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OGAN ‘A menos que optissemos pela inconsciéncia ¢ pela ienagéo, nao poderiamas viver sem meméria e com a meméria do outro® Ogan & um cargo representative no Candomblé, que pode e deve ser assumido por pessoas que nao tém o dom da incorporacéo. 0 Ogan Alabé & a pessoa responsavel,em primero lugar, pelos, tambores do ritual e, depois, por muitas outras fungées no Axé, (0 Ogan Omoloié é outra dessas funcées:o que se responsabiliza pelos Ogons, 0 que se preocupa com o fundo histérico logistico da eligido e do Axé, palavra de saudagio na lingua lorubd (uma das linguas usadas no Candomblé) que significa paz, saiide e prosperi- dade, e pode se referir ainda ao local de culto do Candombl, assim ‘como ilé (em lingua lorubd, “casa. Também encontraremos a palavra terreito para definiro local de ‘adoragao do Povo de Santo, que & como somos chamados entre os que frequentam nossa crenca. Neste liv falarei do Ogan, de sua musica e seus problemas e solugdes na relagao coma teligiéo e com 0 mundo profeno Apresentaretamém uma pequena introducao & Orquestra dos, Orixés, nome contemporaneo dado ao conjunto de trés tambores chamados Rum, Rumpi e Lé,o agagé (ou Gan) ¢ 0 xequeré, também (ose Kzoo, Hitéia Cera da Africa Vola {- a —_ as @ \Viros 08 Tamoaot chamado de Agbé, (que € uma grande cabaca envolvida por uma fede de contas), além de palmas que marcam o ritmo ¢ vozes de pergunta, geralmente entoadas pelo chefe (ou chefa) da Casa, ou pelo Alabé, com respostas dadas em coro pelos fis Uma poliritmia que compreende mais de 16 ritmos basicos, cada qual relacionado a ur ou mais Orixds e com base tocada por dois destes tambores,sendo que o terceiro tambor dialoga com 0 pé do Orin com 0 movimento do incarporada (rodante) em diregao & parta do espaco, aos tambores e aos féis que assistem a festa ritual. Falarei um pouco sobre o Candomblé, que ¢ a sintese das vatias religiosidades africanas assentadas no Brasi, ¢ que se toriou a mais forte referéncia da presenga do negro na construgéo da cultura nacional brasileira, pois se estende além das fronteiras étnicas no conjunto de habitantes do Pals, quando hoje se vé nao sé 0 negro, mas também brancos, asisticos indigenas e outros, professarem annossa regi. Venho atuando em meu trabalho, por mais de 40 anos como mésico profissional, como ponte entre o mundo de forae o de dentro do le,e como artista e arte educador, desde antes de minha iniciagao no mundo religioso afrodescendente Considero ser importante o que selerd aqui para que possamos incentivar @ apoiar melhor a integragao afetiva da comunidade brasileira com a Religido dos Orixds. Espero que o leigo reveja nossa religiéo, no mais como seita ou quaisquer tratamentos vulgares utlizados para definir as religides nao cristas, mas como religiao no sentido literal do termo, que é 0 de religar o ser humano com a sua ancestral espiritvaidade Neste sentido, vale lembrar que o filbsofo romano Cicero (106 AEC-43 AEC) definia que relegere, uma das bases do termo religio, «erareler recolher ou percorrer de novo um caminho j feito’ enquanto Lactancio (¢260-c320),primeiro auto latino a sistematizar af rst propunha reigare como “gar de novo, estabelecer novo lago’ Outro ponto a destacar € que 0 conhecimento em relagdo a nossa religiao, a Religio dos Orixds, & t&o pequeno quanto 0 preconceito é gigante. Osamu -O Camino oo Aut ® Por essa raza, a0 falar de ritual, de alguns cAnticos e, funda- rmentalmente, dos Mestres de atabaques (e seu papel intermedi rio, por meio de instrumentos e do corpo humano, no estabelec- mento de ligagao com os Orixds presentes no espaco), neste lvro buscarei aproximar o itor de uma pequena parte do nosso mundo pela minha vivéncia no lé Axé Jagun, Casa de Condomblé a qual pertengo,e minhas vistas a outras Casas de Candomblé principal- mente no Estado de Sao Paulo, Deixando devidamente explicado ao leitor que este livro no busca atrair féis para o Candomblé, mas, sim, demonstrar para as pessoas que nossa religiosidade é legtima, que somos uma congre- 4gaga0 religiosa com raizes teol6gicas, fundamentada nos conceitos