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LITERATURA. ontem, hoje, amanha (©2018 Editora Unesp Divo de public reserado Fant ion da Une (EU) Pras da Se 108 (01001900 Si Pale - SP Tels (Oxx11) 3242-7171 Fax: (Oxx1 1) 3242-7172, Dados Inernacionis de Catalogago na Publicar (CIP) de acordo com ISBD CRB-8/9410 Eliborado por Vigne Rodolfo da Si Lisi Liplo Marisa Ler: ote oje aman / Maria Lolo. ~ Sto Paulo: Eltora Unesp ame, Inch bibliog SBN. 97885-393.07227 1 Lira, 2. Tor erin. 3. Hits erate 1. Telo, amie3s9 aloe fads: Encarando 0 risco de assustar leitores — criaturas que se as- sustam com muita facilidade! -, informo que este livro completou trina anos em 2012, Em sua primeira edigao (1982), fazia parte da colegio Primei- 10s Passos (Editora Brasiliense) e se chamava O que é literatura. A versio de agora no & a mesma de 1982. Alids, as muitas dezenas de reimpressdes da edigio original nio sobreviveram a 2001, quando a Editora Moderna o relangou com o titulo Lite- ratura: leitores ¢ leitura. Esta versio reescreve as anteriores. Em trinta anos o mundo muda, e nés com ele. Ea literatura conosco. Esta nova versio tenta dar conta de pelo menos algumas des- sas mudangas. Digitalizado com CamScanner un. 25 3B. SUMARIO Capitulo 1. No qual se pdem algumas cartas na mesa, escondem-se outras na manga, funda-se o Clube dos Leitores Anénimos, a cujos s6cios se enderesa a questio: o que é literatura? «Capitulo 2. No qual se contemplam, com maliciae irre- veréncia, algumas das faces do que se chama de literatura + Capiculo 3. No qual se surpreendem segredos inconfes- siveis e modos de ser espantosos de algumas das faces do que se chama de literatura Capitulo 4. No qual se devassam truques, mscaras maquiagem dos bastidores do que se chama de literatura Capitulo 5. No qual se aponta a antiga, sélida e muito suspeitaalianga entre quatro lecras “L’:linguagem, lingua, literatura 8 letras Digitalizado com CamScanner 7 a. 5 85 95 109 . 129. ‘Manisa Lajoto Capitulo 6. No qual se agra a promiscua alianga entre virias linguagens no interior do que se chama de litera. ura Capitulo 7, No qual se observa constante, intencional e danosa indecisio do que se chama de literatura entre 9 verdadeiro,o verossimil ¢ 0 fantasioso Capitulo 8. No qual, atendendo a pedidos, adiam-se os sgregos, pulam-se séculos e mergulha-se entre um pré- -modernismo e um pés-moderno: ismos difusos, profusos ¢ confusos que assolam o que se chama de literatura «Capitulo 9. No qual se treina o ouvido para identificar € proclamar sotaques gregos ¢ latinos — auténticos, falsos ¢ autenticados — no que se chama de literacura + Capfculo 10. No qual se afina a escuta para reconhecer ¢ anunciar tons medievais ~ verdadeiros, postigos e falsif- cados ~ no que se chama de literarura «Capitulo 11. No qual se afiam olhares maliciosos e audi- io matreira para ouvir e ver perfis clissicos, barrocos e (neo)elissicos no que se chama de literatura Capitulo 12. No qual ~ com suspiros profundos,Ligrimas em fioe valsas de Chopin ~ se baila 0 som de compassos rominticos do que se chama de lcerarura Capiculo 13. No qual ~ abafando suspiros, enxugando ligrimas e desligando Chopin ~ desflam performances és-romdnticas (realistas & naturalists) do que se chama de literatura {8} 139. 49. 165 « 167 . Lrrenatura Capfrulo 14. No qual se registram flagrantes delitos nas credenciais do Parnasianismo, do Simbolismo e do Pré- -Modernismo, por algum tempo estrelas do que se chama de literatura Capitulo 15. No qual, com todas as cartas em jogo, © Clube dos Leitores Anénimos aposta alto no que é lite- ratura hoje, e arrisca fichas no que ela poders vir a ser amanhi ou depois Capiculo 16. No qual se sugerem livros para a biblioteca do Clube dos Leitores Anénimos Referéncias bibliogréficas 9} Digitalizado com CamScanner CaptTuLo 1 No QUAL SE POEM ALGUMAS CARTAS NA MESA, ESCONDEM-SE OUTRAS NA MANGA, FUNDA-SE O LUBE DOS LEITORES ANONIMOS, A CUJOS SOCIOS ‘SE ENDEREGA A QUESTAO: O QUE E LITERATURA? o~? Cidade beter ‘Ao dobar esa pigina, [Nada tema: poeta Esb.um sonho do poema.? Bem-vindos todos, internautas leitoras ¢ leitores, a estas mal- trasadas linhas! Fico encantada de estarmos juntos nessa discussio, no mo- ‘mento em que tanta gente jura que ninguém Ié, que a literatura morreu. Vocé, eu, seu amigo, minha colega e todos 0s outros sécios do selerissimo Clube de Leitores Andnimos sabemos que émentira, que a literatura vai bem, obrigada, est4 vivinha da silva, até manda lembrangas. 1 Voge, Adverténcia, Geragdo, p9. an Digitalizado com CamScanner Marisa Lajoto Mas ela mudou. Mudou muito. Mudou de cara, de enderego e até de familia. E tem quem nio a reconhesa no novo endereso, tem quem desfaga da parentela que veio de longe. Tem uma voz ali atrés, res- ‘mungando: entio miisica popular é poesia? E fanfiction? Telenovela tem tanto valor quanto romance? E.o que ver em blogs? Folhero de cordel tem a mesma importincia estérica que a epopeia...? Sio vozes rabugentas, mas paciéncia, que nessa conversa volta e meia vamos ter de dialogar com esses e outros resmungos semelhantes, Sio resmungos cinco estrelas: os donos dessas vozes dio aulas, escrevem livros imensos, dio entrevista aos jornais, aparecem na televisio. Semana passada, um jornal de grande tiragem ~ vamos imaginar que se trata de A Gazeta de Sarapalha — publicou um artigo que exprimia muito do que essas vozes dizem: [.]viciada na televistoe em hisrérias em quadrinho, jf agora tam- bam em videogames, blogs, sites e games, a juventude de hojeé pouco amiga dos livros ed as costas & leiura. Dona de um vocabulirio ‘muito parco, sua fila é ainda corrompida pela giria das ruas¢ pelos cstrangerismos que ameacam a soberania da lingua nacional. Mesmo nos cursos de Letras, no poucas vezes os clissicos da lterarura sio substieuidos por autores menores,esteticamente inexpressivos, que nada tém em comum com a estrpe de um Machado de Assis ou de tum Proust (..] Paulada, no é mesmo? Mas que ninguém se assuste. Esse pessimismo todo no tem nada de novo, Salvo raras excegbes, intelectuais e professores foram sempre do contra quando se trata de inovagées culeurais. 