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da personaidade arthur — y = rae ' ) 7 ‘TEORIA CENTRADA NO CLIENTE: CARL R. ROGERS Carl R. Rogers e John K. Wood De boa vontade eu* jogaria fora todas as palavras deste manuscrito, se eu pudesse, de algum modo efetivamente, mostrar a experiéncia que é a terapia. E um processo, uma coisa-em-si, uma experiéncia, um relacionamento, uma dindmica. Nao 6 0 que este e outros livros expSem, assim como a flor ndo é a descrigao que o botinico faz dela ou o éxtase do poeta diante dela, Se este livro servir como um grande farol que indica uma experiéncia aberta aos nossos sentidos da audigdo e visio e A nossa capacidade de ter experiéncia emocional, e se ele prender o interesse de alguns e os levar a ex- plorar mais profundamente essa coisa-em-si, tera alcangado seu objetivo. Se, por outro lado, este livro for se juntar ao ja desconcer- tante acimulo de palavras a respeito de palavras, se seus Ieitores tirarem dele a nocdo de que a verdade sio palavras e de que a pagina impressa é tudo, entdo tristemente tera fracassado em atingir seu objetivo, E, se sofrer essa degradacao final que é tornar-se “conhecimento de sala-de-aula” — onde as palavras mortas de um au- tor so dissecadas e jogadas na memoria de estudantes passivos de forma que pessoas com vida carreguem as porgdes mortas e disseca- das daquilo que antes foram pensamentos e experiéncias vivos, sem nem mesmo perceberem que algum dia foram vivos — muito melhor seria, que este livro jamais tivesse sido escrito, Essas palavras prefaciaram o livro “Client-Centered Therapy” (Rogers, 1957, p. IX), a primeira das principais formulagoes da teoria subjacente ‘abordagem centrada no cliente das relagdes interpessoais, Desde entao, o impacto social da terapia centrada no cliente superou Dossas expectativas. Moldando, desde seu inicio uma nova abordagem radical da psicoterapia, os princfpios da teoria centrada no cliente tém, hoje, Penetracfo na educagao, nos negocios, nas relacdes interpessoais e foram aplicadas a situa¢Ses tao incomuns como uma experiéncia intensiva de grupo, visando a facilitar as comunicagSes entre facges em luta, na Irlanda do Norte. Temo, hoje, que a teoria centrada no cliente se tenha tornado, muito répida e facilmente, um fechado livro da verdade, a despeito das advertén- cias que fiz a respeito. A teoria tem sido dissecada, analisada, memorizada, a ponto de ter sofrido a degradacio de transformar-se em “conhecimento de sala-de-aula” e de ser encarada como dogma. Na psicoterapia, tornou-se parte das hipOteses que fundamentam o aconselhamento psicolégico — provavelmente todas as terapias eficazes, " Este capitulo é escrito, em conjunto, pelos dois autores, embora seja escrito na primeira pessoa. Em alguns trechos, “eu” representa um autor, em outros trechos, 0 outro. A razio de utilizar a primeira pessoa é que ajuda a manter o material numa pers- pectiva humana. Este capitulo nao é a expresso de uma teoria fechada, E a perspectiva pessoal de dois homens com uma grande experiéncia cm terapia, que tém pontos em comum em suas abordagens do trabalho terapéutico ¢ nas formulagées tentativas que extraem de seu trabalho. 192 Bascia-se isto, em parte no fato de que, por mais de trés décadas, muitos e diferentes terapeutas trabalham com muitos tipos de clientes, para conseguir ampla evidéncia de que tendem a ocorrer mudangas significativamente positivas no comportamento, nas atitudes, nos sentimentos e na personalida- de do cliente, mesmo apés um periodo de tempo, relativamente, curto em um clima terapéutico centrado no cliente. Essa espécie de aceitagdo profis- sional, baseada na experiéncia, parece correta. Mas, devido ao fato de ter ha- vido aplicagdes amplamente variadas dos principios a todas as formas de telagdes interpessoais em nossa sociedade — uma tendéncia, em si, saudavel =a teoria tem sido freqiientemente ensinada de maneira superficial e absorvida de igual modo. E a isso que fago objegao. Por causa dessa compreensdo superficial dos prinefpios, por parte dos psicoterapeutas, dos futuros terapeutas e outros, sempre houve a tendéncia de passar por cima de suas implicagdes