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Michel Lallement HISTORIA DAS IDEIAS. SOCIOLOGIC VOL. | DAS ORIGENS A MAX WEBER Este livro é um 6timo subsidio para professores e estudantes dos cursos de t sociologia, pois, além de mostrar a | ie aed | evolugao da producao teérica sobre 0 fato social, traz oportunos marcos de referéncia (balizas) da ciéncia sociolégica, bem como alguns dos textos mais representativos dos grandes autores das ciéncias sociais CS EMU ROSES TEES CR TEC SRS ET iii Hira os tts sociofégicas, do Michel Lalemant om dois volumes, ofereco aos professes © estudantes de sooblogia Fobchlel atin) Historia das idéias sociolégicas da vida om sociedad Oprimeiro volume esboga a trajetéria da reflexéo dos filbsofos e tedlogos antigos | sobre 0 fendmeno da vida em sociedade, ese estende alé a idade Moderna, ‘quando surgem Durkheim e Weber, considerados os pioneiros da visdo cientiica do fato social. Av segundo volume se reserva a apresentagao dos desenvolvimentos da | sociologia contempordnea a partir de Talcott Parsons, nos EUA, na década de 1930, Este primelro volume se esirutura om trés partes, A primeira parte questiona, do onto de vista do *viver em sociedade", as muiltipias filosotias que balizam 0 poriodo que se estende da Antigaidade até ao Século ‘das Luzes. A segunda parte Dados Internacionais de Catalogagiio na Publicagao (CIP) 1ara Rrasileira do Livro, SP, Brasil) Lalloment, Mi eh Histiria das idéias soclologieu: das ovigens Mex Weber. Mictet Laterent ; traduga de Epnain F. Alves. | Petripolis, RI Vozes, 2008, Isp 978-85-326-2918.0 Talo original Hise des ies sosiolgiqus des iginas a Weber. eo Bibliograf | |. Sociologia —Histvia 1. Titulo, cpp-301.09 Jj Indices para catdlogo sistemtico: 1. Idéias sociologicas : Historia 301.09 Michel Lallement Historia das idéias socioldgicas Das origens a Max Weber ‘Tradugdo de Ephraim F, Alves y EDITORA VOZES _ Petrépolis © 2000 by HER/Editions NATHAN. Titulo original faneés: Histoie des idées sociologigues ~ des origines & Weber Direitos de publicugdo em lingua portuguesa: Editora Vores Lids. Rua Frei Luis, 100, 25689-900 Peinipolis, RI Internet: hup:/sww.vozes.com.be Brasil Todos os direitos reservados, Neshuma parte desta obra polerd ser ‘eproduzida ou transmit por qualcuer forma e/ow quiisquer eins (eletrinico ou mecénieo,incluindo fotocdpia € gravagde) ot arquivada em qualquer sistema ou ‘banco de dados sem permisstoescrta da Eiitora, Faivaracto e org. lterdrta: Maria da Coneeigao B. de Souza Capa: Marta Braiman ISBN 978-85-326.291 8-0 (edigao brasileira) ISBN 2-091910740 (edigo francesa) Este vo foi compost eimpeesto pela Eltora Vazes Ld Sumario 1. A questo do “viver em sociedede” da Antigitidade Aldade Classica 2. Das filosofias da histéria aos precursores da sociologia - - Parte Il — Géneses - 1. Teorias sociais esocialismo = ------ += 85 2.A sociologia na virada do séeulo - - 143 Parte UII - Fundagdes 195 1, Emile Durkheim e a escola francesa de sociologia - 197 2, Max Weber, uma sociologia compreensiva do mundo modemo 255 Bibliografia. - 313 indice 333 g hese Introdugao 1. Uma cigncia reflexiva ‘A fim de explicar a persisténcia das diferengas tebricas que divi- dem os especialistas em cincias soviais, hoje é costume evoear uma situago de crise cr6nica. A sociologia nto foge & regra. A concor- ‘inca entre escolas de pensamento ¢ a existéncia de doutrinas di cilmente concilidveis so, muitas vezes, apontadas como 0s sinto- mas mais evidentes desse mal-estar profundo. Para rebater essa cri- tica, os socidlogos aigumas vezes citarain como razio a relativa jar ventude da sua disciplina. E verdade que se a compararmos com ou- {ras cigncias sociais como o direito,a hist6ria ou a economia polit ca, asociologia— como cigncia constitufda ~ € de produglo recente, ‘A definigio de um objeto proprio, a aplicago de métodos originais e investigagio cienilfica, eo reconhecimento institucional (eriagao de revistas especializadas, de cétedras universitérias...)s6 ganharam ‘corpo cefinitivamente pela primeira vez, em alguns paises indus- trializados, no extremo fimn do séeulo XTX, Mas, pode-se verdadeiramente, quase dois séculos depois de ‘Augusto Comte haver forjado 0 neologismo “sociologia”, conti- nuar evocando tenazmente uma eterna crise de juventude? Certe- mente ni. As dispatas entre escolas, a existéncia de paradigms altemativos nfo constituem, com efeito, 0 apandigio dos socislo- 20s. Basta olhar, para se convencer disso, as disciplinas vizinhas: a economia, a psicologia, @ lingistica... todas elas, também, s80 0 paleo de Asperos e incessantes debates tedricos. Exatamente ao eontririo daqueles que, como Karl Popper (4 