12) Lrreratura Ba literatura estd sempre inovando, ganhando cara nova. A literatura hoje nao é mais sempre e s6 artesanal, nem é produzida por umas poucas indistrias ou escrita por uns poucos escritores que tém © monopélio do mercado e da critica. Hoje a literatura é produzida por uma industria tio sofisticada quanto a indéstria de alimentos, que oferece molho de tomate para todos 60 gostos, com coentro ou sem cebolinha, com pedagos grandes de tomate ou como creme homogeneizado. Macarronada per tutti! Quando Castro Alves (1847-1871),? grande poeta brasileiro, descrevia — hi bem mais de um século — seu sonho de um mundo onde houvesse “livros, livros a mancheias’, estava profetizando nosso hoje, Pois os livros, a partir de meados do século XX, mul- tiplicaram-se vertiginosamente, inclusive no Brasil. Dados de pesquisa da Camara Brasileira do Livro (CBL), ano base 2016, re- gistrama produgio de 17373 novos ticulos que geraram 80,026.152 exemplares. No mesmo ano, do total de 427.188.093 exempla- tes produzidos, 59,769,489 podem ser considerados literatura? Livros de todo feitio, para todo feitio de leitores. Livros im- pressos ¢ livros digitais. Romances de amor para quem curte historias cheias de beijos intermindveis € quentes, ¢ romances sem amor para quem se amarra em histérias de bandidagem e armamento pesado. Per- 2 Datas de nascimento/morte de escritores, bem come dats de publicacio de suas obras, sio indicadas a parti de pesquisa em diferentes sites 3 Disponiel em: . {13} Digitalizado com CamScanner Manisa Lajoo, sonagens em que se clica e frases que se sublinham. Histérias ‘com as quais se gargalha c histérias com as quais se sorri de lado A literatura de hoje fala de virios mundos: alguns parecidissimos com 0 nosso, onde, por exemplo, rem gente que morre de fome nas ruas; mas também fala de mundos muito diferentes, habiea- dos por espiritos, anjos, vampiros, energias e deménios. A licera- cura traz para o nosso lado mundos prometidos pela ciéncia, com seres artificiais sofisticados e com seres naturais manipulados em Iaboratério. Ha histérias com palavras ¢ imagens e histérias s6 com ii gens. Poemas que so imagens e imagens que sio poe- mas, poemas curtinhos empilhando palavras, poemas compridos cespacando palavras, poemas com rima, poemas sem rima... ‘Ou seja, arrombou-se a festa, querido leicor! A literatura, hoje, parece estédio de furebol em dia de final de ‘campeonato: sempre cabe mais um, e tem até cambista vendendo ingresso para quem chega tarde, Mas ha também, & claro, o setor das numeradas ¢ das cadeiras cativas: pois a literatura de que falam professores ¢ livros mais convencionais continua viva, vai bem, obrigada, ¢ até — como jé se disse - manda lembrangas. Apenas nao est mais sozinha em cena. Esté acompanhada, ¢ ‘muito bem acompanhada! Ao lado dos romances esotéricos, da poesia de autoajuda, da ficgio cientifica ¢ do romance policial, ‘continuam a ser lidos e apreciados romances antigos (os chama- dos cléssicos), a poesia dos sonetos, contos... € que mais? Cré- nicas, haicais, histérias em quadrinho... Talvez venham dessas ‘miiliplas faces da literarura os resmungos mal-humorados que zumbem em nossos ouvidos. 04} LrveRATURA O quequer dizer que Homero (século IX .C)), Dante Alighieri (1265-1321), Ega de Queirés (1845-1900) ¢ Guimaraes Rosa (1908-1967) escreveram, mesmo, paginas inesqueciveis. Tio ines- queciveis que algumas hoje sio digicais, ebooks excelentes e muito distintas do que escrevem hoje os Titis, Paulo Coelho, Rodolfo Cavalcanti J. Grisham, Rafael Dracon e Patricia Rebougas. Mas diferente nio quer dizer pior. S6 quer dizer diferente. Em geral, as vozes donas da verdade, vozes que nao conviver bem com a diferenga, usam éculos que vem o diferente como pior e esto habicuadas a ter sempre razio. Por mais divergentes e contraditérios que sejam seus pontos de vista sobre a literatura, tais vozes acabam circulando sempre pelo mesmo universo. Uni- verso imenso, mas com fronteiras: limitado por... por quem? Rs 181s! Vamos dizer, por Marcel Proust (1871-1922) ao norte, por Jorge Luis Borges (1899-1986) ao sul, por Clarice Lispector (1926- 1977) aleste e.... por quem, mesmo, a oeste? Edgard Allan Poe (1809-1849)? TS. Elior (1888-1965)? Poe e Eliot a oeste, certo! Além de terem cacife alto, as vozes donas da verdade nio resmungam por mal, coicadas. Elas tém razio ao considerarem Proust, Jorge Amado, Lispector, Poe ¢ Eliot excelentes, maravi- Ihosos. Mas nio sio esses os finicos escritores que sio maravilho- sose excelentes. Quem acha que literacura é privilégio de uma ou duas dezenas de escritores se engana. Grande e