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Capitulo II ITINERARIO DA ONTOLOGIA CLASSICA N se como uma indagagiio sobre a forma- gio histérica do conceito de ontologia, ou ciéncia do ser, como ciéncia primeira, radicalmente distinta de todo outro tipo de saber cientifico. Seja-nos permitido confessar: se vamos neste momento interrogar os gregos ¢ mediev: tifico, & que estamos intimamente convencidos de que vdo seria tentar compreender sequer o sentido dos problemas que hoje se desenham no horizonte de nossa inteligéncia rejeitando ou simplesmente desconhecen- do os temas da especificagdo helénica que modelam decisivamente — forgoso € reconhecé-lo — nosso modus mentis. Nao que professemos um fixismo estéril ou um culto cego do pas- sado. A reflexao filoséfica, bem o sabemos, verifica por exceléncia a lei de todo pensamento auténtico: ela € progressiva e criadora. Mas importa sobremaneira definir a alma desse progresso e discernir os frutos autén- ticos dessa atividade de criagdo. Ora, se é licito transportar ao campo da histéria da filosofia o que tem lugar no desenvolvimento da doutrina crista, dirfamos, fazendo uso de uma expressio de Santo Ireneu, que a marcha do pensamento filos6fico é animada também ela por uma divayts Tis tapaddceus (cf. Adversus Haereses, I, 10; PG, VII, 552), pela forga viva da tradigio. E na consciéncia de uma continuidade viva com o pas- sado que, para 0 fildsofo como para todo homem, se abre 0 acesso 8 terra bre a esséncia da filosofia e sobre seu estatuto cien- 7 Digitalizado com CamScanner nuiriz onde se alimenta nossa auténtica humanidade e em cyjg ne gam raizes os problemas reais, esses que. como a Esfinge ante Ovi, . ty Tebas. para usar a comparacao de Toynbee, levantam-se como un acada homem, a cada época, a cada cultura, € trazem, na urgéng;, Me de suas interrogagées. a promessa de uma porta aberta para a Verdade, progresso em filosofia deve cons istir —— em adivinhar Na fi nova das aporias concretas que solicitam 0 espirito, sob a Conjuncs, dado céu hist6rico. os tracos antigos desses problemas que bem Se chs, ' mam “eternos” e cuja permanéncia € como 0 signo que Tevelaa Contig, | cia dé nossa natureza e a unidade de nosso destino. E a um esforgo g { reinvencao, portanto. a uma voca¢ao supremamente humanista que a fig, | sofia nos parece convidada, se € verdade que o humanismo se defig como a consciéncia da continuidade humana. i Mas. obedecendo ao ritmo especifico do espirito, essa Teinveng | em que somos tentados a fixar a esséncia do progresso filoséfico nio é repeticao mecdnica, é livre e espontanea criaco. Eis af. na verdade, uz | estranho paradoxo! Se nosso espirito encarnado encontra na fidelidade sua condi¢do e na aceitacao do longo passado que emerge no seio de sux mais atuais perplexidades as amarras que 0 prendem ao real, ha entretant na unidade profunda que define seu ser histérico uma dialética do dives. | em que cada resposta 4 proposic¢ao dos mesmos problemas fundamen | € um momento original, uma prospeccao dindmica. A pura repeti¢do cor | vém ao instante matematico do tempo mensuravel, 4 dispersio quantit= | tiva do espago. O espirito, como mostrou Bergson, obedece a uma dure ¢4o qualitativa. E se um “dado” objetivo se lhe impée — uma “matéria. i como diria Kant —, nao é a uma receptividade inerte que ela faz face. ™ | a um acolhimento vital, a uma TecriagZio em que o objeto € plenamet® | | | | assumido pela iniciativa interior, Assim, 0 progresso em filosofia deve consistir ainda em des 0 “dado” auténtico que Seja um alimento real 2 intussuscep¢ao 40 oe ¢ libertar 40 mesmo tempo a pulsiio criadora com que 0 espitito oe dilata o objeto 4 medida de suas exigéncias concretas. : Ora, este dado auténtico nés 0 encontramos, vindo do ma! no eee com © imperativo de uma questdo metafisica i uf >'€ Possivel eludir. A reflexdo filoséfica de um momento it! inado. c3 . ssica V determinado cabe realizd-lo na carne e sangue de sua problema? list it? jit is long! gue 38 Digitalizado com CamScanner ITINERARIO DA ONTOLOGIA CLASSICA ‘e encontrar assim o sentido de seu legitimo progresso. Eis por que, per- correndo os caminhos do passado, esperamos dar mais seguramente na substincia do presente. O problema cartesiano da sabedoria, 0 problema kantiano da metafisica como ciéncia sao hoje mais agudos do que nunca, Formam mesmo a opgao decisiva que se oferece ao filésofo contempora- neo. Iremos renunciar 4 especificidade da filosofia? Iremos exilar suas questées centrais para a terra, indspita a inteligéncia, das “proposigdes sem significagéio”? O empirismo légico dos neopositivistas ¢ a repugnin- cia existencialista a uma expressio racional do transcendente obrigam- nos, em tiltima instancia, a formular estas graves interrogagées. Vamos, pois, prop6-las aos antigos. Vamos tentar surpreender nos. seus impetos primeiros a forga viva da tradigio filoséfica. Tudo nos con- vida a esperar receber af, para 0 mais especifico dos problemas humanos, uma resposta que traz a antigiiidade venerdvel e a surpresa sempre nova da vontade. Para nds, repetimos, ela nao ira assumir a feigdo violenta de uma imposigio exterior, mas deverd florescer no cerne mais intimo de nosso préprio ser e responder, pelo absoluto mesmo de sua transcendente verdade, ao apelo da imanéncia mais profunda. Em outras palavras: a Tesposta que nos dé toda uma linha do pensamento classico 4 decisiva questdo metafisica “hé uma ciéncia do ser” (ou ainda: “hd uma ciéncia do metaempirico, do absoluto?), iremos vé-la por sua vez surgir dentro de nds como se em nds 0 ser se revelasse a si mesmo. Esta revelagio definiré a esséncia mesma do espfrito, de tal sorte que a construgiio da metafisica como ciéncia objetiva deve aparecer ao mesmo tempo nossa mais funda- mental e empenhativa atitude, e pord a descoberto, para falar com M. Blondel’, “o ser transcendente e numenal que esté em nés”. I O Sofista de Platao, que é, juntamente com os livros de Aristételes que Andrénico de Rodes enumerou no seu catdlogo apés a Fisica (ti 1. Cf. A. Lacanpe, Vocabulaire technique et critique de la Philosophie, Paris, Presses Universitaires de France, *1947, p, 106 [trad. br.: Vocabuldrio técnico e critico de filosofia, So Paulo, Martins Fontes, 1993}. 