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© Editions Gallimard, 1990 ‘Mal do orignal ances. L'ngeton du quatden~ 1. arts de Direitos de publicagio em lingua portuguesa: Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luts, 100 25680:900 Petrépolis, RJ Brasil Esta obra ¢ uma nova edigfo de Arts de faire de Michel de Certeau, primeiro tomo de L'invention duu uote nash générale d'éditions, Collection 10-18, 1980; segundo tomo: Habiter, cuisiner, por Luce Glard e Pierre Mayol) ‘cooRoewicto EDTaRLAL: “etn ra ‘coaRnenaGho DUSTRLAL: Jou Le Cae sorror: tose De Fale ‘somo De ARTE: (mar Sores somonacsor essere /0 Diegremasle Rosana Lowes “Spero: Vlies Roiaues ISBN 2.07-0325768 (edigao francesa) ISBN 85.326.1148-6 (edicto brasileira) | | ‘te fl compost reso ma fins gins a Era Vines Uda, AW BA) Texto BL a Siete — — _ se Ae SUMARIO Apresentagdo de Luce Giard, 9 ‘Mais que das intencées, a paisagem de uma pesquisdin 35 | 5 | INTRODUGAO GERAL, 37 A produgdo dos consumidores, 38 ‘Taticas de praticantes, 45, PRIMEIRA PARTE UMA CULTURA MUITO ORDINARIA Dedteatéria, 57 1. UM LUGAR-COMUM: A LINCUAGEM ORDINARIA, 59 “Cada um” e "Ninguém", 60 Freud e 0 homem ordinério, 61 0 petito e o ilésofo, 64 (© modelo Wittaenstein da inguagem ordindria, 67 Uma historicidade contemporinea, 72 IL, CULTURAS POPULARES, 75 ‘Uma “arte” brasileira, 76 da meméria. Um s6 exemplo. De uma histéria bem conhecida, classificével portanto, um detalhe “de circunstincia” pode modificar radicalmente 0 alcance. “Recitéla” é jogar com esse elemento a mais, escondido no estereétipo feliz do lugar comum. 0 “nada fixado no quadro que Ihe serve de suporte faz ue esse lugar produza outros efeitos, Quem tem owvidos para ‘ouvir, que cugal O ouvido apurado sabe discernirno dito aquilo que al € marcado de diferente pelo ato de dizé (lo) aqui e agora, endo se cansa de prestar atencao a essas habilidades astuciosae docontadon” Serd preciso determinar melhor os giros que mudam em ocasides as histérias do legendério coletivo ou da conversagao cotidiana e que dependem numa grande parte da retdrica, uma ver mais." Mas jf se pode ter como hipStese nical que, na arte de contar as maneiras de fazer, estas se exercem por si mesmas. E também exemplar que Detienne e Vernant se tenham feito 0s contadores dessa “inteligencia em dédalos”, na feliz expres. sto de Francoise Frontisi." Essa prética discursiva da historia 20 mesmo tempo a sua arte e o seu discurso, No fundo, tudo isso é uma histéria muito antiga. O velho Arist6teles, que néo faz precisamente o papel de um dancarino de corda, gostava de se perder no mais labirintico e no mais Sutil dos discursos. Tinha entéo 2 dade da meétis: “Quanto mais solitério ¢ isolado me torno, tanto mais gosto das historias”. ® E dera admiravelmente a razéo para isso: como no velho Freud, era uma admiraco de conhecedor pelo tato compositor de harmonia e por sua arte de fazé-lo de surpresa: “o amante do mito em certo sentido um amante da sabedoria, pois o mito se compée de admiragoes”.”® 166 TERCEIRA PARTE Prdticas de espago INTRODUCGAO GERAL A pesquisa publicada parcialmente nestes dois volumes nasceu de uma interrogacao sobre as operagées dos usudrios, supostamente entregues a passividade e a disciplina. Mais que de tratar um tema tio fugidio e fundamental, tratase de tornélo tratdvel, ou seja, fornecer, a partir de sondagens ¢ hipéteses, alguns caminhos possiveis para andlises ainda por fazer. A meta seria alcangada se as praticas ou “maneiras de fazer” cotidianas cessassem de aparecer como o fundo noturno da atividade social, e se um conjunto de questées tedricas e métodos, de categorias e de pontos de vista, perpassando esta noite, permi- tisse articulé-la. © exame dessas praticas ndo implica um regresso aos individuos. O atomismo social que, durante trés séculos, serviu de postulado histérico para uma anélise da sociedade supde ‘uma unidade elementar, 0 individuo, a partir da qual seriam compostos os grupos ea qual sempre seria possivel reduzios. Recusado por mais de um século de pesquisas sociolégicas, econdmicas, antropolégicas ou psicanaliticas (mas, em histéria, isto seria um argumento?), tal postulado se acha fora do campo 37 leste estudo. De um lado, a andlise mostra antes que a relagéo (sempre social) determina seus termos, e nio 0 inverso, e que ada individualidade € 0 lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditéria) de suas determina. G6es relacionais. De outro lado, e sobretudo, a questio tratada se refere a modos de operacio ou esquemas de agio endo diretamente ao sujeito que 0 seu autor ou seu veiculo. Ela visa uma l6gica operatéria cujos modelos remontam talves as asticias multimilenares dos peixes disfarcados ou dos insetos camuflados, e que, em todo 0 caso, € ocultada por uma racionalidade hoje dominante no Ocidente. Este trabalho tem Portanto por objetivo explicitar as combinatérias de operacées ue compdem também (sem ser exclusivamente) uma “cultura” € exumar os modelos de ago caracteristicos dos usudrios, dos quais se esconde, sob 0 pudico nome de consumidores, 0 estatuto de dominados (0 que ndo quer dizer passivos ou déceis). 