ledo engano 0 deles! Ou seja, embora algumas vozes resmungonas prefiram Os- wald de Andrade (1890-1954) e outras Drummond de Andrade 5) Digitalizado com CamScanner Manisa LajoLo (1902-1987), hé mais em comum entre elas do que a mera coin- cidéncia de sobrenome de seus escritores preferidos. As vozes resmungonas assumem as posigbes que assumem a partir e em nome de uma tradigio cultural que vem se cons- truindo hd séculos. A questio o que ¢ literatura?, para qualquer delas — como para qualquer intelectual de sua classe e quilate -, exige respostas que retomem e atualizem tudo 0 que j foi escrito até hoje sobre o assunto. Embora resmungonas, essas vozes sabem o que dizem e nio dizem o que dizem sozinhas. Fazem parte de uma longa e res- peitivel tradigio. Mas essa tradigio cultural que as apoia, se tem co respaldo de muitos séculos, tem também a civilizagio ocidental por horizonte. E a civilizagio ocidental foi (ou ainda é um pouco?) por longo tempo branca, masculina, bem alfabetizadae com conta no banco... Nao é mesmo, leitores proletarios ¢ leitoras negras? Aquém e além dos que resmungam, uma multido de gente, voct, eu, todos nés, sécios entusiasmados do Clube dos Leitores Anénimos, eventualmente jé nos perguntamos ¢ jé nos respon- demos o que ¢ literatura? Perguntas permanentes, respostas pro- visorias. Tao permanentes umas e provisérias outras quanto 0 sio as perguntas ¢ respostas com que lidam os intelectuais do time dos que reclamam ¢ resmungam. Sé que — no nosso caso — sem o reflexo do espelho, das citagées, dos interlocutores. Entdo, em igualdade de condigées, é arregacar as mangas € pagar pra ver. CaP{TULo 2 NO QUAL SE CONTEMPLAM, COM MALICIA E IRREVERENCIA, ALGUMAS DAS FACES DO QUE SE CHAMA DE LITERATURA o~ Lembrou-se, antes de dormir, que precisava comesar «ler ios mais grosos: demoravam mais para acabar cram travesseiros mais confortéves durante a noite* Nio se pode dizer que literatura é aquilo que cada um con- sidera literatura? Por que nio incluir no conceito de literatura as linhas que cada um rabisca em momentos especiais, como © poema que seu amigo fez e enviou para a namorada, endo mos- trou para mais ninguém? Por que no chamar de literatura 2 histéria de bruxas e bichos que de noite, & hora de dormir, sua mie inventava para voct e seus irmios? E.a fanfiction que dé vida mais longa a personagens de romances e de novelas mais antigas? Por que nao seriam literatura os poemas que a jovern poeta es- 4 Coelho, O alguimista, p13. on Digitalizado com CamScanner Manisa Lajoto creve no computador, pée na internet e convida os internautas alerem? Esses textos nao tém a mesma cidadania literdria que um romance famoso de Gustave Flaubert (1821-1880) ou José de Alencar (1829-1877)? Uma resposta direta 4 pergunta o que é literatura? nem sempre é a melhor safda, leivora compulsiva... Saiba, por exemplo, que um professor de literatura inglesa contemporineo de Shakespeare (1564-1616) ficaria espantado se the dissessem que Shakespeare era literatura. — Impossible! Never! Aquele sujeitinho que escreve pesas cheias de bébados ¢ desordeiros, ¢ que é aplaudido por plareias fedidas e barulhentas? Alguém hoje duvida que Shakespeare seja literarura com L maidsculo e tudo? Aprenda entio o vivissimo leitor que ser ou ndo ser literatura é assunto que se altera a0 longo do tempo € desperta paixoes! No século XIX carioca, se alguém dissesse aos serifssimos mestres do Colégio Pedro II que aqueles padres, estadistas € bispos que tinham escrito sermées, oragdes ¢ poemas 4 Virgem ndo cram literatura, eles nao acreditariam: dava tanto a ensinar tudo aquilo 2os alunos! ‘Os alunos desses professores analisavam sermées, poemas, imitavam 0 estilo dos discursos. Os mais di endinheirados, quando cresciam e iam ser advogados, pad politicos, faziam o possivel para escrever e falar do je textos que haviam estudado e que hoje ndo sdo mais fis) Lirenatura ois um texto literério nao é como uma aranha’ que éaranha desde que nasce ¢ para sempre, que foi aranha no Egito antigo, centre os indios do Arizona e continua. ser aranha nos cybercafés cariocas. Com um texto é diferente: pode vira ser ou deixar de ser literatura 20 longo do tempo. Por isso é muito mais divereido discutir literatura do que aranhas, letora de fe! E discutir literatura ¢ abrir 0s olhos e ouvidos, iniciaro tablet, colhar ouvir em volta ler livros, meditar sobre as frases pintadas spray em muros ¢edificios da cidade, e fazer a eles a pergunta: -oque literatura? Ou ligar o computador, navegat e perguntar As letras, gratidas ou mitidas, de uma ou de virias cores, que escor- ‘rem na tela, na horizontal ou na vertical: 0 que é literatura? As respostas vém devagarinho: alguns livros sio muito conhe- } Digitalizado com CamScanner Manisa Layoto tudos literirios, onde se fala, por exemplo, em escola romantic, ‘ou escola realista, Essa escolarizasdo da literatura, no entanto, ix vvezes fica tio monérona ¢ torna a literatura tio sem graca que Mirio de Andrade formula o que poderia ser 0 lema de nosso Clube dos Leitores Anénimos: “Em arte: escola = imbecilidade cde muitos para vaidade dum s6°8 Mas para que tanto rodeio?, talvez se pergunte o leitor apurado... | (O caso é que conhecer o lugar social de onde vm as respostas | mais correntes& pergunta o que é literatura? apurada leitora, nio diminui o prestigio social de que desfrutam tais respostas