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Historia do Brasil Colonial Prof, Rodrigo Ricupero 6 B — Jacob Gorender. O escravismo colonial, 3* ed. Sao Paulo: Atica, 1980, p. 126-141. Acsp [Fricn use Jacob Gorender O ESCRAVISMO COLONIAL 3. edigdo ™ Sho Paulo, Editara Atica, 1980. CariruLo v FONTES ORIGINAIS DA FORGA DE TRABALHO ESCRAVO 1. Modalidades de contato com os indigenas Escapa aos objetivos do meu livro a apreciacdo particularizada da sociedade antéctone encontrada pelos portugueses no territério que receberia o nome de Brasil. Apenas a titulo de balizamento da ‘nilise, basta-me assinalar que 0s indigenas se agrupavam em tribos némades, pertencentes & formagio social que se denomina de co; munismo primitivo. Havia diferenciagdes em seu grau de desenvol- vimento, evidenciando-se que as tribos da orla ocednica possuiam equipamento cultural mais avangado do que as do remoto interior, exceto aquelas da Bacia do Parand, mais préximas do Império In- caico. Quanto as tribos do litoral atlantico — com as quais primeiro se defrontaram 03 portugueses ~, cabe salientar que detinbam um cabedal de conhecimentos produtivos indicador de adiantada evo- Yugo no marco da sua primitividade. Apesar do nomadismo, jf praticavam a lavoura do milho ¢ da mandicca e o simples feto de dominarem a técnica de boheficiamento desta ‘titima demonstra a facumulagdo de complexa experiéncia produtiva. Adémnis, conhe- ciam, em nivel rudimentar, a tecelagem do algodio ¢ a cerimica. Diversos elementos da cultura material indigena, como destacaram fos antropélogos, servirum 4 adaptagdo dos portugueses ao meio ‘reogrifico brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, os colonizadores rejei- taram totalmente a organizagao social dos povos autéctones. Dela nio extrairam qualquer elemento consttutivo do modo de produgio € da formagio social que vieram a implantar no pais conquistado. ‘Como & sabido, a Coroa portuguesa, engolfada na exploraydo do Comércio com 0 Oriente, dedicou pouca atengio & sua coldnia americana nos trés primeiros decénios apés o descobrimento, Nesta fase, a atuaglo dos portugueses limitou-se quase & extrago do pau brasil, estabelecendo com as tribos indigenas, 4s quais st aliaram, lum modus vivendi relatvarmente pacifico. Em troca de artigos da industria européia; 08 pequenos miicleos de portugueses obtinham MODALIDADE DE CONTATO COM OS INDIGENAS 127 alimentos e mao-de-obra para o corte ¢ transporte da madeira tin- torial. E de notar que, gracas a correlagdo entre o desenvolvimento dd suas forgas prodativas ¢ o nivel de suas necessidades, dispunham os indigenas de um tempo de lazer inconcebivel & mentalidade do colonizador, Dai que, a fim de conseguir os produtos europeus, de natureza util ou de simples omato, contassem os indigenas com uma reserva potencial de tempo de trabalho ¢ se prestassem de bom grado a tarefas penosas até entfo nunca praticadas.* ‘Nesta fase marcada pelo eseambo, os portugueses tiveram de competir com os franeeses, que organizaram entrelopos em varios pontos da costa brasileira ¢ se aliaram a tribos rivais daquelas em gue se apoiavam os portugueses. Dessa maneira, portugueses ¢ fran- ceses se inseriram na trama das hostilidades tradicionais entre as tribos aborigines, para as quais a guerra fazia parte normal do modo de vida. ? A respeito, observou Capistrano de Abreu: ‘Porque os Tupinambds se aliaram constantemente aos franceses © 08 portugueses tiveram a seu favor os Tupiniquins, nao consta da histdria, mas 0 fato & incontestdvel ¢ fot importante; durante anos, ficou indecivo se o Brasil ficaria pertencendo aos Perd (ortugueses) ow aos Mair (franceses)”.* A modalidade de contato entre os portugueses ¢ as tribos autéc- tones mudou radicalmente assim que a Coroa tomou a decisio de ‘ocupar o territério mediante o povoamento ea exploracio econdmica ny Jean de. Vago & Tera do Brat 30, Sto Paulo Lit. Mais Ed, 190. > 120 seagate toe de alguns ropes canis de abo, capes, faas, Sactadon sine dro densa eames ties por ans ao aus, cota sera, aa, slam e dbus o peur, taaporando-o ‘nos ombros nus its vezes de duas ou trés Iéguas de distancia, por montes vas Sou até» cota oat aon savio acoradon, onde or marae 0 rcrbem. E> ‘erate 98 corm opus eps que o ances © portuguese comers & {Taentar 9 pl; anteormente, como me fl dito pox um ase, derutavam 30 frre detandobes fog.” SMtuwc Forma Qe Precede. Op, cis ¥. 