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ALEXIS DE TOCQUEVILLE LEMBRANCAS DE 1848 As jornadas revoluciondrias em Paris Cosiewnniia Das Lirias SEGUNDA PARTE 1. Meu julgamento sobre a causas do 24 de feveriro e minhas idgias sobre suas eonseqiigncias . a 2, Paris, no dia seguinte ao 24 de Fevereiro e nos sucessivos. Capafer socialista da nova Revolugio .....scse-seesessees 3, Ineertezas dos antigos parlamentares quanto &atitude a dar. Mi " ths eles: as gic br stoke TOMEI yon WP Introducao 4, Minka candidatura pelo departamento da Manga. Aspectos ie da provincia. A elcigto geral I rc, 105 ef ica demi 5, Primcia reuniio da Assenblgia Const. ppectos dessa As- semblgin aeee: vs ld 6 Minhas reagdes com Lamartine, Saas toversagBes «=... 124 7. 15 de maio de 1848 .....0+.- 230 8 A esta da Conia 4 propa hast 9, Jornadss de jumbo... : Ly 10 Comineago dis jormalis dj Lo 6 11, Comissio Constitute wavs 1 No comeso dos anos 1850 dois homens que certamente nunca se vi- ram, ¢ que teriam bem pouca estima um pelo outro caso se conbecessem, meditam o mesmo assunto: as crises ¢ a ruina da Segunda Repiblica fran- cosa. De suas preocupasdes nos vém alguns livros fundamentais nfo s6 para o conhecimento de 1848 — ou seja, da primeira revoluso socialista mas para pensar a propria politiea moderna, Um deles & Karl Mary} jornalista, que em 1852 escrevera um longo artigo para 0 periddico Die j. ‘ Revolution — o qual, apesar do titulo e dos wxtos em alemio, & editado | MSN ‘em Nova York. Marx ainda é pouco conhecido; militante de extrema es- | querda, jornalista, a maior parte do que jd publicou consiste em artigos | de circunstancia, alguns dos quais mera copiclescagem de enciclopédias (co- ro um pequeno artigo sobre Bolivar), outeos mais relevantes como 0 Mee nifesto do partido comunista, em 1848; 0 Dezoito Brumario de Lués Bo- ‘naparte, como chamaea seu longo artigo, terminari impresso como livro «, de toda a su obra, &a que analisa mais de perto o mundo da politica propriamente dita, © outro estudioso contemporineo de 1848 (Alexis ‘de Tocqueville; conde, ji célebre por seu livro A democracia na America, ‘e que nos anos da Segunda Republica participard do Parlamento e do prd- prio governo como representante do que Marx chamaré “o partido da or- SH rule: Ca Bey lobe PAA dem": direita, pagando em favor de uma determinagSo coamam de pres 2. Fisionomia do | Torkr de Penile Genin Pobeio 4 , F Ferrand Brand ave var a hierarquia social ¢ as suas diferengas dinisticas entre orleanistas ¢ legitimistas, ‘lids, a este respeito este livro de Tocqueville confirma plenam te 0 que constitui 0 cixo da analise de Marx sobre os conservadores: a preocupagio bisica de muitos destes (e dentre eles 0 nosso autor) es- taria acima de tudo em garantir a ordem social, o que eles faziam pas- sar A frente do proprio restabelecimento da monarquia. Sio conheci das a8 paginas, no capitulo 3 do Dezoito Brumério, em que Marx diz que os “monarquistas coligados” {isto é 0 comit® que redne as lide- rangas orleanistase k a8) “exercem suas verdadeiras atividades como partido da ordem, ou seja, com um rétulo social, ¢ nfo sob um réculo politico”: as causas mais belas, dos paladinos de prineesas errane tes, rendemese 3s condigtes materiais de existéncia, a poesia romfint da realeza sofredora cede lugar a0 duro prosaismo do dinheiro. Nessas piginas — se entendermos que a defesa da ordem social &a de uma so- ciedade hierarquizada basicamente pelo capital — podemos sentir visa~ do, com muitos outros, Tocqueville; e & claro que este responderia que sua preocupagio nfo estava em defender apenas privilégios de classe, ‘mas toda uma sociedade que se via ameagada pela desordem c pela anar- quia, E por seu lado, nas passagens em que Tocqueville ataca os dema- .gogos da esquerda, poderiamos — embora nio seja tio evidente — xergar Mars sendo atacado; s6 que este certamente retrucaria que tam bbém criticava a demagogia daqueles a quem considerava como 0s pe= queno-burgueses da revolugio, que prometiam mais do que podiam; € que os criticava, nio 4 maneira de Tocqueville, por radicais e ierealis- tas, masa seu modo, como moderados demais ¢.. portanto irrealistas. 2 F no entanto estes dois outros autores — que nao apenas se situam lnos campos partidérios mais opostos, como tomariam um 20 outro co- imo espécime de seu inimigo mais acerbo — eonvergem num ponto fun- lamental, o qual acabamos de tanger: a dendincia da politica como tea hiro, As metiloras proliferam nessa diregio, J4 no comeso do Dezoito Brundrio, Marx diz que, justamente quando os homens paresem em- |penhados em revolucionar por completo a si ¢ is coisas, eles tomam fas roupagens do passado, “a fim de apresentar a nova cena da histéria [do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada. As- sim, Lutero adotou a miseara do apéstolo Paulo, a Revolusio de 1789/1814 vestiv-se alteenadamente como 2 Repiil Romana e co- 10 mo o Iinpério Romano, ¢ a Revolugio de 1848. Wo soube fazer nada Gnelhon do qué parcdise ors 71, off: cealkes vevGiasoninic wl 1793/1795". Isto, logo depois da passagem Gio citada da histérig ique se repete (da primeira ver oi ragédi, da segunda como farsa), di {4 4 primeira pigina do livro de Marx, 0 sentido de uma clara expos ‘30 do cariter teatral — no sentido de represemtagio falsa — da politicq burguesa, Certamente & por ai que ests uma das pistas mais ricas pard se pensar a concepsio marxista de ideologia: esta tem a ver, profunda mente, com’uma encenagio do social. Althusser pode haver acertado em opor ideologia a cigncia, fazendo esta gitima coincidir com o ma xismo; mas, antes € mais do que isso, & preciso salientar na ideologis seu carter espetacula: 0 fato de que desenha uma imagem da socieda de, tal como esta se deve dar a ver, e de que portanto ela tem com fator essencial a sedugio, Nao basta, como faz Althusser, e com el bboa parte da tradigio de estudos marsistas, denunciar a ideologias d preciso entender como ela funciona. ‘A sociedade, que 0 marxismo pensa compreender cientificamente através do coneeito de luta de classes, geralmente se da ver mediante ‘um recorte palco/platéia, no qual os velhos recursos da enganagio per- mitem dominar 0 piblico, iludindo-o, Por af Marx engata, sem divi dda, numa antiga linhagem, dos que desde pelo menos o Antigo Regime denunciavam a imaginagio como produtora de ilusdes — de enganos auto ou heteroinfligidos — ¢ igualmente apomtavam essasilusdes co- ‘mo tendo uma utilidade politiea determinada, Nio se tratava, pois, ape- nas de discutir 0 erro, mas de mostri-lo como ilusio, portanto produ- ida por um certo tipo de mecinica do discurso, acolhida por uma cer- ta disposigio ingénua do espirito, e tendo essa mensagem uma fungio que podemos dizer politica, ou mais ireqiientememte teoldgico-politica Esse débito de Marx em relagio ao pensamento filosbfico dos sé culos XVII e Xvi infelizmente