africanos sobre a criagio e conectada com os principais elementos terrestres por meio de uma unidade psicolégica e poltica conquista- dana resistencia & escravizagdo que obrigava nossos antepassados negros a se converterem a rligito crsta Trata-se, ainda, de homenagem aos varios povos aficanos que se tornaram afro-brasileiros e mantiveram em seus corpos acrenga 17 de que os quatro elementos (Fogo, Terra, Are Agua) e outras forgas danatureza, por meio do sangue de animais eda esséncia de plantas, religam o ser humano com a forga divina Essa crenga foi mantida, em resisténcia pacifica, ao esconder-se ra noitena mata ¢, 8s vezes a0 simular adoracdo aos santos catSlcos. Falarei também, embora apenas um pauco, do Teatro Popular Solano Trindade (O TPST é um grupo de dangas tradicionais que, na origer, fo fundado em 1950 por meu avé materno, o poeta, ator, teatrélogo ¢ pintor Solano Trindade (1908-1974), pelo socidlogo e etnélogo Edson Cameiro (1912-1972), e por minha avé materna, a coreégrafa terapeuta ocupacional Maria Margarida da Trindade (1917-1998), {que era quem ensinava as dangas ao grupo. “Tears ntaagaia dae tueubensamentecomamnéccapaquata Neda Svea 9057968 Hospal Pero I fegenho ce Seno no Race ane que de anger 30 seu Imagem do ncanscene hj tombada pla Unesco como Meret @ \Viros 08 Tamoaot Como minha mae contava, apesar de ser de religido evangé: lca presbiteriana minha avé Margatida dizia que, se Davi tocava pandeiro, Saloméo compunha poesias e Miriam dangava, como esté escrito na Biblia, ela também poderia dangar. Na década de 1950, com o nome de Teatro Popular Brasileiro, ‘0 grupo apresentava ritmos, folguedas e dangas folcéricas, coma batugues, lundus, caboclinhas, jongos, mogambiques, congadas, ‘caxambus, cocos, Capoeiras, Maracatus, sambas de umbigada, ssambas baianos, guerreiros, alia de reis e dangas das ftas, eviajou pela Europa em 1955, expondo seu trabalho. Na volta, em 1961, em visita & capital paulistana, o grupo foi ‘eceido pelo escultor Claudionor Assis Dias e terminou se assen- tando no Barraco do Assis,na cidade de Embu, em So Paulo, dando origem a um importante movimento cultural e artistic. Com a morte de Solano, em 1974, a professora, pintorae pesqui- sadora Raquel Trindade (1936-2018), minha mae carnal, batizou 0 ‘grupo com o seu nome atual, Teatro Popular Solano Trindade Devido a esses e outros eventos, cidade hoje incorporou ao seu nome, por plebiscito, a expressio qualfcativa “das Artes" E, com 0 nome atual de Estancia Turistca de Embu das Artes, tomnou-se polo turistico,visitado hoje em cla por mais de 15 mil pessoas toda semana. Por fim, espero que este meu estudo sirva de material bésico, de reflexdo, para a implantagio de iniciativas de atendimento & Lel de Diretrizes e Bases da Educagao de 2003, a Lei 10.639, que aprimorou a Lei 9394, de 1996, e implantou a obrigatoriedade de oferecer em escolas de nivel Fundamental e Médio de todo o Pais material de cognigéo aos alunos sobre as raizes culturais africanas da identidade brasileira Osamu -O Camino oo Aut ® “"Artigo 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e méclo, ficias particlares, torna-se abrigatério o ensino sobre Histria e Cultura Atro-Brasileira § 10 0 conteddo programitica a que se refere o caput deste artigo incluird 0 estudo da Histéra da Africa e dos Afrcanos, a lita dos rnegros no Bras cultura negra brasileira e onegro na formagéo da sociedade nacional resgatando a contribuigao do povo negro nas {reas social econémica e poltica pertinentes & istéra do Brasil 5 20 Os conteddas referentes a Histria e Cultura Afro-Brasle Fa sero ministrados no Ambito de todo 0 curricula escolar, em especial nas areas de Educacao Atisticae de Literatura e Histénia Brasileiras” Como venho de um longo envolvimento direto familar e pessoal com agoes como o ICAB ~ Identidade Cultural Afto-brosilira, que mais frente serdo igeramente abordadas, é meu desejo que este trabalho também possa auxllar educadores a desenvolverem, a ‘eu proprio modo e dentro de suas possiblidades,iniciativas neste importante sentido. 