59 Digitalizado com CamScanner peti Te dvovxd), a carta magna da ontologia classica, ser para nés un | compreensivo ponto de partida’. ! O contetido do didlogo & conhecido. Aparentemente Plato preocy. pa-se em dar uma definigio do sofista que seja termo de rigorosa divisig dialética, Na realidade, este intento é apenas um ténue véu de humor que convida a penetrar a imensa seriedade da discussao. Esta é, com efeito, 5 lance decisivo da “batalha de gigantes em torno do ser” (Sofista, 246 aj em que desde 0 infcio se empenhara a filosofia grega. Nesta altura, Plats defronta o adversdrio mais temeroso, 0 grande Parménides (cf. Teeteto, 183 e). Os sofistas eram sabotadores de primeira linha. O relativisme universal de Protégoras traduzia apenas, na brilhante sedugio de uma eristica sutil, a op¢iio metafisica do eleatismo. Desde a aceitagao da pr- mazia do inteligivel ou da Idéia, de que ja 0 Cratilo nos dé um enérgico testemunho (cf. sobretudo Crdtilo, 439 c), Plat&o superara decididamente a posicio heraclitica. A afirmacao tranqiiila do mundo ideal, que atravessi 0 Fédon, 0 Banquete, a Reptiblica, nao era entretanto um desconhecimen- to de que o problema essencial do uno e do miiltiplo se coloca também no plano do inteligivel e mesmo recebe ai toda a sua significagdo. 0 “método hipotético” do Fédon e da Repiiblica (cf. Fédon, 101 d-e; Rep blica, 510b-511 e; 333 c) mostra suficientemente como o problema da relacdes ideais estava posto desde 0 inicio. Mas € no Sofista que eleé enfrentado por si mesmo e, neste prodigioso esforco de especulacio, Pls tao Janga definitivamente as bases da ontologia como ciéncia. A sedugi? da posigao cledtica estava toda na afirmagio intransigente do ser e ¢¢ pensar como incindivel unidade — td yep adrd vosiv te xd sivat— (Parménides, fr. 3, Diels-Kranz, 6. Aufl. 28, B, 3). Mais que ninguét “amigo das Idgias” (Sofista, 248 a), Platio aceita plenamente a posig® eledtica da unidade inteligfvel, e todo um aspecto de sua evolugdo & ore tado pela problemética do Uno’. O Uno eledtico & entretanto formal ¢ estdtico; e o monismo de Parménides revela-se afinal como radical imp téncia da razio diante do “diverso” que € 0 mundo, Foi a experiéncit 2. Seja-nos permitido remeter ao capitulo 1: A Dialetica das Idéias no Sofista. 3. Cf. B. nrucks, Platons Entwicklung zur Dialektik. Studien zum Problem Eleatismus, Frankfurt a, M., Klustermann, 1949, Se, Digitalizado com CamScanner nbivaléncia do logos, experiéncia cujos desastrosos efeitos Plato constatava no scio da juventude ateniense (cf. 0 texto tipico de Filebo, 15 d-16 a) que 0 levou ao exame critico da posigio eleatica. Iniciado no Parménides com uma contraprova negativa, uma “-yupveoicr”) dialética (Parménides, 135 d), progride afinal no Sofista para uma solugao Nao vamos analisar em pormenor 0 complexo didlogo. O que a nosso escopo € mostrar que nele a reflexdo filosdfica vinga definitivamente as fronteiras de seu objeto préprio ¢ logra dar uma ex- pressio racional & ciéncia do ser. Assim, 0 Sofista dé-nos 0 primeiro estatuto cientifico da ontologia, e foi no aprofundamento de sua posicéo que a reflexio filos6fica posterior péde dar a este estatuto uma formula- gio plenamente adequada. No itinerdrio hist6rico da ontologia, o Sofista representa o primeiro momento que chamaremos “objetivo”. Ele responde ao problema da “enum” platonica, que emergira mais grave do que nunca na “aporia” final do Teeteto. Se o ser & Idéia, o inteligivel puro; se a Idéia se exprime no logos, na razao (cf. Fédon, 99 e 100 a), como € possivel uma ciéncia do ser quando este se fecha, de uma parte, no Uno absoluto de Parménides, 0 logos aparece, de outra, como miiltiplo e, antes de tudo, dissociado no desdobramento da proposicao, da “8dEa”* que €, como tal, relagio de dois termos? Sem renunciar ao absoluto do inteligivel, como legitimar o r tivo da proposigio? Para o eleatismo a proposic¢ao € pura tautologia: € para os “eristicos”, de que nos fala Aristételes (Fisica 185 b 25-32), a prdpria relagdo de identidade deve ser supressa. Dai a conseqiiéncia sofistica da impossibilidade do logos falso (se o logos é sempre expressio da unidade absoluta do ser) e a doutrina de Protégoras do “tmavt’ &\npi” (cf. Teeteto, 152 a s: eLES, Metafisica, G, 1009 a 6). Ora, a Verdade tinha, para Plato, fundamentalmente um carater ontoldgico. Ha uma equagio que atravessa como um /eit-motiv toda a obra platénica, € © a que faz “Ser = Idéia = Verdade’’. Se, de outra parte, a ciéncia é Verdade, ou se ha uma ciéncia do verdadeiro, ela serd uma ciéncia do “ser —_—— ping NO sentido Ue “juieo”. CI Sofista 263 e, € a nota de Consroro, Plato's Theor’ Koontedge, London, Routledge and Kegan, 1935, p. 318. aig 5. CIR. G. BURY, The Philebus of Plato, Cambridge University Press, 1897, pp. 61 Digitalizado com CamScanner TEMAS DE ONTOLOGIA realfssimo”, do “Sv7ws Gv": seré uma ciéncia das Idéias. Todo 0 esforc, de Platéo consiste, pois, em mostrar no ser, que é Idéia, néio uma unidade linear ¢ indiferenciada®, mas uma pluralidade ordenada, ¢ substituir avs a tautologia estética do principio parmenidiano “o ser 6; 0 nfio-era néo uma proposigao sintética que exprima, justamente mediante 0 dinamisirs do logos, a unidade ¢ a diversidade do ser. Sabemos como Plato ences trou na classica oposigao do “movimento” ¢ do “repouso” (" “ardars”, cf. Sofista 249 d ss.) os elementos que Ihe permitiram dar afirmagio do ser 0 carter dindmico postulado pela estrutura do logos. 