nem é | sgarantia de virar 0 jogo. Mas, sem diivida, conhecer a estratégia | do adversirio as regras do jogo aumenta as chances no campeo- | nato! Ou seja: se saber como se formam os ciclones nio dia rninguém poder sobre eles, saber identifici-los mais cedo di ‘tempo de procurar abrigo mais seguro, o que no é pouco, leitor afoiro! Saber de onde vém e como se formulam certas nogdes de li- teratura torna nossa opinio mais rigorosa e nossos argumentos | mais fortes, Permite-nos identificar os recursos retéricos ¢ ideo- | legicos em que se fundam os conceitos oficiais de literarura € saumenta nossa garra para bater 0 pé quando nos dizem que tal ‘ou qual conceito é uma verdade maior e absoluta. | Ora, senhores senhoras! Conosco, sdcios do Clube dos Lei- | tores Andnimos, verdades s6 menores ¢ relativissimas! | 18 Andrade, Preficiinceressancaimo Ta:__, Poesia compleas p32. 0} Lirerarura, Certos grupos sociais vem hi séculos definindo e avaliando os textos considerados literatura, comecando pela selegio, dentre ‘© conjunto deles, daqueles aos quais vio dedicar sua reflexio. Nesse esforco continuo de definicio retomam-se, rebatem-se € prolongam-se definigées anteriores. Comegam com Aristéreles 844 a.C-322 aC). Ou com Nicolas Boileau (1636-1711), na Franga. Ou com Alexander Pope (1688-1744), na Inglaterra. Ou com... com quem na tradigo vernicula? Em Porcugal, com Luts Antonio Verney (1713-1792)? No Brasil, com Janudrio da Cunha Barbosa (1780-1846) ou com Silvio Romero (1851-1914)? Nio se assuste, solerte leitora, mas, nessa trilha conceitual, a discussio exige, de quem quer participar dela, familiaridade com a linguagem da Filosofia, da Histéria, da Sociologia, da Antro- pologia e de muitas outras logias. Para entrar nessa discussio, é preciso ter ingresso. Para dizer a verdade, é preciso comprar ingresso. Eos ingressos — livros, cursos, escolas ~ nem estio sempre por af nem sio oferta gritis. Além de dinheiro, custam também © que custa ter acesso ~ ¢ de preferéncia, aderir ~ a certas for- mulagées culturais. Em geral formulagées brancas, quase sempre originadas no Primeiro Mundo, muitas vezes com barba ¢ bi- gode... Nao, nioé 4 roa que essas vozes podem ser consideradas dominantes. Faz parte do cardépio de dominagio que elas exer- ‘cem o estabelecimento do que é literatura, a fixacio dos padrées de bom gosto, a caracterizagio da sensibilidade estética ¢ alguns ‘outros etcéteras. pi) Digitalizado com CamScanner Manisa Layoto ‘Tempo houve em que a viagem pelos conceitos de literatura, arte, filosofia era da competéncia de apenas umas poucas cabecas, E sendo essas poucas cabecas as que mais discutiam conceitos, (0s estudos literdrios acabavam impondo tais conceitos ¢ formu- lagées. Era como se conceitos literarios s6 pudessem ser expressos na lingua dos que usavam éculos.... um certo tipo de dculos. Hoje, entretanto, com o desenvolvimento de outros modelos de dculos, | parece que olhos e ouvidos ficaram mais agudos e comecou-sea ouvir e ver que sempre houve gente discutindo o que ¢ literatura Discutindo e definindo. Hoje temos... | Definitivamente, intrépido leitor, quem escreve e quem lé um | livro como este aqui, jé estd a meio caminho do oculisea! As sicuages nas quais precisamos de uma resposta para a pergunta o que ¢ literatura? sio muito marcadas. Se nio tém far- | dio ebeca no horizonte, tém quase sempre lousas, examese livros | como cenirio. Mas também podem e precisam ter uma fangio | na vida de cada um. Pois, seo script €0 que nos deram, hé sempre uum jeito de desobedecer a ele, improvisar e provocar rupruras maiores ou menores. Hi, portanto, que escolher 0 tom de voz certo. (© que, no entanto, néo impede ninguém de mostrar a lingua quando todos estio de costas. Ou, 08 mais afoitos, em pleno palco, e de frente para a plateia. Que o mais é guardar-se pra quando o Carnaval chegar! (32) CaPiTULO 4 NO QUAL SE DEVASSAM TRUQUES, MASCARAS E MAQUIAGEM DOS BASTIDORES DO QUE SE CHAMA DE LITERATURA Um dia apareceremosleitor Nas estatsicas Catalogados em ocoréncia policial? Com o bloco nas ruas, vamos estabelecer que literatura nio tem apenas uma definigio. Ela nio pode ser definida como po- dem ser definidos ~ com certa unanimidade ~ um composto quimico, um acidente geogrifico, um érgio do corpo humano. Pode-se definir, sem muito sangue na arena, dgua, cordlhcra, «aparelho respiratério. Mas a poeira é muita quando se tenta definir literatura ou liberdade... e nio é s6 porque ambas comecam pela letra L! Arte e cultura no tém a mesma inicial, comecam por Ae por C, respectivamente, e também é complicadissimo defini-last 9 Pando, Receao. In: _, 25 azuljos, p35. (3) Digitalizado com CamScanner Manisa Lajovo Nesse campo, as perguntas sio muitas € as respostas, mais numerosas ainda. Hi tanta gente pensando no assunto (aliés, sempre houve) e tantas ¢ tio diferentes so as respostas sugeridas que nao da para dizer que uma delas é correta e descartar todas as outras. Dar, até que dé. Mas s6 para os ingénuos € os simples, que leem um livrinho ou outro e saem por af achando que lite- ratura é isso ou aquilo, que arte é aquilo ou isso. ‘Jinosotros, nem simples nem ingénuos, mas galhardos sécios do Clube dos Leitores Anénimos, achamos que literatura ¢ isso, aquilo e mais aquiloutro, nio é mesmo? O que é literatura? A pergunta é complicada justamente porque tem varias respostas. E nao se trata de