mais profundas, Ha pouco entendi- mento da preciséo da terapia centrada no cliente. Sua base teérica esté com- provavelmente expressa de modo mais preciso do que a base teérica de qualquer outra terapia (Rogers, 1959). Hé também uma falha na compreen- sao de sua filosofia radical e revoluciondria. Na verdade, uma filosofia centrada no cliente nfo se adapta conforta- velmente numa sociedade de orientagao tecnolégica. Mesmo a psicoterapia vern valorizando, cada vez mais, a “eficiéncia”. Um diagnéstico apropriado, a confianga nas teorias de causa ¢ efeito imediatos e outras concepgdes linea- res so vistas como meios de “ver o que estd errado ¢ cura-lo”, rapidamente. A terapia centrada no cliente, que ndo possui métodos e técnicas instanta- Neas, que se apoiam na evocacao das forcas do cliente, que flui de acordo com o tempo do cliente, parece bastante ingénua e ineficiente, Ela nao se adapta a uma cultura do tipo padronizado. Neste capftulo, espero ajudar a compreender a teoria centrada no cli- ente, Quero “mostrar” a esperiéncia que é a teoria centrada no cliente. Ten- tarei descrever algumas de minhas lutas para chegar 4s conclusdes especulati- vas que compdem a presente teoria. Espero que o leitor seja encorajado a construir sua propria abordagem da terapia, a partir de suas proprias expe- tiéncias — do mesmo modo como esta teoria foi construfda, Espero, tam- bém, que este capitulo o ajudard a responder a esta pergunta. “O que tem a ver comigo a terapia centrada no cliente — em todo o oceano de teorias — quando me defronto com um cliente ou um amigo perturbado?” Caracteristicas A teoria centrada no cliente ainda esta se desenvolvendo, nfo como uma “escola” ou dogma, mas como um conjunto de principios hipotéticos. De fato, creio que, 4 medida que se expande nosso conhecimento dos pro- cessos da terapia, as chamadas escolas de terapia serfo englobadas numa abordagem unificada de tratamento. i Algumas caracterfsticas que atualmente fazem uma distingdo entre a abordagem centrada no cliente e outros pontos de vista, sio: : 1. A continua crenga nas responsabilidades do cliente e na sua capa- cidade de prever que passos 0 levarao a um confronto mais decisivo com sua tealidade. O cliente é 0 tinico que tem a potencialidade de saber a totalida- de da dinamica de seu comportamento ¢ das suas percepgGes da realidade e, dessa forma, de descobrir comportamentos mais apropriados para si, Nao & 193 © objetivo dessa terapia ajudar a pessoa a ajustar-se a “sociedade”. De fato um estagidrio de aconselhamento terapéutico me disse, recentemente, que essa terapia nem mesmo funciona nesse aspecto. “Quando era interno num centro de reabilitacao no interior”, ele disse, “usei a abordagem centrada no cliente, e meus clientes no se modificaram: af mudei para a modificago do comportamento ¢ eles comegaram a se ajustar as expectativas da organiza- ¢ao”. A terapia centrada no cliente, com sua énfase no trabalho voltado para 0s objetivos do cliente, estava, nesse caso, agindo contrariamente as necessi- dades da organizagao, que havia enviado esses clientes para a terapia e espe- ficado seu comportamento-fim desejado. 2, Uma continua atengio ao mundo dos fendmenos do cliente — o terapeuta procurando ver o mundo do cliente, como este o vé. 3. A hipdtese de que os mesmos princfpios da psicoterapia as aplicam a todas as pessoas, sejam elas rotuladas como “normais”, “neuréticas” ou “psic6ticas”. 4, Uma visio da psicoterapia como um exemplo especializado de todas as relagGes interpessoais construtivas. E na relagdo — onde outra pessoa aju- da a fazer 0 que no pode fazer sozinho — que 0 cliente experimenta um de- senvolvimento terapéutico. . 5.A hipétese em desenvolvimento de que certas atitudes da pessoa designada como “terapeuta” constituem as condigdes necessarias e sufi- cientes para a eficicia terapéutica e mudanga na pessoa designada como “cliente.” 6.0 conceito em desenvolvimento das fungdes do terapeuta como aquele que est4 imediatamente presente e acessivel ao seu cliente e que se apdia na sua experiéncia, momento-a-momento, na relacfo, para facilitar o movimento terapéutico. 