1p 4S (acre as edad come nia tara, comovribon pastors nade, igen americana «pox aes. ‘Sion, Comperamae com tts como aut propriodae, ainda que suse aes tem propiedade © memo se daa tes de cge dat ibs ada avagens da Ami ‘frst bo conldera cera repo como un tna decagaeeafrma ito pela olaca {ent outa tibos ou trata de expla ota: bos da repo que eb propa = ‘iim Porkso, ea pueraumdortrbsior tan orgdron de toanen aided Gomi oars tanto para» Afroagio da pepiedac como pars oa sigdo desta. eee a Rane, Capstraco de Cops de Huda Colona, ed, Rio 6 eno, Li ui 184.p. 128 FONTES ORIGINAIS DA FORGA DE TRABALHO BSCR permanente, Agora, tratava-se de expulsar os aborigines de grandes ‘ratos de terra, sucessivamente ampliados, ¢ de obrigivlos ao trabalho escravo, A guccra ¢ 0 exterminio indiscriminados tomaram-se ine- ‘itéveis, por mais que a Coroa ¢ os jesuitas se empenhassem exn dis ciplinar a atuagZo dos colonos ¢ impor ao menos algumas normias de convivéncia que salvassem da destruigo completa 0 patriménio populacional representado pelos nativos. * Colocada entre a pressio dos jesuitas, que se orientaram no sentido da eatequese e da formavio de aldeamentos indigenas sob o seu controle, ea cobiga dos colonos, exclusivamente interessados na ocupagao da terra e na exeravizaeio, ‘4 Coroa portuguesa produzit infinddvel e contraditéria legislacao que imprimiu cardter peculiar 4 escraviddo dos indios. Esta oscilow entrea forma completa e variadas formas incompletas, como veremos em capitulo especial. Enquanto, na fase do simples escambo, os amerindios conser- vvaram certa ascendéncia sobre os europeus, até mesmo no aspecto cultural, a fase seguinte caracterizou-se pelos resultados destruidores para a populasio autéctone. Os principais aspectos da repercussio do processo de colonizacdo na sociedade indigena foram abordados no trubalho de siatese de Florestan Fernandes, a0 qual remeto 0 Ieitor. * Ao invés da “quase reeiprocidade cultural” entre conguis- tador e conquistado e do “maximo de contemporizagdo da cultura adventicia com a nativa, como escreveu Gilberto Freyte %, a reali- dade foi a da escravizacdo, da destribalizagio e da destruigio fisica e espiritual dos nativos. “+ Acerea do proceso de esravizasdo ¢ extermioio dos indlgeuas pics coloniadores ‘no saculo XV1, v. Cara de Pero de Gls a D. Jobo IH, de 29 de abil de 1546, « Cara ‘ro Borges aD. Jodo II, dee fevereiro de 1550. tn: HCPB,.2,p.263 ¢ 268-9; “"Regineato de Tomé de Sousa”, de 17 de dezembro de 1548, coatendo aocmas da CCoroa sobre o tra com os indgcoas. In: HCP, v. 3, p. 345 et sqs:; ANCMIETA, Jost se. "Trabalbos dos Prizeitos Jesuits ao Bras” RIHGB, 1894 . LYIL Pare 1. 1. Informapo do Basle de Suat Capitanias (1584), So Paulo, Ed, Obesco, 1964; SAWADOR, Fei Vicente do, Hisria do Bras. $80 Paulo, Ci. Melboramentos de ‘Sto Paulo, 1931.3 ed, e:pas.; ANDRADE, Manuel Correia de. Economia Pernambueana _no Séeulo XVI, Rexle, Arquivo Publco Estadual, 1962, p. 29-5, 71 esq. Puxwanbes, Fotetas. “O Tupi e a Reaplo Tribal & Conquista.” In: Mudongas Socits mo Brasil $80 Paul, Die, 1960, p. 287 <1 sege. Sob o titulo de “Antecedents Indigenas: Organizapto Social das Teibos Tups”, In: HGCB, 4* tI. 1, 1972, p. 72 et segs. S parraa, Gilbert, Op ct 1p. 128 OINDIGENA EA ESCRAVIDNO 129 2. © indigena © a eseravidio A formagio aborigine desconhecia o fato social da escravidio até a chepada do colonizador. O prisioneiro de guerra nfo devorado crn festins rituais era assimilado pela tribo, inicialmente sob uma condigio de inferioridade e, por fim, em igualdade de considerasdo social! No entanto, divetsos eronistas deram aos prisioneiros a deno- rminagdo de escravos, Mas esses mesmos cronistas ndo assinalaram qualquer diferenciagio econdmica entre os membros originais da ttibo e seus prisioneiros. Estes tltimos, mesmo quando condenados 40 sactificio no festim ritual, nfo eram coagidos a trabalhar mais do que 0s outros e se beneficiavam da distribuigdo igualitiria do produto, Embora mencione repetidamente escravos no meio indige- 1a, 0 proprio Southey mostrou a inadequagdo do conceito a situaglo real “De fato — escreveu —, 0 prisioneir® que ndo & imolado passa «a ser olhado como um dos da tribo e a mera inferioridade de com digdo depressa se esquece onde ndo hi outra desigualdade real ou imaginéria”. Com relagdo aos guaicurus, entre os quais, ao que parece, havia uma estratifieago social definida, com o status de inferiori- Gace, dos prisoners tomado permanente, ao dexou Southey de frisar: “0 estado em que esses prisioneiros se criam tem da escraviddo 486 0 name, pois que nunca se exige deles trabalho compulsério™. * A colonizagao foi incapaz de introduzir a escravidio no seio da formagfo teibal, porém a habitubw ad trafico dé'eseravos. Os pri- sioneiros, antes devorados ou assimilados, passaram a ser trocados pelas bugigangas européias. ° O que a principio devia ser apenas Incidental adquiriu feicdo regular e 08 portugueses estabeleceram aliangas com tribos que se dedicavam sistematicamente & captura de prisioneiros para fornect-los como esciavos aos colonos. Mais tarde, holandeses e franceses participaram desse escambo de e%- ceravos com tribos da regio amazénica, '° ‘Nao obstante, chama a atencio o fato dos colonos portugueses terem reclamado a introdugdo de africanos desde muito cedo, quando * soumiin, Robert Hsdriado Bras 3*ed. do Paulo, Ed. Oblisco, 1968.2, p32. Bid v6 p. 19h, Sousa, Gabriel Soares €6, Op. ct, p. 325. V. tambon p. 62¢ 122. 1W°CE SoueWty. Op et, ¥. 