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Pensar a Leitura Complexidade Organizagao: Eliana Yunes JOO Epitora ust PUC RIO] Edisdes Loyola Elementos para uma histéria da interpretagao Eliana Yunes Quando falamos de ler e compreender, de que estamos falando? Quando falamos de ler e conhecer estamos falando da mesma coisa? A palavra conhecer tem sentido de “ser com”, de estar dentro. A Biblia a usa até mesmo para indicar as relagdes de intimidade: “E Maria nao havia conhecido homem algum.” E a nosao do conhecimento como pertencente Aconstrugio dos sujeitos, 0 que permite a nossa organizagio do mundo, osituar-se de cada um no mundo. O mito da escrita, que esté nos relatos de Plarao, segundo 0 qual, no momento mesmo em que a escrita é concedida aos homens, revela-se a sua ambigiiidade, o seu duplo: eneno e cura. Cura porque supostamente cura do esquecimento, € veneno porque ao contrario, confiante nela, 0 homem esquece o cotidiano da vivéncia, se esquece da histdria das priticas. Deduzo que daf a leicura se instalou, antes disseminada pelos saberes vivos ¢ que, mesmo assim, por vezes, corria-se o risco de desconhecer as tazbes do gesto, de nao cer meméria da histéria coletiva, nem para refuté- la para um gesto novo. Devemos entio falar de outra leitura, dessa concep¢io de leitura anterior 4 palavra escrita. Remonto as cavernas do Piaus, lembrando das escritas pictogrificas, escritas do tempo pré-hist6rico. Hé uma imagem na abertura do filme 2007, Uma odisséia no espago, em que, apés uma série de confrontos entre dois grupos de sfmios aparece finalmente o monolito. A medida que a 4gua do pogo vai secando, os Ossos & sua beira deixam de ser “lidos” como tal, Um. dos personagens toma um dos assos ¢, ao bater com ele, percebe que este passa a ter vida, Que pode utiliz4-lo para exercer a sua violéncia ou interagir com o mundo. Neste momento, 0 osso alca v60, como sinal do grande salto, transformando-se em nave. Esse olhar do homem sobre 0 mundo foi, necessariamente, mesmo quando essa consciéncia do olhar ledor & impossivel, a sobrevivéncia. O 98 homem I desde sempre ¢ lé nao sé 0 verbo; le todos os significantes que esto disponiveis ¢ nos deixou os de sua primeira invengio no mundo dag cavernas. Essa potencialidade para significar, que & germe mesmo desea condi¢io humana, faz com que © homem imediatamente compreenda og objetos, os outros homens, dentro de uma ética de apropriagio de uma imagem, uma imagem por ele mesmo “desenhada’ ¢ que, muitas vere, no corresponde ao objeto de que trata, sendo por analogia criada, Essa forga instauradora do significado evidentemente nio dependeu da palavra em si, mas, quando ela se instala, produz uma economia de tl ordem que se torna suporte de simultaneidades. E essa capacidade do verbo de condensar 0 significado, paradoxalmente, é que dé & palavta esse cariter magico, esse cardter sagrado, Nao é que a imagem nao tenha isso na sua origem. Mas como a palavra nos deixa (na superticialidade imediata da comunicagao) uma ilusdo de que ¢ possivel aprender na sua integridade o objeto pela nomeagao (para em seguida negé-la pela ambi- giiidade). Vamos instalando com relacio 4 palavra uma certa desconfianga, porque ¢ portadora de um mistério ¢, quanto mais se busca fixé-la, mais ela impoe o seu duplo ¢ seu mistério. Pensemos no mundo hebraico, por exemplo, ¢ na fixagao dos mandamentos nas cébuas da lei; elas séo cada vez mais portadoras de alguma coisa inacessivel, para além do escrito Nesse primeiro olhar sobre a palavra escrita, ela se dé como epifania, palavra divinizada, que sé tem sentido se for revelada; 0 sentido original nao é possivel sendo como um deciframento, Isso nao ocorre s6 em relagio 4 palavra religiosa. No mundo latino, que se expandiu durante pelo menos um milénio sobre a Europa Ocidental, tudo o que era importante, desde a medicina até a poesia e as leis, estava