0 cotidiano se inventa com mil maneiras de caga nao autortzada, Dado o estado necessariamente fragmentério desta pesqui- 2, parece ‘itil apresentar uma vista de conjunto dela, uma espécie de prospecto, Esta paisagem, vista do alto, oferece apenas 2 miniatura de um quebracabega onde ainda faltam muitas das pecas, 1, A PRODUCAO DOS CONSUMIDORES Surgida de trabalhos sobre a “cultura Popular” ou sobre as marginalidades', a interrogacdo sobre as prdticas cotidianas foia principio pecisada negativamente pla hecessidsde demas localizar a diferenca cultural nos grupos que portavam a bandeira da “contracultura” - ‘grupos jd singularizados, muitas vezes privilegiados e em parte folclorizados - e que eram apenas sintomas ou reveladores. Mas trés determinagGes posi- tivas, acima de tudo, permitiram articuléla. 38 Muitos trabalhos, selene notéveis, dedicamse a es Seances seja as representagées seja os comportamentos de uma socie- le. Gragas ao conhecimento desses objetos sociais, parece: oti ¢nscessito baller io qué dels ne ot grupos ‘ow os individuos. Por-exemplo, a andlise das imagens difundi- das pela televisio (representagdes) e dos tempos passados idiante do aparelho (comportamento) deve ser completada pel estudo daquilo que o consumidor cultural ‘Yabrica” durante essas horas e com essas imagens. 0 mesmo se diga no que diz respeito a0.uso do espaco urbano, dos produtos comprados no supermercado ou dos relatos e legendas que o jornal distribu: A Sfobricacao” que se quer detect postica® - mas escondida, porque ela se dissemina nas regides “delinidas e ocupadas pelos sistemas da “producio” (televisiva, urbanistica, comercial ete) ¢ porque a extensio sempre mais totalitéria desses sistemas nao deixa aos “consumidores” um lugar onde possam marcar 0 que fazem com os produtos. A ‘uma produgio racionalizada, expansionista além de centraliza- da, barulhenta e espetacular, corresponde outra producéo, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, € dispersa, mas a0 mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisivel, pois ndo se faz notar com produtos préprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econémica dominante. Ha bastante tempo que se tem estudado que equivoco rachava, por dentro, 6 “sucesso” dos colonizadores espanhis entre as etnias indigenas: submietidos e mesmo consentindo na domina¢éo, muitas vezes esses indigenas faziam das agées rituals, representagdes ou leis que Ihes eram impostas outra ‘oisa que no aquela que o conquistadorjulgava obter por elas. ‘08 indigenas as suibvertiam, nfo rejeitando-as diretamente ou rmodificando-as, mas pela sua maneira de usésas para fins e em fungéo de referéncias estranhas ao sistema do qual néo podiam fugir. Elas eram outros, mesmo no seio da colonizacao que os “assimilava” exteriormente; seu modo de usar a ordem domi- 39 nante exercia o seu poder, que nao tinham meios para tecusar; esse poder escapavam sem deixé-lo, A forca de sua diferenga ‘se mantinha nos procedimentos de “consumo”. Em grau me- ‘Ror, um equivoco semelhante se insinua em nossas ‘Sociedades: com 0. uso que os meios “populares” fazem das culturas difundidas e impostas elas “elites” produtoras de linguagem. Dresenca ¢ a circulago de uma representagao (ensinada como 0 cédigo da ‘promogao ‘sécio-econdmica por ‘Pregadores, Por educadores ou por vulgarizadores) no indicam de modo algum o que ela € para seus usudrios.,£ ainda necessiiio Gnalisar @ sua manipulacéo pelos praticantes que nfo ¢ fabri. ‘semelhanga entre a Produgao da imagem e a Produgdo secun- daria que se esconde nos processos de sua utilizagao, A nossa pesquisa se situa nessa diferenca ou nesse distan- ciamento, Poderia ‘ter como baliza tedrica a ‘construgdo de i fio e uma sintaxe recebidos. Em lingijstica, a “performance” nio € 3 “Cor icia”: 0 ato lde falar (e todas as téticas enunciativas que implica) nio pode lser reduzido ao conhecimento da lingua. Colocando-se na | Perspectiva da enunciag&o, objeto deste estudo, Privilegia-se 0 ato de falar: este opera no campo de um sistema lingiistico; coloca em jogo uma apropriagdo, ou uma reapropriacdo, da lingua por locutores; instaura um presente relativo a um momento e a um lugar; e estabelece um contrato com o outre (o interlocutor} nema-rede-e-tugare le relagées, | quatfo caracteristicas do ato enunciative ‘poderaoencontrar-se em muitas outras praticas (caminhar, cozinhar etc,).. Neste paralelo se indica ao menos uma visada, paraleco que s6,tem valor parcial, como se verd. Supée que & maneira dos povos, indigenas os usudrios “fagam uma bricolagem" com e na ‘economia cultural dominante, usando inumeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses préprios e suas préprias regras, Desta atividade de formigas é mister. descobrir 08 procedimentos, as bases, os efeitos, as possibilidades, 40 Os motos de proceder da Uma outra referéncia preci- thor uma segunda de- criatividade cotidiana terminagse desta pesquisa, 7 Em Vigiar e Punir, Michel substitul a andlise dos aparelhos que exercem o poder fond tee nettle localizaveis, expansionistas, tepressivas ¢ leans) pela dos “dspostvos” que “vampliaram” a nat tuigdes e reorganizaram cl landestinamente 9 Sunlonament af *r: procedimentos técnicos “mint: Ceara ae tars tamatto tS operador de uma “vigilancia” generalizada.