3, B. 2AB 6 2905 v5, p. 118; v. 6p. 109 € 234 130 _FONTES ORIGINAIS DA FORGA DB TRABALHO ESCRAVO ainda a reserva populacional autdctone devia ser abundante, #? O fato pode ser explicado pelo conhecimento prévio da capacidade de trabalho dos negros.e da maior facilidade de sua submissio em habi- tat estranho, 20 contririo dos amerindios, cuja escravizagio esbat- riva com a’ resistencia tribal em seu territorio native. Acontece, todavia, que, a0 longo do tempo, cristalizou-se entre 0s coloniza- dores 0 estetedtipo do indio como trabalhador débil’® indolent. Em carta & Camara do Pard, jé em meados do stculo XVI, resumiv © Padre Anténio Vieira 0 que considerava as causas da inefieiéneia do indio como escravo em comparagdo com 0 africano: a) os indios ‘sio menos capazes de trabalho; b) sio menos resistentess doengas; ) fogem mais facilmente; d) morrem de saudades de sua vida ori- sinal, 1? © curioso € que os historiadores até hoje pouco mais fizeram ddo que seguir as linhas explicativas indicadas por Vieira, acaitando-as sem exame eritico, As razbes de Vieira sfo apenas parcialmente verdadeiras ¢, ademais, ele ndo tocou em aspectos mais profundos do problema.’ A época em que escrevia o célebre jesuita, jé se sabia que 05 afticanos também costumavam ser dizimados por doencas infecciosas e que sua propensdo a rebeldia e & fuga ndo-era inferior ‘i dos amerindios, apesar da desvantagem do habitat estranho. ' Quanto A doenea da saudade da vida original, & conhecido o inal chamado de banzo Aue vitimava os afticanos. Em tudo isso, a dife- renga entre indios ¢ africanos mio devia ser senio de gradag8o, de intensidade, nem sempre maior nos primeiros, Mas onde a explicacio 11 V, porexemplo, 08 reclamos dos donatiros Pero de Gls (Carta a Martin Fereia, {1 de agost de 1548) e Duarte Coelho (Carta a D. Jf fT de 27 de abi de 1542), ICPB, v. 3, p. 262 € 314 ' dpud Dounand, Mecenas, A Conerato do Geno, Rio de Janeiro, Fd. de Ouro, 1968, p. 128. "> Baawoio, Femandes, Op. ct, p 38-39, Meneiona doengas trazkéas pelosaftcanos, ‘rocipalmente at berigas,causidoras de"... geandlsina matanya ase no gemtio ‘atu da tera como no de Guinte n0 anode 616. 617 fearam muitos homens neste Entzdo do Bra de root pobres pela grande mortandade que tveram de eros" ‘Wale registra dzimardesdeaficanos por epidemias dursate a ocupacio holandest doNordeste. CE Witney, Henson. O Damo Clonal Hlandésna Basil Sfo Paul, Cia, Ed. Nacional, 1938. p. 488 e490. Sobre fugasereblibes de negro, ao final do séeulo XVI e comesos do semvnte,v. Carta de 1608 do Governador-Geral Diogo Six ‘qeira de Menezes ao cei, ABN, 1935, ¥. 57, p. 37; SALVADOR, Fre Vicente do. Op. ct, 392 ¢ 396. Na data em que esrevia 0 govetnadorgeral, ji exit 0 Quiloibo de Paimares, ue cheparia a agriper orca de mil negro «vss quase um seul OINDIGENAE A FSCRAVIDAO. 131 de Vieira, acompanhada por tantos historiadores, mais se afasta da realidade & no referente a capacidade de trabalho e de aprendi zagem dos indios. Com sua larga experiéncia das coisas do Brasil, ‘observou Gabriel Soares de Sousa acerca dos indios: “so também muito engenhosos para tomarem quanto thes ensinam os brancos, como ndo for coisa de conta, nem de sentido, ‘porque sio para isso muito bérbaros; mas para carpinteiros de ‘machado, serradores, oleiras, carreiros e para todos os oficios de engenhos de agicar; tim grande destinto, para saberem: logo estes ‘oficios: e para criarem vacas tém grande mio e cuidado”. ** © Padre jesuita Anténio Sepp, que dirigiu redugdes guaranis durante longos anos, confirma a observacdo do cronista portugues. Numa simples inspegGo cotidiana, relata o Pade Sepp: “Depois que instrui os misicas e dancarinas, visito as outras ofi- cinas, 0 moinko, a padaria. Verifico o que estdo fazendo os fer- reiros, os carpinteiros e marceneiros, verifico o ue estéo fazendo 1 escultores, 0 que pintam os pintores, o que tecem os tecelBes, ‘© que torneiam os tomneadores, 0 que bordam os bordadores, 0 que carneiam os carneadores”. ¥¥ Note-se que 0 nivel cultural dos guaranis rioplatenses em sua vida original néo os distinguia dos indigenas da grla atlantica br sileira. O progresso tdo notavel das aptiddes dos guaranis nas re- dugdes nko & menos significative pela circunstiacia dos jesuitas empregarem métodos coercitivos, as vezes brutais. Na verdade, as redugdes rioplatenses, como ja tive ocasido de sugerir, represen- yram uma anomalia no quadro geral da colonizacio europtia, pos- sivel somente numa area desprovida de jazidas de metais preciosos e imprestivel & economia de plantagem, érea cuia posse a Coroa espanhola nfo encontrou outra maneira de defender das investidas dos bandeirantes paulistas sendo confiando-a aos jesuitas. Porém, do ponto de vista do tipo de colonizagiio, as redugdes rioplatenses constituiram o que podia ser mais normal a partir da estratura ori- gindria da sociedade indigena. Com isto nfo faco omissio do que 0 cempreendimento jesuitico representou de violentacéo da cultura aborigine, apenas 0 ponho em confronto com a colonizacao leiga E compreendo porque Maridtegui, admirador da comunidade \ Saute, Gabriel Soares de, Op. ct. pM. 1 Sine, Padre Anténio. Paegem as flere Jesultiees ¢ Trabathos Aponslicas. Sto Ed. Universidade de Sho Paulo, 1972, 9.91. ¥. 