é bem pouco estudado, assim como tam- ’bém se costuma desconhecer a importincia do teatro nas imagens cons- titutivas do ideol6gico no Dezoito Brumrio; mas temos, desse enfo que pré-Revolugio Francesa do que depois se chamars “ideologia”, um bom exemplo em Hobbes, quando este filsofo mostra como aI ceatdlica ¢ as setas protestantes ra im a teologia ea religito com o fim de assentar seu don Oi irate sea ty prea 12m ho men u Ora, o surpreendente & que nessa obra aqui apresentada, e que megou a ser escrita jé antes dos golpes de Luis Bonaparte contra o regi ime parlamentar e a Repablica, Tocqueville faz um uso das metiforas iis semelhante ao de Marx. Elas estio 3 disposigio do leitor, nas piginas que se seguem, por isso 6 ocioso cité-las aqui. Mas uma explica- 40 politica é possivel para esse encontro do deputado do “partido da ‘ordem” e do jornalista comunista: ambos nutrem desprezo bastante parecido pelos advogados — e jornalistas... — que tomam conta dos debates parlamentares, pensando, com sua ret6rica, resolver os proble- ‘mas da Franga, Neste ponto, a ciéncia que Marx comega a conceber sobre a sociedade se cruza com a idéia tocquevilliana de um saber so- bre o politico; e ambas as propostas véem com certo desdém a mera retbrica, Os politicos da Segunda Repablica nio fazem mais que se ilu- dir, ea seu pliblico, desconhecendo a necessidade de uma revolugio mais radical (Marx) ou de um governo mais moderado e que no mer- cadeje ilusdes (Tocqueville); nossos autores discordam quanto a 0 que ‘os politicos ignoram, mas concordam a respeito dessa ignoriincia ¢, so- bretudo, da forma ativa que ela assume: a do discurso incendiario, Es- te deflagra na multidio paixdes que ninguém mais sabe controlar (Toc- queville) e que por isso, objetivamente, abrem lugar para 0 golpe bo- napartista; ou entio (para Marx) esse mesmo discurso incendisrio vem suscitar no povo esperangas que uma lideranga capaz apenas de ret6ri- ca no tem como satisfazer, ¢ assim tem 0 duplo efeito de despertar ‘o medo de uma dircita que iri cerrar fileiras ars do principe-presidente, fe de desanimar 0 povo, que depois de ser abandonado em junho de 1848 nfo verd por que defender os deputados nem da Montanha, em 1849, nem da direita, em 1851 Mas nio haver$, nessa denGincia do parlamentar como personagem bufo, um certo excesso? A ele Marx contrapée a figura despersonaliza- dada “revolugio social do século x1x”, Tocqueville a de alguns poli- ticos devotados e inteligentes — ele e seus amigos —, que no se mete ram nos negécios escusos da monarquia de Luis Filipe e por isso mes: ‘mo poderiam salvar um regime cuja forma, para eles, importava menos {que o sentido de preservar a ordem. A excessiva despersonalizagio que Mark efetua falhou, bem como fracassou a demasiada personalizagio, ‘operada por Tocqueville: nenhuma delas “dew certo” historicamente, ‘mas mesmo num plano conceitual ambas tm o seu qué de insatisfaté- rias. E isto podemos ver se pensarmos, apenas, no governo que foi, ji nio o do presidente Bonaparte, mas o do imperador Napoleio it: «esse personagem, de quem Marx zomba com um sarcasmo impiedoso ¢ pouco justificado, que Tocqueville visivelmente nio tem em alta 2 eabou se revelando um administrador eficazs o Segundo Impé- rio produz um desenvolvimento signilieative para a Pranga e, nfo fos- se seu desastre final ante as armas prussianas, certamente teria deixado ‘uma lembranga ¢ uma avaliagio melhores junto aos historiadores.’ 1rremos 0 isco, quando lemos Tocqueville ou Marx, e especialmen- este tiltimo, de entender Luis Bonaparte como o mais bufo dos per~ vens dessa farsa; 0 que & um erro, Seria preciso nos colocarmos, Mio digo meioermo, mas pelo menos num ponto em que a politica fosse mais personalizada do que é para Marx —¢ por isso mesmo tives- se presente a dimensio do gon humano, com seus erros mas também suas invengdes; e também fosse menos pautada pela sensaez e pela per- sonalizagio em figuras moderadas do que & em Tocqueville —e pudes- se, assim, inovar, trazer 4 tona a diferenga. conta, Aisle ¢ OD poLiniea vib 3 “Talvex coubesse também, e neste caso nos afastarfamos de ambos os autores, perguntar se um regime em que se discute a politica em piblico — portanto, seja em grau maior seja em grau mais timido, uma democracia — pode furtar-se a uma forte presenga da retdrica, ¢ das ilusdes que esta porta consigo, ¢ até mesmo em que ela aposta. Certa- mente um governio equilibrado, sensato, como aquele por que Tocque- ville anseia, nfo comporta essa efusio de paixdes, que se manifesta no porteiro que se gaba de que vai matar 0 conde, autor da Democracia na América, ot que, ja sob a forma de manipulagio das paixdes me- diante o discurso apropriado, também se mostra nos demagogos que seduzem a multidio. Certamente, um regime que supere a divisio da sociedade em classes, e portanto suprima a ideologia, ou sea a necessi- dade que t8m as classes dominantes de iludir as dominadas a fim de manter seu proprio dominio, nio tera mais lugar para essa ret6rica de smandamtes ¢ esa audiéncia de comandados, Entende-se, assim, que Toc- ‘queville e Marx tenham cal aversio pela retérica, espontinea ou nfo, da politica. Mas iss0 no quer dizer, depois de mais de um século de (6) A ese respeito, uma anilise importante &2 de Maurice Agulhon, em seu 1848 on apprentsae de le Repub (Vara, 1973), De formagio socialist, es historndor, tte dos mais destacados da Franga aval, considera que os erros apontados por Marx tou Toxqueille— foram ma verdade os momentos de um aprendizado, A moveras80 ‘dor republicans fe que se dsipase, junto 3 dncta(@ yerdade que bem lentamente) 5 fmagem da Repblieavinculad 20 "Terror, Por outeo lado, Agelhon também fz um balango do governo de Napoleio it mais favorivel que o marxsta, B experiéncia democritica, que possamos concordar com cles: a ret6riea faz parte integral da democracia, ¢ com ela 6 erro, mas também a in- dessa multidio e desses politicos erréticos, que le- ecifragio que Marx prope para essas er- Hincias, mostrando como derivam de diferenciados engates no movi- mento do capital, desenham implicitamente, no primeiro autor, uma sensatez do estadista, no segundo, uma ciéneia da sociedade, que sio dois momentos altos da analise politica ocidental, mas que seguramen- tw nio dio conta do que tem sido a pritia dos regimes regidos pelo voto, Mas seria injusto, ¢ profundamente anaerOnico, censurar nossos dois autores pelo que sua posteridade nos ensinou — to ow mais injusto ido que repetir, contra os deputados que eles condenam, a sentenga que proferiram. Cada um de nossos autores escreve com uma certa pressa, € no apenas, no caso de Marx, a dos prazos fatais que um jornal desig- naa seu colaborador: a pressa, para ele, de que seu escrito resulte em revolugio, Hoje, lendo & distancia é possfvel entender esses tempos co- ‘mo sendo de formagio, e por conseguinte reduzir 0 