* Problematica bem ove Rr en aw er on sale ‘ tia 0 aparelho produtor (da disciplina), ain que, aco" tha ponha'em evidendiao sistema de uma crepes: so” e mostre como, por trés dos bastidores, teenologias mudas determinam ou cutto-ircuitam as encenagbes institucionais. Se é verdade que por toda a parte se estende ese precisa a rede da “vigilancia”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade nao se reduz a ela: que procedimentos popu lares (também “minsculos” e cotidianos) jogam com os meca- nismos da disciplina e nao se conformam com. ela. a nao ser para alterdlos; enfim, que “maneiras de fazer’ formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados"?), dos processos mudos que organizam a ordenagao sécio-poitica. Essas “maneiras de fazer” consttuem as ail peas elas i jo espago organ us uguiios eepropriam do espaeo orga : trarias_as abordadas no livro de Foucault: SS egy trata de distinguir as operagdes quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocrati| cas ¢alteram o seu funcionamento por uma multplicidade de| “taticas” articuladas sobre os “detalhes” do cotidi in; oe rias, por no se tratar mais de precisar como a violéncia ordem se transforma em tecnologia disciplinar, mas de exumar as formas subrepticias que so assumidas pela criatividade dispersa, tética e bricoladora dos grupos ou dos individuos presos agora nas redes da “vigilancia”. Esses modos de proce- 41 der e essas astiicias de consi oe tc wumidores compem, no lim rede de uma antdscplina’ que € tema deste [to Pode-se supor “que essas A formalidade das praticas _0Per2Gbes multiformes € fragmentdrias, relativas a ocasibes € Sj hunt ods nos apes dquo or otoe usar, eortantodesrovidas de ideoloias ou de istituigdes i iprias, obedecem a regras, Noutras palavras, deve haver uma \6gica dessas priticas. Isto significa voltar a0 problema, jé antigo, do que é uma arte ou ‘maneira de fazer”. Dos gredos a Durkheim, passando por Kant, uma longa tradi¢do, tentou precisaras formalidades complexas (e nio de todo simples ou ‘pobres”) que podem dar conta dessas operagées.° Por esse prisma, a “cultura populay” seapresenta diferentemente, assim essencialmente em consumos combinat numa maneira de agit, uma arte de utilizar. Para apreender a formalidade de: i de oistipos de enqctes As primetes nas descievesdoras anfase a algumas maneiras de fazer selecionadas segundo 0 interesse que apresentavam na estratégia da andlise, eem vista de obter variantes bem diferenciadas; préticas da leitura, prat- cas de espagos urbanos, utilizacio das ritualizagdes cotidianas reempregos e funcionamentos da meméria através das “auto. ridades” que possbilitam (ou permitem) as praticas cotidiana etc. Além disso, duas monografias mais pormenorizadas tentam seguir em seus entrelacamentos as operagées préprias seja & recomposicao | de um espaco_ (o Bairro da Croix Rousse, em Lido) por praticas familias, eja as tdticas da arte culindria, que organizam 20 mesmo tempo uma rede de relagdes, “bricola- se poéticas e um reemprego das estruturas comerciais* | segunda série de enquétes utili lit ie tifica suscetivel de fornecer hipéteses que mane a2 sério a légica deste pensamento que néo se pensa. Trés campos ‘ferecem um interesse particular. De um lado, trabalhos socio- Tégicos, antropolégices, e mesmo histéricos (de E. Goffman a P. Bourdieu, de Mauss a M. Detienne, de J, Boissevain a E. ‘Laumann) élaboram uma teoria dessas praticas, misto de ritos ¢ bricolagens, manipulagdes de espagos, operadores de redes.” De outro lado; desde J. Fishman, as pesquisas etnometodol6gi- cas e sdciolingitisticas de H. Garfinkel, ‘W: Labov, H. Sacks, E.A. Schegloff etc: destacam os processos de interagdes coti- dianas relativas a estruturas ‘de expectativa, de negociacao € improvisagéo préprias da lingua ordinéria. ‘.- Enfim, além das semiéticas e das filosofias da “convenio” de.(0. Ducrot a D. Lewis),"" devese interrogar as légicas pesadas formalizadas e sua extensdo 2 filosofia analitica, nos Eominios.da acdo (C.H. von Wright, A.C. Danto, RJ, Berns- tein)” do tempo (AN. Prior, N. Rescher eJ. Urquhart)s ou da nodalizagio (GE. Hughes e MJ. Cresswell, AR. White). Pesado apareiho que procura captar a dispersividade ¢ 2 plasticidade dos ‘enunciados ordindrios, combinagdes quase ‘orquestrais de partes légicas (temporalizaco, modalizagao, injungdes, predicados de ‘agao etc.) cujas dominantes sao suces- sivamente determinadas pela cireunstancia e pela urgéncia ‘conjuntural. Um trabalho andlogo ao desenvolvido por N. ‘Chomsky para as préticas orais da lingua deve empenhar-se por restituir a sua legitimidade logica e cultural as préticas cotidia- has, ao.menos nos. setores ainda limitados, onde podemos dispor de instrumentos para estudélas. Pesquisa complexa porque essas praticas volta e.meia cexacerbam e desencaminham as nossas légicas. Encontra os Jamentos do poeta e, como ele, combate 0 esquecimento: "E eu me esquecia do acaso da circunsténcia, 0 bom tempo ou a tempestade, 0 sol ou ofrio,o amanhecer ou o anoitecer, 0 gosto dos morangos ou do abandono, a mensagem, ouvida a melas, a manchete dos jorr ‘a voz ao telefone, a conversa mais ‘Snédina, o homem otta mulher andnimos, tudo aquilo que fala, rrumoreja, passa, alora, ver ao nosso encontro”."