissao reconhecia a importancia do tema, considerava o trabalho “precioso resultado de profunda filosofia”, recomendava a sua impressio e venda plblica, bem como o seu envio aos governos Provinciais para que seus governantes emitissem opinides acerca das propostas apresentadas. Na verdade, o texto nio apresentava grandes novidades. Como o de Pombal, o projeto de José Boniffcio vinculava-se A vertente dos que acreditavam ser possfvel € essencial promover a incorporag#o dos indios ao todo nacional, nao considerando a manutengao do estado de guerra a forma mais adequada para atingir esses objetivos Membro da clite que estudara na Europa, José Boniffécio acreditava no processo educativo como o grande elemento transformador da sociedade ¢, como reformista, abominava a adogio de quaisquer formas de radicalismo e extremos como soluco para os problemas sociais e politicos. A influéneia das discusses européias acerca da escravidio como uma atividade antieconémica compunha 0 seu idefrio e fazia com que criticasse sua manutengio, responsabilizando-a por corromper a sociedade, pelo pouco aprego pelo trabalho, pela desagregagio da familia e deterioragdo da religido. Para ele, seus defensores estavam mais preocupados em defender o direito do uso da forga do que a propriedade. Como, no entanto, era invidvel a sua proposta de aboligio da escravidao africana, devido a sua extensio fisica, a gama de interesses ¢ mimero de beneficiados com sua manutengao, no deixou de apresentar a proposta de extinguir a escravidao indigena, mais reduzida em termos espaciais e numéricos, © com relagio A qual ja se elaboravam questionamentos e cujos beneficiados nao possuiam tanto poder e prestigio politico na composigio de forgas do novo governo.”! Alias, sua Memédria sobre a Escravidao sequer chegou a ser apresentada 4 Assembléia Constituinte, diferentemente do seu Plano para os Indios Bravios, que foi apresentado por duas vezes. Paralela & discussdo da proposta apresentada por Andrada e Silva, ocorriam debates acirrados acerca do estatuto a ser atribuido aos indios - cidadéo ou membro do Império - eram desenvolvidos entre os constituintes ao claborar a epigrafe “Dos Membros da Sociedade do Império do Brasil”. Para esses membros da Assembléia, todos os moradores do novo pafs deveriam ser considerados brasileiros, isto €, membros 12 Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 da sociedade brasflica. Porém, nem todos poderiam ser considerados como cidadaos brasileiros com iguais direitos e deveres, pois uns eram ativos e outros passivos na prética do seu patriotismo, ¢ essa diferenciagdo era essencial dado o carter heterogéneo da populagdo que habitava o pats. Nessa condi¢o de brasileiros, isto é, nascidos no Brasil, e de nio cidadios foram enquadrados os filhos de negros e de crioulos cativos porque nao teriam condigdes de exercer direitos civicos. J4 para os indios, havia uma pré-condigao para passarem da simples condico de brasileiros para a de cidadios: a de deixarem de ser silvfcolas, no sentido mais restrito do termo, isto € moradores das selvas, ¢ “abragarem a nossa civili Na visao dos constituintes, essa condi¢io devia-se ao fato de os indios nao gozarem dos cémodos ¢ incémodos de pertencerem a sociedade brasileira, uma vez. que ‘nao participavam do Pacto Social que constituita o Estado ¢ por nao estarem submetidos ou reconherem o Império ou sua autoridade j4 que viviam em guerra com os brasileiros. Logo, como nfio reconheciam os deveres, nfo se Ihes poderia reconhecer direitos, mas apenas o de terem legislago especial voltada para chamé-los a civilizagao, pois, pelo “fato de nascerem conosco no mesmo territério, a moral universal, tudo nos indica este dever”. ‘Também argumentavam que, devido as caracteristicas de sua cultura e apesar de terem nascido no Brasil e serem livres, eles nao estavam inseridos na familia brasileira por nao compartilharem costumes e grau de civilizagio e nem possuirem leis ou reconhecerem as brasileiras. Estariam, portanto, excluidos da condigao de cidadaos, das preocupagdes e do exercicio dos direitos politicos até que, ao se civilizassem, passassem a compartilhar do Pacto Social formador