132 FONTES ORIGINAIS DA FORGA DE TRABALHO ESCRAVO. ‘ncaica, © aplly, julgasse o trabalho dos jesuitas 0 inico construtivo ‘no processo geral da colonizagdo ibérica, ‘A fim de apreender as razées profundas da ineficiéncia do indio, 1a relatividade de sua comparagdo com o africano e do ambiente eseravista comum a ambos, precisamos ir além da explicagio de Vieira, aliés ideologicamente comprometida, Antes de tudo, 0 indio parecia débil no trabalho ¢ sucumbia com rapidez porque era mer- ‘adoria muito barata, usada e gasta pelo dono sem cuidado. Tornarei ‘20 assunto quando focalizar 08 precos dos escravos e as formas da escravidio indigena. Em seguida, o conjunto de representagdes ideais do indio, forma de consciéncia propria ao comunismo primitivo em pleno florescimento, resistiu com extremo vigor as imposigSes acul- turativas. Se os jesuitas das redugGes rioplatenses alcangaram re sultados superiores aos colonos, isto se deve a0 fato de terem se jo nesse comunismo primitivo, nele introduzindo novas forgas produtivas ¢ sobre ele erguendo um novo tipo de diresio social. 1? Por fim, 0 esteredtipo do indio incapaz convinha decerto & Coroa € aos traficantes, que tiaham no comércio de africanos fabulosa fonte de lueros. Em termos atuais, dir-seia que o esteredtipo servi a uma téenica de marketing. A qual teria contribuido, deliberada- ‘mente ou por mera coincidéncia, segundo sugere Mauricio Goulart, 4 politica do Vaticano de protesdo aos indios americanos e de apro- vaso da escravidto dos negros, §* Seja como for, os indigenas representaram a mio-de-obra pre- dominante nas plantagens até o final do século XVI aproximada- ‘mente. Parece-me inexata a afirmagio de Mauricio Goulart segundo "= OF Manthreat, Jost Carlos. 7 Buayas de Interpretacin dela Realidad Peruano 262 ed, Lima, Empresa Ed. Amavta, 1973. p13 ¢ 61-63, 5 Mecents Dourado, na obra cada, abordot um sspeein particular do fendmeno, ou scj, extrema difculdade dos missiondrios de incularem a rlgito ers oa mente dos indigsnas. O Disloge da Conversdo do Genito, eactto pelo Padre Manuel «4a Nobregs, manifesta as dividas¢ mesmo a angst dante do problema, guste indusir © autor, bem como Anchiwae outros membros da Companhia de Jesu, Jouvar ox procesios coeriivs para sujigo e aldeameato dos indioe, Nos ia ata, 4 consctncia coletivista das tribos remanesceates, expresdo de sou modo e vide \wadiional, contiaus obsécal insuperdvel peas tentatvaspersusivas de aculturaco, © que leva a sociedadecivilizada a aplicar os velhos mtiodos de desinegragdo tribal com 0 propbito de “integrat” oindio uma ordem social que tio comapevade equ ‘© degreds, quando o absorve. A propliit,v. SCHADIN, Egon, specios Fundamaniis de Cultura Guarani. Sto Paulo, Die), 1962. Paricularmente p, 6153. % Ct, Goutaxr, Maurfio. Op cit, p. $4. V, ambi Moun, Clovis, Rebeifes ds Senacia. Rio de Janeivo, Bd. Conquiva, 1972. p. 31-32 (08 AFRICANOS 133 ‘ qual... foi depois de meados do século XVII que o negro subst- ‘ult preponderantemente o indio na escravatura da colénia”. #* Em 1618, quando redigiu seus Didlogos, Fernandes Brandifo enfatizou a presenga dos afticanos, ao ponto de escrever: “neste Brasil se hd criado wn novo Guiné com a grande mul- tiddo de escravos vindos dela que nele se achant; em tanto que, em algumas capitanias, hd mats deles que dos naturais da terra, « todos os homens que nele vivem tém metida quase toda sua fa zenda em semelhante mercadoria®, Van der Dussen, por sua vez, no Relatério sobre o Brasil ho- landés escrito em 1639, considerou os negros a mio-de-obra fun- damental dos engenhos, enquanto aos indios nfo se confiavam senfo tarefas acessorias. © Ao que tudo indica, o negro constituia, jA na primeira metade do século XVII, a forga de trabalho fuidamental das regides de, ccohomia plantacionista préspera, continuando 0 indio o recurso, Preponderante ou quase nico das regides pobres, onde a produgio de lucrativos géneros de exportagio nio vingara. 3. Os africanos Ao contririo dos amerindios, que se defrontaram com os colo- nizadores organizados em sociedade tribal, o: africanos chegaram ao Brasil ja destribalizados, arrancados do meio social originario € convertides forca em individuos dessocializados. O trifico ar- rebanhou negros procedentes de numerosas etnias, heterogéneas do Ponto de vista da evolugo social, da lingua, das tradicdes, costumes, ote (© nivel social dos povos afticanos jé era bastante diferenciado no séeulo XV, quando 0 trafico mereantilista teve inicio, J. Suret- -Canale distingue trés grupos distintos de organizagdo social; os povos divididos ém classes constituidos em Estados, as sociedades ‘cibais ou tribalspatriarcais e as tribos que nfo haviam ultrapassado ‘os marcos mais atrasados do comunismo primit tivo, Em