* A marginalidade de Essas trés determinagSes possi uma maioria Dilitam uma travessia do campo cultural, travessia definida por uma problemética de pesquisa e Pontuada por sondagens localizadas em func de hipdteses de trabalho a verficar. Bla tenta balizar os tipos de operacves que caracterizam 0 consumo na rede de: uma economia’ e Teconhecer nessas préticas de apropriacao ‘os indicadores da criatividade que pulula justamente onde desaparece o poder de se dar uma linguagem prépria, WD oe A figura atual de uma marginalidade néo € mais a de Pequenos grupos, mas uma marginalidade de massa; atividade cultural dos néo produtores de cultura, uma atividade nio assinada, nao legivel, mas simbolizada, e que é a ica ngs @ todos aqueles que no entanto pagam, comprando: barb brodutosespetéculos onde se soletra uma economia produti- vista. Ela se universaliza, Essa marginalidade se tornou maioria | silenciosa. [sto nao quer dizer que ela seja homogénea. Os pioctadd pelos quais se efetua 0 reemprego de produtos ligados juntos em uma espécie de lingua obrigatéria tém funcionamentos relativos a situagdes sociais e a relagdes de forcas, O trabalho, dor imigrado nao tem, diante das imagens televisivas, o mesmo espago de critica ou de criagéo que o quadro francés médi No mesmo terreno, a fraqueza em meios de informagao, em bens financeiros e em “segurancas” de todo o tipo exige ‘um acréscimo de astticia, de sonho ou de senso de humor. Dispo- sitivos semelhantes, jogando com relagdes de forcas desiguais, nao geram efeitos idénticos. Dai a necessidade de diferenciar as “agdes” (no sentido militar do termo) que se efetiam no interior da rede dos consumidores pelo sistema dos produtos, ¢ estabelecer distingdes entre as margens de manobra permiti- das aos usudrios pelas conjunturas nas quais éxercem a sua “arte”. A relacio dos procedimentos com os campos de forga onde intervém deve portanto introduair uma anélise polemol da cultura. Como o direito (que € um modelo de cultura), 2 hy articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou Specs cree do mas fares Ela se desenvolve no elemento de tensdes, e muitas.vezes de violéncias, a quem fornece cequilibrios simbélicos, contratos de compatiiidade eoumoro- issos-mais: ou-merios temporérios. A c d engenhosidades do raco para tirar partido do forte, vio desem- bocar entao em uma politizacéd\das praticas cotidianas, 2, TATICAS DE PRATICANTES, sma, demasiadamente éicotomista, das relagbes que ee coteadores mantém com os dispositivos da broducéo, se diversfeou-no decree do trabalho segundo tres modos: Desquis das problemdticas suscetiveis de articular omateri coletad: descrico de algumas prticas (ler, far, caminhar, habitar, cozinhar etc.), consideradas significativas; enraiso andlise dessas operacées cotidianas a setores cientificos apa- 3s por Outro tipo de légica. Ao aprésentar os passos dados nessas trés direcdes, 0 propésito de conjunto ganha diversos matizes. Produtores desconhecidos, 0s consumidores produzem por suas praticas signifidan- te sepa cols que podeia figura ‘das “linhas' de erre” deserthadas pelos jovens autisade?: Deligny.’* No espaco tecnocraticamente —- do, escrito e funcionalizado onde crculam, as suas traet6ras formam frases imprevisives, “trilhas” em part ilegtveis. sab "3 selam composts com os vocebulros de inguas eeeldas ¢ contnuem submetiae a sntanesprescrs, elas desenham as asticias de interesses outro} e de desejos que néo sao ner . determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvol a? . 10 a estatistica praticamente nao leva isso em conta, odie a contenta em classificar,calcular e tabular as unida- des “léxicas”, de que se compdem essis trajetbrias, mas as quais Trajetérias, tdticas'e retoricas ‘ néo se reduzem, e em fez#lo em fungio de categori taxionomias que’the so prépras Ba consegue rears material dessas Praticas, e ndo a sua forma; ela baliza os elementos utilizados e néo o “fraseado” devido & bricolagem, 4 inventividade “artesanal’, & discursividade que combinam estes elementos, todos recebidos, e de cor indefinida. Decom- pondo essas “vagabundagens” eficazes em unidades que ela mesma define, recompondo segundo seus cédigos os resulta dos dessas montagens, a enquéte estatistica s6 “encontra” ° homogéneo, Ela reproduz o sistema ao qual pertence e deixa fora do seu campo a proliferago das hist6rias e operagdes heterogéneas que compéem os patchworks do cotidiano. A forca dos seus célculos se deve a sua capacidade de dividir, mas é Precisamente por essa fragmentacao analitica que perde aquilo que julga procurar e representar.’ A “trg ia” evoca um movimento, mas i ale! , mas resulta ainda de uma pie sobre um plano, de uma redugto,Tralasede uma Tanscrgéoc Ura ‘© olho pode dominar) é substitut Por un operacio; uma linha reversivel (que se pode ler nos lois sentidos) dé lugar a uma série temporalmente irreverstvel; um trago, a atos. Prefiro entdo recorr: istingac 8350, er auma taticas e estratégias, cia se uhao de estat” o cleo das rages de foras que se toma possivel partir do momento em_que-um sujeito de Guerer © poder € isoldvel de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz'de’ser-vifcunscrito como um prdprio e portanto capaz de servir de base a uma gestdo de suasrelagées com uma exterioridade distinta. A nacionalidade politica, econémica ou cientifica foi construida segundo esse modelo estratégico, Denomino, ao contrario, “tética” um céleuk ac * contar com um préprio, nem”portant ee distingue 0 outro como total apreend&lo por inteiro, sem poder retélo & distinia, Ela nfo Aispde de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansBes e assegurar uma independéncia em face das cizcuns. tancias. O “préprio” é uma ria do lugar sobre o tempo, Ao 46 contrério, pelo fato de seu ndolugar, a tética depende do tempo, vigiando para “captar no vo" possibilidades de ganho. O que ela ganha, nao o guarda. Tem constantemente que. jogar ‘com.os acontecimentos para os transformar em “ocasides”. ‘Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forgas que Ihe sio estranhas, Ele'o consegue em momentos oportunos onde combina