que era luta de mor- te, antagonismo, a penosa gestacio de um mundo politico novo, Mas, de qualquer modo, © fato & que estas Lembrangas e 0 Dezoito Brumério Superam ambos a mera crcunstincia para darem a nossa teorizagio da politica uma contribuigio da mais alta importincia: eles sistematizam ‘ leitura da pritica parlamentar como retdrica. A dendincia da retdriea ddas assemblias jd cra comum no Antigo Regime (Hobbes, por exem- plo, assim critica os regimes democriticos), mas sio estes dois livros, de politicos tio antagénicos, que melhor a aplicam ao mundo novo, © da democracia, Marx, é verdade, estuda a retérica nas duas formas que ela assume no séeulo XIX, a do teatro ¢ a da mo ambos esses dispositivos de ilusio se fundam no capital — de modo ‘que a dévida marxiana a que aludimos, para com 0 pensamento dos séeulos precedentes, nio deve fazer obscurecer 0 quanto esse filésofo trouxe de novo, Tocqueville, por sua vez, faz. um estudo mais minu- cioso e mesmo mais vivido dessas jornadas e desses anos tempestuosos com isso, talvez justamente por ser menos sistemitico que Marx, di rnos melhor © quadro politico. Muitas vezes j& se disse que, de tanto estudar a dimensio em que a propria sociedade se produz, Marx perde de vista o politico como dimensio quente, reduzindo-o a superestrutu- +a (ou a espuma, se quisermos fugir desse conceito em favor de uma metifora), e que somente no Dezoito Brumdrio ele procede a um estu- do do cotidiano da politica. [sso certamente Tocqueville faz com mui- to mais cuidado que Mars. Mas nem por isso deixa de ter em mente avelha retorica e a idgia correlata, ¢ contraposta, de que 0 politico de- mos em Tocqueville, ou a di “4 4 E este, para terminar, é ainda um belo tema de discussie. A mo- dernidade deve muito, em politica, a um trecho do Leviatd, no final do capitulo 10, em que Hobbes nega que © merecimento ou a aptidio confiram, a quem quer que seja, 0 direito de mandar nos outros, zendo de outro modo, Hobbes nega que 6 mais capacitado tenha dir toa governar. Com isso, ee descarta 0 fator que a seu ver mais engen- draria conflitos entre os homens: a disputa pelo poder baseada numa pretensio de dircito a este. Se o objetivo do poder politico entre os homens é instaurar a paz, confi-lo ao mais eapaz trari por resultado, paradoxalmente, apenas aumentar 0 volume de conflitos, entre aque- Jes que por vaidade pretendam ter maior aptidio ao cargo. Essa passa- gem, que obviamente nio foi a primeira nem ters sido a dltima a ir nessa dirego, indica muito bem como o mundo modemo resolver seus conflitos edivergéncias pelo recurso a procedimentos formais, que nfo consideram o contedido da matéria em pendéncia, mas apenas o meio pelo qual esta deve ser solucionada; e 0 meio que nos parece, ho- je, geralmente 0 mais adequado & 0 do voto pela maioria, ‘Mas, se Hobbes assim é representativo de uma tendéncia da politi- le que o ator politico deva ser eapacitado nem por std bem presemte, hoje, na prOpria maneira por que se fazem as competig&es eleitorais, com cada lado se dizendo o melhor «¢ mais apto. E esté bem visivel nestas piginas em que Tocqueville emi- te seus jlgamentos ¢, finalmente, conta seus atos na administragio po- Iitica, Sea turbuléncia resulta da retorica desmedida, 0 sensato & 0 estar dista ideal para esses tempos de confusfo; mas nem por isso deve a sen- satez ser entendida como o governo da mediocritas, ou da mera defesa da ordem pela ordem. A Tocqueville importa muito a virtude civica, que cle deseja ver formar-se na sociedade politica — no que possivel- mente retoma uma bela tradigio do humanismo renascentista. Assim, num momento de erise fatal para as instituigdes, 0 estadista ou 0 poli- tico esposa a sensatez como sendo a siltima defesa nfo s6 da ordem, 1as do espirito piblico, daquela virtude que faz.0 individuo defender ‘0 espago comum em que ele ¢ 0s demais se constituem como cidadios; ‘¢ & 0 que expliea que possa haver um certo herofsmo no préprio inte- rior deste mundo moderno, privatizado, lniczado e desencantado (quer dizer, que perdeu as bases piblica, religiosase semimigicas que outro- ra davam base & prépria idéia de sacriffcio por um bem superior). E digo herofsmo porque & esse ideal civico que confere as recordagdes de Tocqueville que agora leremos em portugués um certo sabor de tr Di- 15 gédia — a daqueles que, sabendo que esto quase certamente derrora- ddos, ainda assim teimam em fazer valer sua causa, Sete Praias, outubro de 1990 Renato Janine Ribeiro Preficio Para aumentar ainda mais 0 prazer que voc terd em ler ou reler as Lombrangas de Alexis de ‘Tocqueville, eu Ihe proponho um_ cexercicio rela tivamente fécil: suponha, mas com obstinasio, que 0 prestigioso autor Ihe é totalmente desconhecida, que voc? ter’, pois, que descobrilo através | dasua propria leitura, que voc? no conhecia nem A democracia na Amé- riea, nem O Antigo Regime e a Revolucio, que voce ignora ou que voce ‘esqueceu conscientemente as etapas ¢ os detalhes de sua biografia e que, folheando seu livro woeé no ird procurar, nas estantes da sua biblioteca, | a admirsvel edigo das obras completas de Alexis de Tocqueville que de- ‘vemos A perseveranga ¢ 3 erudigio de J. P. Mayer. Voc? ir abordar, pois, como se se tratasse de uma primeira Jeitura, ‘esas Lembrancas, redigidas com vivacidade por um homem devolvido brus- | camente 4 sua ociosidade, a0 stir de uma tormenta revoluciondria que 0 ‘sacudiu terrivelmente, como sacudiu todo o pais, que procura colocar tum pouco de ordem em suas impressdes, para explicar a si préprio 0 ik nerdtio seguide e, se nfo me engano, para se desembaragar 0 quanto pos: sivel de um pasado que 0 obsidia. Voc? o seguird assim por um percurso | muito breve, de janeiro-evereiro de 1848, da véspera da Revolugio que | vai derrubar o trono de Luis Filipe, até a demissio do govern Odilon- Barrot (31 de outubro de 1849) que pie fim a sua breve carreira governa mental 16 7 Permitir-nos’, contudo, como penso, este itiners julgar objetivamente o talento exeepcional de Alexis d a qualidade rara de homem, o valor de seu testemunho? Eis o primeiro dde nossos problemas. Mas tanto quanto de um homem, de um eseri- tor, de um pensador, trats-se de uma época. Por mais répida que seja a borrasca que a atravessa, ela revela sobre a Franga, 20s nossos ollios assim como a0s olhos dos contemporineos, horizontes imprevistos. E esta Franga de “fisiononsia indecisa”, da qual mais de um século jé ros separa, uma Franga comparivel & de hoje? Podemos ler este livro através de’ nossas experiéneias, de nossos conhecimentos, de nossas apreensbcs, de nossa linguagem? Fo segundo problema que nos colo- ‘camos, Pois, é em termos de atualidade, sem temer o anacronismo, que importa ler ou reler Tocqueville. Os clissicos somente sio clissicos a este prego: de serem eapazes de nos falar de nds mesmos, de nos obs, gar a pensar por nés mesmos, por mais