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378 23. “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE Roman Jakobson * 1 Les amoureux fervents et les savants austéres 2Aiment également, dans leur more saison, 3Les chats puissants et doux, orgueil de la maison, 4Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires. sAmis de la science et de la volupté, lls cherchent le silence et I’horreur des ténébres; 7L'Erdbe les edt pris pour ses coursiers funébres, 8S’ils pouvaient au servage incliner leur fierté. glls prennent en songeant les nobiles attitudes 10Des grands sphinx allongés au fond des solitudes, 11 Qui sembient s‘endormir dans un réve sans fin; 12Leurs reins féconds sont pleins d'étincelles magiques, 13Et de parcelies d'or, ainsi qu'un sable fin, 14Etoilent vaguement leurs prunelies mystiques!. [Os amantes a arder, os sébios solitérios Amam de modo igual e nas idades graves, Este orgulho da casa, os fortes gatos suaves, Pois, bem como eles, so frios e sedentérios, Amigos da volupia e amigos da ciéncia, Buscam a calma e 0 horror das trevas mais crugis; O Erebro os suporia os seus fatais corcéis, Se pudessem mudar orgulho em obediéncia. Linomme, // (1962) pp. 5:21. Escrito em colaboragdo com Claude Lévi-Strauss. Republicado em Roman Jakobson, Questions de poétique, Seuil, Paris, 1973, pp- 401-419. : eae “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE 379 E tornam a sonhar as nobres atitudes De enorme esfinge a olhar além das solitudes, A adormecer num sonho e que jamais termina; Os seus fecundos rins tém magicas cintilas, E particulas de ouro, como areia fina, Estrelam vagamente asmisticas pupilas. } (Trad. de Jamil Almansur Haddad, in As flores do mal, Classicos Garnier, S5o Paulo, 1964.) A crer no fothetim Le chat Trott de Champfieury, este soneto de Baudelaire a0 ser publicado pela primeira vez (Le corsaire, edicdo de 14 de novembro de 1847), j4 @taria escrito desde marco de 1840, e — contrariamente as afirmacées de alguns exegetas — os textos do Corsaire e 0 das Fleurs du mal coincidem palavra por palavra. Na reparticSo das rimas, 0 poeta segue 0 esquema aBBa CddC eeF gFg (onde os versos de rima masculina so representados por maitisculas ¢ os versos de rima femini- na por mindsculas). Esta cadeia de rimas se divide em trés grupos de versos, a saber: dois quartetos e um sexteto composto de dois tercetos, mas que formam uma certa unidade, posto que a disposicSo das rimas ¢ regida nos sonetos, assim como observou Grammont, “‘pelas mesmas regras que em toda estrofe de seis versos’”?. O agrupamento das rimas — isto ¢, o soneto citado — é o corolério de trés leis dissimiles: 1) duas rimas emparelhadas nio se podem seguir; 2) se dois versos conti- 408 possuem duas rimas diferentes, uma detas deve ser femininae a outra masculina; 3) no fim de estrofes cont (guas os versos femininos e masculinos se alternam: 4séden- tires — gfierté — ,amystiques. Segundo 0 modelo Classico, as rimas ditas femininas terminam sempre por uma s{laba muda e as rimas masculinas por uma sileba forte, mas a diferenca entre os dois tipos de rima persiste igualmente na pronincia corrente, que suprime 0 ¢ mudo da silaba final, a ditima vogal forte seguindo-se de consoantes em todas as rimas femininas do soneto (austéres — sédentaires, ténébres — funébres, attitudes — solitudes, magiques — mystiques), enquanto que todas as suas rimas masculinas terminam em vogal (saison — maison, volupté — fierté, fin — fin). A intima rela¢3o entre a disposi¢So das rimas e a escolha das categorias gramati- cis p5e em relevo o papel importante desempenhado tanto pela gramatica quanto pela rima na estrutura deste soneto. Todos os versos terminam em nomes, sejam substantivos (8), sejam adjetivos (6), Todos estes substantivos esto no feminino. O nome final ests no plural nos oito versos de rima feminina, todos os quais so mais longos, ou por uma sflaba na norma tradicional, ou por uma consoante pés-vocilica na prondncia atual, enquanto que os versos mais breves, os de rima masculina, terminam nos seis casos por um Nome.NO singular. Nos dois quartetos, as rimas masculinas sio formadas por substantivos e as rimas femininas por adjetivos, com excecSo da palavra-chave ¢ ténébres rimando com sfund- bres. Voltaremos adiante a0 problema geral da relacSo entre os dois versos em ques- to. Quanto aos tercetos, todos os trés versos do primeiro terminam por substantivos, © 08 do segundo por adjetivos, Assim, a rima que liga os dois tercetos, a dnica rima homédnima (; ,sans fin — ,ysable fin), opSe 20 substantive do género feminine um édjetivo do género masculino que, das rimas masculinas do soneto, ¢ o unico adjetivo #0 Gnico exemplo do género masculino. O soneto compreende trés frases complexas delimitadas por um ponto, a saber: cada um dos dois quartetos e o conjunto dos dois tercetos. Segundo o nimero das OracSes independentes ¢ das formas verbais pessoais, as trés frases apresentam uma Progressiio aritmética: 1) um s6 verbo conjugado (aiment); 2) dois (cherchent, edt 380 TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES pris); 3) trés (prennent, sont, étoifent). Por outro lado, em suas oracSes subordinadas, cada uma das trés frases 56 tem um Gnico verbo conjugado: 1) qui... sont; 2) s‘ils pouvaient; 3) qui sembient. A divisio ternéria do soneto implica uma antinomia entre as unidades estroficas de duas rimas ¢ de trés rimas. Ela 4 contrabalancada por uma dicotomia que divide 3 Peca em duas parelhas de estrofes, isto 6, em um par de quartetos e em um par de tercetos). Este principio bindrio, sustentado, por sua vez, pela organiza¢So gramatical do texto, vai implicar também uma antinomia, agora entre a primeira sec3o de quatro rimas @ a segunda de trés, e entre as duas primeiras subdivisdes ou estrofes de quatro versos. duas Gltimas estrofes de trés versos. E sobre a tensSo entre estes dois modos de agenciamento e entre seus elementos simétricos @ dissimétricos que se baseia a composico de toda a pera. Pode-se observar um paralelismo sintdtico nitido entre a parelha dos quartetos, Por um lado, e a dos tercetos, por outro. Tanto o primeiro quarteto como o primeiro terceto comportam duas oracdes, das quais a segunda — relativa, e introduzida nos dois casos pelo mesmo pronome qui — abarca o Ultimo verso da estrofe @ se liga aum substantive masculino no plural, o qual serve de complemento da oracSo principal (yLes chats, ,oDes... spnnix). O segundo quarteto e o segundo terceto contém cada um duas oragSes coordenadas, sendo que a segunda, complexa, toma os dois Gitimos versos da estrofe (7-8 e 13-14) e comporta uma ora¢o subordinada, ligada 4 principal Por uma conjuncSo. No quarteto, esta oraco ¢ condicional (gS‘ils pouvaient); a do terceto 6 comparativa (,3a/nsi qu'un). A primeira 6 posposta, enquanto a segunda, incompleta, ¢ uma intercalada. No texto do Corsaire (1847), a pontuacdo do soneto corresponde a esta divisdo. 