légica do descobriment cientfico, 1934), se interessam pela prox dugdo e a validade das teorias em um universo depurado de toda forga social, hé muitos epistemélogos ¢ sociélogos que, cada um A sua maneira, chamam a atengdo para o carter necessariamente re- lativo ¢ histérico de toda teoria cientifiea (D. Bloor; P. Bourdieu; Escola de Frankfurt; M, Foucault..). Em A estrutura das revolu $0es cientificas (1962), Thomas Kuhn explica, assim, que até no seio das ciéncias da matéria 0 consenso te6rico entre 0s pesquisa dores nio & nem perfeito nem permanente. Ele evoca a idéia de luna sucessaio de paradigmas dominantes (conjunio de objetos, de questdes, de métodos, de conhecimentos... legitimados em ‘um dado momento por uma comunidade de sabios) que balizam o per- ‘curso histérico das eiéncias, Deste iltimo ponto de vista e com a mesma validade de qual- quer outro enunciado cientifico, as teorias sociolégicas sofrem com a relatividade ¢ a fragilidade histérica. Possuem, no entanto, ‘uma inewavel particularidade: « capacidade de usar seus proprios instrumentos para fazer da cigncia (a comegar pela propria socio logia) um objeto de estudo privilegiado, Dado que a produgio de conhecimentos cientificos é uma pratica social como qualquer ou- tra, 0 aleance das teorias sociolégicas deve, portanio, ser dupla- ‘mente avaliado: de um lado, segundo a sua mais-valia intelectual «¢, do outro, através do prisina das implicagbes e das configuragies sécio-histéricas no quadro onde se moldla o saber. 2. Meméria da sociologia 0 trabalho de sondagens de opinio, de analise estatistica, de consulta aos arquivos... é pritica obrigatéria na aprendizagem da Profissdo de socidlogo. Pois a sociologia é, antes de tudo, uma cigncia empirica. Essa pratica nfo teria, contudo, grande utilidade se néo se inscrevesse em uma obra e uma meméria coletivas que a histéria das idéias contribui, a sew modo, para resgatar. Ee os “Todo uabalboescreve C. Wright Mill ~ toda ese0- Ih de estidos e métodos em socilogi, supbe ume “taora do progresso cientfico”. Todo progresso ci- entific &cumulativo, Nao & obra de um tice bo- tet, ras de mites pessoas, que revdem erica, qe eerescntam ¢ ampiem. ara se atual, devese asociaro seu tbalho an que fi feito ea gue Se fz recesirio para se dislogar, énecesirio para 2 ob- jevidade(C. Wright Mills. inaginago soctoleg- ca, 1959). O ponto de vista epistemotégico de Mills deixa transpareeer ‘um otimismo mais ou menos diseutivel. Nao € duvidoso em con- trapartida que, tendo o lastro de um passado jé rico, a sociologia se tenha hoje tornado uma disciplina de referénciae que se deve levar em conta. Ela oferece, a quem se prope perscrutar com a liapa as priticas e representagies sociais, uma caixa de ferramentas, mui- tas das quais ja foram varias vezes experimentadas. Por iss0, sob pena de ter que reinventar continuamente e de modo ingénvo as anilises e os conceitos-chave de sua disciplina, 0 socidlago no poderia prescindir da historia de sua especialidade. Da mesma for- 1a, ser-he-ia impossivel apreender 0 aleance o sentido de qual- quer inovago, se esta ~ condigdo necesséria mas ni suficiente ~ no fosse cotejada com outras pesquisas e pontos de vista precexis- tentes. Conhecer a sociologia é, portanto, nfo apenas saber prati cé-la, mas saber igualmente mergulhar em sua hist6ria 3. Uma historia complexa e uma obra sempre em andamento Contrariamente a uma visio simplista ¢ caricatural do desen- volvimento das cigncias,ndo se pode conceber a histéria da Socio- Jogia tomando simplesmente por modelo uma acurmalacao linear, regular ¢ virtuosa de um saber que se poderia, de uma vez por to- das, conservar no Pantedio das idéias. Mas por qué? Antes de mais nada, porque as idéias nfio se reproduzem por si mesmas como ~ usando de novo uma metifors muitas vezes toma- da de empréstimo ~borboletas geram borboletas. A produgdo dos conhecimentos esté ligada, em boa parte, a fatores contextuais de- terminantes. Os movimentos da hist6ria e da socieéade contribu- ‘em para criar continuamente novos problemas, para invalidar cer- ‘0s esquemas antigos ¢ estimular novas anilises. Depois das catis- ttofes humanas provocadas pelos regimes totalitarios do século XX, por exemplo, nossas maneiras de pensar a otdem social, ou ainda, de ler certos pensadores dos séculos passados, -iveram ne- ccessariamente que passat por uma modificagao, Noutras palavras, como seria ilusério fechar-se no mundo etéreo da abstragio para ‘compreender o alcance ¢ os limites das teorias sociolSgicas, Em termos mais precisos, convém evitar um duplo obsticulo: {tanto quanto importa ressituar as idéias em seu contexto social, cultural e institucional, da