escrito em latim, uma lingua que 0 povo nio dominava. Portanto, os neolatinos nao tinham acesso ao latim dos que legislavam, dos que poetavam, ¢ é essa a lingua que, mesmo incompreenstvel, vai sendo ensinada aos meninos ¢ aos jovens, a0 longo do periodo medieval nas escolas em que aprendiam a ler; importava saber recitar Ovidio, mesmo no sendo capaz de entender o que se recitava. A oratéra tinha um peso to extraordindrio nesse mundo que a escrita, em ver de avangar, chega a refluir a um ponto tal que voltou-se aos sinetes como assinatura, ¢ a oralidade ganha um espago extraordinario, Ness? momento em que a palavra corresponde a uma leitura de deciframento, mais do que isso, de revelagio, hd a prevaléncia da onalidade entre 4 grande populacao. Mais adiante, nas Confissies, de Santo Agostinho, por exemplo, pensando a questo do mistério da trindade, ele se vé na imagem de um menino, um infance. Vale a pena voltarmos a palavra infante. in-fans, 0 que nfo tem © sopro, © que nia tem fala, 0 que nao fala, Eo mening recede a revelagao: “E mais ficil colocar o mar inteiro com um dedal no faro do seu dedo na arcia do que compreender o mistério da palavra divina.” Nessas confisses, as memdérias de Santo Agostinho nao sio apenas suas memorias, 40 as memérias da revelagio, Tis séculos depois, vamos encontrar essa palavra ja muito mais copiada, muito mais repetida; 0s mosteiros estavam disputando os pergaminhos, 08 eSdices para as suas e6pias ~ Umberto Eco passeou pelo emaem O nome de rosa. De novo, a palavra aparece como uma escrita cequardada, enigmatica, nio para ser distribuida, compreendida, mas como matria de poder. Mesmo que leitura tenbia deslizado sobre a nogio de revelagao € deciframento do mistério, vai ainda guardar a necessidade de ser protegida, no sé sob a forma das bibliotecas fechadas, mas da propria palavra impedida de circular. Recordemos a experiencia de Galileu entre seus inquisidores ou a experiéncia de Colomby em Salamanca, por cxemplo, ¢ percebamos como os sibios salmancinos trataram a “hipotese” do descobrimento e que reflexos isso rém sobre Colombo ¢ suas viagens posteriores, Nesse momento, a palavra ji tem a possibilidade de obter explicadores, mas, aurorizados, os que podem fazer a leitura ~ 0 poder aparece entio associado a essa delegacio para interpretar ¢ les. O eixo de referencia ali sid na autoridade de quem emite a palavra, est no autor. E como o auiof, em principio, é divino, aquele que fala em nome do sagrado ou em nome do poder, estd autorivado (tem autoridade) para comar verdadeira A imerpretacio € legivel o texto. Depois, com a invengio da imprensa, a palavra jf pode circular para mais longe dos controladores. A Biblia esti impressa e hd, em seguida, a Gisio da Igreja; catélicos ¢ protestantes dividem-se diamecralmence por Gust da “leitura” da Biblia, de sua circulagio, das interpretagdes diante tos novos leitores, que criam suas leituras. Esse momento ilustra como a leitura foge ao controle do poder — longo controle da interpretagio. Com a emergéncia do movimento Politico-ideolépico, ndo-religioso, o iluminismo, o texto passa a ser Cabalhado na Perspectiva do seu deciframento por meio da capacitagio 99 100 do leitor para a explicagio. © texto tem um sentido prévio, original; ele tem na sua esséncia uma mensagem a ser preservada e difundida, e hi quese saber desses segredos para se fazer a mediagio. E exatamente ‘quando emergem, por exemplo, os critics literdrios, os mediadores do texto que agora ji nao é sagrado, ¢ literdrio: € tempo do romance, da histéria do homem comum. Uma nova nogio ¢std se instaurando, vindo aos poucos, a partir da Renascenga, que € a nogio de sujeito, mas de sujeito cognoscente, 0 sujeito cartesiano, que olha o mundo ¢ pode dizé-lo, pode pensi-lo: “Penso, existo ¢ organizo o mundo.” A postura iluminista vai gerar, por outro lado, uma demanda extremamente