afastados que estejam do tery po ¢ das borrascas que vivemos. Depois de ts, quatro ou cinco paginas de leitura, a divida, se di- vida havia, dssipacse, A escrita € perfeita e é um prazer entregar-se 208 seus longos perfodos, na “extensio” dos quais, 4 diferenga de certo ora- dor parlamentar que o faz sozrir, Tocqueville no “se embaralha” de forma alguma, A frase flui, de um movimento vivo, voltando-se com freqiiéncia sobre si mesma no momento de se consumar, caindo justa, «€0 ruido de sua queda repercute sobre o que acabamos de ler no mes- ‘mo instante. O ritmo correria o risco, 4 la longue, de ser monétono. Maso movimento quebre-se conscientemente: 05 verbos, os substanti- vos, mais ainda os epitetos, fazem-se uma guerra engenhosa, contradi- zendo-se, entrechocandose. E esta arte de dizer de contradizer nio € apenas uma maneira, uma escrita. E também um jeito de ver € de fazer ver, prazer do ouvido e prazer de compreender misturados, pare ticularmente nos numerosos ¢ vivos retratos que animam a narrativa. Serio estes retratos crutis? Eu duvido, De resto, Tocqueville tam- bém esearnece de si mesmo. Ele se observa no espelho com mais fre- giiéncia do que retrata pura e simplesmente os outros, Seu olhar & an- tes o de um historiador que quer colocar suas personagens em seu jus: to lugar: crtica-as mesmo quando as ama, louvaras quando se oferece 4 ocasido mesmo se nfo as ama. E sua intengio nio é certamemte a de ating-los: 0 texto que lemos nio devia ser e no foi publicado em sua vida, nem, grasso nzodo, na dos demais. Em sua defesa digamos tam- bém que os homens politicos que ele segue de perto nfo sio “gigan- tes”, mesmo o$ que procuram, sem consegui-lo, repetir os gestos da 1B Revolugio de 1789. “Algumas vezes imagino”, escreve Tocqueville “que, se os costumes das diversas sociedades diferem entre siya moral- dade dos politicos que regem os assuntos pblicosé a mesma em todos | ‘os lugares. Na Franga, é bem certo que todos os lideres de partido da tminths época pareceram-me quaseindignos de comandar, uns por fla | de cariter ou de verdadeiras luzes, ¢ a maioria por falta de qualquer | virtude”. Releiam-se estas linhas: teri a Franga mudado tanto? # ‘Mas nossa interrogagio limita-se, no momento, a um jeito de es- crever, uma maneira de ser. E Tocqueville, retratando os outros, que se revela por sua arte mesma de retratar. Entio_ yejamo-lo no trabalho. © sew a seu dono: comecemos por Luis Filipe, Duas linhas bastario para nos instruir sobre o procedimento de Tocqueville, sobre seu jeito de misturar a luz favorivel ea sombra dura, Eis pois o rei: ‘sua com versagio — original, prolixa, difusa, trivial, aneddtica, repleta de pe- quenos fatos, saborosae sensata— proporcionava toda a satisfago que qr pode encontrar nos prazeres da intcligéncia, quando delicadeza ele- vvagio estio ausentes”, © mesmo tratamento para o futuro Napolesio Ith presidente da Repdblica desde a eleiglo de dezembro de 184875 “mor indulgente e fécil, cariter humano, uma alma doce e inclusive bas- tante terna sem ser delicada”, escreve Tocqueville, Mas escreve ainda: Sua dissimulagSo, que era profunda como a de um homem que pas- sou a vida entre complds, apoiava-se especialmente na imobilidade de , seus tragos e na insignifiedncia do olhar, pois os olhos eram bagos € ‘opacos, como vidros espessos destnados a iluminar os camarotes dos | barcos, que deixam passar a luz, mas através dos quais nfo se enxer- | ga”, Dez vezes para uma, o procedimento repete-se misturando mal- dade e sorriso. “Esse Portalis no possuia nem a rara inteliggncia, nem, 0s habitos exemplares tampouco a piedosa insipidez de seu tio.” Ou- tras vezes golpeia duplamente. Récamier, seu amigo, seu colegs na aca demia francesa, “v2 sempre to claramente 0 que se poderia fazer ¢ to obscuramente o que se deveria fazer”; Duchatel, o ministro do In- terior, em fevereiro de 1848 “era enfim um homem que, nio se podia nem estimar nem odiar”; Odilon Barrot, “que gosta de misturar um pouco de parvotce a suas fraquezas e virtudes”, “tinha tudo 0 que & preciso para agir, em um momento dado, sobre [a multitio}: uma vor forte, uma elogiiéncia enfatica ¢ um coragio intrépido”, Sobre Lamar- tine, de quem admira a coragem e a elogincia, Tocqueville faz este severo julgamento: “Nao sei se encontrei, neste mundo de ambigées cegoistas, no qual vivi, um espirito menos ocupado que o scu pela refle- xo sobre o bem piblico”, © surpreendente & que a despeito da feroci- dade das palaveas, domina a impressfo de um julgamento sereno, sem 19 2 . -. - oc ee rabugice pessoal. Talvez porque, para Tocqueville —a isto voltare =, todas estes atores conduzem menos os acontecimentos do que sio por estes conduzidos, de alguma maneira vitimas mais do que respon- siveis pelo seu papel Nio se deve esperar de Tocqueville uma explicagio completa da Revolugio de fevereiro de 1848 e da Contea-Revolugio que se segue, apesar de sermos hoje mais exigentes no plano da explica cae sociol6gica. A narrativa e as reflexdes do proprio Tocqueville ga inham mais sentido e relevo se, depois de Ernest Labrousse ("1848- 1830-1789. Como naseem as Revolugiies”, in: Actes du Comgrts histori que du contenaire de la Révolution de 1848), estivermos atentos & crise econmica patente desde 1846, violenta a partir de 1847, que agitou » pais em profundidade. Nio haviam os fatores evondmicos, em con- igbes bastante andlogas, preparado, senfo mesmo provocado, as ex- 4 plosdes de 1789 de 1830? A colheita de cereais de 1846 foi ruim; os | presos alimentares subiram de 100.a 150%; a crise atingi promtamen= tea indstria téxtil, as minas, a siderurgia. Os salérios dos trabalhado~ | res cairam 30% ¢ desempreyo aumentou. “A onda de pregos altos passou pelo pais como uma inundagio, e como uma inundagio que se rtira, deixou atras de si toda uma populagio sinistrada, com as eco- nomias aniquiladas. Muito freqiientemente, como testemunham os ' Montsile-Piété, 0 proprio mobilistio foi empenhado.” A crise abalou forremente o crédito, o programa de construgto de ferrovias foi sux penso, “Adiou-se assim o gasto de quase um bilho de francos em obras piblicas, vale dizer que se renunciou a aproximadamente 500 milhdes tem jornadas de trabalho, & taxa de dois francos por jornada,” Esta crise méltipla, 20 mesmo tempo antiga © nova — antiga na medida em que nasce, como sempre no passado, no setor da economia —_ (pe ‘e nova na medida em que atinge a inckistria, os téxteis, a side rurgia e 0 crédito —, esta erise foi, com toda certeza, 0 fator preceden- te 4 Revolusio, Mas deve o fator precedente ser inscrito no passivo do governo? Ou bem, devese acusar a crise em sie sua universalidadk ‘A questio coloca-se nos mesmos termos, em 1977, na Franga ealhuures. Contudo, Tocqueville, trangiilo, sem diivida, quanto & sua pré- pria vida material, foi muito pouco atento As realidades econdmicas, subjacentes. Apenas formula