conseqiiéncia, * Gouuint, Mauricio. bid, p, 99-100, £2 Branoko, Ambtéxio Fernandes. Op. city p. 11S. CF. Dusten, Adraen vaa der, Reatrio sobre es Ceptanias Congas no Bratt ‘pelos Holandees (1639. Rio de Janeiro, Insututo do Agtear © J0 Alco), 1047p. 56 134 FONTES ORIGINAIS DA FORGA DE TRABALHO ESCRAVO também variava 0 desenvolvimento econémico, atingindo este nos povos dotados de organizagdo estatal um estidio superior ao da maior parte das sociedades amerindias pré-colombianas © aproxi- mado ao da fndia tradicional. Por sua evolusdo endégena — © n80 por influéncia rabe, como supdem historiadores racistas —, ha- viam estes povos negros alcangado notivel progresso na agrope cuéria ¢ no artesanato, principalmente no trabalho com os metais, especialidade em que, Sob alguns aspectos, se achavam mais adian- tados do que os europeus da época, Qualquer. que fosse, contudo, 0 estAdio social, dominavam entre os povos afticanos.a propriedade comunal da terra e.formas diversas de. trabalho coletivo,, Quanto a escraviddo, & fora de diivida que jé se praticava na Africa negra antes da chegada dos portugueses. Mas era uma escra- vidio muito diferente daquela que se imporia nas plantagens ame- ricanas e sequer apresentava formas tZo duras como entre os greco- -romanos. Entre os africans, o cardter da escraviddo era fundamen- talmente patriarcal. Tinha pouca importancia nas sociedades tribais, ‘onde os eativos Teif6s nas guerras se incorporavam A familia extensa ‘com certas diferencas de status ¢, as vezes, com obrigagdes maiores de trabalho, Nas sociedades constituldas em Estados, os_cativos setviama como domésticos na corte real ¢ nas casas das familias nobres. ‘ou eram agrupados em aldeias obrigadas a prestagdes mais pesadas do’ que as dos tributirios livres submetidos 4 aristocracia ou 20 grupo ‘étnieo dominanté. De modo geral; a condigio servil atenuava-se na segunda geragio e extingDia-se até a quarta geragfo, A fonte prin- cipal de escravos residia na guerra, sendo excepcionais a venda de ‘membros da familia em caso de fome, a escravidio como punigiio de crimes graves e a escraviddo por dividas, Nesta tltima, contudo, a relagio entre senhor e escravo assumia uma forma dura ¢ impessoal de exploragio, que contrastava com 0s costumes patriarcais, Embora fosse rara também a compra individual de escravos, jé existia certo tifico de escravos com 0 mundo exterior, em proporsdes mui imo inferiores Aquelas que caracterizariam 0 trifico do mercantic jsmo, Antes deste, mercadores.frabes ou arabizados canalizavam pequeno fluxo de negros em dirego aos harens e a escravidio do- iméstica persistente na Bacia do Mediterraneo durante a Idade Média. Por fim, mesmo em fase tardia, foram poucas as grandes exploragoes escravistas genuinamente afticanas. Alem das plantagens dos eis do Daomé, cita Suret-Canale as oficinas artesanais de algumas ci- ddades sudanesas, as quais empregavam escravos e produziam para (6S AFRICANOS 135 exportagio Africa do Norte, Quanto aos mercadores irabes, momentaneamente suplantados pelos europeus, vieram a rivaizar ‘com estes no século XIX, dominando o trifico da costa oriental alficana e canalizando dezenas de milhares de negros és plantagens as Ilbas do Oceano Indico. * © trifico mereantilista iniciado pelos portugueses introduziu um fator externo destrutivo que paralisou ou perverteu a evolugio endégena dos povos negros. A Africa surgiu como imenso viveiro de forga de trabalho: ainda no séoulo XVII, sua populago equivalia 4 da Europa e representava um quinto da populagio de todo 0 globo. # Ademais, sua localizagdo fronteira com relagdo & América viabilizava o transporte dos escravos. A principio, os préprios por tugueses ascaltavam aldeias inermes ¢ realizavam capturas, Todavia, ‘do demoraram a deixar semelhante tarefa aos africans, Seduzidos pelos artigos de origem européia ou americana, ¢ munidos de armas de Fogo, 05 africanos se entregaram a caga ao homem numa escéla nunca vista. Capturar prisioneiros para o trAfico tornou-se atividad: Priortaria dé tribos primitivas de remotas regiSes interioranas e de slides. Estados litortineos, como © de Daomé, nascido do trifico no sbouio XVITefundado no monopélio real do comércio deescravos. Os prisioneiros eram trocados por panos, ferragens,trigo, sal, ca- valos e, sobretudo, por armas de fogo © munigdes. A’ estes produtos de origem enropéia juntaram-se, com grande actitagéo, os proce- dentes da América: tabaco, aguardente, agicar, doces e bizios, 0s utilizados como moeda pelos africanos. °+ A difusso das armas de fogo tomou sua posse questo de sobrevivéacia e obri g0u uma tnbo apés outra a tentar obté-las por meio da captura de hhomens e mulheres de outras tribos. Sobre as formagtes soins afcana,v. ST.Canau, J, Africa Negra. Buenos Aires, Editorial Platina, 1959, p 500 « 01-24; 4. "Las Socedades Tradionals en ‘1 Aftca Tropical el Concept de Modo de Producclén Aiton” Ia: Barts Roger Ei Mad de Prodcein Asie, Op. cp. 178204; Grvovese, Eugene D. “Le Tis. saileur Noir en Afrique et dans le Sud Exlavagiste” In: Eemami Potigue de FES lavage. Op cia p83; CAPM, Jost Ecravatura ~ A Engresa de Sapee.O ABO liom (18101875), Porto, Ba Afrotareat, 1974, p. 4-10; Kins, A, Norman. “West Altican Unfee Labor Before and AMtr the Rise ef the Atlant Save Trade* Ig Siney te Now Werld Ope 8998 2 Cl, Hagasiacrs, Maurice. EnplopdieFrangaise. 