5 dizemos “o set é movimento e repouso”, temos, de uma parte, na ‘outra, na irredutibilidade do sujeito (0 ser, como mostrara Parménick nao € decomponivel em elementos mais simples), a persisténcia da wi de. Em outras palavras: se hé oposigiio dentro do ser, um contrério do € impensavel. O ser é sempre um “tpétov tv”, um terceiro termo telacio a seus predicados. E, sendo assim, ele revela, precisament: oposicao relativa de seus participantes, de que o movimento € 0 re sdo em toda a histéria do pensamento pré-socrdtico 0 mais ilustre ¢ plo. na posi¢ao mesma de cada Idéia como ser pela inteligéncia ou em s expressao pelo logos, um entrelagamento (ovpmhoz%, Sofista, 259 ¢ relagdes fundamentais. A determinagao destas relacdes é justam: primeiro passo com que a ciéncia do ser se liberta do dilema cledtico. como: a posicao de cada Id¢ia como ser implica sua identidad: mesma; € 4 condi¢do necessdria para que o objeto da inteligéncia se define como tal (¢, Sofista, 249 b). Sua posigio como determinada per! inteligivel implica uma relagdo de alteridade que a faz (cf. ibid., 258 b), Identidade ¢ alteridade sao, assim, as rel que na ordem real se hipostasiam para Plato em Idéias de que tod outras participam Sofista, 254 d; 256 d-e 259 a) e finem as leis necessdrias da afirn p Objetiva. No vamos mostrar como a partir daqui Platéio constréi uma te do erro e refuta a posigio sofistica. Interessa-nos, antes, indivar come + dialética platonica constitui-se assim em ontolog : eo ser é sinte 6. figura da “esfera” de Parménides. Cf. Diely-Kranz, Frag Vorsokratiker, Berlin, Weidinann, “1951, 28, B, 8 43-49, 62 Digitalizado com CamScanner ITINERARIO DA ONTOLOGIA CLASSICA “jdentidade”, é sintese do uno e do miltiplo. Quando o logos se desdobra, pois, na proposi¢io, ele é ainda a expressio da estrutura real do ser. A propos’ verdadeira, 0 “Adyos GANAS”, serd aquela que, exprimindo a participagdo real de duas Idéias, exprime os seres em sua raziio mesma de ser (Aéyeu... TH dvta ds Eortw, Sofista, 263 b). Daqui que, se para Plato hd somente ciéncia das Idéias, e esta ciéncia é a dialética (Fédon, 78 c-d; Reptiblica, 85 b; 511 b-c; Sofista, 253 d-e; Filebo, 16 c-e), a dialética platénica é, de direito, uma ontologia. Ora — e eis um ponto decisivo para nés —, esta ontologia niio se justifica criticamente, como o Sofista acaba de no-lo mostrar, seniio pre- cisamente porque Plato busca o ser — que deve encontrar no logos sua expressio inteligivel — nao unicamente no termo estético de uma elabo- ragio conceitual, como fizera Parménides, mas no movimento mesmo com que a Alma conhece, no ato em que ela se pronuncia, ou seja, no “So&aLew", no ato de julgar. Em outras palavras, a unidade do ser em Platio nao € uma unidade de identidade, mas uma unidade de participa- Gio. Se ha juizo, ha sintese; se ha sintese, ha diversidade; se hi diversi- dade e sintese, ha participagao. Assim o ser se revela como participagiio precisamente na estrutura do ato judicativo. Platio viu claramente que, para uma inteligéncia em movimento, o ser, mesmo afirmado como uno na unidade de cada Idéia, desdobra-se entretanto em relacio, e 0 movi- mento da inteligéncia que conhece é, sob outro aspecto, uma sintese pro- gressiva das participagGes do ser. Pela “Suvayus” da alma cogno: que se manifesta no juizo (Aoyuo.ds), aparece também a linha dindmi do ser (Sofista, 247 e-249 b) e torna-se possivel a superagao do imobilis- mo eleatico. Dissemos que 0 platonismo representava no itinerdrio da ontologia © momento “objetivo”. Daqui sua essencial grandeza e também sua limi- tagiio. De fato, se o ser platénico, enquanto objeto da ciéncia, se revela no jufzo, se exprime na dialética, ele se exaure entretanto em total obje- tividade. Podemos dizer que o juizo revela o ser, e sua estrutura relacio- nal opera a sintese do uno e do miiltiplo. Entretanto, ele nao & para Platio a tiltima justificagao critica do ser, e nisto o Filésofo mostra ainda um resto impenitente de eleatismo. O ser platénico é Idéia. E como Idéia que ele é a razdo formal que da a dialética seu alcance ontolégico. O dialé tico, com efeito, é aquele que faz recurso continuamente 2 Idéia do ser 63 Digitalizado com CamScanner (TR Tod Svrosg dst Sa Aoyrpav Tpocxetpevos idéa, Sofista, 254 i), On, a transcendéncia da Idéia platénica é tal que ela rouba ao mundo da experiéncia ¢ & contingéncia mesma do ato de conhecimento toda intrin- seca inteligibilidade. Assim, 0 conhecimento atual, esse mesmo que nox revela no juizo uma expresso racional do ser, nao se justifica como tal, isto & como o ser que descobre o ser, sendio por uma “passagem ao limite”, uma espécie, dirfamos, de “redugdo transcendental”, em que o movimento da razio raciocinante € referido a imobilidade de uma con- templacdo pura. Sabe-se como, para Platdo, a ciéncia da alma no corpo flui toda de uma visio anterior das Idéias, mediatizada para nds pelo processo do “aprender” (wavOdvewv), que se define assim como “remi- niscéncia” (avapvyors) (cf. Ménon 84 c-d; Fédon, 72 ¢; € sobre a con- templacao original, Fedro 247 c-d; 250 c). Entretanto, se na contempla- ao original hd uma “conaturalidade” (Evyyéveta, Fédon, 97 d) da alma com 0 inteligivel, este se extrapde ainda em total objetividade, de modo que. sendo o ser uma Idéia, sua justificagio critica no conhecer — sua ciéncia — vem a