do pafs.”” E significative que, em nenhum momento, se questionou o uso da forga e a continuago da guerra justa como forma de promover a incorporagio das populagdes indigenas a “nossa civilizagio”. Ao contrério, o que se intui uma real preocupagdo em transformar o silvicola em possivel ¢ futuro cidadio, entendendo-se como tal o trabalhador ou colono produtivo ajustado ao que se estabelecia como padrio civilizado, © que s6 se concretizaria apés terem superado o estado de selvajaria. Embora essas discussdes nao tenham desembocado numa legislagao especifica a ser adotada pelo Império, pode-se perceber que as leis e orientagdes pontuais e especificas para regides e Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 ‘grupos calcavam-se no sentido de acelerar a integragdo e a transformagdo dos indigenas em trabalhadores, Um Estado omisso: a ausén de uma legislago e seus efeitos sobre as populagées indigenas As discusses nfio desembocaram numa nova orientago para a politica indigenista, pois , a administragdo do Primeiro Tmpério manteve a legislag3o em vigor, havendo apenas uma orientaco pontual e pessoal de José Bonifécio de Andrada e Silva enquanto exerceu seu cargo de Ministro. Na Regéncia de Feijé foram revogadas as Cartas Régias de 1808 e 1809 relativas & decretagdo de guerra justa. Em 1832 a administrago dos indios aldeados passou a ser responsabilidade dos Juizes de Paz e, naquele mesmo ano, foi referendada outra lei que permitia a transferéncia dos aldeamentos para novos locais ¢ a venda em hasta piiblica de suas terras. Através das Decisdes Judiciais 614 de 1833° e a de 1834™ voltou-se a permitir o arrendamento e aforamento das terras dos aldeamentos e estabeleceu-se como tinico requisito que a verba obtida nessas transagdes fosse usada para garantir “o sustento, vestudrio, curativo dos indios pobres e a educagiio dos filhos destes”. ‘Como essas medidas ainda no satisfaziam plenamente os grandes proprietérios rurais, novas facilidades de acesso as terras indigenas foram criadas através do Aviso de 31/07/1834, que transferiu a responsabilidade de fiscalizagdo dos Juizes de Orfios para ‘as Camaras Municipais, e da Lei de N° 16 de 12/08/1834", que atribufa as Assembléias Legislativas Provinciais Geral a responsabilidade de legislar sobre a catequese € civilizagdo dos indios.”° Com a tomada do controle pelas elites provinciais, o que se constata é a adogdo de uma politica agressiva, que, lentamente, foi-se encaminhando para promover a extingio dos aldeamentos e, desta forma, beneficiar os foreiros e sesmeiros ocupantes das terras indigenas.”’ Essas posturas reivindicat6rias das oligarquias ¢ sua atuacao prética eram tanto mais desenvoltas quanto maior fosse a disténcia fisica da Corte, num sinal da incapacidade ou desinteresse do Estado em controlar a ago dos seus stiditos nas franjas de ocupagio territorial. Ante os desmandos, conflitos ¢ insatisfagdes, a formulagao de um projeto de interiorizagiio do poder do Estado e a necessidade de formar um quadro de trabalhadores que viriam a substituir os escravos africanos quando da interrupgio do 14 Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 tréfico negreiro, finalmente, em 1845, 0 Governo Imperial definiu sua politica através do Regulamento das Missoes de 1845. A caracterfstica maior dessa nova politica foi a retomada do modelo catequético, interrompido no século XVIII pelo Marqués de Pombal. Ressurgia, assim, com mais forga a politica de forgar a integragdo do indio & sociedade nacional e de preparé-lo para ser a mo-de-obra que substituiria o escravo de origem africana, conforme pregavam os chamados Rominticos do Instituto Histérico e Geogrifico Brasileiro. Entre as duas vias possiveis no trato da questio indigena — 0 exterminio ou ressolcializago — 0 Governo Imperial optou pela segunda via, o que nos remete & discussio da Assembléia Constituinte de 1823: o reconhecimento da cidadania exigia 0 “branqueamento” cultural e racial dessas populagdes. Essa postura colocou as populagdes indigenas face a face com questoes de caréter contraditério. Em fungao de fragilidades decorrentes do processo de dominaca0 a que foram submetidas e das quais