uma ou duas observagdes a este respeito, na véspera das violentas jornadas de junho de 1848: “A revolusio in- dustrial [a expressio no é tio corremte nesta época ¢ ele & digno de (©) Daca em que fo eserto ete preficio. (N. E.) 20 clogio por utiliza] (..] hi teinta anos fez de Paris a primeira cidade manufatureira da Branca e atraiu a seus muros uma nova populagié de operirios,a quem as obras das fortificagdes acrescentaram todo um povo; de agricultores agora sem trabalho [da eapital depois de 1840)". (Ou estas palavras muito fortes e just, sempre na véspera de junho: “o dinheiro {parecia][..] afundar sob a terra”. No coral nada, ou qua- se mada, Em contrapartids, Tocqueville tem o sentido agudo das realidades sociais, observa, esforga-se por explicilas. Deve-se qualificar, sem he- sitar, este sentido agudo do socioldgico, mas & a exp histérica que 0 acompanha eo conduz, Sociologia e historia sio, em Toequevil- Je, uma dn de observar a sociedade, ¢ 0 prazer que sentimos em lélo deve-se, por um Ia wa_de um penste mento tio proximo do nosso com uma linguagem antiga, tXo estranha 208 clichés do nosso tempo. A expressio que emprega © combate) de classes — tem uma ressonincia curiosa. Vi ta viagem a Alemanha eas cartas que recebe no Ministé- rio dos Negécios Estrangeiros permitenthe avaliar 0 refluxo dos acon- tecimentos revolucionsrios na Alemanha: “De um extremo a outro da Alemanha’, nota Tocqueville, “a perpetuidade das rendas da terra, 68 dizimos senhoriais, as corvéias, os direitos de transmissio, de caga, de justiga, que constitufam uma grande parte da riqueza dos nobres, foram abolidos. Os res foram restaurados mas a arstocracias nfo m: se reergueram”. Estas duas frases densas resumem uma situagio pol ca; masa politica interessa bem menos a Tocqueville do que a socieda- de, sociedade que em seu conjunto ele pereebe como uma reatidade sub- jacente 3 realidade politica, como “fundamento da vida politica”. Pois, ‘quando os revolucionirios visam a sociedade, eles dirigem, aos olhos de Tocqueville, seus ataques “mais embaixo do que o governo”. Esta disposicio implicita de “patamares” teria encantado Georges Gurviteh. Bem entendido, como todo socidlogo, Tocqueville pergunta-se, sem responder, se hi “leis imutaveis que constituem a propria sociedade”. Mas quem, hoje, responderia a esta questio embaragosa? Em todo caso, esta realidade social subjacente comanda, aos seus thos, 05 fendnemos de superficie, Assim, como explicar a Monarquia de Julho, em outras palavras, as seqidncias da Revolugio de 1830, se- io pelo advento ¢ “triunfo da clase média”, de “seu espirito ativo, industrioso, freqiientemente desonesto”? Assim, el a tinica dirigente da sociedade, mas também converteu-se em sua rendatiria. Alojou-se em todos os cargos, aumentou prodigiosamente seu nimero ¢ habituow-se a viver quast tanto do Tesouro Pablico a Mo {quanto de sva propria indistria”. De onde uma exploragio abusiva, destruidora, por fim, do equilibrio mesmo da sociedade do seu pro- prio privilégio. “Esses vicios derivavam dos instintos naturais da classe dominante [..] {Mas} o rei Luis Filipe muito contribuiu para reforar tais vicios; foi o acidente que tornou a enfermidade mortal”. Tocque ville liga assim a responsabilidade do rei com as responsabilidades da bhurguesia e & nesse sentido profundo que esbosa, se eu forgo seu pen samento, uma teoria da explosio das revolugdes (teoria social, nio eco- némica como a de E, Labrousse). “Na Franga”, explica Tocqueville, “um governo erra sempre a0 tomar como seu Gnico ponto de apoio os interesses exclusivos e as paixdes egofstas de apenas uma classe.” E esta classe, neste caso, abandona-se muito livremente & critica, prefe- rindo “o prazer de falar mal [do governo] como todo mundo, aos pri- vilégios que este lhe assegura’. Os abusos, a irresponsabilidade da clas se privilegiada, sua faléncia moral preparariam as catistrofes. Foi as sim que agiu a antiga aristozracia francesa, assim vai agir uma certa burguesia quando da campanha dos Banquctes. Serd este 0 mal francés permanente? Em todo caso, é “uma reflexdo que com muita freqién- fia apresentou-se a0 meu espirito”, confia-nos Tocqueville. Viva en- tio a Inglaterra, “o tinico [pais] do mundo onde a aristocracia conti nua a governar™, Dirlamos que Tocqueville se trai por este incidente se nio fosse patente que de coragio e de instinto, visceralmente falando, ele & a fa- vor do modo de propriedade existente, do equilibrio que tem lugar na sociedade, e que no experimenta nenhuma necessidade, sobre este pon to, de se jusificar, de fazer (a época nio &, de resto, dada a este género ide exercicio) 0 que seria sua autoeritica, de marcar com exatido suas coordenadas sociais e econdmicas. Ele declara pura e simplesmente sua ntipatia por Thiers e por Blanqui e nio experimenta a necessidade de justificar ideologicamente estes julgamentos. Julgar, de resto, interessa- The bem menos que compreender. De fato (e & mais do que sua desculpa), 0 que constitui sua razio de pensar e de agir é explicar-se,é ver o mundo de maneira tio Kicida ‘quanto Ihe permitia sua inteligencia viva e sua paixto de observar, sem pre alerta, Esta paixio o conduz, nem mais nem menos, sem que ele ‘mesmo o saiba com clareza suficiente, a uma definigio da histéria. E Ei, digamo-lo sem rodeios, para além eA margem de sua experiéncia temporal, que ele nos interessa no mais ato ponto. Nio é ele constan- temente levado, como que para o centro de gravidade de seu pensa- mento, para uma hist6ria profunda, lentaa se excoar, que ele distingue dbo évenementiel — cle dt: do “acidental”? “Eu percebia, ereio que mais 2 claramente do que qualquer outro, as causas gerais que faziam pender 4 Monarquia de Julho para a sua ruina, Eu ngo via (de ante feu que acrescento esta palavra) os aidemtes que iriam precipitéla.” Mais ‘caracteristico ainda é o seu discurso de 29 de janeiro de 1848 (observe- se a data) na Cémara dos Deputados: “Diz-se que nao hi perigo, por- que nio hi agitagio; diz-se que, como nio hi desordem material na superficie da sociedade, as revolugdes esto longe de nés. Senhores, permitime dizer-vos que creio que vos enganais [..] Olhai o que se passa no seio dessas classes operirias, que hoje, eu o reconhego, esto trangiiilas. E verdade que nao sio atormentadas pelas paixdes politicas propriamente ditas, no mesmo grau em que foram por elas atormenta- das outrora; mas nfo vedes que suas paixdes, de polfticas se tornaram sociais?