0 primeiro terceto termina com um ponto, assim como o primeiro quarteto. No segun- do terceto @ no segundo quarteto os dois Ultimos versos so precedidos por um Ponto-e-virgula. O aspecto seméntico dos sujeitos gramaticais reforca este paralelismo entre os dois qQuartetos, por um lado, e entre os dois tercetos, por outro. ” Quartetos ') Tercetos 1. primeiro 1, primeiro segundo Zz: segundo Os sujeitos do primeiro quarteto e do primeiro terceto designam somente seres animados, a0 passo que um dos dois sujeitos do segundo quarteto e todos os sujeitos gramaticais do segundo terceto so substantivos inanimados: 7L ‘Erdbe .,2Leurs reins, 130es parcelles, ,yun sable. Além destas correspondéncias por assim dizer horizontais, observa-se uma correspondéncia que se poderia chamar vertical, e que opde 0 conjunto dos dois quartetos a0 conjunto dos dois tercetos. Enquanto que todos os objetos diretos nos dois tercetos s30 substantivos inanimados (oles nobles attitudes, , leurs prunelies), 0 Unico objeto direto do primeiro quarteto ¢ um subs- tantivo animado (,Les chats) @ 05 objetos do segundo quarteto compreendem, 20 lado dos substantivos inanimados (¢/e silence et Ihorreur), © pronome /es, que %¢ refere aos gatos da frase precedente. Do ponto de vista da relacdo entre o sujeito eo objeto, 0 soneto apresenta duas correspondéncias que poderiamos chamar de diago- nais: uma diagonal descendente une as duas estrofes exteriores (0 quarteto inicial ¢ 0 terceto final), opondo-as 4 diagonal ascendente que liga as duas estrotes interiores. Nas estrotes exteriores, 0 objeto faz parte da mesma classe semantica do sujeito: so animados no primeiro quarteto (amoureux, savants — chats) e inanimados no segundo terceto (reins, parcelies — prunelies). Em contrapartida, nas estrofes interio- Fes 0 objeto pertence a uma classe oposta d do sujeito: no primeiro terceto 0 objeto “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE B11 inanimado se opte 20 sujeito animado (i/s [= gatos] — attitudes), enquanto que no segundo quarteto 9 mesma relacSo (i/s [= gatos} — silence, horreur) se alterna com a do objeto animado @ do sujeito inanimado (Erdbe — les [= gatos). Assim, cada uma das quatro estrofes mantém sua individualidade: 0 género anima- do, comum a0 sujeito e 20 objeto no primeiro quarteto, pertence exclusivamente a0 sujeito no primeiro terceto; no segundo quarteto este género vai caracterizar ou 0 sujeito ou 0 objeto; @, no segundo terceto, nem um nem outro. O comeco e o fim do soneto oferecem varias correspondéncias marcantes em sua estrutura gramatical. Tanto no fim quanto no comeco, mas em nenhum outro lugar, encontramos dois sujeitos com um s6 predicado e um s6 objeto direto. Cada um Gestes sujeitos, bem como 0 objeto, possui um determinante (Les amoureux fervents, Jes savants austéres — Les chats puissants et doux, des parcelles d’or, un sable fin = Jeurs prunelies mystiques), e os dois predicados, o primeiro @ 0 Ultimo no soneto, S30 8 Gnicos a serem acompanhados de advérbios, todos os dois tirados de adjetivos & ligados entre si por uma rima assonante: ,Aiment également — , 4Etoilent vaguement. O segundo predicado do soneto e 0 peniiltimo so os Gnicos a terem um verbo e um atributo, @, nos dois casos, este atributo ¢ acentuado por uma rima interna: 4Qui comme eux sont frileux; ;4Leurs reins féconds sont pleins. De modo geral, as duas estrofes exteriores so as Unicas ricas em adjetivos: nove NO quarteto e cinco No terceto, a0 passo que as duas estrofes interiores possuem ao todo apenas trés adjetivos Como j4 notamos anteriormente, ¢ apenas no inicio e no tim do poema que Os sujeitos fazem parte da mesma classe que 0 objeto: ambos perten- cam a0 género animado no primeiro quarteto ¢ 20 género inanimado no segundo terceto. Os seres animados, suas funcdes e atividades dominam a estrofe inici: primeira linha 86 contém adjetivos. Dentre estes adjetivos, as duas formas substanti' das que server de sujeito — les amoureux e@ /es savants — deixam entrever raizes verbais: 0 texto ¢ inaugurado por “aqueles que amam” e “aqueles que sabem”. Na Gitima linha da composi¢so dé-se o contrério; o verbo transitivo Etoilent, que serve de predicado, ¢ derivado de um substantivo. Este Ultimo ¢ aparentado com a série dos substantivos comuns inanimados @ concretos que dominam este terceto € o distin: quem das estrofes anteriores. Observar-se-6 uma nitida homofonia entre este verbo e 0s membros da série em questo: Por fim, ambas as oracdes subordinadas, que as duas estrofes contém respec- tiwamente em seus Gltimos versos, encerram um infinitive adverbial linfinitit adverbal}, e esses dois complementos de objeto s30 os Unicos infinitivos de todo © poema: yS‘i/s pouvaient. . . incliner, , Qui semblent s‘endormir, estrofes contém respectivamente em seus Ultimos versos, encerram um infinitivo adverbal (infinitif-adverbal), @ esses dois complementos de objeto $50 0s Unicos infini- tivos de todo o poems: yS‘i/s pouvaienr. . . incliner; | \Qui semblent s‘endommir. Como vimos, nem a cisdo dicotdmica do soneto nem a divisdo em trés estrofes leva a um equil/brio das partes isométricas, Mas, se 05 quatorze versos fossern dividi- dos em duas partes iguais, 0 sétimo verso terminaria a primeira metade da composi- ¢50, @ © oitavo marcaria 0 inicio da segunda. E ¢ signiticativo que sejam esses dois versos medianos of que mais nitidamente se distinguem, por sua construgso grama- tical, de todo o resto do poema. Assim, sob vérios aspectos, 0 poema se divide em