7, Uma teoria em desenvolvimento que visualiza o processo terapéuti- co como uma mudanga continua na maneira de experimentar do cliente — com sua crescente capacidade de viver mais plenamente no momento imediato. 8. Uma preocupacao como o “como” do processo da mudanga na per- sonalidade, mais do que com o “por qué” da estrutura da personalidade, 9. Uma €énfase na necessidade de pesquisa continua para adquirir conhecimentos essenciais relacionados 4 psicoterapia. Uma determinagao de construir todas as formulagées te6ricas, a partir de suas raizes na experién- cia, em lugar de construir a experiéncia para caber numa formulagio teérica pré-estabelecida. A terapia centrada no cliente 6 melhor caracterizada como uma abor- gem, uma atitude, uma maneira de ser, e ndo como uma técnica —“‘ndo dire- tiva”, “reflexiva” ou outra qualquer. O primeiro pré-requisito para fazer tera- pia nado é uma teoria ou um dogma, mas um modo de ser com as pessoas que enseja a facilitagdo. A teoria emana de milhares de horas de experiéncia no aconselhamento ¢ de observagées clinicas, mudando 4 medida que novas pesquisas deitam novas luzes sobre nossas formulagoes, FILOSOFIA (DA TERAPIA) CENTRADA NO CLIENTE Uma conclusio experimental, & qual cheguei apés anos de experién- cia psicoterapéutica com individuos perturbados, é que o homem tem uma 194 tendéncia inata para desenvolver todas as suas capacidades destinadas a man- ter ou a melhorar seu organismo — a pessoa total, mente e corpo. Esse 0 nico postulado basico da terapia centrada no cliente, ‘ejo-a como uma tendéncia confidvel, a qual, quando livre para operar move 0 individuo em dire¢o ao processo chamado crescimento, maturida- de, enriquecimento da vida. A redugdo da necessidade, a redugdo da tensio, a reducao do impulso, assim como a motivagdo para crescimento, esto inclufdas nesse conceito, Contrariamente 3 opini#o que vé os mais profundos instintos do ho- mem como sendo destrutivos, observei que, quando o homem 6, verdadeira- mente, livre para tornar-se o que ele é no mais fundo de seu ser (como no cli- ma seguro da terapia), quando é livre para agir conforme sua natureza, como um ser capaz de aperceber as coisas que o cercam, entio ele, nitidamente, se encaminha para a globalidade ¢ a integracdo. Como ja disse em outra publicago (Rogers, 1961a, p. 105): {Quando o homem ] é de todo um homem, quando ele é seu orga- nismo completo, quando a apercep¢do da experiéncia, esse atributo peculiarmente humano, esta operando na sua méxima plenitude, entio se pode confiar nele, entao seu comportamento é construti- vo. Nem sempre serd convencional. Nem sempre ser conformista. Serd individualizado. Mas serd também socializado.” “Socializado”, neste contexto, significa “em cooperacdo com outras pessoas e consigo mesmo”, nao necessariamente de acordo com a “socieda- de”. Numa sociedade muito opressora, a pessoa que se sobressai na vida po- derd muito bem ser classificada como um fora-da-lei. Pode-se considerar que 0 comportamento dé uma pessoa estd volta- do para a manutencdo, a intensificagao e a reprodugao do “eu” — em dire- go & autonomia, oposto ao controle externo por forgas externas, Isso se aplica quer o estimulo venha de dentro ou de fora, quer seja o meio ambien- te favordvel ou desfavoravel. Essa é a propria esséncia do processo que cha- mamos de viver. Uma experiéncia biolégica com ourigos-do-mar ilustra meu conceito dessa tendéncia para o desenvolvimento. Os cientistas sabem como separar as duas células que se formam apés a primeira divisiio do ovo fecundado do ou- rigo-do-mar. Se forem deixados desenvolvendo-se normalmente, cada uma dessas duas células cresceré em uma porgdo de larva de ourigo-do-mar — am- bas contribuindo para formar um s6 animal. Poderia parecer, entdo, que quando as duas células fossem cuidadosamente separadas, cada uma delas, em se desenvolvendo, simplesmente resultaria numa porgdo de um ourico- do-mar, Esse raciocinio nao leva em consideragao a tendéncia direcional ou tendéncia para a realizagdo”, caracteristica de todo crescimento organico, De fato, cada célula, se for mantida viva, se transformard numa larva com- pleta de ourigo-do-mar — menor que a usual, mas normal