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MODELO E IMITAGAO Hi um tema que atravessa toda a cultura literdria ocidental, pelo menos desde que Homero foi tomado como fonte de leitura e de referéncia em exercicio textual, ¢ desde que © proprio processo de leitura, como identificagao e recuperagao de texto, ficou facilitado pelo regresso ao registo da escrita (quaisquer que fossem as reservas colocadas a este por parte de Sécrates). Trata-se do problema de modelos e da imitago ou da mimese. Entendida certamente como forma de representaco da realidade pela literatura — para nos servirmos do titulo e subtitulo do livro de Erich Auerbach, justamente marcante desde meados do séc. XX' —, o processo nao se inventa de cada vez e hé que vé-lo numa sequéncia que se alimenta de retornos, de retomas e de relangamentos (em referéncias, alusdes e disfarces), ‘num jogo entre tradigao e inovacdo, em que os textos anteriores se prolongam nos seguintes eeestes se afirmam por contraste quando parecem registar independéncia, Ciclicamente o tema ressurge na consciéncia literdria e na reflexio que a acompanha, até porque o processo de representacao da realidade implica uma relago (de conhecimento e de linguagem) que nao € univoca nem transponivel. De modo radical, Platao langa fora da sua Repiblica os poetas, por serem “imitadores” (de terceiro grau) que provocam contra- facgdes ¢ ilusdes, pois distanciam e desfocam a realidade auténtica (Rep. X, 597b ss.; Leg. Te VIN) enema semelhanga com o demiurgo que organizou o mundo (Timaeus 27 ss.) hes dé dignidade. Outra é a perspectiva e outro é 0 dinamismo que podemos determinar em Arist6teles sobre 0 processo imitativo, quando ele admite que a arte emula a natureza (Physica, 194 a, 22; Poet., 1448a, 17-19; 1460; cap. 4) e considera que a imitago é um processo habitual das artes (em que a poesia se inclui com a pintura, a escultura, a miisica); é a imitagio que garante a permanéncia de universais em linguagem; com estes é possfvel identificar situar sendo mesmo qualificar a obra de arte e complementarmente identificar o artista pelo agenciamento conseguido em realizagdes particulares (estas, sendo concretas, devem ser apreciadas por confronto com o modelo abstracto das ciéncias: a perspectiva, no entanto, é diferente, segundo se parte do modelo ou se assume a diversidade das coisas concretas e se sobe & abstracgio) A percepgio da autonomia artistica levard seguidamente a reconhecer que a superagio é atitude permanente de identificagao que o artista se impe: Autonomia frente aos outros artistas; autonomia de criador, mesmo que apenas em fungio demiirgica — perante a consisténcia das coisas, ao agenciador de uma relagao humana com elas nada mais esta que assumir a consisténcia da forma como dispde as coisas ou como as descontroi para ‘uma nova construgio, O Tratado do Sublime, firmado na categoria de zél6sis = aemulatio —xill,2, identifica, no préprio Plato uma “luta porfiada com Homero em busca de lugar superior para si mesmo” (xitt,4)?. Em novo estilo est Miguel Angelo quando reage perante " Brich Auerbach escreveu Mimesis em Istambul, para onde se exilara, entre Maio de 1942 ¢ Abril de 1945; 0 livre foi publicado em Berna, em 1946. Servimo-nos da tradugao francesa, trad. Comélius Heim, Pars, 1968. CF. Dionisio de Halicamasso, Tratado da imitagdo, trad. port. Raul M. Rosado Femandes, Lisboa, 1986. De entre a vasta bibliografia que o tema apresenta, ef. David West & Tony Woodman, ed., Creative imitation 10 AIRES A. NASCIMENTO © seu Moisés que acaba de concluir e dele reclama que fale. Tal exigéncia é a que qualquer artista postula de cada vez que olha para a obra feita, mas no deve ser menos o plano de trabalho de quem se coloca frente uma obra de arte para a (re)conhecer sem Ihe impor jutz0 deturpador, Entre a admiragao e a superagio se relanga a arte. De forma sintética (e tendo em conta que 0 conhecimento pressupée construgio propria € expresso por uma linguagem que pertence a um grupo) podemos dizer que a imitagio / ‘mimese em arte é um processo inerente a criatividade na tensfo gerada pelos mecanismos de integragdo cultural. Sendo re-presentacio, no seu sentido etimoldgico pleno, a mimese balanceia-se entre a conformagio