respostas que vio se apro- ximando cada vez mais de uma grande verdade, da verdade-ver dadeira, da Verdade, ou da VERDADE. Cada época e, em cada €poca, cada grupo social tem sua resposta, sua definicio. Res- postas e definigées — vé-se logo — para uso interno. ‘Ac longo dos 2 mil e muitos anos que nos separam de — diga- ‘mos ~ Platio (~428-~348 a.C)), virios tém sido os critérios pelos ‘quais se tenta identificar 0 que torna um texto literdrio ou ndo literdro: tipo de linguagem empregada, as intengdes do escritor, 0s temas e assuntos de que trata, o efeito produzido por su2 leitura... tudo isso jé esteve ou ainda estd em pauta quando s¢ quer definir literatura. Cada um desses critérios produziu defi- nigbes consideradas corretas, aceitas durante certo tempo. Fur cionam para uso interno daquele grupo ou daquele tempo, 25 respostas correspondem 20 que foi (ou é) possivel pensar de lite- ratura num determinado contexto. 4} LrveRATURA ‘A arguta leitora ji observou como as definigdes sempre fun- cionam para quem as produz? E por que nio funcionariam, leitor arguto? Afinal, pensadores, escritores, artistas ¢ demais envolvidos em teorias e priticas de literatura discutem o tema. Discutem € es- crevem, polemizam (antigamente 3s vezes até duelavam)), formu- lam e reformulam conceitos de literatura que correspondem 20 contexto de produgio de seu tempo, aos horizontes dos leitores, as priticas de leicura em vigor naquela época. Por isso parecem cexplicar de forma convincente 0 que ¢ literatura. ‘Mas a explicagio s6 funciona temporariamente. Quando surgem novos tipos de poemas, romances ¢ contos € outras multidées de leitores entram em cena, livros passam a ser lidos de forma diferente. Os novos leitores piscam os olhos € limpam os éculos, engatam novas discussées, formulam novas teorias, propdem novos conceitos até que a poeira assenta para, de novo, levantar-se em nuvem tempos depois. (Ou seja, hi relagio profunda entre as obras escritas num periodo — e que, portanto, slo a literatura desse periodo — ea resposta que esse perfodo di A questio 0 que é literatura? HA uma espécie de solidariedade entre priticas e teorias da literatura. Em outras palavras, ¢ com perdio da obviedade: os conceitos de literarura (isto é,certos conceitos, por exemplo, os de tradigio filoséfica) sfo inspirados pela leitura das obras literdrias. Isto é, de certas obras, de livre transito em certos meios... Recipro- camente, as obras literdrias de certo tempo incorporam tais, formulagées, validando-as e validando-se como literatura aos colhos de seus formuladores. 65} Digitalizado com CamScanner ‘Manisa Loto Teorias e praticas literdrias, entio, parecem condenadas a s¢ reperir umas as outras. Se fossem mero eco reciproco, o texto literério e suas teorias chegariam ao impasse do siléncio. Mas nig € 0 que ocorre. Priticas e teorias literdrias so... Baaaaazaang! Salvas pelo gongo!! (© gongo, na criaglo, é a ruptura, o momento da vanguard, No campo teérico, o gongo é 0 momento do novo paradigma. Vanguarda ¢ novos paradigmas teéricos, assim, patrocinam a subversio do que se dizia e se fazia em nome da literatura. Engendram-se af novas respostas & velha indagagio: 0 que é literatura? E recomega o dilogo, nio s6 do texto literério com sua teo- ria, mas da produgio literdria de um dado perfodo com 0 con- junto de obras que a precedeu. Para nomear esse ininterrupto didlogo de uma obra com as muitas outras que a precederam ou Ihe so contempordneas, os estudos literérios cunharam a er pressio intertextualidade. Que o leitor palavroso me perdoe esse palavrio de oito silabas, que vai retornar com forga (e mais expl- cagdes) lina frente. ‘Também pela intercextualidade rompe-se o circulo de teorias € priticas que constituem um espelho no qual mutuamente se contemplam ambas. Na releitura do passado, manrém-se a ideia de uma linhagem de autores e de textos que constiruem a grande familia da lierarura, como num dlbum. Mas as foros no dlbum mudam de posicio, ganham novas legendas, algumas se perdem (como os oradores estudados em antigos cursos de literarura 69) Lrreraruma brasileira), outras se acrescentam (como foi o caso de Shake- speare, na Inglaterra). Ea vida que continua, veja s6, leitora desconfiada. ‘Com a imagem de um dlbum de retratos fica a ideia de que as definigées propostas para literatura importam menos do que © caminho percorrido para chegar a elas. Ou, dizendo com Fer- nando Pessoa (1888-1935), aquele poetinha danado de bom, © {que importa mesmo ¢ esperar dom Sebastiio, quer venba ou néo. Acompanhar, entio, como a literatura foi concebida, prati- cada, interpretada e avaliada em diferentes momentos é um ca- minho. Pode multiplicar nossos finalmentes ou, pelo menos, fragilizar os finalmentes alheios. No tempo devido I iremos, leitores,Ié iremos! E nessa vereda teremos multiddes de compa- nheiros e companheiras, que essa trilha é a mais batida dos estu- dos literarios. ‘Mas, antes de acompanharmos as multidées, mais um minuto (na verdade, um capitulo) de sua atengéo, atento leitor, para uns toques sobre a intima ¢ delicada relacio da literatura com a linguagem. (37) Digitalizado com CamScanner CaPiTULO 5 NO QUAL SE APONTA A ANTIGA, SOLIDA E MUITO SUSPEITA ALIANGA ENTRE QUATRO LETRAS“L’: LINGUAGEM, LINGUA, LITERATURA 8& LETRAS Foi de poesia ligao primeira: “A arara morreu na arocira’}? O capitulo se abre pedindo socorro 20 diciondrio do Aurélio que inventaria significados da palavra “literatura” no lugar com- petente, isto é ali na primeira coluna da pigina 1220 da quartz edicio (2009) da Editora Positivo. 