e completa. Essa tendéncia para o todo é expressa nos seres humanos numa vari- ada gama de comportamentos e em resposta a uma gama variada de neces- sidades. A tendéncia do organismo, num momento, pode levar & procura de alimento ou de gratificacio sexual. No entanto, a menos que essas neces- sidades scjam demasiadamente grandes, sua satisfagio seri procurada segundo uma forma que intensifique, e ndo que diminua, a necessidade de auto-estima, por exemplo. Outras atividades, tais como as necessidades de 195 “tive explorar, produzir, mudar e a necessidade Itidica, so basicamonto das” pela tendéncia a realizagio. ‘Na tendéncia a realizagdo, expressa pela experiéncia total do (ily) duo, pode-se confiar, por ser um referente fidedigno do comportiniwitt Creio que o homem é mais sibio que seu intelecto considerado isoladiniwiite @ que as pessoas (que funcionam bem) aprendem a confiar cm sun oxporlii cia como a mais satisfatoria e sibia indicagado para o comportamonta apie priado. Quando a consciéncia participa, de maneira mais coordenada do (ue competitiva, com sua tendéncia para a realizacfo, a pessoa se entropi n itn encontro excitante, adaptativo e modificador com a vida e seus desalion, Mi comete erros, mas tem também o melhor meio possivel de corigilon Como terapeuta, guio-me por minha crenga nesses processos naturitlh, respeitando o direito e a capacidade do cliente para o autogoverny 0 0 crescimento. Confio em sua capacidade de lidar com sua situagao psicoldylon e consigo proprio. Uma terapeuta veterana, por exemplo, visua COU fianga em seus clientes como um processo de aprendizado continuo, (un do ela esgota novas diregSes ou abordagens com um cliente, ela “espera” por ele. “Sempre que posso esperar por meu cliente ¢ nao sinto que tenho do curé-lo imediatamente ou apressar seu desenvolvimento, quando me apolo na pessoa como tal para que cla defina o rumo, inevitavelmente comegi crescer e a progredir.” O INICIO DE UMA TEORIA: O PROCESSO NO CLIENTE Eu s6 queria tentar viver de acordo com as exigéncias que provi- nham de meu verdadeiro “eu”. Por que era tio diffcil? Hermann Hesse (Demian) Se cada individuo possui a capacidade de planejar os passos que 0 Jevarfio a um relacionamento mais maduro e mais vigoroso com sua realida- de, o que acontece que reduz a eficiéncia e a qualidade da vida de alguns? Por que algumas pessoas procuram o auxilio de um psicoterapeuta, € 0 que este pode fazer para auxilié-las? Partindo de minha experiéncia direta, na relagfo terapéutica com meus clientes, comecei a dar forma a uma explicagio do processo da terapia, (Também foi desenvolvida uma teoria da personalidade, mas esta sempre teve um interesse secundario). Meu interesse por uma teoria do processo terapéutico se concentrou mais no “como” do que no “por qué” da mu- danca, Nao se necessita de teoria enquanto ndo haja fendmenos, mudangas observdveis que precisem de uma explicacdo, Em primeiro lugar, ha a experi- éncia e depois, a teoria. Dessa forma, tentando compreender e explicar 0 que ocorreu e formulando hipétese~testaveis para futuras experiéncias, nossa eficiéncia terapéutica aumenta. : Uma Teoria Primitiva Até esta data, foram desenvolvidas trés formulagdes principais «do processo terapéutico. A primeira descrigio da terapia centrada no cliente mostrava 0 processo terapéutico basicamente composto de trés etapas. Ha, primeiro, uma liberagiio da expresso, por parte do cliente, uma liberagao de 196 OT @HieHtON pononts, Seguindo-se @ essa catarse pessoal, o cliente tende a theconvilver Urn compreensio interna-da origem e da natureza de suas difi- puldaied, tina apercepgaio 6 seguida de escolhas e decisGes positivas com | twlayihe aun vatlos problemas que ele enfrenta em sua vida. Essa exercitagao jiu dni crescente capacidade do cliente para o autogoverno. | \atudos de pesquisas (Snyder 1945; Seeman 1949) confirmaram essa deearigio que ninda é um modo de ver o processo terapéutico. Vind Teoria do Bu \mbora minha primeira descrigéo pareca modestamente adequada, yitne forgndo, por meus clientes, a me voltar para uma outra abordagem, Hlew foqiontemente focalizam seus problemas e progressos em termos