elementos heteroxéneos (assim, no supermercado, a donadecasa, em face de dados heterogéneos e méveis, como as provisbes no freezer, os gostos, apetites ¢ disposides de Animo de seus familiares, 0s produtos mais baratos suas possiveis.combinagées com o que ela jé tem em casa etc.), mas ‘a sua sintese intelectual tem por forma nao um discurso, mas a propria deciséo, ato e maneira de aproveitar a “ocasiao”. ‘Muitas praticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer com- pras ou preparar as refeigbes etc.) sio-dotipa tética. E também, de modo mais geral, uma grande parte das “maneiras de fazer”: vitérias do "fraco” sobre o mais “forte” (os poderosos, a doenca, a violencia das coisas ou-de uma ordem etc.), pequenos suces- 0s, artes de dar golpes, asticias de “cagadores”, mobilidades da mo-de-obra; simulagées polimorfas, achados que provocam euforia, tanto potticos quanto bélicos. Essas performances operacionais dependem de saberes muito antigos. Os gregos as designavam pela métis.”” Mas elas remontam-a tempos muito mais recuados, a imemoriais.inteligéncias com as asticias € simulagdes de plantas e de peixes. Do fundo dos oceanos até as ruas das megal6poles, as téticas apresentam continuidades, ce permanéncias. Em nossas sociedades, elas se multiplicam com © esfarelamento das estabilidades locais como se, nao estando: mais fixadas por uma comunidade circunscrita, safssem de Grbita e se tornassem errantes, e assimilassem os consumidores a imigrantes em um sistema demasiadamente vasto para ser 0 deles € com as malhas demasiadamente apertadas para que pudessem escaparlhe. Mas introduzem um movimento brow- niano neste sistema. Essas t4ticas manifestam igualmente a que ponto a inteligencia 6 indissocidvel dos combates e dos prazeres. cotidianos que articula, ao passo que as estratégias escondem sob céleulos objetivos a sua relagio com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar préprio ou pela instituicao. ar Para diferenciar os tipos de téticas, podem: models na retrica, Nada desutpreendente pois de wn la, ela descreve os “rodeios” de que uma lingua pode'ser simulta, neamente 0 lugar e 0 objeto e, de outro, essas manipulagdes sto relativas 8s ocasides ¢ as maneiras de mudar (sedezir, Persuadir, utilizar) 0 querer do outro (0 destinatdtio) Po. essas duas razdes, a retrica ou cigncia das “maneiras de falar” oferece um aparelho de figuras tipicas para’a andlise das ‘maneiras cotidianas de fazer ao passo que ela, em principio, se acha_ -excluida do discurso cientifico, Duas Ie jicas da ago (uma tatica eoutra estratégica) se depreendem dessas duas maneiras de praticar a linguagem. No espaco da lingua (como no dos Jogos) uma sociedade explicita mais as regras formais do agir € os funcionamentos que as diferencia. No imenso corpus ret6rico con: rado’a arte i de fazer, 0s sofistas ocupam um Tala pebleesia de vista das téticas, Tinham eles como principio, segundo’ Corax, tornar “mais forte” a posicdo “mais fraca” e pretendiam Possuir a arte de vencer o poder por uma certa mancira de aproveltar a ocasiao,” As suas teorias inscrevem ali as tticas em uma longa tradigao de reflexdes sobre as relacdes que a razio mantém com a a¢do e com o instante. Passando pela Arte # Guerra de Shun Tau na China ou pela antologia arabe do den fren esta tradicao de uma k articulada em njuntura'¢ a vont ing ple tiea oe itade do outro conduz até a sécio” Para descrever essas préti- cas cotidianas que produ- em < capitalizar, isto é, sem dominar o tem; unhase um ponto de partida por ser o foco exorbitad® de cultura contempordnea e de seu consumo: a letura, Da telev so ao jornal, da publcidade a todas as epifanias mereadol6g cas, a Nossa sociedade, canceriza a vista, mede toda a realidade Bor sua capacidade de mostrar ou de se mostrar e transforma as comunicagdes em viagens do olhar. E uma epopéia do olho € da pulsio de ler. Atéa economia, transformada em “serio. Ler, conversar, habitar, cozinhat 48 cracia”™, fomenta uma hipertrofia da leitura. © binémio pro- dugio-consumo poderia ser substituido por seu_equivalente eral: escritura-leitura. A leitura (da imagem ou do texto) parece alias constituir o ponto méximo da passividade que caracteri- zatia 0 consumidor, constituido em voyeur (troglodita: ou nomade) em uma “sociedade do espetéculo”.”* De fato, a atividade leitora apresenta, ao contrério, todos os tracos de uma produgio silenciosa: flutuacéo através da pagina, metamorfose do texto pelo olho que viaja, improvisacéo @ expectagio de’ significados induzidos de certas palavras, inkerseogdes de espacos escritos, danca efémera. Mas incapaz de fazer um estoque (salvo se escreve ou “registra”), 0 leitor no se garante contra o gasto do tempo (ele'se esquece lendo € esquece o que jé leu) a ndo ser pela compra do objeto (livro, imagem) qué € apenas o ersatz (0 residuo ou a promessa) de ingtantes *perdidos” na leitura, Ele insinua as asticias do prazer e de uma reapropriagdo no texto do outro: af vai cagar, ali é transportado, ali se faz plural como os rufdos do corpo. Asttcia, metéfora, combinat6ria, esta producto é igualmente ‘uma “invencdo” de meméria. Faz das palavras as solugées de hist6rias mudas. O legivel se transforma em memordvel: Bart: hes Ié Prouistno texto de Stendhal;”'o espectadorlé a paisagem de sua inffincia na reportagem de atualidades. A fina pelicula do escrito se torna um remover de camadas,' um jogo de espagos, Um mundo diferente (0 do leitor se