objetivar-se também em Idéia’, 0 que é uma reniincis & compreensio da originalidade do ato mesmo do conhecimento como intrinsecamente inteligivel. Nesta suprema aporia termina 0 grande esforgo de Platio, O ser nos € mostrado como “chefe de fila” (apyny6v, Sofista, 243 d) no coro das Idéias, como objeto formal, portanto, da dialética. Mas & ainda, ¢ inteiramente, uma Idéia. Se Plato busca a revelacio do ser no ato judicativo, faz entretanto depender toda a sua inteligibilidade do aspecwo formal da representacao. Daqui que a transcendéncia do inteligivel ab sorve a originalidade da inteligéncia. Que a inteligibilidade do ser possa emergir no seio mesmo da inte ligéncia, de modo que sua transcendéncia se justifique pela natureza de ato mesmo da inteligéncia; que a dialética do.ser seja uma dialética da participagao do ato antes de ser uma dialética da pu jo da idéia ow da inclusio formal: tal a linha para onde deverd inclinarse a veilesio ontolégica, a fim de encontrar um estatuto cientifico adequado, 7. £0 paradono platonivo de win “eidos” da cigneia, Cf. Crdtila 440 wb ¢ AI Festvoitee, Contemplation et vie contemplative selon Platon, Paris, Vain, 4950, pp. 81 € 96-98. 64 a Digitalizado com CamScanner Passemos ao livro T da Metafisica de Arist6teles*. Este texto justa- mente célebre nos orientardé para o segundo momento histérico da edifi- cago da ciéncia do ser, e que propomos chamar “reflexivo”. Aqui tam- bém nao vamos descer dlises de detalhe ¢ muito menos enveredar pelo problema espinhoso da unidade do pensamento aristotélico. Queremos mostrar somente como neste texto estamos diante de um passo decisivo da reflexiio metafisica em busca de sua expressio cientifica. O livro T, como se sabe, responde a algumas das “aporias” acumu- ladas no livro B. Ele comega por afirmar que existe uma ciéncia do “ser” (7 Sv } Sv), que recebe justamente desta formalidade de seu objeto a nota especifica que a distingue de todas as outras ciéncias particulares. Ora, continua Aristételes, o ser se diz de muitas maneiras (t 8’ dv héyeTou Bev TOAAAYXGs, I’, 1003 a 33), nao a modo de sinonimia, é verdade, mas também nao é como radical diversidade, pois implica a referéncia a uma unidade primeira (mpds &v xai plav twa stow, ibid.). Esta unidade primeira, Aristételes 0 mostra na célebre comparagao com a “satide”, é a substancia (ovoia, ibid. 1003 b 5-10; cf. Z 1028 a 10-b 7). Em outras palavras, 0 ser é andlogo e seu “analogado principal”, como dira a esco- lastica, € a substancia. Se pois toda ciéncia requer a unidade em seu objeto, a substdncia da ao ser como ser a unidade que o faz objeto de uma ciéncia tnica. A referéncia a “ovo(a” funda portanto a unidade dos diver- sos aspectos do ser; e Aristételes mostra como a “adigao (mpda8eots) da “unidade” (cis &vOpwrros) e da “existéncia” (@v &vOpw7os) nao altera a “significag’o” da “esséncia (GvOpwtros), de modo que a posigdo do ser é identicamente a posig&o do uno (ibid. 1003 b 25-34)’. Ora, tal afirmagio vai colocar Arist6teles diante dos mesmos adver- srios com os quais Plat&o travara a luta decisiva do Sofista. Com efeito, se o ser é uno, ele encerra também grupos de determinagdes opos (vrizel(peva): todos os antigos concordavam em que o ser era composto de contrarios (1004 b 29-34), e, antes de tudo, a multiplicidade mesma é 8. Sem entrar no problema da composigiio da metafisica, supomos com W. D. Ross (Aristotle's Metaphysics, Oxford, Clarendon Press, 1942, 1, XV-XXIV) a tnidade, ao menos sistemética do grupo ABI EZHOMNI. 9, Sobre esta importante passagem, ef, 0 comentério de lec. 2, Cathala 550-552, ¢ 0 de Ross (op. cit., pp. 257-258). E em Litre et l'essence, Paris, Vrin, 1948, pp. 58-59. Santo Tomas, In IV Met., Gison comentou-a também 65 Digitalizado com CamScanner TEMAS Di ONTOLOGIA uma oposigiio d unidade (ibid, L004 a 9-10; b 35), Se, pois, o ser, de uma parte, & uno e, de outra, se diz “rohdaXe éne rio mostrar como, a ciéneia do ser abraga esta oposigho fundamental do uno ¢ do miiltiplo, Na qual todas as outras se resolvem (ibid, 1005 a 5), sem incidir no mobilismo de Herdclito ou no relativismo légico de Protdgoras, nem s ver obrigado a recuar para o monismo cledticn, Aqui Aristételes invoca a segunda “aporia” que propusera no livro B (995 b 5-10, ¢ 99 b 27-997 a 15), Toda ciéneia, cle © mostrara nos Segundos Analiticos (A 72 a 7), parte de “principios" (cpyat), O “prinefpio” & suposto, é uma “hipdte: (no sentido original da palavra, ef, PLArAo, Ménon, 86 e-87 a) ¢, como tal, indemonstravel com os prinefpios da ciéncia mesma (seria um citculo vicioso); ele & com efeito, causa da ciéneia e dé a raziio de seu objeto. Os “prineipios” da ciéneia do ser deveriio dar portanto a razio de seu objeto, isto & dar a razido do ser como uno ¢ miltiplo ou justificar o ser como uno ¢ miltiplo, 1 verdade que, se os “principios” nio podem ser propriamente demonstrados, podem entretanto ser justificados pelos prin- cipios de uma super 8 sendo a ciéncia do ser ciéncia supre- ma, € necessério que seus principios tenham a um tempo 0c de abso- luta inteligibilidade (yvmpyzwtéTy) © absoluta nee lade (cevurtduetos) (cf. 1005 b 13), Eles deverdio ser esta sO por meio de uma demonstragiio “éheyxtixds”, isto 6, que reduza o adversirio ao absurdo. 