do wu, "Ninto que no estou sendo meu eu real.” “Foi bom abandonar-me a Hilti mesmo ¢ ser somente eu, aqui”. A partir de dados extrafdos diretamente de sessdes terapéuticas regis. Anil jclronicamente, notei uma mudanga de como o “eu” era percebido ploy clientes, no decorrer de suas terapias. Comegou, assim, a emergiy uma toorla desse processo relativa ao autoconceito da pessoa e sua rela¢do0 com a tondéncia para a realizagio. Passei a ver o individuo com problemas como limi pessoa cujo autoconceito se havia estruturado de forma incongruente om desacordo com sua experiéncia global. Vejamos come isso acontcce. A crianga vive num campo fenoménico, Nou espago vital, que inclui tudo que é experimentado por seu organismo, vonscientemente ou nao. (Mesmo quando adultos, somente uma parte de Nossus muitas reagSes sensoriais e viscerais sdo percebidas conscientemente, wu traduzidas em pensamentos e palavras.) Em meio a tudo o que esta acon- tecendo em seu espago vital, a crianga, gradativamente, torna-se atenta a oxperiéncias que ela discrimina como sendo “eu”, Pouco a pouco, forma-se \mna gestalt conceitual organizada e coerente. As percepcdes do “eu” sao a figura e as percepgSes da relagéio desse “eu” com o mundo exterior ¢ com as outras pessoas sfo o fundo. Essas percepgdes de “eu” estdo ligadas a valores, mas alguns desses valores vém de outras pessoas. O amor dispensado pelos pais ou outra pessoa significativa é condicional. Para que seja percebida como digna de valor e para que receba amor, a crianga deve introjetar alguns dos valores dessas pessoas como valores dela mesma, visto que esses valores introjetados se tornam parte do autoconceito, e ndo so parte dos processos normais na ayaliago das experiéncias por parte da crianga, as concepgées resultantes siio rigidas ¢ estaticas — freqiientemente experimentadas como “dever” ou “obrigagao”. Ela tende a anular seus proprios processos de experiéncia quando estes entram em conflito com aquelas concepgdes, Em outras palavras, a pessoa tenta ser o “eu” que as outras pessoas querem que ela seja, om lugar do “eu” que ela é realmente. Por isso, a familia e outras relagdes institucionalizadas em nossa cultura parecem ser responsdveis por algumas areas férteis para o desenvolvimento das “doengas” psicolégicas. O autoconceito, portanto, torna-se uma organizacao de esquemas per- | ceptuais para se ir ao encontro da vida. Ele pode ou nao ser eficiente na sa- tisfagéio das necessidades da pessoa. A pessoa reage 4 sua realidade como ela a percebe e a define, guiada pelo conceito que faz de si mesma. Um indivt- 197 duo pode se ver como forte ou fraco, inteligente ou obtuno, banili vi apenas comum, O modo pelo qual se vé afeta, por sua vez, sun porinjwati (i realidade ¢, em conseqiiéncia, o seu comportamento. Assim, pari a oeluian te confiante e bem sucedido, um exame pode ser visto como uni puri dade de demonstrar o dominio que tem sobre a matéria, Un ontiilante inseguro poderd encarar a mesma experiéncia com terror 6 modo — Wii prova de sua falta de adequagao. Nem toda experiéncia sera consciente, mas é visceralmente capil Avil & afeta 0 comportamento, Nés “sabemos” emocionalmente coisas que (iit sabemos cognitivamente, O estudante que nao se sente confiante padord, it Jugar de experimentar o sentimento de medo, repentinamente sentir dor di cabega e ser incapaz de fazer uma prova. Se seus sentimentos ontiyorit ainda mais distantes ou forem impedidos de assomar a consciéncin, clo poilt 14 “esquecer” 0 exame completamente e deixar de comparecor i wli naquele dia, Todo aspecto da experiéncia 6 manejado da maneira como se relucloni com o eu, Alguns fendmenos sao ignorados e tidos como isentos de sljnlfl cago para o eu. Outros fendmenos sio percebidos conscientemente o ori nizados na estrutura do eu. Alguns parecem mesmo impor-se a apercep yo consciente. Por exemplo, tenho um amigo que adquiriu um automévol estrangeiro relativamente raro, Ele jamais reparara nessa marca de automdvol antes de se tornar o dono de um. Hoje, ele a localiza onde quer que vi — oli, parece saltar para o foco de sua atengao. Ela tem um significado para cle. JA outros fendmenos sao