com uma realidade anterior ¢ a sua integragio em proceso individualizado e intransferivel. As ciéncias da linguagem ensinam que adupla articulago da comunicagio linguistica nao esgota a realidade de referéncia com a designacao e que os modos de representagio (por atribuigio) so concomitantes com os modos da perspectiva eda intencionalidade que exploram virtualidades de lingua e nelas geram formas de novidade € de criatividade que cabe a ret6rica descrever e analisar. Sintomaticamente, nas préprias ciéncias da linguagem, a sintaxe (estudo dos mecanismos da organizagio) aparece mais tarde que a morfologia (identificagao das formas) ¢ até mais tarde que a reflexio sobre os universais da linguagem (gramética especulativa)’. A ordenago equivale nao apenas a gestio, mas a inovagio, com investimento pessoal no modo de representacio. Aliés, as artes plisticas (pintura ou escultura) nio so menos sujeitas que as artes literdrias a esse mecanismo mimético de reogarnizagio, investindo o génio na complexificagao: o percurso que levou Picasso ao quadro de “Les Demoiselles d’ Avignon” é conhecido da biografia do artista e € um dos exemplos mais comentados, pois nele convergem momentos miltiplos em que o artista se confronta com os seus fantasmas e com as representagGes de outros até Ihes dar uma sintaxe definitiva como modalidade de comunicagiio', Se damos relevo aesse mecanismo no plano das artes literérias 6 certamente porque o processo analitico acompanha de perto a propria criatividade, a estimula e the serve de apoio. Cedo, o debate dos seus condicionamentos ocupou a reflexao na reptiblica das letras. Apalavra “mimese” é pés-homérica (embora o célebre escudo de Aquiles seja um exercicio imitativo — IL, xv). Assenta “mimese” numa etimologia que nos remete para a esfera da meméria, mas, desde a Antiguidade o real ficou do lado da “historia” e reservou-se 3 imaginagio o direito (demiirgico) de inventar a realidade como contraponto de superagao ctiativa (aliés, segundo a Biblia, Deus criou o mundo do nada; 0 homem precisa de algo para se recriar / recreat — 0 exercicio tem os seus riscos e termina em algo que é diferente da origem; se € especular néo tem realidade senio por transposigo virtual). Ora, para nos servirmos de uma autoridade, “toda a cultura clissica alimentou a ideia de que o real nfo podia em nada contaminar 0 verosimil. (..) A grande palavra que esté subentendida no ‘and Latin Literature, Cambridge, 1979; Gordon Williams, Tradition and originality in Roman poetry, Oxford, 1968; André Thll, Alter ab illo— Recherches sur imitation dans la poésie personnelled!'époque augustéenne, Paris, 1979; 1. Bompaire, Lucien écrivain: imitation et création, Paris, 1958; E. Norden, Die antike Kunstprosa, Darmstadt, 1959 (1909 e 1915). > Tomo esta constataco a partir da leitura de Eustaquio Sanchez Salor, “La modemidad de la Gramétiea el Padre Alvares”, Revista Portuguesa de Humanidades, 8, 2004, 27-57. * O quadro, pintado em 1907, que hoje se encontra no Museum of Modem Art de Nova lorgue, é umn dos ais representativos da estética cubista; inspirado em Cézanne, acabari por ser influenciado pela arte negra africana ¢ até o proprio titulo parece tr sido formado a partir de André Salmon, MODELO E IMITAGAO limiar de todo 0 discurso classico (sujeito ao verosimil antigo) é Esto (Seja, Admitamos 4que...)"3, a tal ponto que a representagiio se toma objecto discursivo ¢ a arte uma forma de legitimidade por efeito de compreensio do real — que inventa nessa compreensio envolvente. + A hist6ria do processo explicito que a mimese pressupde leva-nos provavelmente aos rituais do culto dionisfaco e seus actos de culto com expressdes coreogréficas, em que danga, miisica e canto, executados por servidores do rito, mimavam actos primitivos, nos ‘quais a mensagem era jé resultado de interpretagio. No séc. V a.C., mimese passa A reflexio filos6fica; dat € tomada como categoria de andlise literdria, ao mesmo tempo que se torna modo de debater a representaciio da realidade®. Platio e Arist6teles sio as autoridades que encabegam 0 debate e nunca mais ele deixard de estar presente na consciéncia literdria ocidental’. Hoje, aeflexio distingue planos complementares, admitindo a mimese diegética