0 que Aristételes vai fazer, estabelecendo por esta via o primeiro principio da ciéncia do ser, que opera a sintese racional do uno e do miltiplo™. Este principio absolutamente primeiro & 0 chamado principio de contradigao, j4 referido no livro B (995 b 9-10; 996 b 29-30), e que aqui. no livro 1, é enunciado da s atributo s 0 seja O mesmo sujcito YO MesMO tempo eC sobre o mesmo aspecto” (1005 b 19-20), Apresentando-se como lei do Ha 0 principio impoe-se imediatamente como lei do pensar (ibid, 1005 b 22 guinte mancira; “EB impossivel que o mesmo 10, Nio estudamos aqui o aspecto positive do que Amstoniis ehana “ind dos primeiros principios (ef, Past, An, B99 b 15 4x.) Heste um dos pontos mais treqtlett temente mal entendidos da lopica aristotdticn, Para una interpretaglio exata ef, D, Ress. Prior and Posterior Analyties, Oxford, Chirendon Press, 1949, p) 84-86, © 8, Mawsion. L¢ Jugement d'existence cher Aristote, Louvain, Institut Supérieur de Philosophie, 1946, pp 140-144, 06, Digitalizado com CamScanner ITINERARIO DA ONTOLOGIA CLASSICA 34); a impossibilidade no ser implica, com efeito, aos olhos de Aristételes, a impossibilidade no pensar objetivo. Ora, o que € de extremo interesse para nds é mostrar como Arist6- teles estabelece este alcance ontolégico da lei de contradicdo. Os sete argumentos que ele enumera em sua redugio ao absurdo do relativismo 1ém uma articulagéio Iégica comum, na qual aparece justamente a incidén- cia “reflexiva” que marca 0 ponto de partida da ciéncia aristotélica do ser. Para se processar a demonstragio, “éheyxrixas”, do principio de contradicao, diz Aristételes, é necessério somente que seu negador queira dizer algo (7 A€yq) que tenha uma significacio (1006 a 12). Ora, 0 sofista cético (0 relativista universal) quer disputar. Se quer disputar, quer exprimir um “ser de significagdo” para si e para aqueles com quem dis- puta (onpatvew yé Tu xai Fav7w xa &Aw, 1006 a 21). Do contrario, ha de fechar-se num mutismo que € negar-se a si mesmo como ser pensante, e tornar-se, segundo 0 dito célebre, “Spovos buT@” (1006 a 14). Mas onde ha significagdo, ha determinacdo e unidade, e ha, portanto, implicagdo de uma afirmagio do ser ao menos em sua forma mais geral: “Alguma coisa de determinado, €” (8n yep TL EoTaL Hpiopévov, 1006 a 24-25). O telativismo universal é, pois, obrigado a peticdo de princfpio, j4 que aque- la minima franja de determinagao, que é essencialmente ligada & primeira afirmacao da inteligéncia, impde com rigor absoluto a lei de contradigao. Assim, 0 primeiro princfpio'' surge no ato judicativo com a absoluta necessidade do movimento mesmo da inteligéncia. O juizo revela o ser, operando logicamente — e com irrecusavel alcance ontolégico — a tese do uno e do miltiplo: como efeito, se ha determinagao, ha unidade, se hd movimento da inteligéncia, ha pluralidade de determinacées. E aqui que aparece a originalidade de Aristételes e 0 passo novo que ele da. Plato descobriu também a sintese do uno e do miltiplo no juizo, mas 0 ser assim revelado ele o projetou na objetividade total da Idéia. Aristételes renuncia a Idéia separada, mas nio renuncia ao ser. Se 0 ser se revela no juizo e, doutra parte, nado se extrapde todo na Idéia separada, ele deve exprimir-se numa dialética da participagio do ato antes de ser assumido numa dialética da inclusdo formal: pois se a determinagdo em seu objeto 11. Sobre o sentido original em que a lei de contradigiio pode ser dita “principio” na edificagdo da ciéncia do ser, cf. MANsion, op. cit., 147-149. 67 Digitalizado com CamScanner TEMAS DE ONTOLOGIA €é uma necessidade absoluta para o ser mesmo do ato judicativo. 0 ato participa do ser e o ser torna-se inteligivel no dinamismo intrinseco do ato: “otdé yap éySéxeTat voetv 7 vootra gv” (1006r b 10; cf. Santo TowAs, In IV Metaphys., lec. 7, ed. Cathala, n. 615). A posicao aristotélica guarda, pois, a determinagao objetiva sem hipostasid-la na Idéia separada, mas situando-a na linha da originalidade mesma do ato da inteligéncia. Entretanto, devemos reconhecer que uma dialética do ser, em que 0 ato fosse primeiro, nao foi levada a termo por Aristételes. Ainda uma vez a forma absorveu 0 ato, de tal maneira que a inteligibilidade do ser aristotélico nao penetra os seres em sua existéncia e deixa escapar assim 0 mistério de sua originalidade. O ser platnico € existencial, mas de uma existéncia ideal”. O ser aristotélico nao consegue superar os limites das determinagées da esséncia. Nao vamos estudar detidamente as aporias da metafisica aristotélica. Elas se reduzem a aporia fundamental da substan- cia!’. Se a substincia é, como vimos, o termo de referéncia que di unidade ao ser, ela nao € inteligivel para Aristételes senio enquanto universal. Ora, a inteligibilidade do universal permanece incuravelmente légica se ni prende a um inteligivel transcendente que seja plenitude de existéncia e usando o inteligivel platoni- co, Aristételes v; ir no quadro estitico das Categorias a Ultima insténcia de inteligibilidade do real. Se poré de uma 0 no sentido plat6- nico; e se a transcendéncia nado é buscada decididamente numa dialética icipagio do ato mesmo da inteligéncia, temos, definitivamente, lade na inteligibilidade do ser, que oscila entre a pura forma légica e a irredutibilidade da existéncia singular a ser exaurida na univer- salidade do conceito. Essa ¢, de fato, a oscilacdo, que atravessa a Metafisica de Aristételes, entre a unidade abstrata do “70 dv 4 Sv" como seu objeto proprio e a separagdo das “ovorat ywprotai zat exuirau” (Metafisica, E, 1026 a 15-32), que nao sendo suscetiveis de uma Participacio no sentido platénico, pois nao sao idéias separadas. nao 0 sio também para Aristételes na linha da causalidade eficiente, e esgotam assim sua inteli- 12. Cf. R. Lortaux, L’Etre et 'Idée chez Platon, Revue Philosophique de Louvain 50 (1952) 6-55. 13. Cf. A. Bremonn, Le dilemme aristotélicien, Archives de Philosophie X. 2 (1931) 32-42. 