mesma forma seria vlo, ro exiremo ‘posto, reduzr estas a determinantes puramente histdricas, Preten- der que as andlises deMarx ou de Weber so hoje caducas por esta- rem inteiramente dominadas pelas preocupagées da época deles & cair em uma atitude arbitréria que condena a ignorar que certos instrumentos, certos modos de uestionamento do social podem resistir ao desgaste do tempo. Em nome de preceitos metodolégi- cos que j foram devidemente comprovados, existem assim muitos socidloges contemporineos que se reportam sempre a Marx, We- ber..., sem necessatiamente abracar, aliés, 0 conjunto das convie- ses destes iltimos. Deve-se igualmente dissipar uma segunda ilu- sto simplista: aquela que atribui um eardterfixo a historia das idéi- as. Toda época, com efeito, possui a sua maneira propria de ler celebrar obras, embora pondo de parte contribuigdes cue outras {geraydes talver (re}descubram. Por conseguinte, uma obra que tra= tt da historia das idéias é necessariamente relativa porque, quer 0 autor se defenda quanto a isto ou nfo, ele é parte das representa- 90es coletivas uma vez que se exprimem através dele, Ei ois exemplos permitirio ilustar 0 que pretendo dizer. Na hora atual, Max Weber se apresenta como personalidade cientfica de primeizo plano no grupo dos pionsiros da sociologia alema. No ex tanto, a despeito do valor intrinseco da obra, esse juizo nao era algo cevidente no inicio do século XX. Como escreve Norbert Elias, nos anos vinte, Max Weber estava ainda looge de se destacar do grupo dos especialistas alemes em cién- cias socsis, a0 passo que hoje, com o reeuo do ten po, le reconecido gragas 4 triagem efetuada silea- ciosamente pelas geragSes seguintes (Vorberd Elias par lui méme, 1991). ‘O segundo exemplo mostra que os livros também poder: conbe- cer as vicissitudes do reconhecimento institucional: naatualidade, O suicidio, de Durkheim, étrangiilamente apresentado aos estaclantes como a obra capital do socidlogo francés, quem sabe até como uma bra indispensivel da historia da sociotogia. Ora, comparado com ‘5 outros, esse estudo conheceu menos sucesso, enquanto Durkheim vivia, inclusive entre os disefpulos miais chegados. 4, Convite a uma histéria das idéias sociolégicas ‘Sea sociologia se afivma tho tardiamente na histria das cinci- as sociais, as consideragdes sobre a maneira de “viver ei socieda- 4” logo acompanharam os esforgos de reflexdo dos fildsofose de outros pensadores do politico. Deste modo, para compreender a originalidade das idéias que se pode qualificar, a partir do sécalo XIX, como “sociolégicas” (tendo em conta que enunciam novos pontos de vista sobre os seres humanos ao viverem em sociedade ¢ porque enuncindas por individuos que se vao reconhecer como so- cidlogos), é necessério inscrever a sua gnese em um movirnento de longo prazo. O risco primeiro de semelhante projeto & 0 de efetuar um vo ‘nito por alto, necessariamente caricatural e fragmentatio, da histé- i tia da sociotogia. Por isso, sem pretensio de ser extustivo (mas como isso poderia ser possivel”) ¢ com a clara conse:éncia do es- quecimento as vezes injusto de certas abordagens, da redugio de certas anélises sutis e complexas, do menosprezo de certos fatores insttucionais, esta obra privilegia nfo apenas 0 ponto de vista socio- lgico.em sentido estrito(@ custa da psicologia social, ca antropolo- aia, da lingitistica...), mas jgualoente dos autores ou das escolas que parecem hoje as mais significativas para se compreenctr tanto a s0- ciologia contemporinea como 0 mundo modemo. Devs-se precisar em segundo lugar que, destinado a estudantes que vio abragar a car- reira de socidlogos e a ndo-especialistas, este livro é antes de tudo uma introdugdio, Nao poderia, em caso algum, substituir a consulta cuidadosa 20s texios originais: quer ser, rmuito pelo contrério, um convite an contato direto com as grandes obras da soviologia, en- contro que neninum manual seria capaz de substitur. A presente obra se compie de dois volumes. O prtteiro € con- sagrado aos precursores e a0s fundadores da sociologia. O seguin- do apresenta os desenvolvimenios da sociologia conlemporainea a partir da década de 30, primeiro romo se estrutura ei rs partes, A primeira parte questiona, do ponto de vista do “viver em socie- dade”, as maltiplas filosofias que balizam o periodo que se estende a Antigtiidade ao Século das Luzes. A segunda parte avalia, em primeiro lugar, as teorias do social assim como se desenvolvem com a temtica socialista, Apresenta a seguir as diferentes escolas sociol6gicas que entram em confronto, nos paises indusralizados, no fim do sécuto XIX. Eibora 0s contatos entre socislegos de pat ses