trés partes: a parelha mediana e 05 dois grupos isométricos, isto 4, os seis versos que precedem e 08 seis que seguem a Berelha. Temos, portanto, uma espécie de distico inserido entre dois sextetos. Todas a formas pessoais dos verbos @ dos pronomes e todos 05 sujeitos das oragbes verbais estBo no plural em todo o soneto, exceto no sétimo verso — L ‘Erébe fes @Ot pris pour ses coursiers funébres — que contém o Gnico nome proprio do 32 TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES Poema e 0 Gnico caso em que o verbo conjugado e seu sujeito estio, ambos, no singular. Além disso, ¢ 0 Gnico verso onde o pronome possessivo (ses) remete 20 singular. A terceira pessoa ¢ a Unica pessoa corrente no soneto. O Unico tempo verbal ¢o presente, exceto no sétimo e Citavo versos, onde o poeta visualiza uma aco imagina- da (ye0¢ pris) decorrente de uma premissa irreal (4S “ils pouvaient). O soneto manifesta uma tendéncia pronunciada a prover cada verbo @ cada subs- tantivo de um determinante. Toda forma verbal 6 acompanhada de um termo regido (substantivo, pronome, infinitivo), ou ent&o de um atributo. Todos os verbos transiti- vos regem apenas substantivos (2.,Aiment... Les chats; echerchent le silence et Vhorreur; gprennent ... les... attitudes; ;4Etoilent. . . leurs pruneties). O pronome que serve de objeto no sétimo verso ¢ a Uinica exceciio: /es edt pris. Excetuando-se os complementos adnominais*, que nunca esto acompanhados de qualquer deturminante no soneto, os substantivos (inclusive os adjetivos substantiva- dos) so sempre determinados por adjuntos adnominais (p. ex. 3chats puissents et doux) ou por complementos nominais (;Amis de /a science et de /a volupté). E ainda no sétimo verso que se acha a nica excecSo: L ‘Erébe les edt pris. Todos os cinco adjuntos adnominais do primeiro quarteto (,fervents, ,austéres, 2mdre, ypuissants, ydoux) e todos os seis dos dois tercetos (gnobles, 1 grands, 12féconds, ;2magiques, \3fin, ,4mystiques) sio adjetivos qual tiVOS, 80 Passo Que © segundo quarteto néo possui outros adjetivos sendo 0 adjunto adnominal do Sétimo verso (coursiers funébres). E igualmente este verso que inverte a ordem animado-inanimado que rege a rela- ¢40 entre o sujeito e o objeto em todos os outros versos deste quarteto, sendo, em todo 0 soneto, 0 Gnico a adotar a ordem inanimado-animado. Percebe-se que varias particularidades notéveis distinguem o sétimo verso somente, ‘ou somente os dois titimos versos do segundo quarteto. Contudo, ¢ preciso dizer que @ tendéncia a acentuar 0 distico mediano do soneto choce-se com o principio da tricotomia assimétrica — que opde o segundo quarteto inteiro ao primeiro quarteto, Por um lado, e ao sexteto final, por outro, criando desta forma uma estrofe central, distinta sob varios pontos de vista das estrofes marginais. Assim, sublinhamos que o sétimo verso € 0 Unico a pér 0 sujeito @ o predicado no singular; mas esta observacio Pode ser ampliada: 0s versos do segundo quarteto so os Unicos que pSem no singular Ou 0 sujeito ou 0 objeto; € se, no sétimo verso, o singular do sujeito (L’Erébe) se opde 20 plural do objeto (es), os versos vizinhos invertem esta relag3o, empregando o Plural para o sujeito e o singular para o objeto (6//s cherchent /e silence et V'horreur; 8S‘ils pouvaient .. . incliner leur fierté). Nas outras estrofes 0 sujeito eo objeto estdo ambos no plural (;.3Les amoureux... et /es savants... Aiment... les chats; glls Prennent,.. les... attitudes; 4.,4Et des parcelles,.. Etoilent... leurs prunelies). Pode-se observar que, no segundo quarteto, o singular do sujeito e do objeto coincide com 0 inanimado e 0 plural com o animado. A importincia dos ndmeros gramaticais, para Baudelaire, torna-se particularmente notavel devido a0 papel que sua oposicso desempenha nas rimas do soneto. Acrescentemos que as rimas do segundo quarteto se distinguem, por sua estrutura, de todas as outras rimas da composi¢So. Das rimas femininas, a do segundo quarteto, ténébres — funébres, ¢ a Gnica que confronta duas partes diferentes do discurso, Além disso, todas as rimas do soneto, exceto as do quarteto em questSo, apresentam um ou “Procuramos estabelecer a correspondéncia entre a terminologia gramatical usada por Jakobson e a nossa. No caso de complements adminaux, ado sendo possivel o correspondéncia, a expresso foi literalmente traduzida. (N, do Org.) “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE 233 vérios fonemas idénticos que precedem, imediatamente ou a certa distinc tdnica, normalmente munida de uma consoante de apoio: ;savants austéres — asédemiaires, 2™Ore saison — ymaison, gattitudes — ; oso/itudes, ; un réve sans fin — 13UN sable fin, ; 2étincelles magiques — , «prunelles mystiques. No segundo quarteto, nem a pareihe svolupté — gfierté nem gténébres — >fundbres oferece qualquer recorréncia nas slabes anteriores & rima. Por outro lado, as palavras finais do sétimo @ do oitavo verso aliteram: sfundbres — gfierté. @ 0 sexto verso se acha ligado a0 guinto: gténdbres reper Itima silaba de svolupté, e uma rima interna — ¢science ssilence — reforca a afinidade entre os dois versos. Desse modo, as proprias rimas ‘atestam uma certa distensdo do elo entre as duas metades do segundo quarteto. As vogais nasais so as que desempenham um papel saliente na t soneto. Essas vogais “como que veladas pela nasalidade", segundo a Grammont3, séo de uma alta freqiiéncia no primeiro quarteto (9 nasais, de duas a trés por linha), € sobretudo no terceto final (21 nasais, com uma tendéncia ascendente a0 longo do primeiro terceto — 93 — 194 — ;;6: Qui semb/ent s‘endormir dans un réve sans fin — e com uma tendéncia descendente a0 longo do segundo — 425 — 133 — 141). Em contrapartida, o segundo quarteto no possui mais que trés: uma por verso, exceto no sétimo, Unico verso do soneto sem vogais nasais; € esse quarteto 6 a unica estrofe onde a rima masculina no tem vogal nasal. Por outro lado, no segundo quarteto 0 papel de dominante {dnica passa das vogais para os fonemas consonantais, m particular para os Iiquidos. S6 o segundo quarteto mostra um excedente de fonemas | iquidos, a saber: 23, contra 15 no primeiro quarteto, 11 no primeiro terceto @ 14 no segundo. O nGmero dos /r/ é ligeiramente superior a0 dos /1/ nos quartetos, ligeiramente inferior nos tercetos. O sétimo verso, que s6 tem dois /1/, contém cinco Irl, quer dizer, mais do que qualquer outro verso do soneto: L ‘Erébe /es edt pris pour #3 coursiers funébres. Recordaremos que, segundo Grammont, ¢ por oposicgo a /r/ que /1/ “dé a impressdo de um som que ndo ¢ rangente, nem rascante, nem dspero, ‘mas que, a0 contrério, se evola, que flui, [. . -Jave¢ limpido”’*. O cardter abrupto de todo /r/, e particularmente do /r/ francés, comparado a0 glissando do /\/ ressalta claramente da andlise acustica destes fonemas no recente ‘studo de Mile DurandS, e 0 recuo dos /r/ diante dos /I/ acompanha eloqdentemente a passagem do felino empjirico as suas transfiguracdes fabulosas. Os seis primeiros versos do soneto esto unidos por um traco reiterativo: um par simétrico de termos coordenados, ligados pela mesma conjuncSo et: ;Les amoureux fervents et les savants austéres; yLes chats puissants et doux; 4Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires; sAmis de la science et de le volupté, binarismo dos determinantes, formando um quiasmo com o binarismo dos determinados no verso seguinte — gle silence et I’horreur des ténébres — que encerra estas construcdes binérias. Essa construcdo comum a quase todos os versos deste “'sexteto” néo mais feaparece na continuacéo. Os justapostos sem conjun¢éo sfo uma variacio sobre o mesmo esquema: ,Aiment également, dans leur more saison (adjuntos adverbiais paraletos); sLes chats... orgueil.. . (substantivo aposto a outro). Tais pares de termos coordenados e as rimas (ndo $6 exteriores € sublinhando relagSes seménticas, como j austéres — 4sédentaires, 258/800 — ymaison, mas também ¢ principalmente interiores) servem para cimentar os versos desta introducso: 1amoureux — 4comme eux — afrileux; \fervents — \savants — également - ,dans ~ wuissants; sscience — gsilence, Desse modo, todos 0s adjetivos que caracterizam os Personagens do primeiro quarteto se tornam palavras rimantes, com uma sd excecso: ydoux. Uma dupla figura etimoldgica, ligando os inicios de trés versos — Les amoureux — ,Aiment — Amis ~, concorre para a unificacso desta “similistrofe” de Sis versos, Que comeca @ termina por uma parelha de versos cujos primeiros hemist/- Qquios rimam entre si: | fervents — :également sscience — silence. ws TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES aLes chats, objeto direto da oragSo que abarca os trés primeiros versos do soneto, Passa 8 ser 0 Sujeito oculto nas oracdes dos trés versos seguintes (4Qui comme eux sont frileux; glls cherchent le silence), deixando-nos ver 0 esboco de uma divisio deste quase-sexteto em dois quase-tercetos. O “‘distico” mediano recapitula a meta- morfose dos gatos: de objeto (aqui oculto) no sétimo verso (L ‘Erebe /es ett pris) em Sujeito gramatical, também subentendido, no oitavo verso (S“i/s pouvaient). Sob este aspecto o Citavo verso estd ligado a frase seguinte (o//s prennent). De modo geral, as oracSes subordinadas pospostas formam uma espécie de transi- So entre a orac¢So subordinante e a frase que se segue. Assim, © sujeito oculto “gatos” do nono e décimo versos dé lugar a uma remissSo & metéfora “esfinges” na oragdo relativa do décimo-primeiro verso (Qui semblent s‘endormir dans un réve sans fin) e, por conseguinte, aproxima este verso dos tropos que servem de sujeitos grama- ticais no terceto final. O artigo indefinido, completamente estranho aos dez primeiros versos, que possuem quatorze artigos definidos, 6 0 Gnico admitido nos quatro Git+ mos versos do soneto. Portanto, gracas as remissdes ambfguas das duas oragSes relativas (2 do décimo- Primeiro e a do décimo-quarto verso), os quatro versos de encerramento nos permi- tem entrever os contornos de um quarteto imaginério que “finge” corresponder 20 verdadeiro quarteto inicial do soneto. Por outro lado, © terceto final tem uma estru- tura formal que parece refletida nas trés primeiras linhas do soneto. O sujeito animado no ¢ nunca expresso por um substantivo, mas sim por adjeti- vos substantivados na primeira linha do soneto (Les amoureux, les savants) e por Pronomes pessoais ou relativos nas oracdes ulteriores. Os seres humanos $6 aparecem na pri oracdo, onde o duplo sujeito os designa por meio dos adjetivos verbais substantivados. Os gatos, nomeados no titulo do soneto, figuram nominalmente no texto apenas uma sé vez — na primeira oracSo, onde servern de objeto direto: ;Les amoureux, .. @t-les savants... »Aiment.. yLes chats. N5o s6 a palavra “gatos” néo reaparece mais no decorrer do poema, mas mesmo a chiante inicial /{/ s6 retornsem uma Gnica palavra: «/il fer f0/. Ela designa, com duplica¢So, a primeira acdo dos feli- fos. Esta chiante surda, associada a0 nome dos herdis do soneto, ¢ cuidadosamente evitada em seguid A partir do terceiro verso “os gatos” se tornam um sujeito oculto, Gitimo sujeito animado do soneto. O substantivo chats, nos papéis de sujeito, objeto e adjunto adnominal 6 substitu(do pelos pronomes anaféricos 6,8,9//s, 7/es, 5 12,;aleur{s):@6 40s gatos que se referem os substantivos pronominais i/s e /es. Estas formas acessérias (adverbais) séo encontradas apenas nas estrofes interiores, no segundo quarteto eno Primeiro terceto. A elas corresponde, no quarteto inicial, a forma auténoma eux (bis), que se refere apenas aos personagens humanos do soneto, enquanto o ditimo terceto no contém nenhum substantivo pronominal. Os dois sujeitos da ora¢ao inicial do soneto tém um s6 predicado € um $6 objeto; ¢ assim que ,Les amoureux fervents et les savants austéres v80, 2dans leur mére saison, se identificar em um ser intermedidrio, o animal que engloba os tracos antindmicos das duas condic¢des, humanas, mas opostas. As duas categorias humanas se opdem como: sensual/intelectual, e a mediagdo se faz através dos gatos. A partir dai, o papel de sujeito ¢ implicitamente assumido pelos gatos, que sio sébios e amorosos 30 mesmo tempo. Os dois quartetos apresentam objetivamente a personagem do gato, a0 passo que 0s dois tercetos operam sua transtiguracdo. Entretanto, 0 segundo quarteto difere fundamentalmente do primeiro, e, de forma geral, de todas as outras estrotes. A