positiva: a de susctar a distribuigdo do alfabeto, a distribuigao da letra. As escolas comecam a ser multiplicadas ¢ hd uma valorizagao da leitura que hoje podemos chamar de didética, que informa, dé 0 recado, condiciona a interpretagio, condicionada pela razio légica, pelo determinismo positivista. A sociedade do século XX entrou em crise com a fragmentagio do sujeito pela forga do inconsciente. A nogio de toralizagio que o iluminismo traz, a ilusio da generalizagéo, comeca a ruir, Quando Freud penss 0 sujeito construido a partir de seu fracasso, a partir da histeria, por exemplo, est ferindo de morte o sonho da Psicologia que organiza o mundo ¢o prescreve segundo comportamentos adequados. Este sujeito terd de ser construido de dentro, a partir da sua singularidade ~ exatamente da sua fragmentacao, recompondo-se a partir do inconsciente. E interessante que mesmo depois da assungio desse sujeito, depois de Freud, de Nietzsche, de Marx, a idéia de deciframento das estruturas permanece. Essa nogao da forga estrurural da linguagem organizada, que substitui aquela palavra auroral, mantém a nogao do sentido intrinseco, imanente. O texto detém sua verdade, ¢ a andlise sera o exercicio de simulacro do texto, A reconstrugio segundo certas regras leva a nogio de que o sentido é prisionciro da forma e da estrutura. Esta leitura deixa de interessar pelo seu distanciamento do hemem ¢ da histéria ¢ busca outro caminho de relacio obra/leitor, através do delineamento do sujeito do desejo, do sujeito do inconsciente. Pensar nesse sujeito que é construido no contato com o objeto, se}? quadro, filme, peca de teatro, musica, seja um romance, um conto, € pensé-lo numa relagio interativa, texto-receptor; mas receptor de que hatureza, se feceptores — contemplativos, passivos — temos podido ser 0 tempo todo? Ainteracao demanda/agio, nfo apenas reagio, demanda/interpretagio, nao apenas explicagio/compreensio de textos, O texto demanda o leitor e seu repercério de “leituras”. Alguns alunos, no primeiro ano de faculdade, perguntam: “Mas por que eu tenho que ler /acema Em liveo ulerapassado, eu néo tenho mais nadaa ver com aquele pais e com aquele mundo,” E ng medida em que os alunos nio podem estabelecer uma relagdo com Iracema, Iracema vai ser cratada por eles como o personagem foi tratado por Martin. E se 0 leitor nao se dispée a uma compreensio interativa, a contribuigao do romance para pensar o pals vai se achar bloqueada, ainda que dispontvel. A obra ¢ recuperada pelo leitor na historicidade de ambos. Pensar essa relagao em novas perspectivas é pensar a necessidade de escolha explicita de uma mediagao, da figura de um interpretante, isto & pensar a relagio da leitura no mais como deciframento autorizado, mas pensi-la agora como interpreragio, 0 que supde nao apenas o intérprete, mas 0 interpretante; supdc o instrumento do recorte pelo qual meu texto se articula com o texto do outro. Porque nao se vai sozinho ao encontro, nao se vai nu, mas com toda carga de memoria que se tem, e das prdprias experiéncias. Evidentemente €um encontro que vai produzir mais do que ao longo dos milénios tentou- se preservar: 0 uso “certo” dessa informagio. E toco na questdo das utopias. Como é que se constréi um pais, como é que se constréi essa nagao e sua cidadania sem ter sido possivel antes construir esse sujeito de si mesmo, esse sujeito que estamos chamando “do inconsciente”, para apropriar a leitura de si mesmo? Hé uma pesquisa desenvolvida por universidades de cinco paises do Primeiro Mundo, encomendada por seus governos, sobre os impasses do desenvolvimento cientifico-tecnolégico demandando novas descobertas sobre 0 uso do cerébro. Do ponto de vista quimico-bioldgico, ¢ preciso fazer acionar 0 que, no cerébro, estd “dormindo”. E embora nao haja ainda uma conclusio, o resolver da légica cerebral esta sendo pesquisado pela linha da sensibilidade, da