diferentes tenham sido estabelecidos bastante rapidamente, convém apesar de tudo, como se verd,raciocinar em termos de tra- digo nacional. A terceira parte, enfim, 6 consagrada adois autores de importancia primria, autores contemporiineos um dooutro (mas ‘que nunca debateram juntos!) e que adquiriram depois de mortos titulo de “pai fundador” em sociologia. Trata-se, respectivamen- te, de Emile Durkheim e de Max Weber. st OCI Sioa 69 a pawn A questao do “viver em sociedade” da Antigitidade a Idade Classica Com os gregos da Antigilidade vem A luz um sistema inédito éc participago na vida politica: a democracia (Baliza 1). Belode ‘a0 mesmo tempo um pensamento filoséfico livre ¢ originl sobre ‘asociedade. Mas se essas reflexes produzem principios novos e inteligibilidade da realidade social, adotam também una posi- ‘io normativa (para determinar 0 que deve ser), posigio estranba ‘0 espirito daquilo que vai ulteriormente constituir 0 ponto de vista sociolégi A Idade Média nfo se mostra propicia ao desenvolvimento de novas concepgées. Durante esse longo perfodo, predomina um pensamento submetido a idéia de Deus, Sera necessério esperar 0 Renascimento ¢ a Idade Cléssica para que os seres humanos ces- ‘sem progressivamente de pensar a ordem da sociedade com refe- €acia a um prinefpio divino transcendente a eles. Dessa ruptura ‘vio nascer as primeiras teorias do contrato social, enfoques que formalizam a constituigo da sociedade como mero produto de aco dos humanos. A democracia ateniense Historia ‘Adotadias sob a pressio dos eamponeses,artesos ¢ somerciantes «que eagiaz contra traniae as desigualdades, as refommas de Cliste- ss (308 a) abala completamente face politica da Crcia Antien sss reforms cian as cones dew regioe que confer oper Povo: a democraca, A substitucia das antgas tibos por noves di. ‘vis6es institu, no seio de um mesmo corpo police, nals unidedes Unidas sitadasw uma distincia igual do poder. No V século,céeule do esrtego Prices, Atenas se torn a veradira capt da Gri, lugar de fermentagio cientifica, flosbficaeatistica. Neste conjunte ox res Herder (484425) Tulides (65-39) 0 px. ‘mero gragas sous tabalhos sobre as guerra persas,o segundo pels tips observages "tnogrtieas” que enna oe ta do Peloponeso ~ desempentiam 0 papel de pioneios das iéncias so. bias. A guerra co Peloponeso (431-404 aC), que opde Esparta a Ate. ‘as, ple fim & democraciaateniense. Em 404, um povern> oligirqu. £0 (0 dos Trints Tiranos)sobe ao poder. Critias, primo da ne de Pla, fo, acha-se sua fente. Em 403, um govema democriticn reassume © poder: & 0 que vai condenar Séerates Organizasio Para falar em termas mais conformes ao uso em matéca consti tucional, opovo possia no somente aelegibilidedenecesssi para ocuparos cargos eo direito de cleger magistaios mas amber reito de deviir em todos os dominios da politica da Estado ee dre {0 de julger,constisido em tribunal, todas as causasimportanes, Vis © crimings, plies ¢privadas. A concentra da sutoriede na AssemblGi, a fragmientac20 eo carter otto dos posos tel, nistativos, a escola por soreio, a auséncia de burocracla semua, ‘2th, os jiris populares, tudo isso contrib para impedis que secras: fe um aparciho patidrioe, por via de conseliéncia, de wn ote Politica insttuctonalizada. A diregto des questSes era direta e pes. Bee pines soal, ¢ no havia lugar para mediocres fantoches, manipslades por tris do palco pelos dirigentes ‘reais’. Homens como Péricles consti tulam, sem davida, uma elite politica, mas essa elite nfo se pespetus vva por si mesma [.]. Alguns dos dispositivos institucionais que os atenienses inventaram com tanta imaginaeao perdem a sua feigo aparentemente estranha a luz dessa realidade politica, O ostracism 0 mais conhecido: um homem cuja influgneia fosse julgada peri- ‘gosamente excessiva podia ser exilado por dez anos, sem perder to- davia, ¢ isto & importante, seus bens ou 0 seu estatuto de cidadio” (MLL Finley. Démocratie antique er démocratie maderne. Patis, Pa- yor, 1916, p. 75-76). 