frente & mimese pragmética — uma propria de formas narrativas e outra especifica de formas draméticas‘. Nao é tanto a plano tedrico que quem se situa no dominio dos textos se sente chamado, ‘mas ao plano da cadeia constituida por leitores e por autores numa sequéncia que se prolonga pelo tempo fora. E que, mesmo hoje, quando as geracdes pés-modernas, apés a contestagio do realismo, parecem rejeitar patrocfnios e tutelas ou estabelecer confrontos com autoridades (reverenciadas noutros tempos)®, nio esté menos em causa o sentido da admiragio pelos predecessores (patente j4 em Diontsio de Halicarnasso — De imitatione 1, 3) ¢ 0 sentido de emulagio na continuidade por constituigéo de linguagens e por reconhecimento de influéncias recebidas (que mais nfo seja no desencadeamento do dinamismo da criativi- dade). De facto, hé uma questio bisica e iniludivel no encontro com os textos: se lemos, porque lemos e para que lemos ou que remanesce da leitura? Nao seré que, afinal, na leitura reconhecemos as razdes de uma identidade que nos vincula a uma comunidade » Roland Barthes, Communications, 1, 1968, retomado em Le Bruissement de la langue, Paris, Seu, 1984, pp. 173, cit. Alexandre Gefen, La mimasis — textes chosis, Pris, 2002, p. 200. * CE, W. Tatarkiewicz, Historia de seis ideas. Art, belleze, forma, creatividad, mimesis, experiencia estdtica, Madrid, Teenos, 1988 (1975). "Plato ope mimese e mundo das ideias,acentuando a degradagao que aquela apresenta; a mimese presenta duas modalidades diferentes: uma, bascada no tipo de registo, mais que no conteddo e dé origem a _género grave — epopeia e tragédia —contraposto a género cémico — comédia ¢ poesia jémbica); outa (ef. Rep.,392e-394b),firmada na distingSo de géneros miméticos: 0 dramdtio (tragédia e coméia) frente a género expositivo ou naratvo (ditrambo, posta lirica) misto(epopeia). Aristteles, por seu lado distingue modalidades, diversas da mimese de acordo com as causes — instrumental, material, formal (a causa eficiente pode ser a ‘mesma ou diversa): “a epopeia e a poesia trégica, mas também a comédia eo ditirambo, ¢na sua maior pare a aulétca ea citaristic, todas elas no seu conjunto,sioimitagao. Porém, diferenciamse entre si por trés aspectos ‘ou porque imitam com meios diversos ou porque imitam objectos diferentes, ou porque imitam de modo diferente ‘enko idéntico” (Poetica, 1447a14-19). "Cf. Alexandre Gefen, La mimésis — textes choisis, Pats, 2002 9 Esbatendo-se as notas de normatividade lingustica ou litedria e bem assim a de ancianidade, tragos cconexos com “auctoritas” ou “plenitude de sinificagao”, nem por isso fica menos em realce a “continuidade de \radigio Ieitura”; cf. Femando Pinto do Amaral, “O legado clssico na pocsia contemporinea” in José Ribeiro Ferreira (coord), Fluir perene —A cultura classica em escritores portugueses contempordneos, Coittbra, 2004, pp. 9-15. 12 AIRES A. NASCIMENTO textual, comunidade essa que, a sé-lo realmente, se assume como acolhimento ¢ como transmissio de textos feitos para essa mesma comunidade? Ler e escrever slo actos correla- tivos num proceso complexo que é 0 da comunicagao. Esta, por si, é didlogo, segundo adrdes admitidos e utilizando meios que tomam possivel nio apenas entendermo-nos, ‘mas também edificarmo-nos (dé-se a palavra “edificago” o conteido que etimologicamente tem como construgo). De facto, nao hé prolongamento em simples jogo de espelhos, mas em retoma criteriosamente assumida, O escritor que tem conscigncia de si e que vibra com a lembranga daqueles que © ensinaram a balbuciar palavras ou a articular formas de trabalho (como o prdprio Agostinho hé-de salientar, no obstante os distanciamentos em que se coloca, em manifesta alterago de cultira — Conf. 1, 13, 20), dignifica-se tanto mais quanto concebe 0 seu mérito por Poder ombrear com quem o precedeu. Mesmo quando constréi uma fabula de si mesmo, como acontece com Petrarca (quem é Laura?) ou com Fernando Pessoa (quem so os varios heterénimos ou que 6 o proprio ortnimo?), o poeta / artista nio estd senio a ajustar-se a modelos em que se revé. Arte é termo que pressupde, por parte dos latinos (e nds somo-lo), uma capacidade de reajustar os dados a um objectivo congeminado: cotresponde a techné rego, mas