8 POR QUE? O soliléquio que me estimulou a escrever este livro comegou em um dia qualquer no ff. A minha itmé de santo Elsangela Olveira ou Yé Maé (a Dona dos segredos do Axé), esposa do Alabé Willian Bicudo Eduardo, Ogan da Casa, rectamava que o matido no se fixava no emprego e nunca tinha dinheiro para si ou para a familia Willan & Alobé famoso e tespeitado dentre o povo que acredita, ns Orixds em So Paulo,devido ao seu conhecimento dos tambores e dos preceitos, fundamentos e fungoes dos rituais ‘A conversa com a lalorid despertou em mim a questao ¢o real valor do ser humano em seu meio e de como a sociedade trata essa {questao: de como 05 valores atuais makratam aqueles que no so detentores do que se chama educagio formal, j& que, mesmo na espirituaidade do Candomblé, as pessoas confundem necessidades, desejose anseios de sucesso, baseadas na competicao mercadolégica AA partir daquele instante pude perceber mais dlaramente que, mesmo com todo 0 conhecimento de Willan, o mundo externo 20 Candomblé menosprezava pessoas como ele, que passam dias.e muitas vezes noitesinteras,cuidando limpandoe tocando para os Ores. Eu tinha um fato: 0 Ogan nao podia pagar despesas pessoais, parti, entéo, para entender o porque, pois eu também, igualmente Ogan, devido & minha entrada tardia na religido € no mundo reli- gioso, fazia parte daquelas pessoas que no associam o trabalho executado pelos meus colegas-immaos com a questéo financeira pois partcipava de um grupo grande de pessoas que vé a espiritua- lidade como sendo distante da realidade comum, {- BD —_ as = te ae ah @ \Viros 08 Tamoaot Hoje, na verdade, considero inadequada esta minha posigéo, pois see ja sabia (mesmo, inconscientemente), que orelgioso come, bebe, deve pagar contas e tudo o mais.O dinheiro para ele é, como para qualquer outra pessoa, necessétio. Infelizmente tenho que incluir 0 atista no mesmo patamar, usando-o como referéncia e 20 mesmo tempo exemplo do que falo, pois quase todos nés, indepen dente de religido ou etnia, muitas vezes tendemos a acreditar que 0 artista se alimenta somente de sua arte, como se vangloriavam os grandes poetas dos tempos antigos No mundo da reigiosidade, quando as pessoas se encontram ‘em dificuldades ou se focam em louvar os Orixds, 0 conhecimento a sabedotia do Ogan séo muito valorizados; no mundo profano, porém, esse mesmo homem seria chamado pelas mesmas pessoas de incompetente ou incapaz, porque todo 0 seu conhecimento, ‘orgulho e capacidade intelectual podem ser intteis para o emprego no banco, numa empresa ou até, talvez, em uma casa de familia ‘Até se pode ver, em certos casos, um certo respeito pelo exético oy @ \Viros 08 Tamoaot Individuos que recebiam um salério por sua profissdo ¢ que cdeixaram seu nome talvez especialmente pela cor da pele, mas, prin- cipalmente, pelo que podiam desenvolver com seus conhecimentos « ferramentas de trabalho ‘Além desses e de outros muitos profissionais arodescendentes, registrados em uma posigéo social naturalmente invejada por seus colegas de menos melanina, desde antes das Coldnias e desde antes da escravizago, podemos ver que o continente aricanotinha relacbes cde amizade anteriores &intendo da Europa de colonizar as Américas. ‘As Cruzadas, cujo mais importante motivo, escamoteado a pretexto de batalhas de fé religiosa, era a busca de conquista das terrase riquezas do Oriente Médio centraizado em Jerusalém, acar- retaram grandes prejuizos aos reinados da Europa, principalmente Portugal, Espanha e Inglaterra, que haviam perdido a passagem direta paraa india e se viram obrigados a buscar um caminho através, do continente afticano Por outro lado, outras formas de comércio, como as feiras © mercados puiblicos, a Medicina que invadia os corpos e outrasfilo- sofias acerca da vida, que se iniiaram justamente no encontro com 6 inimigos muculmanos e outros nao europeus, foram uma das principais raz6es que incentivaram as viagens intercontinental ‘empreendidas por europeus: para reagir e retomar sua economia os anglo-saxdes e ibéricos sairam para explorarterras em além-mar, na busca de riquezas que pudessern compensar os enormes gastos das

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