introduz no lugar do-autor: Esta'mutagio torna o texto habitével, & maneira de um apartamento alugado, Ela transforma a propriedade do outro em lugar tomado de empréstimo, por alguns instantes, por um passante. Os locatdrios efetuam uma mudanga semelhante no apartamento que mobiliam com seus gestos e recordagbes; os locutores, na lingua em que fazem deslizar as mensagens de sua lingua materna e, pelo sotaque, por “rodeios” (ou giros) préprios, ete.,a sua prépria histbria; os pedestres, nas ruas por onde fazem caminhar as florestas de seus desejos e interesses. Da mesma forma, 0s usuarios dos cédigos sociais os transfor- mam em metéforas ¢ elipses de suas cagadas. A ordem reinante 49 serve de suporte para produgées intimeras, ao passo que torna 0s seus proprietdrios cegos para essa criatividade {assim como, esses “patrdes” que no conseguem ver aquilo que se inventa de diferente em sua prépria empresa”). No limite, esta ordem seria 0 equivalente daquilo que as’ regras de metro e rima eram antigamente para os poetas: um conjunto de imposigées esti muladoras da inven¢ao, uma regulamentacdo para facilitar as improvisagées. A leitura introduz portanto uma “arte” que nao € passivi- dade, Assemelhase muito ao que foi feito com a teoria pelos oetas e romanceiros medievais: uma inovagao infiltrada no texto e nos termos de uma tradicdo. Imbricados nas estratégias da modernidade (que identificam a criagdo com a invengao de uma linguagem prépria, cultural ou cientifica), os procedimen- tos do consumo contemporaneo parecem constituir uma arte Sutil de “locatdrios” bastante sensatos ‘para insinuar as suas mil diferencas no texto que tem forca de lei, Na Idade Média o texto se enquadrava na teoria das quatro ou sete leituras: ‘que poderia receber. E era um livro, Agora, 0 texto ndo provém mais de uma tradicao, E imposto pela geraco de uma tecnocracia rodutivista, Nao se trata mais de um livro de referéncia mas de toda a sociedade feita texto, feita escritura da lei andnima da produgio. A esta arte de leitores conviria comparar outras. Por ‘exemplo, a arte de conversar: as retéricas da conversa ordinaria so praticas transformadoras “de situagdes de palavra”, de producdes verbais onde o entrelagamento das posigées locuto- ras instaura um tecido oral sem Proprietdrios individuais, as criagdes de uma comunicacio que nao pertence a ninguém. A conversa é um ef Provis6rio e coletivo de competéncias na arte de manipular “lugares comuns” ¢ jogar com o inevitdvel dos acontecimentos para torndos “habitaveis”.2” Mas a pesquisa se dedicou sobretudo as Praticas do espa- 0°” as maneiras de freqientar um lugar, aos processos com. plexos da arte culindria e aos mil modos de instaurar uma confiabilidade nas situagées sofridas, isto é, de abrir ali uma Possibilidade de vivé-las reintroduzindo dentro delas a mobil 50 dade plural de interesses e prazeres, uma arte de manipular € comprazer-se. Aandlie des esse Extens6es:prospectioas © Sxendew a dois terrenos politicas ee cujo estudo fora previsto, mas cuja abordagem se diz respeito & prospec: lificou no decorrer do estudo: uma aesrret, a0 sujltona vida politica. Logo de sda be a questio da “cientificidade” dos tabs de prospect. Se jetivo uma tém no final das contas como obje igbiiad eocupagio de coeréncl, realidade presente e sua regra, uma preocu! rear ta ter no opera devese constatar de um lado 0 car peso de 0 erescente de conceitos e, de outro, a inadequag E 2ago ndo se encontra mais a partir das determinantes. pot ee ‘ou econdmicas utilizadas, e ndo existe uma: teoria Se A metaforizagao dos conceitos usados, a Lomi cere el tomizagao que caracteriza a pesaui izagdo ose coereo a exposio et suerem que mister tomar ‘como uma definigio do prdprio discurso a “simulagéo” qu caracterizava 0 método. studos de pros- do, chegourse a considerar nos estudos tine S relagdes mantidas por uma recionalldaie oa tim imagindrio (que é no discurso 0 ica do sou aa de 0); 2.adiferenga entre os taeios, asticias pragt Pear esate que escalonam a investigacao lr C- ‘outro lado, as representacdes estratégicas que sio oferect {20s destinatérios como o produto final dessas operagoes. Constatase, nos dicuris,oretorno subreptio de una retérica metaforizadora dos “campos préprios’ 7 da ee cena, nos gabinetes de etudos, una distil crescent das prdticas efetivas e cotic lianas (que per eandtie” eee arte culinra) com relagio as estas em “cendros’ que escalonam com quados upicos o murmero das maneras de cada laboratério: de um lado, mistos de Resor de outa lado, a diopside ente os expec de estratégias globais ea opaca realidade de tticas locals. 51 se entéo a interrogar-se sobre os “alicerces” da atividade lentifica e a se perguntar se ela nio funciona a maneira de uma colagem que justapde mas articula sempre menos as ambigbes tedricas expressas pelo discurso e a persistencis obstinada, remanescente, de asticias milenares no trabalhe Setidiano dos gabinetes e dos laboratérios. Em todo 0 caso, esta estrutura clivada, observével em muitas administracées ou empresas, obriga a repensar todas essas tdticas até aqui tio negadas pela epistemologia da ciéncia, O problema nao diz respeito somente aos processos efeti- wos da produeo, Coloca em causa, sob uma forma diferente, 0 estatuto do individuo nos sistemas técnicos, pois o investimen. to do sujeito diminui & medida de sua expansio techocrdtiea Cada ver mais coagido ¢ sempre menos enivolvido por esses amplos enquadramentos, o