resultaram a desestruturagio ¢ constantes reformulagées adaptativas de sua sociedade & nova realidade, constata-se a redugdio de sua capacidade de articulagio e resisténcia is imposigGes, particularmente apés sucessivas e dristicas redugdes do seu contingente demogrfico, nao lhes restou muitas alternativas de sobrevivéncia a ndo ser a insergao adaptada e negociada no Estado- Nagio. Este passa, entio, a ser, simultaneamente, 0 simbolo da dominagio ¢ da espoliagdo a que so submetidos e a insténcia maior capaz de lhes garantir a necessdria protecdo para preservar pequenas parcelas de seu territ6rio tradicional, essencial para promoverem novas formas de resisténcias adaptativas e sobreviverem. Entretanto, ao aceitar a insergio no Estado-Nagio, as sociedades indigenas passaram a enfrentar novas contradigdes. Uma delas é o fato do conceito de “indio”, por ser uma categoria construfda pela sociedade nacional e estabelecida a partir de imagens formuladas nas relagées vivenciadas e nos interesses historicamente constituidos, caracterizar-se por seu cardter amplamente generalizante, Como tal, ignora as especificidades ¢ peculiaridades étnicas dos varios povos, marcas de suas identidades individualizadas, elementos no valorizados pela sociedade nacional ao estabelecer suas relages com essas sociedades. Essa realidade implicou na necessidade desses povos, ao aceitarem sua insergao, posicionarem-se niio como entidades individuais, mas, cada vez mais, terem que conformar sua identidade e organizagdo social & categoria de “indio” de acordo com as 15 Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 imagens ¢ expectativas definidas pela sociedade dominante para poderem ser identificados como tal e, conseqtientemente, terem seus direitos, em principio, resguardados. © avangar desse proceso levou a que fossem classificados como “misturados com os civilizados”, como eram definidos no século XIX, termo substituido, nos dias de hoje, por “integrados”, o que significa a negagio da sua identidade étnica diferenciada da dos nacionais, justificando a atitude adotada pelo Estado de thes negar o reconhecimento dos direitos inerentes 4 sua condigZo de etnia diferenciada, Agravando esse quadro, as comunidades ind{genas apreendem, no seu cotidiano € com suas trajet6rias hist6ricas, que a protego oferecida pelo Estado possufa um cardter mais ret6rico do que pratico e que, como foi constatado ao longo de toda essa anélise, poderia ser interrompida a qualquer momento sob as mais variadas justificativas, Conseqiientemente, era necessério sua sobrevivéncia fisica buscarem insergo no contexto regional do mercado produtivo. Para tanto, tiveram que abdicar de expor suas formas diferenciais de organizaciio social e, em casos extremos de conflito, a negarem a propria identidade étnica, Os conflitos internos acentuam-se ante as novas e tantas perspectivas possiveis de enfrentamento e resisténcia para as quais o seu universo de referéncias nem sempre possuia resposta. Como consequéncia, os posicionamentos ante a nova realidade passem a ser definidos de forma distinta pelas varias facgdes que se constituem internamente ou, até mesmo, por individuos rompendo a tradicional forma coletiva de tomada de decisGes € que era um dos elementos mais importantes na afirmagao do sentimento de pertenga a uma comunidade particular e a grande instincia de articulagio politica e de reivindicagio do seu reconhecimento como povos com direitos resguardados pelo Estado Pensar numa solugdo para a questo que estava colocada para o Estado e para as populagdes indigenas implicaria reformular a forma como o Estado foi constitufdo no século XIX. E um dos pontos fundamentais ¢ mais polémicos continua a ser a questio do dominio das terras indigenas por esses povos ¢ a clara definigio de politicas de relacionamento calcadas no respeito A autonomia politica e cultural das nagdes indigenas. 1 FRANGA, . Declarages na Reuniso da Assembléia Nacional Constituinte de 23/09/1823 In Anais da ‘Assembléia Nacional Constituinte de 1823; NA. Seogao SPO T.0S p. -4 16 Revista CLIO ~ Revista de Pesquisa Historica. Volume 28.2 ISSN 0102-9487 2ROWLAND, Robert. A construgo da identidade nacional no Brasil Independente IN JANCSO, I (org.) Brasil: formagio do estado e da Nagio; Sio Paulo; Hucitec, Ed, Unijut, Fapesp, 2003, 375-6. 