1. Filosofia e politica na Antigiiidade grega No século V aC os sofistas sio, na Grécia, os primeiros que oferecem uma reflexdo critica sobre a onganizacao dos seres hu- manos em sociedade, Em seu sentido primeiro, o termo “sofia” designa aqueles que possuem competéncia e saber (sophia). Mais tarde, progressivamente, serve para qualificar intelectuais como Gorgias de Leontino, Hipias de Elis ou Protégoras de Abdera que exercem, de cidade em cidade, a arte da persuasiio mediante pala- vra. Os sofistas fustigam a escravidio e usam abundantemente a arma critica. Langando difvida sobre a existéncia dos deuses, efes encaram a justiga, ¢ também toda institui¢ao que concorre para & manutengdo da oxdem social, como uma simples convengaohuma- nna, “O homem é a medida de todas as coisas” (Protigoras): assim se exprime claramente e de forma lapidar essa negagdo da trans- cendéncia, Platdo e Arist6teles irdo contrapor— cada um a sua ma- neira — uma resposta critica aos sofistas. ILL. A cidade ideal de Platéio Plato (427-348 aC) entra em cena, na historia, depois da queda da democracia ateniense. Marcado pelas turbuléncias politicas de seu tempo e pela condenagio & morte, de Sécrates (do qual foi disci- plo), ele proc antes de tuco um meto para cheger 4 cidade ideal, modelo de sociedade que escape & desordem e a erosio do tempo. Este aristocrata ateniense redige A repiiblica, obra na qual ex- Se os meios para se alcangar esse objetivo, Até a morte, Platio vive sempre animado por essa mesma preocupago com a ordem, Em As /eis, obra da maturidade, ele da um conjunto de indicagbes mais detalhadas ainda (embora diferentes das anteriores) com o in- tuito de realizar o tipo de sociedade que ele julga perfeita. Mas o contributo de Plato nto se reduz s6 a essas duas obras. Platio nos legou iniimeros outros escritos, muitos deles em forma de dilo- ‘208, como por exemplo Apologia de Sécrates, Protigoras, O ban- quete... Sempre com a mesma preocupagaio de pedagogia politica, © filésofo funda a Academia, uma espécie de escola destinada a formar homens de Estado. Excetuando duas experiéncias desastra- das na Sicilia, assessoranco o tirano Dioniso de Siracusa, o proprio Platao se mantém sempre & margem da vida politica, A originalidade de Plato consiste em sustentar primeiramente, contrariando Parménides e Heréclito, que hé um mundo das Idéias, mundo estivel e perfeito cujo reflexo mutivel se vé na realidade (Texto 1). Gragas a reminiscéncia, os seres humanos se beneficiam da experiénoia de uma vida anterior, a de uma alma iriortal ¢ ima. terial que foi preeipitada em um compo e que se beneficiara da con- ‘templagdo das Idéias de Bem, de Belo... Nesse mundo das ldéias se acha a justiga em si, principio que os seres humanos éevem tomar ppot base no decorrer de sua vida terrestre, para construir una cida- de ideal e assegurara salvagio da alma. A organizacio da cidade ~ penhor da felicidade individual — nao ¢ portanto agora, como pen- savam os sofistas, questio de opinides mas de técnica. “Entrada permitida s6 aos gedmetras” — esta era a formula gravada no fron- to da Academia, Essa expresso revela a ruptura introduzida por Plato, Com este iltimo o politico balanga entre a filodoxia (amor a doxa, & opinifo) ¢ a filosofia (amor & sabedoria, sophia). me i pores PLATAO~A alegoria da caverna ‘Agora, continuei, representa-te da seguinte maneita 0 estado de nossa natureza no que s¢ refere 4 instruglo ¢ & ignordncia, Imagina homens em uma morada subterranea, em forma de ca~ ‘vera, tende sobre toda a sua targura uma entrada aberta a luz; cesses homens se encontram ali desde a inflincia, com pernes € ppescogo acorrentados, de tal sorte que nio podem movimen- tar-se nem ver senfio o que fica bem A sua frente, pois os grithbes ‘8 impedem de voltar a cabega; a luz thes vem de uma fogueira ‘acesa em uma elevacio, ao longe, por tras deles; entre a fogueira, ‘¢03 prisioneiros passa um caminho elevado: imagina que ao lon- ge desse camino est construido um pequeno muro, semielhante ‘20s tapumes que os manipuladores de marionetes erguem & sua, frente ¢ por cima dos quais exibera suas habilidades. Estou vendo ~ disse ele Imagiza agora ao Jonge desse murinho homens que carre~ ‘gam objetos de toda sorte, que sobrepassam 0 muro, ¢estatuetas ‘de homens ede animmsis, de pedra e de madeira, ¢ de toda espicie de material; naturalmeote, entre esses carregadores, alguns fa- lam e outros estio calados, ‘Eis — exclamou ele — um quedo estranho ¢ estrankos prisio- tes se assemelham a nés — respondi —e em primeito lugar, ‘pensas que.em tl situaglo eles jamais tenham visto outra coise di- ferente deles mesmos e de seus vizinhos exceto as sombras proje- tadas pelo fogo sobre a parede da caverna que esté diante deles?? E como? ~ observou ele — se estio forgados a permanccer ‘com a cabega imOvel durante toda a vida? E para os objetos que destitam, nfo se dio mesmo? Incontestavelmente ‘Se, portanto, pudessem conversar entre si nfo pensas queto- ‘mariam por objetos reais as somibras que vissem? 