10 Fontela, Tea, p.17. 63} Digitalizado com CamScanner “Manisa Loto Larerarura [Do latim literatura] 5.1. Arte de compor ou escrevertrabalhos artisticos em prosa ou verso. 2.0 conjunto de trabalhos literdrios dum pals ou duma época, 3. Os homens de leras: a literatura brasileira fez-se representar no colbguo de Lisboa. 4. A vida terra. 5.A carrera das etras.6.Con. junto de conhecimentos relatives is obras ou aos autores literdrios: cstudante de lieratura brasileira; manual de literatura portuguesa. 7, Qualquer dos usos estéticos da inguagem: literatura oral (qv). 8, fam, Ireaidade,fcgio: sonbador tudo quanto diz é literatura. 9, Bi- bliografia: Jd € bem extensa a literatura da fisca nuclear. 10. Conjunto de escritos de propaganda de um produto indusrial. (...] Sio dez, como se vé, 0s significados recobertos pela palavra literatura, Mas, antes que algum leitor emburrado me acuse de fugir da aia e passar a bola para o Aurélio em vez de modular com minha prépria voz 0 que este iro promete discutit,explico 0 pedido de socorro: 14 no verbete de Mestre Aurélio aprendemos virias coisas, entre as quais a origem da palavra ‘literatura’, informagio que vem entre colchetes, na abertura do verbete: [Do latim literatura. AA forma latina litteratura, por sua vez, deriva-se de outra par lavra igualmente latina ittera, que significa letra, isto é, sinal que representa, por escrito, um som da fala. Jé se delineia af uma relagio estreita entre literatura ¢ escrita. Em porrugués, 0 paren- tesco letra/literarura prossegue e se estreita em expressées como cursos de letras, academias de letras e belas-etras. Corra, cautelosa lerora! Corra e confira em verbetes de dicio- ndrios, impressos ou digitais, quantas vezes a nogio de escrits {40} | LiTERATURA std implicica ou explicita nos significados que ele registra para a palavra ‘literatura’. Melhor ainda: além do Aurélio, consulte os livros que vocé tem na estante, ou que encontra em qualquer biblioteca e cujo titulo parega promissor... Ou pergunte & quei- ma-roupa a professores e colegas! Ou A sapientissima www, es- colhendo sites de insticuigdes confidveis. Viu como eu tenho razéo? Literatura e escrita sio velhas parceiras, num jogo em que a escrita vale muitos pontos. Saber lere escrever, além de fundamental para o exercicio de graus mais complexos de cidadania, constitui marca de distingio e de supe- rioridade em nossa tradi¢do cultural. Tanto para individuos quanto para coletividades. Povos sem escrita costumam ser con- siderados inferiores, sem histéria, bérbaros, Talvez por isso tenha tanto prestfgio um conceito de literatura que a articula tio es- treitamente a manifestagées escritas. Além disso, antigamente literatura significava dominio das linguas clissicas, erudigio, conhecimentos gramaticais, signifi- cados que reforgam sua parceria com a escrita. Sé a partir de meados do século XVIII (epa! é preciso lembrar que século XVIII é aquele século que comega com 17...) a palavra literatura somega a ser empregada e entendida com significados préximos daqueles que hoje ela nos sugere. Em algumas siuagdes contemporineas, nogées ¢ priticas de literatura se afastam da exigéncia de formas fixas, da manifesta- ¢4o de altos saberes, de linguagens, emogées e sentimentos ele- vados. Mas esse rompimento nio foi nem total nem definitivo. E lento, num vai e volta caprichoso. Tem muita gente que, apesar {a} Digitalizado com CamScanner Marisa LAjoLo do Modernismo (¢ até do Pés-Modernismo!) continua gostand de soneto: eu, por exemplo, adoro uma chave de ouro... E gravie, ainda, em torno da nogio de literatura, um restinho da aura que sacramentava seus usos mais antigos. As antigas manifestagées poéticas do velho Portugal podem esclarecer alguns termos da parceria literatura & escrita. Canti ‘gas, cangées de amigo e cangées de amor, composig&es medievais ortuguesas, eram textos cantados e dangados por coloridos jo- gras, trovadores e bailadeiras. Como sugere a palavra cancéo, poesia era, entio, voz. Essa produgio oral, no entanto, s6 se in- corpora 3 literatura a partir do momento em que é recolhida ¢ registrada em belos e imensos livros, chamados cancioneiros. Nio fosse 0 zelo de quem as transcreveu e preservou nos ‘cancioneiros... quem saberia delas hoje? Nem eu nem vocé nem ninguém, o que seria uma pena! Na passagem do oral a0 escrito, no entanto, os textos deixam de ser misica, danga e palavra falada e ganham a frialdade do trago sobre o papel linhas secas fixadas para sempre numa forma iméve, sem chance de incorporar reagdes da audiéncia, elementos da situagio de apresentagio. Foi uma primeira queda de brago entre oralidade e escrita. E acscrita ganhou a parada! Mas quem disse que a tensio entre oral e escrito ficou Ii no passado, leitor distraido? Nao explode ainda hoje & nossa volta ‘uma cultura riquissima em sonoridades, tons e semitons € que ‘nem sempre encontra espago no dominio da literatura? O corpo no reivindica esparo ¢, reconquistado, explode em movimento, a LrreraTura, em danga, em sensagées, em improvisos? Improvisos incompati- veis — ou compativeis de forma apenas virtual — com o texto escrito. Movimento, visualidade, sonoridade, improviso,irrom- pem