68 Digitalizado com CamScanner gibilidade no plano do conceito, sem poder fundar uma analogia dinamica que seja sintese de esséncia ¢ existéncia. Assim, se Plato e Aristételes abrem 0 caminho da ciéncia do ser, eles nao chegam entretanto a uma sua formulagio adequada. O realismo do inteligivel em Plato ¢ a justificagdo reflexiva da afirmagao do ser em Aristételes ficavam como linhas que se procuram em solicitagao de sin- tese. Longo foi o caminho histérico em que esta veio lentamente amadu- recendo. Assinalemos somente, de uma parte, a identificagio do mundo inteligivel com a inteligéncia suprema, j4 operada no platonismo médio"* e que conduz a doutrina plotiniana do Intelecto subsistente que a si mes- mo se entende'’, e, de outra, a irrupgdo dos temas cristios que modifica- tam tao profundamente o curso do pensamento antigo. Sem nos enredar no problema de uma filosofia crista, diremos somente que aquela “metafisica do Exodo”, de que fala E. Gilson", em que Deus se mostra na absoluta transcendéncia de seu ser, influiu decisivamente na evolucéo de que tratamos. Tl E passemos a Santo Tomas De Aquino. O grande Medieval vai dar- nos finalmente a sintese de Platao e Arist6teles e, com isto, uma formu- lagao adequada do objeto da ontologia classica. Como para os dois filésofos gregos, vamos interrogar também a doutrina tomista do juizo. Da heranga plat6nico-aristotélica, Santo Tomas recebe uma nogao do movimento da inteligéncia em que o juizo aparece em seu carter sintético como a superagio in limine do imobilismo eledtico (cf. In I Metaphys., lec. 9, Cathala, 138-139). Por outro lado, a critica aristotélica do relativismo sofistico impde-se-Ihe como a extrema instan- cia onde emerge a necessidade absoluta para a inteligéncia de afirmar uma determinagZo em seu objeto e de introduzi-lo assim na ordem do ser e da 14. Cf. Atsinos, Didaskalikés, IX (Hrrmany, App. Platdnica, Opera V, p. 163). 15. Cf. Enéadas. V, 3, 5 ¢ 0 comentirio de Bremer, vol. V, pp. 40-42. 16. L’esprit de la Philosophie Médiévale, Paris, Vrin, 71944, p. 50, n. 1. Cf. Maimonide et la Philosophie de I'Exode, Medieval Studies XI (1951) 2 5. 69 Digitalizado com CamScanner TEMAS DE ONTOLOGIA unidade. O ser se mostra a determinagao primeira do objeto da inteligén- cia, e este obedece no ato mesmo de sua posigao ao primeiro principio fundado sobre a oposigao do ser e do nao-ser (I? II* q. 9 a. 2c.) Ao defrontar seu objeto, a inteligéncia instala-se imediatamente no reino do ser. E a conhecida doutrina tomista do “ens primum cognitum” (cf. De ente et essentia, Procm.; De veritate, q. 1a. 1; 1q. 1 a. 2-c., ete. ...) Mas esta afirmacio espontinea do ser, que constitui o ato intelectual perfeito, ou seja, 0 juizo, € inserida numa teoria.extremamente elaborada. Santo Tomés aceita a critica aristotélica da Idéia separada. Se 0 juszo € uma sintese de determinagées objetivas, estas néo implicam a hiposta- siagdo de seus caracteres formais. O eidos é, como para Aristételes, imanente a hyle, e é nela, mediante um processo sensitivo-racional que a inteligéncia vai desoculta-lo. Assim ha para Santo Toms, no inicio do processo intelectual, uma andlise, ou seja, uma dissociagio em que o aspecto formal ¢ qualitativo da coisa € isolado da singularidade material e introduzido na ordem da necessidade inteligivel ou do universal. Este primeiro momento da intelecgéo é, podemos dizer, uma valorizacao do inteligivel, uma super: da limitagdo do “dado” concreto e a conquista de um plano de perfeigéo formal (correspondente ao “atta xa’ aind” platénico), que se mostra, na clara ordenagdo de suas articulages neces- sarias, inteiramente permedvel a inteligéncia (cf. In J Metaphys., lec. 11: Cathala, 183). . Entretanto, Santo Tomas sabe bem que 0 juizo, sendo afirmacio do ser, € uma conquista da unidade do objeto. Se a inteligéncia comeca por analisar — por abstrair — a fim de colocar o objeto no plano da inteli- gibilidade, sua marcha posterior hd de ser a conquista de uma unidade em que o ser do objeto se restitua como tal, sem fugir, porém, aos vinculos fortes da necessidade inteligivel em que a inteligéncia o quer afirmar. Ora, é neste itinerdrio da unidade que Santo Tomas passa além de Aristételes. Itinerdrio da unidade, itinerério do ser, e assim 0 Doutor Medieval define finalmente em todas as suas dimensdes 0 objeto da cién- cia primeira, tal como 0 pensamento classico o entrevia. O eidos comega sim por ser isolado da matéria que obscurece sua inteligibilidade, mas ele nao seré uma determinagao objetiva, um conceito predicvel nos juizos de realidade sendo reintegrado de alguma maneira na unidade concreta em que objetivamente se realiza. O primeiro plano da 10 Digitalizado com CamScanner ITINERARIO DA ONTOLOGIA CLASSICA unificagdo € portanto uma volta ao individual concreto. Ela se opera atra- vés do que Santo Tomds chama “conversio ad phantasma”, em que a inteligéncia modela a qiiididade sobre 0 esquema imaginativo de que foi abstraida (cf. Qu. un. de Anima, q. 20 ad 1m, contra; I, q.87 a.7 c.). 0 resultado deste processo psicolégico € a formacao do conceito universal direto, predicavel distributivamente dos individuos concretos que partici- pam de seu princfpio formal (cf. De ente et tia, c. 3; In VII Meta- phys., lec. 5; Cathala 1378-1380). E este conceito universal que & termo do ato judicativo e que € portanto introduzido na ordem do ser. O primeiro passo na reconstrugao da unidade supera assim a tentacio platonica da Idéia separada. Ele reintroduz. 