individuo se destaca deles sem poder escaparsihes, ¢ s6 Ihe resta a asticia no relacionamento com eles, “dar golpes”, encontrar na megalépole eletrotecnici. zada ¢ informatizada a “arte” dos cacadores oil dos ruricolas antigos. A atomizacao do tecido social dé hoje uma pertinencia politica & questio do sujeito. Comprovamno os sintomas que $20.38 agdes individuais, as operacées locais e até as formagies ecol6gicas pelas quais se preocupa, no entanto, de modo brioritério, a vontade de administrar coletivamente as relagbes com © meio ambiente, Essas maneiras de se reapropriar do sistema produzido, criagdes de consumidores, visam utma leva. peutica de socialidades deterioradas, e usam técnicas de Teemprego onde se podem reconhecer os procedimentos das braticas cotidianas, Deve-se entao elaborar uma politica dessas asticias. Na perspectiva aberta por Malestar na civilizagdo, tla deve também interrogarse sobre aquilo que pode ser hoje 2 representacao piiblica (“democratica”) das aliancas microscé. Pleas, multiformes ¢ inumerdveis entre manipular e gozar, realidade fugidia © massiva de uma atividade social que joga com sua ordem, Visiondrio afiado, Witold Gombrowice atribuia a esta “po- 'tica” um her6i ~ este antrheréi que habita nossa pesquise quando dava a palavra ao pequeno funciondrio (“o homem sem 52 indrio” a quem Freud ” de Musil, “o homem ordindrio” a qu GGasaga 0 Molestar na clllzagdo), que tem 0 sean estribilho: “Quando no se tem 0 ae fe ams preci apar e tem’, “Tive que recorrer, queiram me cor 3 temore mas puenosprazeres quase ins, sub tos... Voe8s néo fazem idéia como, com esses detalhes, se torna imenso, é inerfvel como se cresce”. 53 CAPITULO VIE CAMINHADAS PELA CIDADE Do 110® andar do World Voyeurs ou caminhantes ‘Trade Center, ver Manha- tan. Sob a bruma varrida pelo vento, ailha urbana, mar no meio do mar, acorda os arranhe-céus de Wall Street, abaixa'se em Greenwich, levanta de novo as cristas de Midtown, aquietase no Central Park e se encapela enfim para li do Harlem, Onda de verticais. A gigantesca massa se imobiliza sob © olhar. Ela se modifica em texturologia onde coincidem os extremos da ambigio e da degradacao, as oposicdes brutais de ragas e estilos, 0s contrastes entre os prédios criados ontem, agora transformados em latas de lixo, e as irrupgdes urbanas do dia que barram o espaco. Diferente neste ponto de Roma, Nova Iorque nunca soube a arte de envelhecer curtindo todos 0s passados. Seu presente se inventa, de hora em hora, no ato de lancar o que adquiriu e de desafiar o futuro. Cidade feita de lugares paroxisticos em relevos monumentais, 0 espectador 169, pode ler af um universo que se ergue no ar. Ali se escrevem as figuras arquitet6nicas da concidatio oppositorum antigamen- te esbocada em miniaturas ¢ texturas misticas. Neste palco de concreto, de ago e vidro, que uma agua fria corta entre dois oceanos (o atléntico e o americano), os caracteres mais altos do globo compoem uma gigantesca retérica de excessos no asto e na producao,! A que erdtica do saber se liga 0 éxtase de ler tal cosmos? Apreciandoo violentamente, pergunto-me onde se origina 0 prazer de “ver 0 conjunto", de superar, de totalizar © mals desmesurado dos textos humanos. Subir até o alto do World Trade Center é 0 mesmo que ser arrebatado até ao domfnio da cidade. O corpo nio esté mais enlacado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei andnima; nem possuido, jogador ou jogado, pelo rumor de tantas diferencas e pelo nervosismo do trafego novaiorquino. Aquele que scbe até ld no alto foge massa que carrega ¢ tritura em si mesma toda identidade de autores ou de espectadores. fcaro, acima dessas Aguas, pode ‘agora ignorar as asttcias de Dédalo em labirintos méveis e sem fim, Sua elevagao o transfigura em voyeur, Coloca-o& distancia, ‘Muda num texto que se tem diante de si, sob 05 olhos, o mundo que enfeiticava e pelo qual se estava “possuldo”. Ela permite elo, ser um Olho solar, um olhar divino, Exaltagio de uma pulsio escdpica e gnéstica. Ser apenas este ponte que vé, eis a fiegao do saber, Serd necessério depois cair de novo no sombrio espago onde circulam multiddes que, visives ld do alto, embaixo nto ‘veem? Queda de fcaro, No 110° andar, um cartaz, semelhante a uma esfinge, propée um enigma ao pedestre por instantes transformado em visionério: it's hard to be down when you're up. Avontade de vera cidade precedeu os meios de satisfazéla. As pinturas medievais ou renascentistas representavam a cida. de vista em perspectiva por um olho que no entanto jamais existira até entio.” Blas inventavam ao mesmo tempo a visio doalto da cidade e o panorama que ela possibilitava. Bssa fiegao Jf transformava o espectador medieval em olho celeste. Fazia 170 deuses, Seré que hoje as coisas se passam de outro modo, agora que processos técnicos organizaram um “poder onividente”"?? 0 olho totalizador imaginado pelos pintores de antanho sobre- vive em nossas realizagdes. A mesma pulsio escépica freqitenta os usudrios das produgées arquitetonicas materializando hoje utopia que ontem era apenas pintada. A torre de 420 metros que serve de proa a Manhattan continua construindo a ficgdo que cria leitores, que muda ent legibilidade a complexidade da cidade e fixa num texto transparente a sua opaca mobilidade. A imensa texturologia que se tem sob os olhos seria ela outra coisa sendo uma representagdo, um artefato ético? E 0 andlogo do facsimile produzido, gragas a uma projecao que ¢ uma espécie de colocacio & distancia, pelo administrador do espago, o urbanista ou 0 cartégrafo. A cidadepanorama é um simulacro “tebrico” (ou seja, visual), em suma um quadro que tem como condigao de possibilidade um esquecimento e um esconhecimento das priticas. 