for- mulagdo equivoca: ils cherchent le silence et I'horreur des téndbres enseja um engano evocado no sétimo verso do soneto e denunciado no verso seguinte. O cardter aberran- “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE 235 ‘te deste quarteto, especialmente a diferenca de sus Gitims metsde e do sétimo verso. em particular, é acentuado pelos tracos distintivos de sua textura gramatical e fonica, A afinidade semintica entre L“Erebe (“‘regiSo tenebrosa contigua 20 Inferno”, substituto metonimico para “os poderes das trevas" e particularmente para Erebro, “irmio da Noite”) ¢ a inclinagSo dos gatos por I‘hosreur des ténébres carroboreda pela similaridade {Snica entre /ten¢bra’ e /eréba/ esteve a ponto de associar os gatos, herdis do poema, 4 tarefa horrorosa dos cowssiers fundbres. No verso que insinua que L'Erebe les o0t pris pour ses coursiers, trata-sé de um desejo frustrado Ou de um falso reconhecimento? A significagso desta pattagem, motivo de duvida para os criticos®, fica intencionalmente ambigua. Cada um dos quartotos © tercetos busca uma nova identificagso para os gatos. Mas, $e 0 primaire quarteto associou 0% gatos a dois tipos de condi¢So humana, eles vio rejeitar, gragas 4 sua sitivez, a nova identificagSo tentada no segundo quarteto, que os liga 3 uma condi¢5o animal, a de corctis situsdos num ambiente mitolégico. Esta € a Gniea equivaléncia rejeitads 30 longo de toda a peca. A composicSo grama- tical desta passagem, que contrasta nitidamente com a das outras estrofes, trai seu Gardter insélito: modo irreal, auséncia de ep (tetos qualificativos, um sujeito inanima- do no singular, desprovido de qualquer determinante @ regendo um objeto animado no plural, As estrofes $30 unidas por oximoros alusivos. g5‘i/s pouvaient au servage incliner leur fierté — mas eles nia “podem” fazé-lo porque 40 efetivamente ,ou/ssants. N5o podem ser passivamente pris para desempenhar um papel ativo, ¢ eis que eles pro- brios gprennent um papel passivo, porque sJo obstinadamente sedentérios sleur fierté os predestina a gnobles attitudes ;oDes grands sphinx, As :oxphinx allongds ¢ 0% gatos que as repetem gen songeant acham-se unidos por um la¢o parono- mistico entre os dois participios — Unicas formas porticipiais do soneto: /Ssaki/ e fat3fe/. Os gatos parecem identificar-se ds esfinges que, por sua vez, ;;sembient sendormir, mas tal Compar aco ilus6ria, assimilando os gatos sedentérios (2 implicita- mente todos squeles que sio ,comme eux) & imobilidade dos seres sobrenaturais, zsume o valor de uma metamorfose. Os. gatos e os seres humanos que [hes sJo identificados vo encontrar-se nos monstros fabulosos de cabeca humana e corpo de fera. Assim, a identificacSo rejeitada € substituida por uma nova identificacSo igual- mente mitoldgica. en songeant, os gatos vio identificar-se 4s \ogrands spfunx, e uma cadeia de peronomésias, ligadas a estas polavras-chave ¢ combinando vogais nasais com as cons- witevas dentais @ labials, relorca a metamortose: gen songeent /as5../ - , qgrands @hinx 1. bslC..! - yofond MBI - y\semblent Is5...1 - 1 s’endormic Is8. 00041 ~ iidans un 1S2Ge! - \sans fin |s5t€/, A nasal aguda /€/ @ 05 Outros fonemss da palavra resphins IstZks! continuam no dltimo terceto: ; 2reins 1.€/ - \ :pleins |. 2! - \ xétin calles 1, 5, ./- y yainsi Fes! - , \qu‘un sable i/kdes. . .f, No primeira quarteto se 1é; \Les chats puissants et doux, orgue:l de la maison, De vemos entender que os gatos, orgulhosos de seu domicitio, s5o a encarnaco deste erquiho? Ou serd & casa que, orgulhosa de seus habit antes felinos, quer, como o Ere- tro, domestich-los? De qualquer modo, a maison que circunscreve 08 gatas no pri Meiro Quarteto, se transforma num deserto espacoso, yfond des solitudes, «0 medo Go frio, que aproxima os gatos 4frileux e Os amantes ; fervent (nota a paronomisia Nerval - {fritol) encontra um clima apropriado nas sotiddes austeras (como os sébi0s) Go daserto térrido (a exemplo dos amantes ferventes) que rodeia as esfinges. No plano temporal, # :mdre saison, Que rimava com y/a maison no primeiro quarteto o dela se *proximave pela significacso, encontra uma contrapartida nftida no primeira terceta; tues dois grupos paralelos (;dans leur mire saison @ \,dans un réve sens fin) v0 SpSem mutuamente, um evacando o% dias contados @ 0 outro a eternidade. No resto 36 TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES do toneto nSo se véem mais construcSes com dans nem com nenhuma outra preposi- lo adverbial, O milagre dos gatos domina os dois tercetos. A metamorfose prossegue até o fim do soneto. Se, no primeiro terceto, a imagen das esfinges deitadas no deserto jé vacilava entre a criatura e seu simulacro, no terceto seguinte os seres animados se “destazem strés das particulas de matéria. As sinédoques substituem os gatos-esfinges por parte de seus corpos: z/eurs reins, ,4leurs prunelies. 0 sujeito oculto das estro- fes interiores se torna complemento no Gitimo terceto: os gatos surgem a principio como complemento implicito do sujeito — ;2Leurs reins féconds sont pleins —; depois, na Gitima ora¢So do poema, nSo sfo mais que um complemento implicito do objeto: 1 4£toilent vaguernent leurs prunelies. Os gatos acham-se, portenta, ligados 20 abjeto do verbo transitive na Ultima orscéo do soneto e@ Bo sujeito da penditima, que @ uma oracdo subordinada substantive predicative. Estabelece-se assim uma Gupla correspondéncia, num caso como os gatos, objeto direto da primeira oracho do sone- to e@, no Outro caso, CoM os gatos — sujeito da segunda oracSo, que também ¢ Predicativa. Se, no inicio do soneto, 0 sujsito e 0 objeto participavam igualmente da classe do animado, os dois termos da oracdo final pertencem embos 4 classe do inanimado. De modo geral, todos os substantivos do Gitimo terceto to substantivos concretos desta Classe: 1 27eIns, 1 2¢tincelles, | warcelles, 1300, 1 sable, 4prunelies, a0 passe que nas estrofes anteriores todos os substantivas comuns inanimados, nos adnominals", erem Momes abstratos: 2sa/son, orgueil, gsilence, ghorreur, gservage, gfiertt, gattitudes, 1148ve. O génera feminino inanimado, comum a0 sujeito e 30 objeto da ora¢So final —13-140es parcelles d'or... Etoilent. . . leurs prunelies = contrabalanca 0 sujeito & objeto da ora¢So inicial, ambos no masculino animado — ;.3Les amoureux. .. et les savant... Aiment... Les chats. Em todo 0 soneto, ; :parcelles ¢ 0 Unico sujeito no feminino, contrastando com 0 masculino no fim do mesmo verso, ; sable fin, que ¢o Gnico exemplo do género masculino nas rimas masculinas do soneto. No Gitimo terceto, as particutas derradeiras de matéria tomam alternativamente 0 lugar do objeto © do sujeito. So essas particulas incandescentes que uma nova identificacéo, a Ultima do soneto, associa com a Ve) 1 3sable fin @ transforma em estretas. Arima marcante que liga os dois tercetos @ a Gnics rima homdnima de todo 0 tone- to @ a Gnica, dentre suas rimas masculinas, que justapde partes diferentes do discurso. Hé ums certa simetria sintética entre as duss palavras que rimam, posto que ambes terminam oracSes subordinadas, uma completa e a outra eliptica. A recorréncia longe de se limitar 4 Gltima sflaba do verso, aproxima estreitamente as linhas inteiras: at/sGbla sddarmir diinzé& revo sd fej us/parsela dor &si k& sablo ft/.N5o épor ecaso que precisamente esta rima, que une os dois tercetos, evoca un sable fin Fetomando assim © tema do deserto, exatamente onde o primeiro terceto colocou un rive sans fin das grandes esfinges. zLe maison, que circunscreve 0s gatos no primeiro quarteto, wai see abolida no Primeiro terceto, onde reinam as soliddes desérticas, verdadeira casa 80 avesso dos gatos-esfinges. Por sua vez, esta “ndo-casa” abre espaco para a multidso cOsmica dos Gatos (estes, como todas as personagens do soneto, so tratados como pluralia tan- “Tradugdo literal de adminaux, sem correspondéncia na nomenciatura gremavical brasileira, pois abrange fun¢Ses to diversas quanto as de complemento @ adjunto verbal, (N. da Org.) “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE 37 tum). Eles se tornam, por assim dizer, a casa da néo-casa, posto que encerram, em suas pupilas, a areia dos desertos @ a luz das estrelas. O epfiogo retoma o tema inicial dos amantes @ dos shbios unidos em Les chats puissants et doux. O primeiro verso do segundo terceto parece dar uma resposta 20 verso inicial do segundo quarteto. Sendo os gatos sAmis. .. de /a volupté, ;2Leurs reins féconds sont pleins estamos tentados a crer que se trata da forca procriadora, mas a obra de Baudelaire acolhe perfeitamente as solucdes ambiguas. Trata-se al de um poder proprio dos rins, ou de centeihas elétricas no pélo do animal? Seja como for, um poder mdgico Ihes é atribuido. Mas o segundo quarteto iniciava-se por meio de dois complementos coordenados: sAmis de /a science et de /a volupté, @ 0 terceto final se refere ndo apenas a0s ,amoureux fervents, mas também aos ;savants austéres. O Gitimo terceto faz seus sufixos rimarem de modo a acentuar a estreita relaco seméntica entre as ; 2étincelles, , sparcelles d’or e ; 4prunelles dos gatos-estinges por um lado, @, por outro, entre as centelhas ; ,magiques que emanam do animal e suas Pupilas | gmystiques acesas por uma luz interna, e abertas no sentido oculto. Como que para expliciter a equivaléncia dos morfemas, esta rima ¢ a Unica no soneto desprovida da consoante de apoio, e a aliteracdo dos/m/iniciais justapde os dois adjetivos. gL horreur des ténébres se dissipa sob esta dupla luminescéncia. Tal luz se reflete no plano fénico através da predominancia dos fonemas de timbre claro no vocalismo nasal da estrofe final (7 pal: contra 6 velares), enquanto que nas estro- fes anteriores sdo as velares que manifestam uma grande superioridade numérica (16 contra 0 no primeiro quarteto, 2 contra 1 no segundo, e 10 contra 5 no primeiro terceto). Com a preponderincia das sinédoques no fim do soneto, substituindo o todo do ‘animal por suas partes e, por outro tado, o todo do universo pela animal que dele faz parte, as imagens procuram — dir-se-ia propositalmente — perder-se na imprecis3o. O artigo definido cede a0 indefinido, e a designa¢o atribuida pelo poeta 4 sua metéfora verbal — ,4Etoilent vaguement — retlete esplendidamente a poética do epflogo. A conformidade entre os tercetos e os quartetos correspondentes (paralelismo horizon- tal) & notavel, Se, aos limites estreitos no espaco (3maison) @ no tempo (,mdre saison) impostos pelo primeiro quarteto, o primeiro terceto vai responder pelo afasta- mento ou pela abolicdo dos limites (; ofond des solitudes, , réve sans fin), do mesmo modo, no segundo terceto, a magia das luzes irradiadas pelos gatos triunta sobre ol horreur des ténébres, do qual 0 segundo quarteto ia, inadvertidamente, extraindo conseqiéncias enganosas. Reunindo agora as pecas de nossas andlises, tratemos de mostrar como os diferen- tes niveis em que nos colocamos se recortam, se completam ou se combinam, dando 20 poema o caréter de um objeto absoluto. Primeiramente as divisdes do texto. Podemos distinguir varias, perfeitamente niti- das, tanto do ponto de vista gramatical quanto do das relacdes semanticas entre as diversas partes do poema. Como j4 foi assinalado, uma primeira divisdo corresponde as trés partes que termi- nam por um ponto, a saber: os dois quartetos e o conjunto dos dois tercetos. O Drimeiro quarteto expde, na forma de um quadro objetivo e estatico, uma situacso de fato ou admitida como tal. O segundo atribui aos gatos uma intencdo interpretada elas poténcias do Erebro, @ aos poderes do Erebro uma intenco quanto aos gatos rejeitada por estes. Em contrapartida, 9 Ultima parte supera esta oposicSo a0 reconhe- Cer NOs gatos UMa passividade ativamente assumida e@ interpretada néo mais de fora, mas de dentro, Uma segunda divisio permite opor 0 conjunto dos dois tercetos a0 Conjunto dos dois quartetos, fazendo aparecer uma relagSo intima entre o primeiro quarteto @ 0 Primeiro tefceto, @ entre o segundo quarteto @ o segundo terceto. De fato: 388 TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES 1, 0 conjunto dos dois quartetos se ope a0 conjunto dos dois tercetos, no sentido de que estes Gitimos eliminam o ponto de vista do observador (amoureux, savants, poder de /‘Erebe) @ situam o ser dos gatos fora de quaisquer limites espaciais ¢ temporais. 