a este termo afastmo-lo dos nossos horizontes para o mundo da manipulacio... Ora, imitando, o poeta parte para a inentio em busca incessante da perfeigao que sabe que nunca atingiré, mas cuja demanda partitha com parceiros do mesmo oficio, muitas vezes idealizando formas diferentes de dispositio ou fazendo apelo a recursos novos da elocutio, ‘numa linguagem que, sendo comum, nao deixa de moldar-se & sua propria voz. Por outro lado, o reconhecimento de similitudo néo diminui quem a faze a reconhece, mas é dado de qualificagio, pois a identidade recorta-se no contraste com o que é semelhante”, Qualquer revisio histérica desta questio nao pode desmerecer do problema de base e este é 0 de nos situarmos na compreensio dos textos ¢ da qualificagio da sua identidade numa cadeia de linguagens que pertencem a todos os que as assumem. * Em juizo apressado poderd parecer questo menor a atengao prestada a autoridades, como se a inspiragio tudo resolvesse € 0 génio desabrochasse no vazio. Entre o juizo da recepciio de autores ¢ a apreciagio do carcter inovador do poeta no tem que haver confflito, ois, se hd rupturas, ndo é por elas serem confessadas que se consumam, jé que, em tudo o que declaradamente se deixa, prevalece a referéncia e hd continuidade no uso de linguagen: estas, de si, so de partilha , na riqueza do que tém de comum, nao sio obstéculo & expressio individual e pr6pria, antes, no residuo que permanece, tanto dignificam e integram como permitem evidenciar o elemento criativo que ressalta do uso feito de algo que também a outros pertence. Se necessério é, poder-se-4 invocar 0 caso de Fernando Pessoa que, ao pretender negar os cldssicos (“eu nunca li Virgflio / Para que 0 havia eu de ler?"), mais nfo faz que acentuar quanto deles se serve para afirmar a sua propria individualidade”, "" Ideias que reencontramos em obra tio oportuna como sugestva de Nicholas Mann, Pétrarque: Les voyages del esprit, Grenoble, Ed. Jéréme Millon, 2004 "B Pessoa, Obras Completas, . 147, "E Pessoa, Cancioneiro,p. 1: “No meu, no mew € quanto eserevo./A quem o devo? / De quem sou arauto nado? / Por que, enganado,/Julguei ser meu o que era meu? / Que outro mo deu?”; Ib, 144: “Dizem MODELO E IMITACAO Nao concebemos hoje 0 poeta como o sapiente a que se recorre porque proporciona 0s conhecimentos orientadores da vida (se é que Homero ou Ovidio podem servir de referéncia para aspectos tio diversos como a mitologia ¢ a ciéncia das coisas ao longo do tempo); a vida complexificou-se extremamente, a ciéncia tomou-se autGnoma, ¢ até as formas de expressio se diversificaram de tal modo que nem uma enciclopédia pode integrar todos os receituérios que Ihe dizem respeito para corresponder as diversas fungGes do discurso e 8s Vrias situagGes a que ele deve responder. No entanto, a plenitude de significago (que 0 poeta busca e em cuja expresso ganha acolhimento dentro da colectivi- dade a que pertence) tem tanto a ver com o vislumbre do instante poético que é capaz de imobilizar uma criagio nova como se integra na capacidade de recuperar a forga ¢ 0 génio da palavra no resgate feito sobre o uso que eventualmente a foi degradando, como Hordcio apontou na sua Ars Poerica. As “palavras aladas” de Homero tém a leveza da comunicagio ea plenitude do dinamismo entranhivel que provoca resposta em novidade continuada. Indo direitas a0 coragdo, as palavras do poeta geram 0 contacto necessério para garantir 0 eco criativo. Quando procura a fonte de inspiragio (e porque nao confunde Aretusa com ‘qualquer rebentago de agua), o poeta pretende a linfa da regeneragio que sozinho nio consegue provocar. Por isso um poeta como Hordcio acentuard pragmaticamente que a arte é fruto da conjugagio do ingenium ¢ do studium (entendido certamente como labor limae, ‘mas também como resultado de leitura diurna e nocturna). Se ha algo que o poeta receia é perder a gua que escorre da fonte antiga ou deparar com 0 seu emudecimento, como lamenta Sophia de Mello Breyner”, Em diélogo recente sobre a actividade literéria, trés poetas, nossos vizinhos, a0 aceitarem definir-se na sua individualidade propria, por exercicio reflexo, néo deixaram de reconhecer como dinamica a leitura/interposicao de textos alheios na esfera da sua