negados ou distorcidos porque ameagam a percep¢ilo organizada do eu — para aceité-los, a pessoa teria de mudar sua idéia do quem cla é. Desde que a gestalt do eu esteja firmemente organizada 0 nenhum material contraditério seja percebido no campo fenoménico, podem existir sentimentos positivos do eu, o eu pode'ser visto como valioso € aceito, e a tensio consciente sera minima. O individuo se percebe funcio- nando adequadamente. Quando a estrutura organizada do eu no tem mais eficiéncia para atender as necessidades do individuo, ou quando este nota em si algumas discrepincias, seu comportamento parece descontrolado. “Eu nao me sinto como eu mesmo”, é uma queixa freqitente. Tomando um exemplo simples: uma mie se vé como mae bondosa e amorosa e, no entanto, a0 mesmo tem- po, tem sentimentos de rejei¢fo para com o filho, Seu autoconceito como mae amorosa é incongruente com sua experiéncia. Ela simplesmente nao estd sendo “ela mesma”, quando se sente rejeitando o filho. Quando ha um alto grau de incongruéncia, a tendéncia para a realiza- ¢Ho passa a ter um papel confuso ou dividido. Por um lado, a tendéncia ap6ia o autoconceito, e o indivfduo luta para intensificar a idéia que tem de si mesmo. Ao mesmo tempo, o organismo se esforga por atender as suas necessidades, que podem ser muito discordantes dos desejos conscientes da essoa, p O que é comumente chamado de comportamento neurético é 0 pro- duto dessa dissociagfo na tendéncia para a realizago. O individuo procura comportar-se de modo coerente com seu autoconceito, Mas o comporta- mento neurdtico — que € o ser total da pessoa tentando satisfazer suas necessidades — é incompreensivel até para o proprio individuo, uma vez que nao esté em harmonia com o que ele conscientemente “quer” fazer — reali- 198 Hii Wii Gi quo nifo mais 6 congruente com sua experiéncia. “Aquilo que cu ilevuilt liver ou gostaria de fazer, nfo fago.” Assim, por exemplo, um hilileaonte com fortes necessidades organicas de uma sexualidade e curiosi- tlate vin dexonvolvimento, foi preso por levantar as saias de duas meninas. 1} wile como foi criado fé-lo negar impulsos sexuais basicos como parte de wit dutuwonceito, ¢ quando foi interrogado a respeito de seu comportamen- (i, lnlutie om que nao podia ter agido daquela maneira. Confrontando com femanmubus, foi taxativo: “Eu nao era eu mesmo.” Nao percebia seu com- JwiHlamento como sendo, como nao era, uma parte do eu. Nob as condigSes certas, o clima terapéutico seguro, a pessoa pode toduzle oxsn incongruéncia, aprendendo a confiar mais na experiéncia do seu 61, No nllo estiver sendo atacada e nfo precisar defender seu autoconceito, a jwnson pode relaxar os rigidos padres que edificam a estrutura de seu eu. Ag “anionhorear-se de seus sentimentos” — assimilando muitas experiéncias iilon Impedidas de acesso 4 apercepcao em sua gestalt do eu — uma nova jwntult sc forma, uma versdo revista do eu. Essa nova estrutura nfo é tao rigi- tli o 6 mais facilmente tratavel, modificando-se com mais freqiiéncia, & inodida que os sentimentos comegam a ser conscientizados, A terapia é uma oxperiéncia do eu, nfo sobre o eu. A compreensio intelectual nao basta, As iudangas do comportamento comegam a aparecer quase automaticamente (quando uma reorganizacdo perceptual é experimentada. A nova gestalt do eu é uma configuragao cambiante, fluida; a experi- éncia da propria pessoa torna-se cada vez mais a base para as auto-avaliagGes, O fecho da terapia (embora nfo o ponto final da mudanga ou do crescimen- (o) inclui a percepg#o do eu mudada radicalmente. Ela é mais fluida, menos r{gida ¢ estatica, 0 eu quase perdido no campo perceptivo do individuo, A pessoa agora funciona sob varios aspectos semelhante a crianga, com exce- giio de que os processos fluidos da experiéncia tém mais objetivo. O indivi- duo adulto, como a crianga, confia na sabedoria de seu organismo inteiro e dela se utiliza, mas de modo consciente. Ele usa todas as suas faculdades, A teoria do eu, como a teoria anterior, descreve adequadamente 0 processo da mudanga terapéutica, tanto quanto possivel, Sua natureza heuristica inspirou muitas pesquisas frutiferas. Também é possivel