0 deus voyeur criado por essa ficgdo e que, como o de Schreber, s6 conhece os cadaveres,¢ deve excluirse do obscuro entrelagamento dos comportamen- tos do diaadia e fazerse estranho a eles. Mas “embaixo” (down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinérios da cidade. Forma elementar dessa experiéncia, eles so caminhantes, pedestres, Wandersmanner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de lum “texto” urbano que escrevem sem poder Iélo. Esses prat- cantes jogam com espagos que nfo se véem; tam dele um conhecimento tio cego como no corpoacorpo amoroso. Os | caminhos que se respondem nesse entrelacamento, poesias | ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam & legibilidade, Tudo se passa como se | uma espécie de cegueirg caracterizasse as préticas organizado- | ras da cidade habitada.” As redes dessas escrituras avancando | ¢ entrecruzandose compéem uma hist6ria miltipla, sem autor | nem espectador, formada em fragmentos de trajet6rias e em alteragdes de espagos: com relagio &s representagées, ela | permanece cotidianamente, indefinidamente, outra. | im Escapando &s totalizagdes imagindrias do olhar, existe uma estranheza do cotidiano que nao vem & superficie, ou cuja superficie é somente um limite avancado, um limite que s destaca sobre o visivel. Neste conjunto, eu gostaria de detectar préticas estranhas ao espaco “geométrico” ou “geogréfico” das construgdes visuais, pandpticas ou teéricas. Essas préticas do espaco remetem a uma forma especifica de “operagées” (“ma neiras de fazer”), a “uma outra espacialidade”* (uma experién- cia “antropolégica’, poética e mitica do espago) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transumante, ou metaférica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visivel. 1. DO CONCEITO DE CIDADE AS PRATICAS URBANAS 0 World Trade Center & somente a mais monumental das, figuras do urbanismo ocidental. A atopia-utopia do saber ético leva consigo hé muito tempo o projeto de superar e articular as contradigbes nascidas da aglomerago urbana. Tratase de gerir um aumento da colecéo ou aciimulo humano, “A cidade é um grande mosteiro”, dizia Brasmo. Vista perspectiva e vista prospectiva constituem a dupla projegio de um passado opaco e de um futuro incerto numa superficie tratavel. Blas inaugu- ram (desde o século XVIZ) a transformagéo do fato urbano em conceito de cidade. Muito antes de 0 préprio conceito destacar ‘uma figura da histéria, ele supde que este fato seja tratavel com uma unidade que depende de uma racionalidade urbanistica. Aalianca da cidade e do conceito jamais os identifica mas, | ‘com sua progressiva simbiose: planejar a cidade € ao mesmo tempo pensar a prdpria pluralidade do real e dar efetividade a este pensamento do plural: € saber e poder articular. ‘A “cidade” instaurada pelo discutrso ut6pico e urbanis- tico” é definida pela possibi- lidade de uma triplice operagio: Um conceito operatério? 172 { 1. a produgao de um espaco préprio: a organizacao racio- nal deve portanto recalear todas as poluicées fisicas, mentais ou politicas que a comprometeriam; 2, estabelecer um ndo-fempo ou um sistema sincrénico, para substituir as resistencias inapreensiveis e teimosas das tradigdes: estratégias itificas untvocas, possibilitadas pela redugao niveladora de todos os dados, devem substituir as taticas dos usudrios que astuciosamente jogam com as “oca- sides” e que, por esses acontecimentos.armadilhas, lapsos da Visiblidade, reintroduzem por toda a parte as opacidades da histéria; 3. enfim, a criago de um sujeito universal e anénimo que & a propria cidade: como a seu modelo politico, o Estado de Hobbes, podese atrbuirthe pouco a pouco todas as fungBes © predicados até entio disseminados e atribuidos a miltiplos sujeitos reais, grupos, associagées, individuos. “A cidade”, & maneira de um nome proprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir 0 espago a partir de um niimero finito de propriedades estdveis, isol4veis e articuladas uma sobre a outra. Nesse lugar organizado por operagSes “especulativas” e classificatérias,’ combinam-se gestao e eliminagao. De um lado, existem uma diferenciaglo e uma redistribuigdo das partes em fungéo da cidade, gragas a inversbes, deslocamentos, actimulos, etc; de outro lado, rejeitase tudo aquilo que nao é tratavel € constitui portanto os “detritos” de uma administracdo funcio- nalista (anormalidade, desvio, doenga, morte etc.). Certamente, 0 progresso permite reintroduzir uma propor¢ao sempre maior de detritos nos circuitos da gestao e transforma os préprios déficits (na satide, na seguridade social etc.) em meios de densificar as redes da ordem. Mas, de fato, nao cessa de produzir efeitos contrarios aquilo que visa: o sistema do lucro gera uma perda que, sob as miltiplas formas da miséria fora dele e do desperdicio dentro dele, inverte constantemente a produgao em “gasto” ou “despesa”. Além disso, a racionaliza- ‘io da cidade acarreta a sua mitificagdo nos discursos estraté cos, eéleulos baseados na hipOtese ou na necessidade de sua destruigéo por uma decisio final.’ Enfim, a organizagio funcio- 13

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