palavra criatival’, José Tolentino de Mendonca (porele comegava 0 didlogo — talvez porque mais novo que 0s outros) acentuava, de uma s6 vez, varias perspectivas, ao sublinhar como vital a necessidade de “perceber de que forma eu e os outros estamos proximos”, e ao reflectir sobre a importiincia de aproveitar “o que foi dito e acabou, o que foi escrito e esquecido”; a razio reside em que, explicava ele, “a poesia é sobretudo uma forma de escuta ¢ de hospitalidade” e “o poeta é muito mais uma testemunha do que um eriador”. io é necessério recuar até A inspiragdo da Musa, que assiste 0 poeta, ou a0 sopro do Espirito, que insufla o profeta, para entender estas expressdes, ainda que 0 seu autor seja que finjo ou minto / Tudo que escrevo. Nao. / Eu simplesmente sinto/ Com a imaginaglo /nio uso 0 coragio". ‘Varia perspectivas de exploraclo da intertextualidade eda inratextualidade pessoana se podem colher em José ‘Augusto Seabra, O Coragdo do Texto — Le Coeur du Texte: novos ensaios pessoanos; Lisboa, 1996. "Em 1967, assim traduzia o famoso epigrama que foi resposta da Ptia ao imperador Juliano: “Ide dizer 0 rei que o belo palécio jaz por terra quebrado. / Phebo jd no tem cabana nem loureiro profético/ nem fonte rmelodiosa. A égua que faa calou-se.” (Sophia, “O crepisculo dos Deuses”, OP, p. 71). Ans mais tarde, em 1970, amesma Sophia, em peregrinacio a Delfos, revive a cena: “Porém quando chegut o palo jazia disperso ce destruido As éguiastinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga / A lingua torceu-se na boca da Sibila 7 Agua que primeiro eu escutei j nfo se ouvia.” Sophia, OP, I, p. 113. 44 Est reproduzido, sob coordenagao de Maria da Conceigdo Caleiro, em Poesia: do Impulso ao Acto da Escrta, Lisboa, Publicagdes “Terraco”, 20, Marco, 2003, 3 4 AIRES A. NASCIMENTO. especialista de estudos bfblicos. Na verdade, a altivez de demiurgo esté jé fora dos nossos horizontes ¢ se 0 silencio é criativo, sé enuncia esses siléncios (verdadeiros e nao fingidos) palavra que vem habitar a interioridade; por isso a capacidade de escuta, que é equivalente A capacidade de acolher (de hospedar), é a virtualidade maior do poeta que articula novas mensagens ¢ as prolonga em diélogo com quem se apresenta dispontvel; 0 segredo é em grande parte saber recuperar “o que foi escrito e esquecido”. Em idéntica linha de anélise, Manuel Gusmao, que participava também no mesmo didlogo, retomava a reflexdo, considerando a dinémica poética como resultado de uma visitagdo. Este termo tomava-o ele de outro poeta, também nosso vizinho de circunseri¢o académica, Ant6nio Franco Alexandre; Manuel Gusmao acolhe o termo como capacidade de captar, em suprema luta de corpo a corpo, a modalidade de construir um mundo préprio hum espago em que se desenrola uma histéria comum na repiiblica dos homens na qual habita também a repdblica das letras. Comentava ele: “Nés nao inventamos a lingua que falamos, podemos reinventé-la um pouco, mexer-Ihe um pouco, podemos desfiguré-la um Pouco ao nivel da sintaxe, do ritmo, etc., mas todos nés trabalhamos sempre com palavras de outros”; (..)“&a partir das palavras dos outros que a nossa individuagio se toma possivel”; (..) “a singularidade de cada um de ns (...) passa também pela possibilidade com que nos enunciamos a partir do modo como usamos ou abrimos um caminho através das palavras dos outros”. Fora-Ihe apontado que um leitor atento reconhecia haver autores por detriis dos seus poemas. Manuel Gusmio admite-o com franqueza: “Hi autores na minha poesia. De facto, uma das coisas que busco é uma espécie de didlogo, de palimpsesto em que jogo com palavras, imagens, ritmos de outros. Nao para exibir uma cultura — ou o que seria 0 ‘meu capital cultural ¢ simbslico — mas porque, justamente, sio essas palavras de outros, que me permitem forgar um pouco o movimento da minha diferenga”. E surpreendente e magnifico atender como Manuel Gusmao, em auto-anilise, explica o seu acto poético através de um poema refeito em torno da palavra antiquissima que um dia se lhe impés na leitura de F Pessoa na ode que comega “Vem, noite antiquissima e idéntica” e em polaridade vivida o foi habitando em poema intimo que depois escreveu, na sequéncia de estimulo recebido da leitura