1936. VI. Ci. por Suet-Ca- ‘ae tn: Africa Nera, Op. cl. 13. bogundo ainda Halbwact,«populetoaficaas Stanteve-e estaciondia duraote 300 anon e, no a&ulo XX, tepreectaws meno de Gécimatersra pare da populagdo rund + Southey menciona Porto Seguro, na Bahia, somo exportadr debizios para Angola Op dt Wp. a8 136 _FONTES ORIGINAIS DA FORGA DE TRABALHO ESCRAVO Sob a protepio de fortalezas como as de Arguim e de Sio Jorge da Mina, organizaram 05 portugueses um sistema de trifico que se ampliou e cousolidou. A partir das cidades portusrias de So Paulo de Luanda ¢ Séo Felipe de Benguela, ramificaram-se pelo litoral feitorias fortficadas ¢, aprofundando-se pelo interior, presidios militares que balizavam os caminhos das caravanas de escravos € serviam de depésito intermediério, Os traficantes dispunham de redes de agentes ~ 05 pombeiros (ou pumbeiros) — que, por via {errestre ou fluvial, efetuavam prolongadas excursées pelo interior até 08 pumbos ~ os mercados onde se realizava 0 escambo de es- ‘eravos com as tribos locais. Dali os prisioneiros seguiam acorrentados até 0s portos, onde aguardavam embarque para a América. Os pom- 9s gram brancos, mais freqUemtemente mulatos, negros livres ou até escravos de confianga. Por sua parte, a Coroa portuguesa ‘mantinha relagdes de tutoria ou de alianga com numerosos sobas, que se incumbiam de abastecer a rede de agentes do tréfico ou, em certos casos, de pagar tributo sob a forma de eativos. Assim, por cexemplo, Salvador de $4 impds ao rei do Congo uma contribuigdo de nove mil escravos apés a retomada de Angola, Eventualmente, 0s préprios portugueses empreendiam assaltos diretos em busca de prisioneiros, auxiliados pelos guerreiros Jaga, a semelhanga dos ban- deirantes paulistas que comandavam indios na caga a outros indios, Enquanto estes contaram em sua defesa com os dominicanos ¢ je- suitas e com préprio Vaticano, 9s negros tiveram desde cedé sua escravizaso sancionada pela Igreja Catdlica. Os jesultas, em parti- ccular, ndo $6 recomendaram o emprego de afticanios no Brasil como «exploraram escravos negros em suas numerosas plantagense fazendas de_gado e auferiram rendimentos do trifico, inclusive de sua pritica direta na Africa. 2* Do exposto se conclui que nio precisaram os colonizadores empreender, como no Brasil, a ocupacdo efetiva e o povoamento do + Sobre o mecanismo do tifico africano ¢ quests correla, . BoXaR, CR, Sel ador de Sa Lata plo Brasil e Angola (1602-1685 Sto Paulo Cia. 4. Nacional a. da Universidade de Sto Paulo, 1973p. 236-53; 1d The Pornguese Seaborn Empire Op, el p. 20-24, 31-32 © 96-103; Dave Beton, Op. cit, cap. IV a Vz Sunst- Cane Africa Wegra. Op. cit, p. 9-93 € 18-37; SPs e Mantis, dante da Bahia Op cit 2°68 p. 145-50; Taunar, Affonso de B. Subaldios para a Histria do Trafice Arians ro Brasil Colonial. Ri de Janeiro, lmpreasa Nacional, 194 p. 625-53; Cara, José. Op. city p T-12 € 171-73; GoULARr, Maus. Op. cl, cap. I NATUREZA ECONOMICA DO TRAFICO 137 territério africano, com a resultante de uma nova formacio social AAs estruturas sociais afticanas permaneceram intactas, mas perver- tidas pela exacerbagdo do trifico escravista, que reforgou o poder dos dirigentes tribais, dos chefes de Estado e das castas aristocraticas, acentuando caractersticas despbticas ¢ espoliadoras. ‘Monopolistas absolutos do trifico de negros até comegos do século XVI,-0s portugueses a partir daf tiveram de enftentar a con- corréncia dos rivais colonialistas. No século XVILI, com a poténcia o seu capital mercantile de sua forga militar, coube aos ingleses a primazia mundial do trafico. 4, Natureza econdmica do trifico Queco de aticanoeapresentava dpe face: do lado dos ver dedores aficanos; no piissava de escambo com vistas 4 obtengio de valores de uso; d0 lado dos trafieantes europeus, era genuino comér- cio, intercdmbio de Valores de troca, circulapao- mereaatil com o objetivo de Iuero. Gracas justamente a esta dupla face & que o Walico negreiro se tornou um dos negécios mais lucrativos da época do mercantilismo, ‘Nas formagées africanas de eatio, mesmo nas mais desenvol vidas, inexistia qualquer process acumulativo de tipo capitalista, mesmo restringido a esfera da circulagto. As trocas interafricanas apresentavam 0 carSter de eseambo de valores de uso para ambas as partes envolvidas. Embora jé se atribulsse a diversos produtos a fungio de moeda, esta servia de meio de circulagfo e de melo de entesouramento, porém nunca assumia a funcdo de capital, de valor ser incrementado como fim em si mesmo. Quando vendiai p neitos aos trafieantes, 0s africanos nflo pensavam senfo na obteagao de produtos