intuiao ¢ da criagdo, A outra ponta da Pesquisa aponta para um impasse na prosperidade econdmica— eles usam essa expressiio ~ porque o homem deixou de ser criativo, deixou de ser sujeico da sua linguagem; explicicamente, ele nio ¢ capaz de ler, diante de qualquer texto, ou situagao, e de criar sua resposta. Eles reconstituem o conceito de leitor como aquele que suplementa o texto, para the dar sentido, — tal como Iser na Estética da Recepgao — apontava vazias como tol rte do “cheio” do texto. A leitura 56 € possivel como um suplemento: um texto do século XVII sé nos pode mover no século XX se realizarmos seu suplemento como leitura, ao invés de tentarmos preencher o vazio constituido no século XVII. Essa nogio nos remete de novo 4 necessidade de pensar a constituigio do sujeito a partir da capacidade de se organizar na linguagem. Porque é a linguagem que deve emergir 4 consciéncia na contemporaneidade; enquanto nao conseguirmos pensar © que falamos, nao vamos conseguir pensar © que fazemos. F claro que o saber, © pensar ¢ 0 fazer sio muito amalgamados: nds € que os vemos separadamente, determinando que quem pensa nao faz ¢ quem faz nio pode pensar — nao s6 na escola, mas na propria universidade. No entanto, as praticas ¢stdo assentadas sobre “pensamentos” que s6 aparecem como “linguagens”. Por isso, o tempo todo lemos, interagimos ¢ sé ai escrevemos a (nossa) hist6ria. Termino voltando a uma cena de um filme, que ndo ¢ 0 200/, maso 2010, lancado logo depois. No primeiro filme, Hall, 0 computador, desligado porque mata aparentemente os astronautas que estio fora da nave, sendo capaz de tomar uma decisio nao-prevista no programa. No 2010, 0 “pai” de Hall volta a nave e as luas de Jtipiter. Dessa vez, 0 com- putador vai ser convidado a suicidar-se porque, para salvar novos astro- nautas, ele tem que se perder. Surge o impasse para quem construiu o computador ¢ estabeleceu, para perguntas claras, respostas claras — ha possibilidade de ele se perguntar, juntando as informagGes, sobre sua propria morte, seu “préprio suicidio”. Embora isso nao esteja em nenhuma das falas do filme, gostaria de pensar isso: argumento para trabalhar a racionalidade do computador para além do limite da logica mecanica é tornar ainceligéncia sensivel, [ncerpretar muiras vezes é ver 0 conigio da inteligéncia. A questio da leitura na contemporaneidade se coloca na confluéncia das incepretagoes, na urgéncia de transformar meros receptores em leitores, sensiveis as menores vibragdes légicas, de modo que textos ¢ discursos deflagrem nele a mobilizagio dos sujeitos histéricos. Nao estamos mais no espago da interpretacao exegética, mas no espago da comunicacio expressiva, da interagio entre obra e leitor. Seo controle dos sentidos se exercia “de fora” ¢ “da origem’, agora sua gestasio depende da operosidade na relagio entre o sujeito € set fempo, 0 sujeito ¢ sua meméria. Nesta dimensio, ler é condicio de estar no mundo, criando-o outra vez 102 Sugest6es de leitura: RICOEUR, Paul. O conflico das imenpresaster: ensaios da hermenéusiea Rio de Janeiro: Imago, 1978. SCHOLES, Robert. Prorocolos de leitura. Lisboa: Edigbes 70, 1989. ASSIS SILVA, Ignacio (org.). Corpo e sentido: a escusa da sentivel $4 Paulo: UNESP, 1996 GUMBRECHT, Hans Ultich. Modernizagto des sentides. Sao Paul Fe, 34, 1998. JAMESON, Frederic. O inconsciente politico: a narrativa como ato socialmente simbélico. Sao Paulo: Atica, 1992. SANTOS, Boaventura de Souza. Inerodugdo a ciéncia pés-moderna Rio de Janeiro: Graal, 1989. HABERMAS, Jurgen, Dialética ¢ hermenéutica, Porto Alegre: L&¢PM, 1987. VATTINO, Gianni. O fim da modernidude: niiliomo e hermentutica na cultura pés-moderna. Lisboa: Ed. Presenga, 1987 FREUD, Sigmund. A incerpresagiio dos sonbos. Imago, (987 GADAMER, H-G. Verdade ¢ método. Petropolis: Vozes, 1989. 103

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