[..] Diziawvos ainda ha poueo, que esse mal levari cedo ou tar- de[..] a gravissimas revolugdes neste pats: podeis ficar disso convenci- dos [..J". £ procurar o “encadeamento da histéria” e encontrar inevi- tavelmente a longa duragio pela qual se exprime toda hist6ria profun- da e 0 proprio movimento que a domina, Nio é este movimento continuo, repetigio? “O que chamamos de fatos novos nio passim, ‘0 mais das vezes”, diz ele muito bem, “de fatos esquecidos”, que se repetem, portanto, “E cis a Revolugio francesa que recomega, pois & sempre a mesma”, escreve Tocqueville .. uma inica paixio permane- ce viva na Franga: & 0 édio do Antigo Regime e a desconfianga contra a5 antigas classes privilegiadas que o representam 20s olhios do povo. Es- te sentimento passa através das revolugSes sem se alterar nem se dissol ver, como a égua destas fontes maravilhosis que, segundo os antigos, passava através das ondas do mar sem se misturar e sem desaparecer...” Naturalmente, acontecesthe de hesitar, de nuangar seu pensamen- 10, de piscar os olhos. Os acontecimentos seguem seu curso, ele narra (0s; as grandes personagens, se & obrigado conscientemente a limitar sew papel, passam inadvertidamente para o primeiro plano da sua observa ‘gio. Nao se desembarasars, livremente, nem de uns, nem de outros. “Vejo bem tal acontecimento”, escreve Tocqueville, “tal causa acidental ou superficial [...] nfo que cu ereia que os acidentes nio desempenhar ram qualquer papel na Revolugio de Fevereiro, eles tiveram 20 con- trério um papel muito grande, mas nio fizeram tudo”. Diré mesmo da queda de Guizot que ‘era preciso ver af mais que um incidente, um grande acontecimento que iria mudar a face das coisas”. E, desta vez, cle nio se pergunta por qual processo, por quais adigdes de foreas 0 incidente €algado acima dele mesmo & dignidade de um “grande acon- tecimento”. Fle também se resguarda, historiador prudente que é como tantos 2B ‘outros, das comparagdes faceis: “um tempo nunca se ajusta bem a um ‘outro tempo”, sentencia. Percebe bem a continuidade revolucionaria, ‘mas acrescenta: no estamos “mais ocupados em representar a Revolu- ‘¢io Francesa do que em continua?” Vé bem a revolusio social apon- tando para o futuro, mas nfo a une pelo nome a este processo revolu- ciondrio. “Chegaremos nés, como asseguram outros profetas, talvez Ho em vio quanto seus antecessores, a uma transformagio social mais completa e mais profunda como nio a haviam previsto ¢ querido nos 505 pais, € que nos mesmos nao podemos ainda concebé-a?[..] Eu igy rnoro quando terminard esta longa viagem.” Por certo, uma lon; gem que nio esti terminada hoje, que prossegue como ontem da or dem 3 desordem, da liberdade & coagio, do real a0 ideal, do equilibrio J revolugio, da revolugio ao equilibrio. A revolusio breve, tumultua- dda e que arde vigorosamente; o equilibrio com o fogo cuidadosamente sob as cinzas e que dura... Nao é 0 que diz textualmente Tocqueville, ‘mas esti tio préximo de nds em suas interrogagBes sem resposta, que nos surpreendemos falando em seu lugar. A hesitagio de Tocqueville entre o acidental e 0 profundo, acon- tecimento e a esteutura vale-nos 0 prazer de seguilo, no diadia, du- rante os tempos revolucionirios que ele atravessa, testemunha, jorna lista infatigivel, atento ao incidente, a0 acaso, & cena vivida, 4 “jorna- a’, impelido nio pela intrepidez, mas por aquilo que ele mesmo chama uma “vida curiosidade”. Sua lucidez, sua paixio de ver, sio sem tes, téem a dimensio de uma inquietude cotidiana que o excita sem cessar, nio digo de temores ou de baixos sentimentos que nfo the d- zzem respeito em absoluro. Nés que vimos em maio de 1968 um esbo- 0 de revolugio que se ofereceu 20s contempordineos como um espetie Culo revelador no mais alto grau, compreendemos sem dificuldade a curiosidade incansivel de Tocqueville. Em 22 ¢ 23 de feverciro ele ests nna Cimara dos Deputados. Em 24, “desci imediatamente [apenas sai- do da cama] e, mal havia posto 0 pé na rua, senti pela primeira vee, respirava em cheio a atmosfera das revolugdes: o meio da rua estava vazio; as lojas estavam fechadas; no se viam carruagens ou transeun- tes; nio se ouviam os gritos habituais dos vendedores ambulantes (.-] “Todas as fisionomias estavam transtornadas pela inquietude ou pela e6- lera’. O tinico vefculo que aparece na narrativa de Tocqueville ¢ 0 ca- briolé que o desvairado Thiers em fuga consegue tomar no bois de Bow ogne e com 0 qual atinge a Porte de Clichy chegando em seguida, atra- vés de desvios, a sua casa. ‘Tocqueville nio se de ira pé,em uma Paris vazia de veiculos 4 = volta dos fiacres seri a volta da ordem — para ie 3 Climara, para ir 4 casa de um amigo, para encontrar um grupo de politicos na casa de um restausrador dos Champs-Elysées ou alhuress o mais das vezes para satisfazer uma curiosidade que jamais o abandona, Assim, em 25 de fe- vereiro: “depois que amanheceu, sai para ver o aspecto da cidade”. Nes- te mesmo dia, “gastei a tarde passeando por Paris”. Depois, em 23 de junho de 1848, a0 primeiro movimento da insurreigio de junho — ‘a Iaior ea mais singular que jamais teve lugar em nossa histéria e talvez em qualquer outra: a maior, pois, durante quatro dias, mais de cem mil homens nela foram engajados” —, neste dia de inquietude, Tocqueville, por uma razfo ou por outra, nio pira de percorrer Paris, chega & Ci- mara, vai do Palais-Bourbon & rua Notre Daniedes-Chanps e af procura seus sobrinhos que pora a salvo; cio logo, como delegado da Assem- bléia Nacional, no Palais Royal, depois no Hétel de Ville, Nas ruas onde erguemrse barricadas, “os homens estavam todos de blusio, 0 que & pa- smo se sabe, a roupa de combate tanto quanto a roupa de tra- ‘Detiveram-me...] diversas vezes durante o trajeto e obrigaram- ‘me a mostrar minha insignia [de representante da Assembléia Nacio- nal], Mais de dez vezes, sentinclas inexperientes apontaran-me suas ar mas falando toda espécie de dialetos— porque Paris estava cheia de cam- poneses, vindos de todas as provincias, muitos dos quais pela primeira vez." “Gragas’s errovias”, nota ainda Tocqueville, “vinham jd de cin- atienta Iéguas, embora o combate tivesse comegado apenas na véspera, 30 anoitecer. No dia seguinte e nos sucessivos, vieram de cem e de du- zentas léguas de distancia, Esses homens pertenciam, indistintamente, todas as classes da sociedade; havi entre eles, muitos camponeses, mui- tos burgueses, muitos grandes proprietirios e nobres, todos misturados confundidos nas mesmas fileras. Estavam armados ce manera irregu- lar ¢ insuficiente, mas langavam-se por Paris. Foi esta corrida que fez pender a balanga para o lado de Cavaig- rac, da ordem, da reagio, Uma corrida “formidivel”. Tocqueville tem razio a0 pensar que seo levante de junho “tivesse tido um earster me- 1nos radical e um aspecto menos birbaro é provavel que a maior parte dos burgueses teria ficado em suas casas, a Franga no teria acorrido fem nossa ajuda; a propria Assemblé talvez cedido”. Mas para que serve refazer a historia, senio para melhor explicéla a contrirjo? Se a sublevasio fracassa, é também por que ela nfo teve Iide- res revolucionirios que pudessem “colocar-se testa dos insurrectos”s 1 lideres eventuais deixaram-se” prender prematuramente como tolos, tem 15 de maio [quando da jornada em favor da Pol6nia]¢ cles s6 ouvi- ram 0 ruldo do combate através dos muros da prisio de Vincennes”. 