ver essa descri¢ao acontecendo na terapia. Continuum do Processo Como instanténeos fotogréficos “antes e depois”, a descrigdo da modificagdo do eu foi um dos aspectos da mudanga terapéutica. O que eu queria agora era um filme animado de suas muitas dimensGes. Necesséria era uma descrigfo que sugerisse algo do movimento browniano — os aspectos em constante movimento — dessas gestalts, ¢ maiores detalhes relativos a outros fendmenos associados 4 mudanga terapéutica. Com base no estudo de um grande nimero de entrevistas gravadas, de- senvolvi uma nova perspectiva do processo de mudanga em psicoterapia. Nes- se novo quadro, vejo a mudanga se fazendo num numero variado de proces- sos continuos, Um cliente inicia a terapia em algum ponto de um continuum total do proceso, dividido, por conveniéncia, em sete estagios e muda segundo formas que o levam para o ponto final da escala (Rogers, 19619, 1961b). 199 Enquanto que a terapia € um processo, a escala, a imagem que temos desse processo, é como se constituisse as sete imagens de um filme animado, que captura © movimento nesses pontos. Nenhum cliente, exceto depois de muitos anos, talvez, move-se do estigio um para o estdgio sete, mas a escala é um modo &til de descrever e examinar 0 processo que ocorre na terapia. A escala comega em uma extremidade, descrevendo um tipo de funcionamento psicolégico rigido, estdtico, indiferenciado, sem emogées, superficial. Ela evolui, em passos progressivos, para a outra extremidade, onde ‘o nivel de funcionamento é caracterizado pela mutabilidade, fluidez, reagGes ricamente diferenciadas, pela vivéncia direta de sentimentos pessoais que sfo sentidos profundamente, apropriados e aceitos. Em toda terapia bem sucedida, eu estabeleco a hipdtese de que o comportamento do cliente executa um movimento ascendente nesse caminho, qualquer que seja 0 pon- to onde ele sc encontre inicialmente. Tentando compreender esse-continuum do processo, penso que pode- tia separar algumas linhas mais ou menos distintas, embora essas linhas tendam a convergir, 4 medida que nos aproximamos do topo da escala, Si0 elas: 1, Mudanga em Relagtio a Sentimentos. Na extremidade inferior do continuum, o cliente nao reconhece ou nao possui sentimentos pessoais, Uma cliente de um hospital estadual diz: “Vozes me incomodam todo o tempo, dizendo-me coisas imundas, ¢ nfo posso fazé-las parar.” Ela nfo Teconhece que seus sentimentos esto relacionados a ela. Se 20 menos ela fosse capaz de dizer “Meus sentimentos sexuais me perturbam”, ela estaria num estigio mais avangado do continuum. Mais adiante, ainda na escala, o cliente pode descrever sentimentos como objetos do passado, intelectuali- zando, embora ainda nio possuindo esses sentimentos, Na parte central da escala, onde tem lugar a maior parte da terapia, 0 cliente descreve sentimentos como objetos no presente, As vezes, exprime-os no presente, quando eles sao contrarios aos seus desejos. Tem receio de-que 0s sentimentos possam ser experimentados no presente imediato, “HA esse né — em algum lugar dentro de mim — ele faz-me querer enlouquecer — e gritar —e fugir”. Mais acima na escala, podem ocorrer afirmages como esta: “Parece que tenho uma espécie de — no sei — um sentimento de forca, e contudo tenho a sensago ou a certeza de que tudo é tio cheio de medo.” Essa cliente esté exprimindo seus sentimentos daquele momento, vivendo-os, sen- tindo-os, diferenciando-os e os possuindo, ao mesmo tempo que os exprime. (Sua afirmagao sera citada num contexto mais amplo, numa das paginas seguintes). 