0 eidos na limitagao da matéria por meio da estrutura Idgica, que Santo Tomas chama, com Arist6teles, materia com- munis (In VII Metaphys., lec. 10; Cathala 1492-1497. Iq. 85 a. | ad 2 m). Entretanto — também Aristételes 0 v esta concretizagao do eidos na matéria communis nao basta para que, afirmado no juizo, cle possa trazer em si toda a razio da unidade do objeto. Com efcito, a estrutura mesma do juizo mostra uma pluralidade de determinagées formais no objeto. E sobre ela precisamente que 0 juizo exerce sua fungio de sintese. A “zowovia Tav eid@v" platénica encontra aqui também sua transposigio. Mas se o © tinha sua unidade assegurada na Idéia, para Aris- toteles e Santo Tomas ele deve encontra-la na primeira ¢ mais profunda imanéncia de um eidos que faca surgir no scio da matéria um nicleo ontolégico capaz de suportar — ¢ de unificar — todas as atribuigdes do ser operadas pelo juizo. Sabemos que este nticleo € a substancia — a ovaia —, e sua determinagdo formal é 0 ato primeiro que, no conceito universal, sera a primeira e fundamental determinagéo da esséncia l6gica da coisa ou de sua definigdo — 0 género supremo. Todo o juizo de rea- lidade exprimiré portanto uma determinacao ulterior da substancia, seja na Propria ordem substancial, seja na ordem acidental, ¢ daqui as diversas fungdes légicas que ela pode exercitar em tais juizos (I q. 29 a. I c.). Assim, 0 juizo atinge um segundo plano de unificagéo capaz de fundar uma sintese do uno e do miltiplo numa analogia estatica do ser, tal como a vimos formulada por Aristoteles no livro F da Metafisica. H4 aqui lugar para uma passagem de substancia material a uma substancia Separada que realiza a identidade da forma e do sujeito (cf. In VIJ Meta- Phys., lec. 5; Cathala, 1378-1380). A substdncia é, pois, a unidade funda- nN Digitalizado com CamScanner mental a que se refere, na ordem das determinagdes formais, a atividade sintética da inteligéncia. Santo Tomas 0 repete constantemente, pondo em evidéncia a intelecgiio da unidade que esta na base do jufzo: “... intellectus quando considerat propositionem considerat multa ut unum, et ideo in- quantum sunt unum simul intelliguntur dum intelligitur propositio quae ex eis constat” (De veritate, g. VIL a. 14 c.; ef. ibid. q. Ia. 7c. et ad 3m; In VI Metaphys., lec. 4, Cathala, 1227-1229; 1 q. 58a. 2¢5 4. 854.4. etad 4m), e que & uma expressio da unidade substancial da coisa (De ente et essentia, C. 5). Ele estudou os diversos aspectos desta reconstrucao da unidade substancial operada pelo jufzo num texto deveras capital ¢ que nada deixa a desejar quanto & preciso técnica (I q. 85 a. 5 ad 3m)". Entretanto, vimos como Arist6teles se deteve aqui em seu caminho para a compreensio do ser. O ser se revela no juizo como sintese do uno edo multiplo na ordem das determinagées formais em que 0 objeto se exprime. O ato judicativo participa do ser sé enquanto a determinacdo objetiva é exigida pelo movimento mesmo da inteligéncia. A dialética da participacao fecha-se no plano predicamental estrito ou categorial. e a impossibilidade do “peta Béddew eis &AAO yévos” impGe-se como in- transponivel obstaculo. Santo Tomas, porém, aprofundando a estrutura do juizo. eleva-se ainda a um Ultimo e supremo plano de unificacdo. Na verdade, a unifica- ao pela substancia realiza-se na linha da limitagio formal ou da esséncia: ela revela a identidade de dois aspectos inteligiveis, expressos pelo e predicado de um juizo de realidade, numa unidade primeira ontolé: justamente denominada substantia prima ou supdsito: “praedicatum et subjectum sunt idem supposito sed diversa ratione” (Iq. 13 a. 12 c.). Ora. fora a tradigdo plat6nico-aristotélica mesma que transmitira a Santo To- mds uma concepgio dinamica do juizo como afirmacio do ser, em que & alma assume com relagao ao “dado” uma atitude ativa: “anima inquantum judicat... magis quodammodo agit” (De veritate, q. 1 a. 10 ¢.) — inserin- do-o no plano da existéncia, Daqui fazer-se 0 jufzo o termo da rel verdade I6gica (I q.16 a.2 c.; De veritate, q. a. 3 c.). E nele que a inteligéncia exprime formalmente sua conformidade com o objeto, cons- jeito jo de 17. Ver o esquema de A. Forrst, La structure métaphysique du concret s Thomas d’Aquin, Paris, Vrin, 1931, p. 95. nR Digitalizado com CamScanner do-o em seu “ser de objeto” e libertando-o das condiges subjetivas tituin da assimilagao (7 Contra Gent., C. 59). Assim, segundo a classica doutrina tomista, 0 juizo tem por termo préprio nao jaa natureza ou esséncia — Jano da limitagdo formal —, mas a existéncia, esse rei (De veritate, q. Ia. 1c. Jn Boeth. De Trin., q. V a.3 ¢.). Ora, a existéncia é para Santo Tomas 0 ato primeiro e a perfeigdo das perfeigdes, “perfectio omnium perfectionum” (De Pot., q. Vila. 2 ad 9m ; cf. 1g. 3a. 4c. qu. un, De ‘Anima a.6 ad 2m). Longe de ser portanto opaca a luz inteligivel, como 0 € para uma ontologia que permanece na linha das determinagées formais da esséncia, ela deve mostrar-se num supremo grau de inteligibilidade. E esta inteligibilidade prépria do ato de existéncia como perfei¢ao que Santo Tomas descobre no juizo. E no juizo que, para o Doutor Angélico, a dialética da participacao do ser supera o plano predicamental e penetra de fato numa esfera transcendental (no sentido escoldstico da palavra), onde se opera a ultima e definitiva conquista da unidade a que a inteligéncia visava desde seus primeiros passos € unificam-se os dois aspectos, “objetivo” e “reflexivo”, que viramos em Platio e Aristételes. Com efeito, a adequacao formal da inteligéncia ¢ do objeto tal como se realiza no juizo s6 é possivel, segundo 0 ensinamento tomista, por meio de uma reflexio completa da inteligéncia sobre si mesma, OU melhor, de uma parte, 0 conhecimento da estrutura sobre seu ato, e que implica, deste ato como orientada para conformar-se intencionalmente com 0 real e, de outra, 0 conhecimento de si mesma como principio ativo desta conformacio. Tal a doutrina do texto classico De veritate, q. La. 9c. (cf. Iq. 87ale 3; In VI Metaphys., lec. 