exéticos pelos quais tinham grande estima e que serviam diretamente ao consumo individual ou ao entesouramento, Neste lilimo caso, os chefes afticanos se motivavam pela necessidade de reforgo do presiigio social através da ostentago ou da redistribuiglo dos produtos.como melo.de.garantir Jealdades. cativo, por sua vez, nio cristalizava trabalho ¢, por conse- suiate,"ndo tinha o custo social de um produto, muito menos de um valor. Obtinha-se através da guerra exercida como atividade social rotineira ¢ indispensivel, cujos gastos nfo se computavam como ‘gistos do trabalho produtive, Resumindo-se num saque, a guerra 138 FONTES ORIGINAIS DA FORCA DE TRABALHO FSCRAVO. permitia apropriar-se do homem livre e faz#-to eseravo, porém ndo 0 Fravia criado como individuo humano. Em conseqiiéncia, 0 custo do escravo era igual a zero para o africano que 0 capturars e dele se servia no escambo com os traficantes. ‘Compreende-se 0 quanto isto seria vantajoso aos traficantes, Estes faziam gastos iniciais na armagio dos navios, no pagainento as teipulages e na compra dos produtos com os quais iam adquirir ‘os escravos a serem vendidos nos portos das Américas. Uma vez que, para o fornecedor africano, 0 eseravo tinha custo igual a zero c 0 objetivo do escambo consistia somente na obtenso de valores de uso, sem consideragao pelo valor de troca, podiam os traficantes ceuropeus adquirir os esctavos por um prego que, juntando todos os ‘gastos fitos, no representaria senfo pequena fragio do preyo final no mercado americano; pois, enquanto 0 escravo nio tinha valor na Africa, © contrério sucedia do outro lado do Atldntico. Aqui, 0 escravo apresentava-se desde logo como mercadoria, com ‘um custo inicial determinado e com um prego final a ser fixado pela correlagio entre demanda e oferta no momento dado. A diferenca entre 08 pregos no mercado vendedor e no mercado comprador podia ser, em conseqiiéncia, muito ampla e propiciar um lucto excep- cional em comparagio com outras aplicagdes do capital mercantil E evidente que o funcionamento do mecanismo sofia variagées «estas nem sempre seriam favordveis aos traficantes. Com o afluxo crescente de compradores, 0s africanos aprenderam a tirar proveito da concorréneia entre eles e aumentaram suas exigéncias com relagdo A quantidade e A qualidade das produtos que recehiam em troca dos escravos, Em contrapartida, os pregos dos eseravos nas Américas sofriam altas e baixas conforme a demanda ‘dos plantadores © a oferta dos traficantes, sendo de notar que a demanda foi, em geral, a varidvel dinmica na correlagio, No entanto, com uma intensidade maior ou menor, © mecanismo puramente econdmico acima exposto esteve subjacente ao trafico em toda a sua existéncia. ‘A esta altura, cabem algumas consideragdes acerca da clevads ‘mortalidade dos negros durante as viagens transoceanicas. Na maior parte do século XVI, a mortalidade foi alts. para os homens livres ¢ 0 seria ainda mais para os escravos, Contude, © aperftigoz~ mento da navegagdo a vela tornou as viage’ seguras nos stoulos posteriores, cainds # morialitsc> ara os mens livres a uma taxa em torno de 1%, camo se infere de num sos relatos, embora as condigbes de conforto, mesm NATUREZA ECONOMICA Do TRAFIC 139 sageiros privlegiados, continuassem longe dos padrdes hodiernos, 2° 46 para os negros trazidos & América, a letalidade niio deve ter bai xado senfo em cerea de 50%, numa estimativa certamente favorivel. Em 1569, afirmava Frei Thomaz de Mercado, com relaglo aos negros embarcados nos navios tumbeiros, que“... maravilha é ndo diminuirem de vinte por cento”. #7 Para os séculos XVIII e XIX, julga Mauricio Goulart que a taxa média de mortalidade dos negros em viagem pode ser razoavelmente fixada em 10%.** Ainda assim, apesar da redugio, um percentual elevado, Em termos médios, a rmortalidade dos escravos nas viagens transocedinicas pode ser esti- mada em cerca de dez vezes com relagdo 4 mortalidade dos homens livres. Omite-se, neste raciocinio, o trifico do periodo ilegal, prova- vvelmente muito mais devastador. Apesar dos seus exageros, que aot historiadores cabe corrigir, os abolicionistas tinham raz4o no fun- damental da questio. ‘A causa do fendmeno nfo pode ser apontada no preconceite racial, pois os brancos indigentes trazidos da Europa como inden- ‘ured servants ~ forma incompleta de estravidio ~ viajavam em: condigdes semelhantes e softiam também dizimagées a bordo. ** © fendmeno tampouco resultou de perversidade gratuita, uma ver ue os traficantes eram negociantes de espirito pritico aos quais ndo interessavam perdas no estoque de escravos em trinsito, Note-se ue os portugueses possuiam experiéncia de organizacdo eficaz do transporte © os holandeses com eles aprenderam, quando ingres- saram neste ramo de negécio durante a ocupagio do Nordeste do Brasil, Apesar disso, a prépria Coroa portuguesa se viu obrigada cmitir, bem mais tarde, a Lei de 18 de margo de 1684, através da qual imps minuciosas normas As viagens dos navios negreiros, com 6 objetivo exatamente de coibir a superlotagio ¢ outras condigSes adversas responsiveis pelos indices de mortalidade € morbidade A severidade das penas especificadas dé idéia da gravidade dos Mute, William, Nova Histra dos Estados Unidos. elo Horizonte, Ed tatiis, Gl, "Em 1780, por exzmplo, a Vagem entre a Inglaterra e a Arotrica red ‘om ens, «Feqéncia das paras elevara-e a uma ou mais por dia © 4 a tnvcla melborats 8 ta panto que o seguro martina passou ater cust> sgalfcante © ser também negéeio alucente [urative.” Apu Vanwanamn. Op. ei, CE pe 434, # Ch Gouarr, Mauricio. Op. city p. 2 * Cf Miuum, Willams Op. et, . 