na miisica popular, uma das manifestagées mais fortes da cultura brasileira contempordnea e cuja inclusio no campo lite- trio ainda € bastante polémica. Muita gente rorce o nariz, a0 ouvir dizer que MPB & poesia. Que rorsam o nariz que € deles, cada um faz 0 que quer com o proprio nariz... Mas como fica nariz deles depois que Bob Dy- lan ganhou o prémio Nobel de Literatura? Também a telenovela, ima cagula da radionovela, faz parte dos excluidos da literarura oficial, bem como a literatura infantil, a foronovela, a histéria em ‘quadrinhos... A literatura — aquela que os resmungées gostam de cescrever com letra maiiscula ~ desconfia de rudo que nio é escrito, cou de tudo que 20 escrito acrescente outros cédigos. Fazer o qué? “Ter paciéncia e perdoar, ji que a mi vontade s6 marca impoténcia ¢ incapacidade dos que resmungam para lidar com 0 novo. Nés, do Clube dos Leitores Anénimos, somos generosos... Entio, invadido pela miisica eem ritmo de MBB, este capiculo pode — como ficou prometido — demorar-se um pouco em ques- sées de linguagem. Respirasio profunda, lerora deslumbrada e deslumbrante! Quando o homem nio era mais simio, mas nio era ainda completamente humano, ele se maravilhou com a linguagem. Foi por meio dela, naquele tempo talvez limitada a ruidos ainda préximos do grito animal, que, como diz Camées, “suas coisas {43} Digitalizado com CamScanner Marisa LAJOLo ausentes se fizeram tio presentes como se nunca passaram’ O que era remoto e perigoso rornou-se familiar ¢ amoldou-se i dimensio humana. | plantas, rios e montanhas receberam nomes. Foran reproduzidos em desenhos, simbolizados por sons e sinais gri- ficos. Impressa nos circuitos cerebrais daquele evoluido bipede implume, a capacidade de linguagem completou a transformacic: ‘ohomem nio era mais apenas um ser entre outros seres, mas ser capaz de simbolizar os outros todos. E, nessa faculdade de simbolizagio, vinha a possibilidade de conhecimento ¢ de dominio. Comega, talvez, na Biblia, quando Deus comanda: “Ide e dai nome a todas as coisas”... Lendas e histérias que contam o poder mégico de certas pa- lavras revivem o fascinio pela linguagem, a intui¢o do poder que ela nos confere. A histéria da caverna de Ali Baba que se abria por forca magica do comando “Abre-te, Sésamo!” ilustra o fasct- nio, numa bela antecipacio de sistemas digitais operados por comando de voz. Também 0 Capitio Marvel, ao pronunciar “Shazam, invoca as qualidades olimpicas e heroicas dos deuses semideuses que lhe delegam superpoderes, superando, assim, pela fala, sua frdgil condi¢io humana de Billy Batson. Outro indicio do grande poder que se arribui & linguagem é 0 tabu que cerca a proniincia de algumas palavras. Xingamentos e palavrées, éembora sejam sé palavras, podem acabar em sopapos e pipocos- Em palavras que nomeiam certas doengas ressoam ecos t40 negativos que elas sio muitas vezes evitadas, sendo substituidas Por circunléquios e expressdes atenuantes, assim como “mal de {4} LITERATURA Hansen’ e ‘mal dos deuses” antigamente, eram a maneira de referir-se a lepra e epilepsia. Elas ilustram, na discriminagio que softem, a crenga no poder da palavra. Talvez seja 0 mesmo pro- cedimento que, hoje, aconselha a que se subscitua a palavra ‘ve- Ihice” por “terceira idade” ‘Serd? Tem quem prefira assumir velhice. ‘Nao poucas vezes, essa reveréncia quase supersticiosa relativa 3 linguagem transfere-e para aescrita. Na tradicio judaica ortodoxa, a palavra Deus ndo pode ser escrita com todas as letras, em obe- diéncia 20 preceito biblico “nio tomaris seu santo nome em vio" No aportuguesamento do preceito escreve-se D'us e, na mutilagio dda integridade da palavra, reproduz-se a desigualdade da relagio homem/deus na perspectiva judaica e judaico-crista. Ou seja, transferem-se para o universo da escrita as marcas que assinalam a cespecificidade de certos tipos de seres numa certa visio de mundo. Casos e causos ilustram que o homem se comporta como se acreditasse que a proniincia ow a escrita de certas palavras tivesse o poder de deflagrar a realidade da coisa nomeada. Ou seja, € como se a presenga do nome fosse suficiente para carrear a pre- senga do ser que ele nomeia. © que é positivo para Billy Barson pode ser assustador em outras situagées. Hi, por exemplo, quem evite pronunciar © nome de certas doengas... Pesado, nio é mesmo, leitor delicado? Pesado também para os que acreditam piamente que as pala- vras sio palavras e nada mais, quando é justamente 0 contririo! Hi sempre um a mais em questées de linguagem. {45} Digitalizado com CamScanner ‘Manisa LajoLo Eo que isso tem a ver com literatura, aguda leitora? “Tem muito a ver. Sem esqueceraligio de prudéncia de Drum. | ‘mond de Andrade que, embora sabendo e advertindo que “lutar | «com palavrasé luta mais vi“ no verso seguinte preconiza forg | eguranotrate com linguagem: “no enant ito malrompea mahi’, ‘Tem a ver, entio, que talvez a literatura possa ser concebida ‘como um dos resultados mais escimulances dessa luta, um dominio muito competent das inguagens no esr dessas suspeitas de idenidade entre nome e coisa. Temendo avioléncia do mundo dos | seres,e2o mesmo tempo fascinado por ela, ohomem vive e se move | entre palaras, ora fortalecendo, ora atenuando o vinculo destes dois mundos: original dos sees eo simbélic da linguagem. Agora ficou sétio e bonito, nio, letora inteligente? O homemstsim