2a Agom, meu car Glauco, continuei, deve-se aplicar ponto ‘por ponto esta imagem aquilo que acima dissemos, comparar 0 mundo que a vista nos mostra a morada na prisdo, ¢« luz da fo- _gueira que ailumina ao poder do sol. Quanto & subida para are- sitio superior e d contemplacZa de seus objetos, se a considera. como a ascensdo da alms para a regifa inteligivel, nfo estarés enganado segundo penso, porque to hem desejas conhecé-Ia Sabe Deus seela ¢ verdadeira, Quanto amim, esta éa minha opi ‘itl: no mundo inteligivel a idgia do bem é percebida por dltimo com dificuldade, mas nfo se pode percebé-la sem cencluir que cla seja a causa de tudo aquilo que ha de reto e belo en todas as coisas; que ela, no mundo visivel, geroui a Iuz e 0 scberano da uz; que, no mmendo inteligivel,é justamente ela que 6 soberana «e dispensa a verdnde e a inteligéncia; e que ¢ necessirio vé-la para se portar com sabedoria tanto na vida privada como na pir blica (Platio, A repuiblica, livro Vil, 314-517), Mas, 0 que € o modelo da cidade ideat? E uma cidade regida pela justica, responde o autor de A reptiblica. E aquilo que é justo é a atribuigdo de status em fungtio da competéncia prépria de cada individuo, Mediante um sistema de educacdo estritamente codifi- cado, convém selecionar os individuos em virtude das suas quali- dades e colocé-los emi trés classes diferentes: 0s artesios (encarre- gados dos problemas econdmicos), os guerreiros (tesponsiveis pela defesa da cidade) e os guardides, dotados de uma sabedoria que 08 habilite para o exercicio do govemo. A fim de constituir tuma grande familia unida, os membros das classes superiores (di- tigentes, magistrados..) devem viver sem trabalhar ¢ em completa comunhiio de bens, de mulheres e de filhos (Texto 2). “Enquanto 08 filésofos niio forem reis nas cidades (..) ~ explica lato ~ no cessario (..) 08 males das cidades, nem, parece-me, os do género hhumano” (4 repitblica, 4736). pases PLATAO~ As classes na cidade platonica © mito dos metais ‘Vou, portanto, faz8-lo~embora nfo saiba de que audécia © de que expressées usarei para isto ~e tentarei persuadir em pri ‘meito lugar 08 chefes e os saldados, em seguida os outros cida- dos, que tudo aguilo que lhes ensinamos ao educé-los e ins- tui-los, tudo aquilo de que acreditavam ter o sentimento © a ex- pperigneia, ndo era, por assim dizer, outra coisa sendo soho; que, na realidade, eram entio formados e educados no seio da terra, cles, suas armaas ¢ tudo 0 que les pertence; que depois de té-los inteiramente formado a tera, a mile deles, 05 deu 3 luz; que, en- to, devem olhar 0 pais que habitam como sua mae e sua nutri Gefendé-la contra quem a stacasse, © tratar 0s outros cidadios ‘como irmiios, como filhos éa terra assim como eles. Nao é sem raz que sentias vergonha dizendo essa mentirat ‘Sim, confessei, tina muito boas razdes; mas uve todavia o resto da fabula: “Vés sois todos inmos na cidade, vamos di- zer-lhes, continuand esta ficgo, mas o deus que vos formou fez. entrar ouro na composigio daqueles dentre vés que tem capaci- dade para comandar, por issa so 0s mais preciosos. Misturow pata na composigdo dos auxiiares; ferr0 e bronze na dos traba- Ihadores ¢ dos outros artosfos. De modo geral,iteis gerar filaos semelhantes a Vis mesmos; mas como sois todos parentes, pode ‘acontecer que do ouro nasga umn rebento de prata, da prata um re- ‘bento de ouro, ¢ que as mesmas transmyotagdes se produzam en- ‘tre os outros metais. Deste modo, antes de tudo e sobretudo, 0 ‘deus ordena 20s magistradas que vigiem atentamente os filhos, ‘que prestem muita atengo ao metal que se acha misturado com, sua alma ¢ $¢ 08 seus préprios filhos tém alguma misture de bronze ow de ferro, que nilo tenbam piedade por eles, e que hes ‘concedum o género de honra devido a sua natureza, relegando-os, ‘para a classe dos artestios e dos trabalhadores, mas se destes tilt os nusce um filho cuja elma contenks ouro ou prata, o deus pga ae ee sea horadoeduesno-o aut para ograu de guar dito quer para od sunlit, vse que um ores aioe oes cidade precerd que for guardadaylo er oupeiotecees Chatto. repel, 149. ‘A comunidade de bens, de mulheres de fos entre os guardides Além desta eduucagao, todo homema sensato hd de reconhever qu énecesiio dares moraine bens que ncn inpegan de sera gars to petits quam pose caus cic levema pris os outoseladoe, ods ver eto, continu, se par serem wis deve vere tmorr do mance gue vo dizer anes de tal near dls sur nada como préprnforn os ajc de pcre dade). Todas as mules denotes ues seo comune todos: "etna das bit empaiciar om nun dles dace, ‘ma forma, os filhos serio comuns, ¢ 08 Pais no conhecerio seus fies nr estes seus pais (Pato. bd e470 459) Esse ordenamento ical da cidade tal como Plato o imaging, é somente a projegio na ordem social da esirutura da alma humana, Para Plato, a alma se divide, com efit, em trés pts (deseo, coragio, rizto) que corespondens a ottas tanta virudes (temp, ranga, coragem, sabedoria).O equilibria da alma