25 [ee Em nosse ajuda, como tolos estas palavras que eu pus em itlico tr Tocqueville. Ele esti do lado da ordem, muito apressado, sem di em subestimar 0s verdadeiros revolucionsrios da época: Blanqui, “doen te, malvado ¢ imundo”; Barbés, “o mais insensato, o mais desinteres: sado.¢ 0 mais resoluto de todos [..]eu no deixei de pdr os ellos sobre le” quando da jornada de 15 de maio, Quanto a Ledru-Rollin (mas G este um verdadeiro revolucionrio?) o retrato é menos feio: “um gran ide rapaz, muito sensual e muito sanguinco, desprovido de principios quase de idéias, sem verdadeira audécia de espirito nem de corasio fe mesmo sem maldade...". Com toda certeza, Tocqueville nio esta do lado deles e contudo qualificé-lo de anti-revolucionirio nio seria nem justo, nem adequado, pois, ele nfo estd tampouco do-outro lado. Sua ariuude € do observador impenitente ¢ honesto, perturbado pela “as- sustadora rapidez [com a qual] as almas mais pacificas se poem [..] em uunissono is guerras civis”, se detxam ganhar pelo “gosto da violéncia © 0 desprezo pela vida humana”, mas perturbado nfo menos 2o cons- tatar sua prOpria reagio a este espeticulo e “a prontidao com a qual ceu me familiarizava em dois dias com estas idéias de inexorivel rigor {que me eram naturalmente tHo estranhas”, aceitando a repressio co- mo uma necessidade. Em 3 de junho de 1849, Alexis de Tocqueville tornave-se titular do Ministério dos Negocios Estrar.geiros, no gabinete Odilon Barrot, de breve duragio, ele permanecerd em seu posto apenas por alguns me ses, até a demissio do governo, em 31 de outubro do mesmo ano. Esta passagem pelo poder é a outra vertente do livro. Digamos desde logo que ela nos intcressa muito menos que o testemunho das pginas ante- riores. A propensio i Contra Revolusio incitada de maneira dramti- ca, em junho de 1848, afirmavase em dezembro do mesmo ano com a cleicio de Luis Napoleio Bonaparte, continuava com as eleiges pa- 120 Legislative em maio de 1849 e prosseguia até 0 golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 ¢ 0 restabelecimento do Império. [Neste process, a formagio, a duragio, as peripécias do ministério Odilon Barrot — tio instavel que Tocqueville estava decidido a se con- duzir “cada dia, como ministro, como se fosse deixar de sé-1o no dia seguinte””— s6 nos interessa muito mediocremente, Se esta iltima par- te das Lembrangas retém nossa atengio é por que ela ilumina definiti- ‘vamente 205 nossos olhos a “testemunha” que se tornou, sem entu- siasmo para dizer a verdade, “aor”. Ator, ei-lo obrigado a se explicar, a tomar posisio. Ele nio se esquiva. Mas 0 que escreve & menos uma justifieaiva do que um esclarecimento. Ele quer se ver tal eomo foi dur 26 rante estes pouicos meses de aparente poder em que contemplava de longe a Buropa e, diretamente, sob seus olhos, a singular situago politica, triste fe mediocre, através da qual desenhava-see fabricava-se 0 destino imediato dda Franga. A mancira pela qual cle atravessa a prova niio decepcionari 6 leitor “Tocqueville fixou desde o inicio sua linha de conduta ea ela se atém servir o melhor possivel aos interesses essencias do pals e servilos segun- do as possibilidades e as exigincias de uma situagio politica mutavel e da qual nio é evidentemente o senhor. Na verchde uma situagio duph a de dentro e a de fora do pats, mas os dois tabuleiros dependentes entre si ‘Na Franga, como na Europa, a maré revolucion{ria esté em pleno re- fluxo; as revolusSes sincrBnicas, durante o inverno de 1848, tinkam curio- samente brotado juntas, as eagdes que seguem sio igualmente sincréni- cas. Foi um fendmeno césmico: © movimento mudou de sentido, Se © pprimeiro ato tinha pertencido 20s povos revoltados, o segundo via 0 resta- bbelecimento regular da autoridade dos prineipes, na véspera em desordem, Em um extremo da Europa, esto czar, senhor da reagio, orquestrando-a, impelindo-a & frente. No outto extremo, uma Inglaterra “mais morna”, ‘que apenas tinha “uma boa vontade estérl”. Apoiarse nela, nem penstt Para a Franga, a regra cra, pois, a de “reduzir-se a viver em pequeno, no dina [..] mas mesmo isto era dificil” pois a opiniao francesa “esper- neava contra esta necessiade do tempo”, Mas 0 que fazer como alternat- va? Bancar a revolugo em retirada no significava salvia na Europa, mas significava seguramente acendé-Ia novamente na Franca. Bancar a Contra- Revolusdo significava colocar-se sob a protegio da Rissa czarista,levane do a Franga a perder “o ar liberal que caracterizava sua fisionomia natural entre 05 powos”, Ora, pars Tocqueville, isto devia ser uma “méxima de cconcluta” dos dirigentes franceses: "nfo se deixar em absoluto arrastar até ‘0 ponto de renegar os prinepios de nossa Revolugio, deliberdade, de igual- dade e de cleméncial,..] fe de] jamais entrar nas paixdes dos velhos pode- res” £ verdade que Richelieu tinha ao mesmo tempo abatido os protes tamtes de dentro “enquanto ajudava os de fora.a se levantar na Aleman ‘Mas uma tal escolha nao se oferecia em 1849. “Eu sei, dizia Tocqueville 405 103508 embaixadores, “que a Franga no ests em condigies de domi- nar a Europa, nem de fazer prevalecer seus desejos nos acontecimentos ‘que se passam longe dela.” Pelo menos deve-se salvar a face e esperar, na vvegando da melhor maneira possivel, no comprometendo uma Franga fed. “Também a politica interna nfo deixa mais que uma pequena margem cde manobra. O principe Napoleio no Elysée significa o risco de uma mo- narquia “bastards” nfo & necessirio ser extralicido para adivinhar 0 7 Br cA Bib) cisnetan curioso perigo e aquilo que na Franga camponesa, operiria ¢ reacions+ ria o favorece: desejo de seguranga, de ordem, de revanche, de gléria externa, Nas eleigdes para o Legislativo, em maio de 1849, 0 sucesso dlos reacionirios tinha sido macigo (450 deputados). Mas eles nio se ‘contentavam. Tinham sonhado com a supressio, a aboligio do adver- ‘rio: ora, os “Montanheses” sio 180, para sua propria surpresa. Tudo aii" | se resolverd de uma vez quando, em 13 de junho, a jornada de revolta A"? Aquat a sérdida expedigio de Roma servira de pretexto fracassa. A Mon- ha & completamente arrasada. Segundo as palavras freqiientemente repetidas do Principe Presidente “é tempo de os bons se tranqiiiliza- em ¢ de os maus tremerem”. Assim, em meio a estas jornadas de junho, © que pode ser “essen- cial” para Tocqueville sendo trabalhar na frégil manutengio da Rept blica? “Eu nio acreditava mais, entio, como nio acredito hoje”, escre- ver ele em setembro de 1851, “que o governo republicano fosse 0 mais apropriado is necessidades da Franga; o que entendo propriamente fa- Jando por governo republicano & o poder executivo eletivo [..] Sem- pre considerei, de resto, que a repiblica era um governo sem contra: pesso [..] [Mas] eu queria manté-lo porque nio via nada