2. O primeiro quarteto introduzia tais limites espécio-temporais (maison, saison); 0 primeiro terceto os abole (au fond des solitudes, réve sans fin). 3. O segundo quarteto define os gatos em fungSo das trevas em que se colocam, o segundo terceto, em funcSo da luz que irradiam (étincelles, étoiles). Por fim, uma terceira divisio se acrescenta 4 precedente, reagrupando, agora num quiasmo, © quarteto inicial e o terceto final, por um lado, e por outro lado, as estrofes internas: segundo quarteto e primeiro terceto: no primeiro grupo, as oracdes independentes atribuem ao “gato” a funcéo de complemento, ao passo que as duas outras estrofes, desde seu inicio, atribuem aos gatos a fun¢do de sujeito. Estes fendmenos de distribuicéo formal possuem um fundamento semantico. 0 ponto de partida do primeiro quarteto ¢ fornecido pela vizinhanga, na mesma casa, dos gatos com os sébios ou com os amantes. Uma dupla semelhan¢a decorre desta contigdidade (comme eux, comme eux). Também no terceto final uma rela¢do de contigdidade evolui até a semelhanca: mas, enquanto que no primeiro quarteto a relac¢do metonimica dos habitantes felinos e humanos da casa funda sua relacio metaférica, no Ultimo terceto esta situacio serd, de certa forma, interiorizada: @ relagdo de contigiidade compete mais 4 sinédoque que 4 metonimia propriameme dita. As partes do corpo do gato (reins, prunelies) preparam uma evocacdo metatérica do gato astral e césmico, acompanhada da passagem da precisdo a imprecisdo (égale- ment — vaguement). Entre as estrofes interiores, a analogia repousa em relacdes de equivaléncia, uma delas rejeitada pelo segundo quarteto (gatos e coursiers funébres) e 2 Outra aceita pelo primeiro terceto (gatos @ sphinx), 0 que leva no primeiro caso a uma recusa de contigiidade (entre os gatos e 0 Erebro) e, no segundo, a instalagéo dos gatos au fond des solitudes. Percebe-se, portanto, que inversamente a0 caso precedente, a passagem ¢ feita desde uma relaco de equivaléncia, forma reforcada da semelhanga (logo um procedimento metaférico), até relacdes de contigiiidade (logo metonimicas) ou positivas ou negativas. Até aqui, © poema se nos apareceu formado de sistemas de equivaléncias que se encaixam uns nos outros, e que oferecem, em seu Conjunto, o aspecto de um sistema fechado. Resta-nos abordar um ultimo aspecto, sob o qual o poema aparece como sistema aberto, em progresséo dinimica do comego ao fim. Na primeira parte deste trabalho mencionamos uma divisio do poema em dois sextetos separados por um distico, cuja estrutura contrastava vigorosamente com 0 resto. No decorrer de nossa recapitula¢do deixéramos provisoriamente de lado esta divisdo. E que, diferentemente das outras, elas nos parece marcar as etapas de uma progress’o — da ordem do real (primeiro sexteto) & ordem do supra-real (segundo sexteto). Tal passagem 6 operada através do distico, que, por um breve instante e pela acumulacSo de procedimentos semanticos e formais, arrasta 0 leitor para um univerio [wvime [mista fd “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE 389 duplamente irresl, pois ele partilha com o primeiro sexteto o cardter de exterioridade, @ 20 mesmo tempo, antecipa a ressondncia mitoldgica do segundo sexteto: Através desta brusca oscilagSo de tom e de tema, o distico preenche uma func3o, que no pode deixar de evocar a de uma modula¢So numa composi¢#o musical. O objetivo desta modulacSo ¢ resolver a oposi¢So implicita ou explicita desde o in(cio do poems, entre procedimento metaférico @ procedimento metonimico. A solugo trazida pelo sexteto final consiste em transferir esta oposicSo para o proprio seio da metonimia, e a0 mesmo tempo, exprimi-la por meios metaféricos. Com efeito, cada terceto propde uma imagem inversa dos gatos. No primeiro terceto, os gatos primitivamente encerrados na casa transbordam dela, por assim dizer, para se expandirem espacial © temporalmente nos desertos infinitos e no sonho infindo. O movimento orienta-se de dentro para fora, dos gatos reclusos para os gatos em liberdade. No segundo terceto, a supressdo das fronteiras se acha interiorizada pelos Gatos que atingem proporcSes cosmicas, pois eles encerram em certas partes de seus corpos (reins @ prunelies) a areia do deserto @ as estrelas do céu. Nos dois casos, a transformacSes no estiio exatamente em equilfbrio: a primeira diz ainda da apa- wansformacdes niio estiio exatamente em equilfbrio: a primeira diz ainda da aparéncia réncia (prennent... les... attitudes... qui semblent s‘endormir) e do sonho (en songeant. . .dans un réve), a0 passo que a segunda fecha realmente o proceso, por seu carter afirmativo (sont pleins.. .Etoilent). Na primeira, os gatos fecham os olhos Para adormecer, mantendo-os abertos na segunda. Contudo, estas amplas metéforas do sexteto final n&o fazem mais que transpor, para a escala do universo, uma oposicdo que jé estava implicitamente formulada no Primeiro verso do poems. Os “amantes” @ os “sébios” rednem, respectivamente, termos que se relacionam de forma contra(da ou dilatada: o homem amoroso esté em conjun¢So com sua mulher, assim como 0 sébio o esté com 0 universo; dois tipos de Conjun¢so, portanto, uma aproximada, outra atastada?. E esta mesma relacSo que as transfiguragdes finais evocam: dilatagdo dos gatos no tempo e no espaco, constricio do tempo e do espaco na pessoa dos gatos. Mas aqui também, como j4 observamos, a simetria entre 9s duas formulas no @ completa: a Gitima redne em si todas as oposic¢des: os rins fecundos recordam a voldpia dos amantes, como as pupilas a ciéncia dos sébios; mdgicas se refere ao fervor ativo dos primeiros, m/sticas 4 atitude contemplativa dos segundos. Ouas observacdes para terminar. O fato de que todos os sujeitos gramaticais do soneto (com a excecio do nome proprio L’Erébe) estejam no plural, e que todas as rimas femininas sejam formadas por plurais (inclusive o substantivo sol/tudes), vai ser curiosamente esclarecide (como, aliés, todo 0 soneto) por alguns trechos de “Foules": “Multiddo, solidéo: termos iquais @ convertiveis pelo poeta ativo @ fecundo [. . .]