3 ROWLAND, Robert. A construglo da identidade nacional no Brasil Independente IN JANCSO, I (org) Brasil: formaglo do estado e da Nagio; Sto Paulo; Hucitec, Ed. Unijus,Fapesp, 2003, 375-6. 4 OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles, Tramas politcas, reder e negécios IN JANCSO, I (org.) Brasil: formagio do estado ¢ du Nagi Sto Paulo; Hucitec, Ed. Unijus, Fapesp, 2003) (393) 5 COSTA, E, V. da. José Boniféeio: Homem e Mito, In: MOTA, C. G. (org.). 1822 ~ Dimensies. So Paulo: Perspectiva. 1986. p. 102-59 6 DUCHET, Michele. Antropologia y histria en el siglo de las Iuees . Buffon, Voltaire, Rousseau, Helvécio, Diderot. Mexico : Siglo Veintiuno Eulitores, 1975, P 174 7 DUCHET, op. Cit. P 178, 196. 8 Wied 9 Spix e martius 10 Cunha 11 (CHAIM, 1972, p.97) 12 HAUCK, J. F. et alii . Historia da igreja no Brasil, ensaio ¢ interpretagao a partir do povo. Petrépolis: Voves, 1980 13 NOVAIS, F., MOTA, C. G. A independéncia politica do Brasil. Sto Paulo: Hitec, 1996. p.38. 14 MARTINS, W. Historia da Inteligéncia Brasileira (1794 - 1855). Sio Paulo : Cultrix/Edusp, 1977. 15 ANDERSON, B . Nacio e conseiéncia nacional. Sfo Paulo : Atica, 1989. p. 58-74 16 VILLAR, P. Hidalgos, amotinados y guemilleros - pueblos y poderes en la historia de Espafa. Barcelona Critica, 1982. 17 ANDERSON, op. cit. p.14-20 18 DIAS, M. 0. da S. 0 Fardo do Homem Branco - Shouthey, Historiador do Brasil - Um Estudo dos Valores Idcol6gicos do Império do Comércio Livre, Sio Paulo: Cia Ed. Nacional, 1974p. 169-70, 19 CUNHA, Maria Manuela C. da, Politica Indigenista no Séeulo XIX. In: CUNHA, Maria Manvela C da (org). Hist6ria dos fndios no Brasil, Sio Paulo : Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992, p. 133- 154 20 GOMIDE, Ant6nio G. ct ali. Comisséo de Colonizagio, Civilizagio ¢ Catequizaglo dos fndios da ‘Assembléia Nacional Constituinte. Rio de Janeiro. 18/6/1823. A. N.. Fundo Assembléia Nacional Consttuime - Secgfo: SPO. Vol. 1.p.97 21 Além de José Bonifécio, poucos representantes das cites defendiam a extinglo, ainda que gradual, da escravidio africana: Jofo Severiano Maciel da Costa, José Eloy Pereira da Silva e Domingos Alves Branco MONIZ BARRETO ( Memérias sobre « Eseravidio, Rio de Janciro/Brasflis Arquivo Necional/ Fundagio Petrino Portella, Ministéro da Justiga, 1988). 22 Anais da Assembléia Nacional Consttuinte, Rio de Janeiro. 23/9/1823. A. N.. Fundo: Assembléia Nacional Constituine - Seegdo: SPO. V.5.p. 211-4 23 COUTINHO, Aureliano de S. ¢ 0. Decisio judicial 614 - Resolve divas a respeito da administragio dos bens dos indios, enviada ao Sr. Juiz de Mangaratiba; Rio de Janeiro em 18/10/1833. In: CUNHA, Ma., M.C.da, (org). Legislaglo indigenista no século XIX. S. Paulo: Eiusp, CPUSP, 1992. p. 160 24 COUTINHO, Aureliano de 8, ¢ 0. Decisio judicial ndmero 275 - Perience 2 jurisdic administativa do Juiz de Orffios a devisio sobre ramos titulos dos arrendatérios dos terrenos pertencentes aos fndios enviada ao Juiz de Orffos de Iguagu; Rio de Janeiro em 12/08/1834, In: CUNHA, Ma. M.C. da, (org) Legislacio indigenista no século XIX. S, Paulo: Edusp, CPUSP, 1992. p. 160-1 25 LIMA E SILVA, F; Carvalho, I.da C; MONIZ, J. B. Lei ntimero 16 - Ato Adicional - Faz algumas alterapdes e adigoes & ConsttuigGo do Império nos termos da Lei de 12/10/1832; Rio de Janeiro em 12/08/1834. In: CUNHA, Ma. . M.C. da, (org). Legislagio indigenista no século XIX. S. Paulo: Edusp, CRISP, 1992. p. 158.9. 26 Antes dessa determinagio, aos Conselhos Gerais ¢ aos Governos Provineiais eabia, apenas, a fesponsabilidade de apresentar sugestdes A Assembléia Geral Legislativa e ao Imperador, que adotavam 1s decisbes finais 27 CUNHA, Maria Manucle C.da, Introdugio « ume histria indfgena, In: CUNHA, Maria Manuela C. da (org.). Hist6ria dos indios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992. p. 13. PERDIGAO MALHEIROS. A escravidio no Brasil: enstio hist6rico-juridico-social, Rio de Janeiro, Sto Paulo, Editora Cultura, 1944. 315-8. 7

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