enconttao sou equivalente, aragas ao estabelecimento das ts clases, como equa, brio da cidade A incivisibilidad, a estbilidade, a avtaruiaices, némica eo esto gerenciamento da sociedad (da qual sie exclu. dos 0s poetas) slo os eitrios desta exeeléncia platbnice 1.2, Aristételes e 0 bem-viver em sociedade Arisiételes (384-322 aC), discfpulo de Platio na Academia, & também o seu principal contraditor. Fundador, também, de uma mae z q i 4 d 3 4 4 peewee escola (0 Liceu), Atistételes produziu uma obra pletorica que aborda a maior variedade de assuntos como por exemmplo a logica, afisica ou ainda abiologia, Mas, & claro, sio as obras de moral e de politica que nos interessam em primeira instdncia: a Ltica a Nicé- ‘maco e, sobretude, A politica. Axistoteles s¢ afasta de Platio recusando no apenas 0 print pio de comunidade mas também a pertinéncia de toda oposigio en- tre mundo sensivel e mundo das Idéias. Nao ha razao para sepatar forma e matéria, almae corpoe, a fortiori, andar & procura de une justiga ideal, Abandonando o idealismo plat6nico, Aristételes pre- coniza que se d8 atengio aos fatos sem, no entanto, refugiar-se na ‘vulgar empiria, Para além da complexidade do real, a ess&ncia das coisas & apreensivel gragas A pesquisa, nfo de principios percidos ro céu das Idéias, mas da sua finalidade. Em virtude desse prin pio, Arist6teles define o ser hummano como um animal racional, que vive & procura da felicidade na terra. Para alcangar essa meta, 0 ser humano deve dar provas de virtude levando a vida com modera- fo, com perfeigao e independéncia. Gragas a vontade, & rao e 8 educago, s6 se atinge realmente esse ideal quando a virmude se tor- nou umn verdadeiro habito, uma espécie de segunda natureza que, cde maneira espontinea, govema do melhor modo 6s nossos atos, ‘Mas o ser humano— assim pensa Aristoteles ~ nasceu antes de tudo para viver em sociedade: ele & um “animal politico”. Dotado da palavra, acha-se apto para deliberar com seus semelhantes de modo que diga 0 que é justo ¢ 0 que é injusto, estabelega para si ‘mesmo regras de vide em comum, procure por consenso © melhor dos regimes... Esse comércio da palavra se corrobora através da amnizade (philia) e autoriza a busca do “bem-viver em sociedade” que fandamenta toda comunidade politica (Texto 3), Diversamien- tedePlatio, Arisisteles alimenta a persuastio de que nio existe ne- ‘nhum sistema politico perfeito em si nem regras perfeitas de vida ‘om sociedade, Na medida em que se afastam da tentagio da tirania, trés regimes the parecem, no entanto, mais aceitiveis: a democra- cia, a oligarquia ¢ a monarquia, Os melhores modos de convi- véncia e de governo dependem, finalmente, de alguns outros fato- Fes como 0 clima (“A acrépole & oligérquica e mondrquica, en- quanto a planicie é democrdtica”) oa demografia (uma densidade muito forte pode provocar perturbagoes). Scerige assim a politica como ciéncia rainha, Aristételes conti- hua prisioneiro de uma filosofia que faz da natureza um modelo absolute para a organizagao da cidade. Primeiro objeto entregue pela natureza, 2 sociedade €, & imagem do corpo, um todo que tem a primazia necessariamente sobre as partes que oconstituem. A fa- nilia, lugar de procriagdo ¢ de educagio, forma neste sistema 0 grupo social de base. Ao contratio do que € preconizado por Pla- Bo, nem se deveria questionar sobre a dissolugo dessa célula na- tural nem reivindicar a igualdade entre homem ¢ mulher, Pois a or- ganizagdo social deve respeitar 0 padrio da natureza: ora, como se comprova, o homem é naturalmente dominador e a mulher levada 4 subordinagdo. Em nome desse mesmo principio, o filésofo se re- usa a condenar a escravidlio que é, a seu ver, para os homens nah- ralmente inferiores. Texto3 ARISTOTELES— As formas de cidade © que é uma cidade? ‘Vemos que toda cidade ¢ uma espécie de comunidade, eque toda comunidade & consttuia em vista de um certo bem (pois é em vista de obter 0 que Ihes parcce um bem que todos 0s seres hbumanos realizam sempre os seus atos): dat resulta claramente ‘que se todas as comunidades visam um bem determinado, aquela que € mais alta de todas e abrange todas as outras, visatambém, inais que as outras, um bem que esti acima de todos os outos. Esta comunidade & a que se chame de cidade, & a comunidade politica (Aristteles. Politic, I, 1) Be auitrmicinnaslineancnaga ieee Seis e Os diferentes tipos de constituis0 ‘Os termes consttugdo e govemo tém o mest sinifcado,& o governo é a autridade suprema dos Estados, autordade supre- amaque se achanecessariameate nas mios ou dein s8 hose, 08 deumpequeno grupo eu da mss dos cidadifos. Quando o deten- torlinico da sociedad, ow o pequeno grupo ou