da Montanha Magica de Thomas Mann, Nesse exereicio de auto-anélise ha por certo lugar para a “despersonificagao” (ou desmontagem de méscaras assumidas 20 Tongo do proprio exercicio poético). Manuel Gusmio no se furta a reconhecer, sob a autoridade de Nietzsche, que “o poeta forte rouba as outros, o poeta fraco pede emprestado”. ‘A maturidade nao teme o confronto, pois sente que a criagio poética é tio forte como a partilha dos resultados alcangados e a solidariedade no processo de construgio. Nesse mesmo diflogo a que nos referimos, Gastiio Cruz, ao evocar “o estremecimento do ser em que todas as fibras rangem”, confessado por Rilke nas Elegias de Duino, niio sublinha menos a necessidade do convivio que fornece estimulo e apoio no ponto de partida ese alarga até se consumar no juizo apreciativo da criago propria uma vez concluida, Pelo meio fica uma adverténcia, singularmente significativa, recebida de Ruy Belo: “nunca se deve dizer de onde se tiram as coisas”... Porqué esta adverténcia? Quem participa de fora neste didlogo e estd habituado a constituir referéncias de rodapé em textos cientificos, tera atentagio de clamar por escandalo com tal formulagao... De facto, a ciéncia tem normas e, xno meio académico, como na vida, exigimos que ninguém se arrogue o direito de plagiar Porque ninguém tem o direito de viver & custa dos outros". Todavia, por muito que respeitemos os rituais académicos e nos obriguemos ao sentido do rigor conjugado com 0 respeito por trabalho alheio, este mesmo respeito implica dar atengo maior 3 novidade e a MoDELO E marTAchO integré-la. Ciéncia, hd que dizé-Lo, no é repetigiio; nem arte é cépia. Por isso o trabalho de andlise obriga a procurar a invagao que identifica; por isso também, tendo por autoridade Bernardo de Chatres'*, nunca seré demais assumir que de nada vale treparmos para os ‘ombros de gigantes se nio for para vermos mais longe e com mais perspicdcia. Construir ‘com os outros é acto humano, reconhecer as construgdes dos outros é a base para dar a colaboragio de que todos necessitam. Neste jogo de apropriagao de outros e de revelagiio do que é proprio, pessoal e tinico, na conjugagéo com o que é de outros, se entretece a arte da palavra que é desvendamento de construgées realizadas na profundidade do segredo pessoal. Ha boas razées para atentarmos no valor da palavra grega aletheia, que conota a nogio de desvendamento, € para Ihe associarmos 0 correspondente latino de uerum / ueritas, que, em conotagio de sinceritas e puritas, remete sobretudo para uma relagio de confianga e de desprendimento de gangas acumuladas num processo de constituigo de vida em comum através da palavra. A figura de Dante que tem em Virgilio o guia pelas sendas do mistério (hd sempre um ‘Além que nfo é necessariamente escatoldgico) é por demais emblematica da cultura europeia de todos os tempos, pois, no obstante eventual esmorecimento de leitura dos autores precedentes, nunca faltou a cadeia de continuidade”. Neste dominio, apesar de quanto progredimos, continuamos necessitados de regressar ao cdnone de leituras que animou a vida e a expressio literdria ao longo dos tempos e construiu linhas de continuidade. E facto que se recolheram referéncias ¢ se obtiveram elencos de livros que serviam na formagio, ‘mas havemos de admitir que os nossos conhecimentos continuam escassos enquanto nao atingirmos o significado final ¢ nao atinarmos com a teia das suas vivéncias (mesmo que para isso tenhamos de reconfigurar varias vezes o trabalho de Penélope). Ao indice quantitativo de reminiscéncias e citagao (se alguma vez ele nos for facultado) havemos sempre de acrescentar o juizo que compara, relaciona, identifica e aprecia a variante, ou seja, que, no fundo, qualifica 0 uso. Cabe-nos aprofundar a leitura para percebermos como as linguagens se estruturaram ¢ como se vincularam a significados prdprios, fugindo assim ao risco (€ & tentagao fécil) de nos apropriar daquilo que mal percebemos e a custo conseguimos articular em esforgo de aproximagio sempre incompleta. Em resultado de muita desilusdo (mas também de clarividéncia de espitito), estamos cada vez mais convencidos de que o mundo em que nos situamos e vivemos tem muito a ver com aquilo que nele projectamos; essa