. O poeta goza do incompardvel Privilégio de poder ser ele mesmo e@ outrem, conforme ihe aprouver [. . } O que os homens chamam de amoré bem pequeno, bem restrito, ¢ bem frégil, comparado a esta inefavel orgia, a esta santa prostituicso da alma que se dé inteiramente, poesia e Caridade, a0 imprevisto que se mostra, a0 desconhecido que passa’’*, No soneto de Baudelaire, os gatos s8o inicialmente qualificados de puissants e¢ doux, @ © verso final aproxima suas pupilas das estrelas. Crépet e Blin®, remetem a um verso de Sainte-Beuve: ”., .I'astre puissant et doux" (1829), @ encontram os Mesmos epitetos em um poema de Brizeux (1832) onde as mulheres so assim censuradas: “Etres deux fois douds! Etres puissants et doux"! Isto confirmaria, se fosse necessdrio, que para Baudelaire a imagem do gato esta intimamente ligada & da mulher, como o demonstram, explicitamente alids, os dois Doemas da mesma coleténea intitulados “Le chat’, a saber, o soneto: “Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux" (que contém o verso revelador; “Je vols ma 30 TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES femme en esprit...) @ 0 poema “Dans ma cervelle se proméne, . . Un beau chat, fort, doux. .." (que coloca diretamente a questo: ““est-il fée, est-i! dieu? "). Este tema de vacilagSo entre macho e fémea esté subjacente em “Les chats”, onde transparece sob ambigiidedes intencionais (Les amouroux... Aiment.. Les chats puissants et doux...; Leurs reins féconds..,.). Michel Butor observa acertadamente que, em Baudelaire, “estes dois aspectos: feminilidade, supervirilidade, longe de se exclu(rem, “10. Todas as personagens do soneto $50 do género masculino, mas /es chats e seu alter ego les grands sphinx participam de uma natureza andrégina. A mesma ambigiidade ¢ sublinhada, ao longo de todo o soneto, pela escolha paradoxal de substantivos femininos como rimas ditas masculinas'!. Da constelacio inicial do poema, formada pelos amantes e pelos sdbios, os gatos permitem, através de sua mediago, eliminar a mulher, deixando cara a cara — ou mesmo confundidos — “o poeta dos Gatos”, libertado do amor “bem restrito”, @ © universo, libertado da austeridade do sébio. NOTAS 1. Baudelaire, QEuvres complétes. Texto estabelecido e anotado por Y. — G. Le Dantec, edicSo revista, completada e apresentada por Claude Pichois, Bibliathéque de Ia Piéiade (Paris, 1961), pp. 63 s. 2. M. Grammont, Petit traité de versification francaise (Paris, 1908), p. 86. 3. M. Grammont, Traité de phonétique (Paris, 1930), p. 384. 4. Traité de phonétique, p. 388. 5. M. Durand, “La specificité du phonéme. Application au cas de R/L”, Journal de psychologie, LVI1 (1960), pp. 405-419. 6. Cf. L ‘intermediaire des chercheurs et des curieux, LXVII, col. 338 e 509. 7. E. Benveniste, que acedeu em ler este estudo ainda em manuscrito, chamou nossa atencdo para o fato de que entre “Les amoureux fervents" @ “ses savants austéres” a “mOre saison” desempenha também o papel de termo mediador: com efeito, 6 em sua “more saison" que eles se encontram, ao identificar-se, “également”, 808 gatos. Pois, prossegue Benveniste, permanecer “amoureux fervents” até 4 "mire saison” j& significa que se esté fora da vida comum, assim como 0 estio os “savants austéres” por vocacao: a situacdo inicial do soneto ¢ a da vida fora do mundo (ndo ‘anea é recusada), e ela se desenvolve, transferida para os gatos, as grandes soliddes estreladas onde ciéncia e volupia sio sonho infindo. Em favor destas observacdes — somos gratos a seu autor — podemos citar certas formulas de um outro poema das Fleurs du mal: “Le savant amour. . . fruit d’automne aux saveurs souveraines” (L'amour du nensonge). 8. Ch, Baudelaire, CEuvres, t. 11, Bibliotheque de /a Piéiade (Paris, 1961), PP. 243 5. 9. Ch. Baudelaire, Les fleurs du mal. Edicdo critica estabelecida por J. Crépet e G. Blin (Paris, 1942), p. 413. 10, M, Butor, Histoire extraordinaire, essai sur un réve de Baudelaire (Paris, 1961), p. 85. 11. No ensaio de L. Rudraut, Rime et Sexe (Tartu, 1936), a exposicso de uma “teoria da alternancia das rimas masculinas e femininas na poesia francesa” 6 “seguida de uma controvérsia” com Maurice Grammont (pp. 47 s.). Segundo este Ultimo, “para a alternancia estabelecida no século XVI que se funda na presenca ou auséncia de um e dtono no fim da palavra, foram utilizados os termos de rimas femininas © “LES CHATS” DE CHARLES BAUDELAIRE 31 rimas masculinas, porque © @ étono no fim de uma palavra era, na grande maioria dos casos, a marca do feminino: un petit chat/une petite chatte’. Antes poder-se-is dizer que a desinéncia espec(fica do feminino, opondo-o 80 masculino, continha sempre o “@ &tono”. Mas Rudrauf expressa algumas divides: ‘Mas teré sido unicamente a consideragSo gramatical que guiou os poetas de século XVI no estabelecimento da regra de alterndncia e na escolha dos ep/{tetos “‘masculina” e “feminina” para designar as duas espécies de rima? No esquecamos que os poetas da Pi¢iade escreviam suas estrofes visando 0 canto, e que 0 canto acentua, bem mais que a diccSo oral, a alterndncia de uma s{laba forte (masculina) e de uma sflaba fraca (feminina). Mais ou menos conscientemente, o ponto de vista musical e o ponto de vista sexual devern ter desempenhado um papel ao lado da analogia gramatical. . .” (p. 49). Considerando que esta alterndncia das rimas baseada na presenca ou auséncia de um @ &tono deixou de ser real, Grammont aponta sua substituig¢fo por uma al- ternncia das rimas terminando por uma consoante ou por uma vogal tdnica, Disposto a admitir que “os finais vocdlicos sS0 todos masculinos”, Rudrauf procura, 80 mesmo tempo, estabelecer uma escala de 24 classes para as rimas consonantais, “indo dos finais mais bruscos e mais viris aos mais femininamente suaves” (p. 12 s.): as rimas com uma oclusiva surda formam o extremo polo masculino (1), e as rimas com uma aspirada sonora, 0 pdlo feminino (24) das escalas erm questo. Se se aplica esta tentative de classificagdo as rimas consonantais dos “Chats”, af poderd observar-se um movimento gradual em dire¢So a0 pdlo masculino que acaba por atenuar o contraste entre os dois géneros de rima: , austéres (Iiquida: 19); 6ténébres — 7fundbres (oclusiva sonora e liquida: 15); attitudes — ; osolitudes (oclusiva sono- ta: 13); 1 zmagiques — , 4mystiques (oclusiva surda: 1). Traducio Eduardo Viveiros de Castro

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