4, Cathala, 1326). Esta reflexiio nao se confunde com a consciéncia psicolégica. Ela é, para Santo Tomds, uma condigao metafisica da afirmacio do ser pela inteligéncia e da disjungao que esta opera entre 0 sujeito € 0 objeto. Ora, se pela reflexio sobre si mesma a inteligéncia afirma 0 ser do objeto, ela mostra ao mesmo tempo finita na qual a “reditio supra sua dependéncia participada 4 Inteligéncia in essentiam” € a propria subsisténcia (Iq. 14 a.2 ad Im; Contra Gent., c- 47). A reflexao intelectual € 0 modo analdgico de participagao da intelec- ¢do infinita, que esté assim presente no seio da inteligéncia criada “tam- quam totius cognitionis intellectualis principium” (II Contra Gent., c47; cf. I 87 al c.), ndo com uma presenga objetiva, mas como subjetividade infinita participada pela subjetividade finita enquanto se constitui como tal, 3 Digitalizado com CamScanner TEMAS DE ONTOLOGIA isto é, enquanto afirma o ser. A dialética da afirmagio do ser € assim, Para Santo Tomas, antes de tudo uma dialética da participagio do ato", Mas ela implica também, na linha “objetiva” — na linha platdnj- ca —, uma referéncia a existéncia infinita na ordem do objeto. Sendo g existéncia a perfeigio ultima, sua atribuico a um objeto finito nao se jus. tifica somente por uma limitagao formal intrinseca, como no caso da per. feigio da ordem da esséncia. Santo Tomas mostra como a atribuigio da existéncia pela inteligéncia afirmante traz em si uma referéncia dinimicg ao Absoluto do ser, ao Infinito na linha mesma do objeto, que possibilita assim a unificagio do ser do objeto em todos os seus planos, mostrando a participagdo de sua existéncia 4 Causa primeira e evidenciando nesta dependéncia causal a inteligibilidade propria do ato de existir'’. Desta maneira Santo Tomas faz convergir a dialética do ato e a dig. lética da Idéia ou do objeto para o Ser em que intelecgao e inteligivel sio um, € leva assim a seu termo tiltimo de perfeigao a identificagio operada pelo platonismo médio entre 0 “Nots” primeiro ¢ 0 “téT05 vonrds”, Nesta inteligibilidade do ser que se mostra no jufzo como Participacio do ato e da Idéia, Santo Tomas vé formalmente constituido 0 objeto da ontologia como ciéncia, a nogdio adequada de ser. A epistemologia tomista da ciéncia € aparentemente enquadrada pelo esquema aristotélico dos trés graus de abstragao. Na verdade, poucos comentadores caem na conta de como Santo Tomas modifica profundamente a classificagao aristotélica quan- do se trata de definir a posigdo da ciéncia primeira, em plena coeréncia, de resto, com sua teoria geral do jufzo. A terminologia mesma sofre em Santo Tomés, como veremos, uma transformagio caracteristica. Sabe-se como a doutrina aristotélica dos trés niveis de ciéncia ted- rica parte da oposigdo entre matéria e inteligibilidade (cf. Merafisica, E, 1025 b 2-1026 a 32), onde matéria se entende sempre potencialidade de mudanga. Santo Tomas explica (I. q.85 a.1 ad 2m) que esta matéria, cha- mada por Arist6teles “sensfvel” (aio@yTH c. Metafisica, Z 1037 a 4-5), € de fato a caracterfstica do ser fisico na ordem fenomenal; neste plano, 18, Insere-se aqui a transposigdo tomista da “ilumin: importante de I q, 84 a. 5 c.; De Spirit, Anat. a. 10. 19, Este aspecto da doutrina tomista foi desenvolvido por J. Marécuat, Le point de départ de la Métaphysique, c. V, Bruxelles, Universelle, 71949. agostiniana; cf, o texto 14 Digitalizado com CamScanner 4 necessidade absoluta dos princ{pios que 0 exprimem © que irio constituiy a estrutura légica da ontologia A separatio metafisica tomista é, sob outro aspecto, a penetragio exaus, tiva e total do objeto, e é assim um movimento inverso 4 abstragiio, Ly integra, com efeito, 0 objeto em sua inteligibilidade Gltima © mais profund: O ato de existir como perfeigéo suprema sendo, para Santo Toms, a intimi dade mesma do ser finito, é ainda “interior {ntimo” enquanto se abre ime: diatamente para a transcendéncia absoluta do Ser imparticipado, Longe de ser, portanto, a mais abstrata das ciéncias, a ontologia é, para Santo Tomés, a mais totalizante, a tinica que supera todos 06 asp parciais ¢ instala-se na plenitude do existir. A claboragao do concei ser. objeto da metafisica tomista, tem de Jevar em conta esse absolutamente unico de um conceito animado intrinsecamente pelo di mismo da afirmagio™. IV Assim, para Santo Tomés, a ontologia é a ciéncia suprema como ciéncia do ser. Mas se é superior as ciéncias particulares, nfo thes ¢ estranha. Ela é, para usar ainda o velho termo dos antigos, “reguladora” de todas as outras enquanto justifica em Gltima instincia seus principios particulares, dando razio da possibilidade mesma do saber, E, mais ainda, buscando no ser seu objeto ¢ descobrindo-o no pré- prio alo em que nosso espirito o afirma, ela é em nds, como di: pio, uma revelacio do ser a si mesmo, uma vivente dialétiva da nossa paricipacao 40 Absoluto, uma resposta, portanto, nao 96 as exigén cias de nosso ser teorizante, mas ao apelo profundo de nosso ser itineran te, de tal sorte que, em seu constitutive mesmo de ciéncia, & enfin, ¢ supremamente, uma Sabedoria’*, mos a 22. CL. a este propisito, J, Mauiain, Court traité de existence et de Uestant Paris, Hartmann, 1947, p. 49 0.1, ¢ C. Faweo, La nazione metafisiea di partecipacione second Santo Tommaso d'Aquino, Vorino, $, Vi. 1, W950, pp, 129-144. 23, fn que ventido a metafisica de Santo Tomas pode ser dita uma sabedoria eral! Cf. uina excelente respowta a esta pergunta em Anout, Havin, Saint Thomas d’Aquin ele vie de I’Eglise, Louvain, Universitaires, 1952, sobretudo a conclunio, p. 69 16 Digitalizado com CamScanner —————E

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