78: Wo Ms, rie. Op, et, p. 1314 140 FONTES ORIGINAIS DA FORGA DE TRABALHO ESCRAVO abusos praticados, varios deles indicados nas consideragéesiniciais «e108 artigos da Lei. 9° Ndo obstante, & duvidoso que esta imposiglo legal fosse melhor observada do que tantas outras, quando feriam interesses de setores poderosos e dificilmente controlives. ‘A causa do alto pereentual de letalidade dos negros a bordo dos tumbeiros deve ser buscada no largo diferencial entre 0 seu prego de compra na Aftica e o prego de venda no Brasil. Certs itens ba- sicos das despesas de viagem — sobretudo 0 custo e uso do navio €05 gastos com a tripulagdo — eram invaridveis qualquer que fosse a lotagdo dos pordes. Em conseqiiéncia, o aumento do niimero de ‘esoravos transportados traria to-somenté 6 acréscimo do preso de compra do estoque global de negros © mais a elevagio nfo muito considerdvel nos gastos com sua manutengio. Em tais circunstincias, valia a pena arriscar. Qualquer variagdo para menos no percentual de mortalidade elevaria o lucro do traficante. A superlotagdo devia set a regra, ateatando-se ou acentuando-se o grau de mortalidade 4 bordo conforme diversos fatores (duragdo da viagem, circuns- Uincias meteorolbgicas, condigdes de saide da carga escrava no momento do embarque, estado higiénico dos géueros alimenticios € da agua potivel, ete), Suponhamos que o transporte de cem escravos assegurasse uma perda nula, exclusfo feita de acidentes, prolongamento imprevisto do tempo de viagem, epidemias, ete. Mas, se © navio transportasse duzentos escravos e tivesse uma perda de 10% para baixo, 0 lucro seria consideravelmente maior para o traficante em termos absolutos em relagio ao investimento total. O que corresponde & constatasao de Tollenare: “Um negreiro de Mosambique que perde 10%, do seu carregumento considerado como tendo feito uma boa viagem”. > Sea perda fosse de 207, ndo era improvavel que ainda houvesse Jucro, embora bastante abeixo da taxa média neste ramo de negécios, Sendo assim e sobretudo em conjuntura de alta de pregos no Brasil, por que no aventurar e superlotar os pordes com negros comprados a baixo prego na Africa? 2 ABN, v.28, p. 206-11 Elementos reunidos por Josh Capela mosirum que o ss: tema regular de transporte transoosinico dos negros obedecia antes as interesses os traficantes do que & legslacfo normativa. Op. elt, p. 16470 SW Toumane. Op. elt, 9. 133 NATUREZA ECONOMICA DO TRAFICO 141 Consultando a esmo exemplares de um jornal baiano, entre ‘argo ¢ junko de 1821, efetuou Maria Graham um levantamento das viagens de cinco navios negreiros chegados a Salvador. *? O resultado se assemelha « uma amostragem, sem os rigors, est claro, da téenica estatistica modema. A amostragem de Maria Graham ndo € decerto significativa para todo 0 trafico daquele ano, mas 0 como modelo de um caso extremo, pois trés dos cinco navios as- sinalados partiram de Mosambique, conduzindo 63% da carga total pelo trajeto mais longo do trafico. Os dois navios restantes partiram de Malembo, no Congo, com um trajeto para a Bahia muito mais curto. Curiosamente, no entanto, a taxa de mortalidade geral da carga escrava de Mosambique — 20% — nao se distanciou extraor- dinariamente da taxa de 17% verificada nos navios vindos de Ma- lembo, No total de 1 948 escravos transportados, haviam morrido 374, ou seja, 197%, As variagdes de morialidade para os cinco navios foram as seguintes, em percentagens: 38, 4, 3, 27, 8. Observe-se que 6s trés primeiros percentuais se referem aos navios procedentes de Mogambique. Admiti-se-& que os traficantes do primeiro edo quarto navios tivessem tido prejuizo, que 0 do segundo navio consegui lum luero algo' menos que bom, enquanto os traficantes do terceiro © do quinto navios auferiram um lucro entre bom e excelente. ‘A escravidto dos negros assumiu em todos os casos a forma completa, cessada somente a partir da Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco, de setembro de 1871, quando se eliminou o atributo da hereditariedade do status servil. Por isso, 0 estudo sistemitico do escravismo colonial tem a escravidio negra como pressuposto, ade- ‘mais porque foi ela que proporcionou estabilidade ao modo de produgio, 2 i. Grasua, Mfrs, Dido de uma Viaem ao Brasil Sto Paulo, Ci. Bd, Nasional, 1956, p16,

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