constantemenese fz recordar que os n- | ‘mes nao sio as coisas. Mas, no mesmo movimento, percebe que | as coisas s6 existe para ele, homem, quando incorporadas a sua linguagem. E é entre a momentinea certeza de que palavras € coisas constituem uma unidade e a igualmente momentanea | angistia de que palavras e seres jamais se interpenetram que se | configura a linguagem. | E ondea lieratura faz sua morada. Missio cumprida! E estamos prontos, pois, para os iltimos | ajustesfinos antes do grande e maravilhoso mergulho na histéria de algumas priticas e nogées de literarura. (46) CapiTULo 6 ‘No QUAL SE FLAGRA A PROMISCUA ALIANGA ENTRE VARIAS LINGUAGENS NO INTERIOR DO QUE SE CHAMA DE LITERATURA Ha quem op obras eu apenas solos minhas cobras Literatura pode ser entendida como resultado de um uso es- pecial de linguagem que, por meio de diferentes recursos, sugere ‘o arbitririo da significasio, a fragiidade da alianga entre o ser €0 nome. No limite, ela encena airredutibilidade ea permeabilidade decada ser, pois participa de uma das propriedades da linguagem: acapacidade de simbolizar ede, simbolizando, simuleaneamente afirmar e negar a distincia entre o mundo dos simbolos ¢ o dos seres simbolizados. M1 Leite, Obra em dobras, 129. uy Digitalizado com CamScanner ‘Manisa LajoLo Linguagem entre linguagens, cédigo entre cédigos, o que xe chama de literatura leva a0 extremo a ambiguidade da linguagen, ‘a0 mesmo tempo que cola o homem as coisas, diminuindo g espaco entre o nome € 0 objeto nomeado, também exprime artficialidade ea instabilidade dessa relagio. O que ocorre dif- rentemente em diferentes momentos, com diferentes tipos de textos e para diferentes tipos de pessoas. Sem chance, portanto, de receitas literdrias, leitor metédico! Nem prescribes nem proscrigées. Toda e qualquer palavra, toda «e qualquer construcio linguistica pode figurar no texto e literal irl, isto &, tornio literatura. Ou, 20 contririo, pode nio lite ralizé-o coisa nenhuma, apesar de todo o pedigree literdrio que certas palavras e construgSes parecem arrastar atris de si. Veja que uso criativo de versos, rimas ¢ ritmo fez um jovem chamado Carlos Marighela (1911-1968), aluno de uma escola baiana. Leia, divirta-see eflica: estes versos sobre ética, produ- dos como resolugio de uma prova de fisca, si literatura? Gindsio da Bahia 20s 23, De 29 deste citavo més Doutor, a sério falo, me permita, Em versos abicar a prova escrita. Espelho é superficie que produz, ‘Quando polida 2 reflexio da luz. Hinos espelhos 2 considerar Deis asos, quando a imagem se formar. (Caso primeiro: um ponto é que se tem: Ao segundo um objeto é que convém. (48) LLrveRaTuRA ‘Seja.aGigura abaixo que se vé, CO cspelho seja a linha beta cé (© ponto P um ponto dado sea, ‘Como raio incidence R se veja. Sensacional, nio é Portanto, nao é 0 uso de um ou de outro tipo de linguagem que vai configurar a literatura. O registro coloquial, as palavras dificeis que pedem dicionério, o parnasianés nativo da sonetolin- dia, os clichés gastos, regastos e depois revalorizados... qualquer tipo de linguagem nem anula o literdrio nem necessariamente 0 produz. A relacio que as palavras estabelecem com 0 contexto, coma situagio de leitura é que caracteriza, em cada situagio, um texto como literdrio ou nao literdrio, (Bi, vocé af, leitora hesitante: vocé ji chegou a alguma conclusio sobre o texto de Carlos Ma- righella? E ou nio é literatura’)? Assim, ndo se pode falar em distingoes rigidas e preestabele- cidas entre linguagem literdria e, por exemplo, linguagem colo- quial. O que torna qualquer linguagem uma coisa ou outra, literatura ou ndo literatura, é a situagdo de uso. Parece que a literatura acontece quando, como dizem os ma- teméticos — quando e apenas quando ~, através de um texto, autor ¢ leitor (de preferéncia ambos) suspendem a convengio da lin- 12 Marighel, in: Jou, E. Calor Marighla p128-9. 1 Voet pode ero texto na integra em: herp wwremaritsorp/porugues! smarighlla/1929/08/23.hem>. (99) Digitalizado com CamScanner ‘Manisa Lajouo guagem corrente. Assumindo ou recusando 0 cambio oficial dy linguagem de seu tempo, fecundando-o, leitor € autor tém, no texto, um momento de verdade que, com licenga do sempre sen. sacional Vinicius de Moraes (1913-1980), “nao seja imortal posto que échama,/ mas que seja infinito enquanto dure’. ‘Ao mesmo tempo que significa, o texto literdrio como que sugere os limites da significagio, Dribla o leitor ea leitora, suge- rindo-lhes que o que diz & € ndo é, porque a literatura tira sua forsa, paradoxalmente, do relativo e do provisério. Cansado de blé-bli-blé, fatigado leitor? Tem razio. Nem eu mesma aguento mais tanta falagio. Casso ‘minha palavra até o final do capitulo. No siléncio que se instaura, todos ganhamos um prémio: vamos navegar por alguns poemas, Neles, formas de dizer e de escrever que surpreendem e renovam oleitor, isto é, que deixam o leitor de olho espetado no horizonte, comentando com seus bores que literatura é mesmo uma beleza! Versos a um cho. (Que forga poude,adstricea a embryées informes, “Tua garganta estépidaarrancar Do segredo da célula ovular Para air nas solidées enormes?! sea obnoxiainconsciencia, em que tu dormes, ‘Sulficientissima é para provar A incégniea alma, voenga e elementar, Dos teus antepassados vermiformes. {50} 14 Disponivel em:

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