projec¢io, por outro lado, é tanto mais consistente quanto passa pelo filtro da leitura dos textos daqueles que nos precederam. A andlise aos relatos dos descobridores (seja ele Colombo ou outro) levou jé a concluir que, sobre o que se descobre, se projecta aquilo que habita anteriormente o descobridor; por outro lado, & quase manifesto que s6 nos arriscamos a viajar amparados por outros, mesmo que isso © O plégio era condenado desde a antiguidade e teve por vezes exageros, por oposigoes de gostos ¢ de cescolas; f. R. M. Rosado Femandes, loc. cit, pp. 22-24 Autor, segundo Jodo de Salisbira, da sentenga repetida ao longo dos tempos de que sotnos nani gigantum ‘umerisinsidentes, nao est, no caso, mais que a repetir 0 que jd se podia ler em Quintiliano quando acentuara a novidade que se requere sc deve reconhecer as novas geragées, se € verdade que iuniores perspicaciores. " Cada tempo tem a sua experiéneia de reencontro com o passado. Para uma aproximagio dessa problemtica cf Birger Munk Olsen, ! classic nel canone scolastco altomedievale, Spoleto, 1991; Roberto ‘Weiss, La scopertadell’Antichta Classica nel Rinascimento, Padua, 1989. 15 AIRES A. NASCIMENTO aconteca apenas em reflexo de espelhos. ‘Tal se reflecte num texto tio longinquo como caracterizador de um tempo de recuperagio, como € o do desconhecido Trezenz6nio, do séc. X-XI, quando na ilha que divisou ao longe quando subu & Torre de Hércules projecta o sonho da escatologia beatifica que transporta consigo"*. palavra, de facto, é identificadora da realidade, s6 a designacao afugenta os medos. ‘Ao longo dos tempos, a superagio do dizer faz-se habitualmente sobre a base do que 0s outros disseram antes. No surgir das literaturas vernéculas medievais, no so poucos os tragos de linguagens antigas. Sabemos, alids, como foi decisivo o encontro com a expresso tradicional, em latim, para a afirmagdo dessas mesmas literaturas. De E. R. Curtius temos ‘uma obra que nos remete para este dominio, ao descobrirna Idade Média Latina a capacidade de transportar sem disctiminagGes e integrar em pracessos novos; niio pode deixar de ser Jembrada essa obra, que € significativa de atitudes a cultivar, mesmo que haja elementos superados ¢ a linguagem deva ser alterada relativamente a 1947 (data da publicagao dos resultados que se foram constituindo desde 1932)"*; na mesma linha colocaremos outra obra singular, pelo que revela de integragdo no interior da repiblica das letras ena sequéncia dos tempos, é a de Erich Auerbach, jd acima referida, onde podemos encontrar modelos de andlise que nos levam a descortinar influéncias e modos de acolhimento de leituras ¢ efeitos artisticos por elas provocados. Se, tanto numa obra como noutra, a literatura portuguesa esté ausente, bem podemos atribuir a omissio a falta de perspectivas criadas entre nés que pudessem justificar atengao uma identidade formada por relagao com os modelos antigos. Felizmente, podemos hoje assegurar que ser formado “em sifg]no de latim” (para usarmos expressao de um poeta do Cancioneiro Geral, Joio Rodrigues de Sa de Meneses) contribuiu para afirmar uma linguagem que tomava a Ovidio por turgimao, o que quer dizer que, no encontro com 0 poeta classic, se aprendeu a utilizar a propria lingua, Em ano de centenério de Petrarca, forgoso é evocar toda a sua capacidade de retomar, de retocar e de recolocar as pegas de uma realidade que passa pelos textos lidos mais que pelo reflexo de um mundo exterior e sua transposigio para um quadro de interioridade. Nunca saberemos como se desenrolou realmente a sua viagem ao monte de Ventoux (colo- cada por ele em 1336, mas seguramente de tempo diferente); a leitura de Agostinho tornou- -se modo de reconfiguragio de uma experiéncia interior; como bem acentua um renomado "Faz parte do nosso imaginério medieval, embora esquecida durante longos tempos; cf. A Navegagiio de S. Brando nas fontes portuguesas medievais (Navigatio Brendani - |: Benedeit, Navigatio Brendani - Il; Trecenzonii De Solistionis Insula magna; Conto de Amaro) — ed. crc, tradugio, introdugloe nots de comentétio de Aires A. Nascimento, Lisboa, Ed. Colibri, 1998. ° Servimo-nos da trad francesa, saféa em momento de centenério do nascimento do grande erudito ‘lero, mas depois reeditada: Ernst Robert Curtis, La litérature européenne, Pati, 1956, Como sublinha Alain Michel, no prefécio a ego de 1991, olivro de Curtus €notivel plo seu valor centfic e pedagégico. Cedo essa obra foi lida entre nés; recordaremos quanto ela era tomada como referéncia por David Moutio Ferreira. Ocupou também as eflexdes de J. V. Pina Martins, “Humanismo e Renascimento. A propésito de um cstudo de Emst-Robert Curtis”, Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 3 ser. 11, 1969, 54+ Gexta-textos (em separa). * Cy. Ana Maria Sanchez Tarrio, Formacidn humanéstica y poesia romance en el Cancionciro Geral de Garcia de Resende (disser. Doutoramento, Faculdade de Filologia, Universidade de Santiago de Compostela), ‘Santiago de Compostela, 2001; “Traducao enobiltagdo literéra: uma estratégia nko re-latinizadora no portugués quinhentista”, Euphrasyne, 29, 2001, 157-170. MODELO E IMITACAO especialista de Petrarca: “o que se apresenta (nessa ascenstio ao monte Ventoux] como desctigo imaginada em forma de carta redigida imediatamente depois da ascensio (F IV 1) tem-se revelado ser uma alegoria cuidadosamente elaborada: 0 seu desejo de atingir cume nao traduz tanto a resolugio do alpinista como a aspiragio dolorosa de um homem em busca das alturas espirituais”™. A fusdo de vida real e literatura, de erudigdo e atitude literdria, tem em Petrarca um paradigma altamente significativo. Nunca, ali, serd possivel assumir como real a figura ea vida de Laura, tracadas com toda a simetria de quem contempla e se deleita na contemplagio que projecta a partir das suas leituras. A mesma autoridade que acabamos de citar sublinha, com muita pertinéncia, que “a necessidade imperativa de embelezar os factos com as ficgbes de um eu consciente de si mesmo representa um trago essencial quer de uma consciéncia que Petrarca tinha da sua identidade intelectual quer da sua significagio cultural como homem de letras". Em jogo esté o processo criativo do humanista: “Petrarca, na esteira de Horacio e de outros, fala muitas vezes em polir e fimar as suas obras. Habitualmente, mantinha os seus amigos a par dos retoques e dos aditamentos que Ihes havia feito. Os manuscritos autégrafos dos seus escritos, latinos e italianos, Jacques Fontaine, “Comprendre la posi laine chrétienne : Reflexions sur un livre récent", REL, 56, 1978, p. 83. 570 testemunho € de Jodo de Saisbiria, Metalogicon, 1,24 (PL. 199, 855). n AIRES A. NASCIMENTO tempo que, por razdes diversas é fundante, sendo mediador. Nalguns casos penderemos ara aprofundar o sentido da mediagao, noutros seremos levados a aprofundar o sentido da ctiatividade. Sao aspectos complementares e necessdrios para a construgio de saberes que sejam consistentes e sdlidos. Estamos particularmente gratos aos membros da Associago que mais contribuiram para nos proporcionar um espago conveniente para a partilha de um estudo que é fruto de trabalho persistente; a eles aqui prestamos as nossas homenagens de confianga, estima e Teconhecimento. A nossa presenga é a declarago dos nossos sentimentos de amizade e agradecimento a Ana Sofia Laranjinha, a José Carlos Miranda, e a quantos com eles colaboraram. As autoridades académicas da Faculdade de Letras do Porto, que autorizaram ¢ apoiaram esta iniciativa ¢ nos honram com a sua presenga na abertura deste Col6quio, exprimimos a nossa satisfagdo e testemunhamos a nossa solidariedade em contribuir para firmar um trabalho de investigacdo e estudo que se realiza na instituigo que representam e com 0 qual todos nos edificamos. O convivio, que desejamos constituir em ambiente de Partilha e tao dignificado quanto a reflexio de temitica literdria nos obriga, nao teria sido possivel sem a conjugacao de esforgos ¢ sem as perspectivas que nos sio comuns. Tudo isso nao tem sendio um sentido: dignificarmos a Universidade a que todos pertencemos, por vocagiio e por trabalho. O local escolhido, o Circulo Universitério do Porto, é um espago ue, por aprazivel e aconchegado, s6 podemos considerar favordvel para o nosso convivio. ‘A.isso niio podfamos deixar de ser sensfveis e como tal ficamos penhorados. AIRES A. NASCIMENTO Presidente da S.P. da A.H.L.M.

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