a massa goversam. em vista do interesse comum,ess28 consttuigdes so necessaria- mente consttuigdes eorretas, ao passo que os governas que tém cm visto interesse particular, ou de um sé homem, ox de um pe- aqueno grupo eu da massa sfo desvios do tipos precedentes. Ou cnffo, com elite, queles que fazem parte do Estado nia deve. ser chamnados de cidadios ou enido devem participar das vanta~ ‘ens da comunidade, Ente as formas de govemo de tipo monir~ 4uico,costumsmos designar com o nome de realeza aquela que leva em conta o interessecomum; quando a autoridade éexerida por um pequeno grupo, indo, todavia, além de. unidade, € uma ‘ristocracia (chamada assim ou porque S10 os melhores que e0- ‘Yemuam, ou porque ase tem em visa maior bem para cidade seus membros). Quando, enfim, « multieio administra 0 Estado ‘emvista da utiidade comum, 0 governo recebe o nome conn a todas as constiuigdes, saber, uma repiblia propriamente dit, © aqui se rata de un fato bem natural: pois se € possivel que um s6 individuo ou um poqueno grupo de individuos se sobressaiam na virude, a0 contéro & entfe dificil que um mimero de homens ior aleance a perfeigo em todaa espécie de virtudes (perfeiclo ‘que ne entanto € alcangada no valor militar, pois este surge do seio «das massas; e por eonsoguiate € nesta titima forma de govemo ‘quea classe combarente detémo poder supremo c todos 08 quese~ _guem a careira das armas tém parte no poder) ‘As formas de que aeabamos de falar podem softer desvios: a ‘iratia 6 um desvio da realezs a oligarquia, da aistocracia,¢ a ddemocracia, da replica propriamente dita. A tirana, com efei- to, Guma monarquia que tem em vista unicamente 0 interesse do soberano; a oligarquia tem em vista ointeresse dos rcos: 8 de- rmocraca, o dos indigents; enenhuma dessas formas de sover- no tem por mete. a utilidade comum (Aristteles. ibid, I, 7) Esse: Fon ieriiocola Cwnleiade Sees 2.0 teocentristn da Tdade Média Depois da Grécia, ¢ Roma que ocupao posto mais alto na hi vin ccd. Ma pio Romane, qv a perso no do peso do gigantismo e do absolutismo, nio produz renhuna refle- xfo politica original. Vitima das invasdes barbaras, Roma cai em 410 sob o ataque do visigodo Alarico. No plano intelectual, im- pOe-se entio um nome: o de Santo Agostinko, bispo de Hipona, 2.1, As duas cidades de Santo Agostinho (354-30) No intuito de refutar as teses pags que atribuiam a queda de Roma a uma adesto progressiva ao crstianismo, Sante Agostinho re- dige, entre 412 © 426, A cidade de Deus, Esta obra constitu, a0 mes- mo tempo, uma tentativa de refutar as idéias milenaristas. O movi- ‘mento milenarista, sustentado por alguns Padres da lereja entre os segundo e quarto séculos, serve-se com efeito da autoridade do Evangelho para condenar as desigualdades sociais. Tomando por base o livro do Apocalipse, de Sao Joao, que anuneia a queda da Ba- bilGnia e o advento de um milénio de paz felicidade, o milenaris- ‘mo antecipa e augura uma sociedade justae feliz. Mas, persuadicdo de ue somentea f& pode salvar (no as obras), Santo A.postinho se ope ‘Vigorosamente a essa intromissio religiosa na vida politica e social ‘Mas 0 coragiio da demonstragdo, efetuada por S: i See ee oposigtio entre dois tipos de “cidade humana”: a cidade terrestre e acidade de Deus. Na primeira, 08 seres humanos vive no pecado ena dependéncia mitua, cultivam o apetite desordencdo, a violén- cia €0 amor por si mesinos até chegar ao desprezo de Deus, A se- gunda é uma cidade cosmopolita em que os seres humanos vivem no exclusive amor a Deus, na fé ¢ na humildade. Em nomte dessa segunda forma de vida humana, Santo Agostinho preconiza 0 de~ sapego frente aos negécios do mundo terrestree a estrita observn- ia das regras, mesmo que injustas, das instiniigdes existents. Bee Livro de cabeceira de Carlos Magno, 4 cfdade de Deus consti tui, fora de divida, e de maneira um tanto paradoxal, uma pega iam- pportante para o pensamento e a prética politica da primeira [dade Média, Da doutrina agostiniana se deduziu, por exemplo, a teoria agsim chamada das “duas espadas”, Deferdida pelo Papa Gregorio ‘Magno (540-6014), ela consiste em reconhecer a existéncia ns terra de dois tipos de poder delegados por Deus: um, espiritual, conferi- do as autoridades eclesidsticas que detém todo o poder na esfera religiosa; 0 outro, temporal, que compete ao rei, que pode dispor dos seus siditos como bem Ihe aprouver. 2.2. As nupturas da Idade Média Em conseqiiéneia da invasio do Império Romano do Ocitente pelos bitbaros, o periodo que decom entre 0s Ve X séculosse ca racteriza, essencialmente, pela ruina e pelo estilhagamento das ci-

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