de pronto, nada de bom para colocar em seu lugar. A antiga dinastia era profun- dan i do pais [..] Luis Napole3o era 0 dinico que estava preparado para tomar o lugar da Repéblica.”” A situagio politica dspBe-se, pois, como um tridngulo: Legistati yo monarquista dividido em dois grupos, Legitimistas minor Orleanistas que sabem que no podem tomar prontamente o poder, aque Ihes sera preciso temporizar; ante eles, ainda sem partido const tuido ¢ que pudesse apregoar-se publicamente, o cla do Presiden tre estes dois blocos, alguns homens decididos a salvar a Repablica. At esti Tocqueville, que multiplica os gestos de boa vontade, de cone: 0, que se violenta para ser amdvel. Suas relagdes sendo mais faceis com os Legitimistas em razio de suas origens familiares, suporta a pre- senga, até mesmo a amizade, de Falloux, o homem que fara logo votar a lei sobre o ensino que leva seu nome (15 de margo de 1850). Frente 0s Orleanistas, Tocqueville prudente, hibil,ligado aos cinglienta ou sessenta modersdos do grupo. Enfim, ele quer ser mais que amivel dian: te do tenebroso Principe Presidente. Aceita, em suma, que governar significa ziguezaguear no dia-aia e que o prego de toda fraqueza ou de toda sabedoria & o de ter freqiientemente ‘as mos sujas” (mas a expressio teria eausado horror a Tocqueville). Por exemplo, apenas che- gado aos Negécios Estrangeiros toma conhecimento de que a expedi- sio francesa enviada contra a Repiiblica romana, com 2 inter 28 (segundo decisio da Assembla constituinie, tomada em 7 de maio de 1849 pouco antes de se dissolver) de atacar a cidade, vai passar a0 assal- to. "A primeira coisa que soube a0 entrar no gabinete foi que a ordem destacar Roma tink to tans, hava rs dis, 0 nosso exe to.” "Durante estes dois dias (12 e 13 de junko) minha situaso foi muito cruel, eu desaprovava inteiramente [a mancira pela qual a expedi- | «30 de Roma havia sido empreendida ¢ conduzida.” Mas a solidaricda- de ministerial obrigou-o ¢ ele engoliv o sapo. Evidentemente, compromisso con io podem governar um homem que, como Tocqueville, é profundamente honesto. Parti- dirio do meio termo, esté quase seguro de perder, de que o Principe: Presidente ou os Orleanistas vio v. intelectuais honestos, que pouco realizam, que aio podem, com fre- 4iiéncia, ser senio contra? Tocqueville, sempre decepcionado, acabou | por ficar contra a monarquia de Julho, contra a campanha dos Ban. quetes, contra a Revolusio de Fevereiro, contra as jornadas de Junho, contra a esperanga socialista, contra a reagio orleanista, contra 1 devor rante e sorrateira ambicio de Lufs Napoleio Bonaparte. Sua fidelidade asi mesmo interditavarthe uma outra atitude, E foi bom, no fim de ccontas, que ele nio tenha feito uma muito longa carreira politica, co- mo estes outros historiadores, Thiers e Guizot, e que tenha consagra- do os iltimos anos que the restavam de vida 4 redagio de seu livro, (O Antigo Regime ¢ 4 Revolugio. | “Todavia, como terfamos apreciado, em sua passagem pelo poder, t confidéncias mais completas do que as que ele nos oferece! Ele nio ten- tou marcar suas préprias relagdes com o poder, responder 20 tipo de questdes que a este respeito um psicanalista hoje Ihe eolocaria. O livro estd evidentemente inacabado. Mas um livro inacabado pode ter um imenso valor. Toequeville nfo langou luzes mais vivas que muitos ou- tros sobre a fratura do meio do século XIX europeu? J. P. Mayer, ad- mmirivel conhecedor de Marx — que encontrou e publicou © manuseri- to dos Escritos de juvemtude, o que nem sempre é lembrado —, alénmr disso, incomparivel conhecedor de Alexis de Tocqueville, prefere as Lenrangas a0 clissico Dezoito Brumdrio de Luis Napoleao Bonaparte, de Marx. A seus olhos Tocqueville & mais cienttico, mais objetivo que Marx, ¢ € possivel. Mas, sem procurar tudo coneiliar, nfo é verdade i que nas Lenbrancas, como no Dezotto Brumirio, mais ainda do que a realidade histdrica observada, o que nos apaixona é situar © pens | mento de Marx ou o pensamento de Alexis de Tocqueville? Comparacio por comparagio, gostaria de imaginar uma outra. lando um dia com Georges Lefebvre sobre Michelet ¢, uma vez mi so weer. Mas nio é esta a sorte dos ‘ 2» } fazendo seu elogio, ele replicou: “Sim, mas hd Tocqueville”. Resposta que, naquele momento, me surpreendeu. Ser4 necessirio que um his- toriador prefira sempre um modelo que no seja a imagem exata das suas paixdes? Georges Lefebvre é a Revolugio. Luci wre deveria ter pendido para o lado de Tocqueville, 0 qual, voces viram, se situa sem dificuldade do lado da Escola dita dos Annales. Ora, ele escolhia Michelet. Mas sera preciso escolher entre ‘Tocqueville e Michelet, este mais romintico, mais revolucionério, aquele mais obstinado em pen- sar o prd e 0 contra, em distinguir as linhas-mestras, em manobrar as, massas tomadas em bloco? Michelet, se tivesse apresentado a Franga de 1848 — 0 que nio fez — teria escolhido como seu her6i ou Blanqui ou Barbs, Depois, apoiado sobre seu ombro, teria visto o desenrolar ou o suceder das peripécias. A Franga com suas cores cambiantes teria girado em torno de um centro escolhido previamente, como a Franga de nossas guerras de religido gira, na narrativa politica de Michelet, em torno do almirante de Coligny. Nesse jogo a histéria reconstituida to- ma forma de um drama, pbese a viver e a nos perturbar. Mas 0 jogo tem seus riscos: o historiador se engaja por pessoa interposta. Tocque- ville, por temperamento, recusa semelhante engajamento, Mesmo tes- temunha, mesmo ator, ele faz. questio de se retirar do espeticulo. Na~ da de ver girar a histéria da Franca, ainda que por um instante, em torno de sta pessoa, “Como é dificil falar bem de si mesmo”, ele es- creve, Ou: “esti-se muito préximo de si mesmo para bem se ver”. Ou ainda: “Tenho-me naturalmente em grande desconfianga’”. Nao lamen- temos esta prudéncia; ela permite a Tocqueville nos dar uma incompa- rave ligio de lucidez. Entretenhamo-nos todavia imaginando como estas duas manciras de ler a histéria, a de Tocqueville e a de Michelet, se quiséssemos a clas submeter a Franga do tempo presente, poderiam servir de teste 208 nossos politicélogos. A maneira de Michelet, que homem politico colocar no centro da vida francesa? A de Tocqueville, que retratos de- senhar dos politicos que, soidisant, nos governam? Que fendmenos pro- fundos reconhecer sob a atualidade? Hi entre nds uma classe domi: nante fatigada, abusiva, e, com a desaceleragio da economia estimula- da pelo menos desde o ano de 1974, um fator precedente para que perturbagGes e mudangas emerjam? Em suma, hi signos (para retomar uma expressio pouco racional do racional Tocqueville) “para quem sabe farejar de Longe as Revolugées”? Na verdade, uma questio & qual os prudentes esperario seguramente alguns anos antes de responder. Fernand Braudel 30 | PRIMEIRA PARTE

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