2. Mudanga no Modo de Vivenciar. O processo pode ser formulado de forma diferente — com referéncia a0 modo de vivenciar do cliente — um conceito extensamente desenvolvido por Gendlin (1961, 1962, 1963). O cliente passa a viver sua experiéncia, confiar nela, e us4-la como re- feréncia para guid-lo em seu confronto com a vida, Ele ndo mais se caracteri- za pelo distanciamento de sua experiéncia, nem descobre seu significado somente depois de ter-se tornado passado remoto, Tipico de um ponto inferior na escala é 0 cliente que, tentando descrever um problema que 0 levou 4 terapia, diz, “O sintoma era — era so- mente estar muito deprimido.” Por um lado, evidentertiente, ele experimen- 200 tava profunda depressdo, porém o mais que ele consegue alcancar em sua experiéncia é conceitud-la no passado — afastando-a de si mesmo, Ele nio estava deprimido. A depressdo era simplesmente um sintoma que existiu. Ele estd tio distante da vivéncia imediata-daquilo que estd se passando nele, que nao tem consciéncia, dessa vivéncia, A medida que os clientes caminham em sua terapia, eles se aproximam de sua propria vivéncia, Tornam-se menos receiosos das vivéncias, reconhe- cendo que estas podem ter valor como pontos de referéncia, como base pa- ta a descoberta de significados. Assim, um clicnte diz, com relacao a algo que esta se passando dentro dele: “Na realidade, nao estou sentindo, s6 estou descrevendo,” Ele sabe que ndo est inteiramente na experiéncia, mas gostaria de estar. Num ponto ainda mais avangado do continuum, 0s significados (ou sentimentos) pessoais que foram afastados da consciéncia, est&o muito pré- ximos de serem completamente experimentados — as vezes com medo, des- confianga ou surpresa. “Isso apareceu e nfo posso compreendé-lo! (Longa pausa.) Estou tentando saber o que é esse terror.” Essa ultima afirmagio i dica uma nova dimensfo — 0 reconhecimento da experiéncia imediata como um ponto de referéncia, O cliente sabe que experimentou algo, mas no est certo do que seja. Aos poucos comega a perceber que esté havendo um acon- tecimento fundamental, real, pelo qual pode avaliar a precis¥o de suas palavras e percepgdes, Ha nele alguma coisa que ele pode “‘agarrar” O cliente deseja nao sé possuir seus proprios sentimentos, mas ser seu “eu real”, Ele cada vez mais reconhece e¢ enfrenta as disparidades entre 0 eu, como construfdo, e sua experiéncia real. Muitas vezes, ocorre um did- logo interno, nestes termos: “Minha mente me diz que cu sou assim, ou que sinto isso, mas ew nao acredito, Talvez o aspecto mais chamativo da extremidade superior dessa linha é a vivéncia total ¢ aceita, no presente imediato, dos sentimentos que anterior- mente nao eram admitidos 4 consciéncia, Muitas vezes, ele € “golpeado” por essa experiéncia, Freqiientemente suspirard ou chorard, rel d sous mus- culos ou dard outras manifestagOes fisicas. Essas vividas experi Is, a0 SC. tornarem novos elementos do eu, acompanhadas por esses aspectos fisiold- gicos, sao fendmenos de mudanga provavelmente irreversivel, O nte po- de, mais de uma vez, rechacé-los da consciéncia, mas é duvidoso que pos sa manté-los fora da consciéncia por muito tempo. Ele esti mudado, est em processo e nfo pode voltar. A estrutura de seu mundo se firma e é re- * conhecida como algo que ele construiu a sua qualidade de tentativa agora se Ihe torna clara. Ele estd em aberta comunicagdo consigo mesmo, compar- tilhando com outra pessoa sua nova natureza fluida, Apés uma vivéncia desse tema “Nao posso depender de outra pessoa para educar-me, Tenho realmente de consegui-lo por mim mesmo”, uma cliente apresenta alguns sintomas de medo e longas pausas em sua conversa. Entio diz: “Parece mesmo que estou dizendo algo que é uma parte de mim, realmente. (Com muita perplexidade.) Parece que tenho uma espécie — nfio sei — uma sensagiio de forga, e mesmo assim tenho a sensagdo de compreen- der que é algo que me causa medo — me causa pavor. Por exemplo, estou sentindo isso, agora dentro de mim uma coisa se avolumando — uma espécie de forca. Como se fosse algo realmente grande ¢ forte. Contudo, a principio “era quase uma sensacio fisica de estar s6, como se tivesse sido arrancada — 201 de um suporte no qual vinha me apoiando... Talvez seja um distarbio de uma espécie de padrao, penso... (Pausa e, logo a seguir, cuidadosamente, Mas com convic¢do.) Penso — nfo sei, mas tenho a sensagao de que agora vou comecar a fazer mais coisas que sei que deveria fazer... Posso ver-me dando mais de mim mesma em certos aspectos,” Aqui a vivida experiéncia de independéncia — sua forca espléndida, seu prego terrivel — destruiram (talvez permanentemente) suas concepgdes confortaveis de ser dependente e pdr a culpa em outras pessoas, A cliente de boa vontade, esta se situando em sua experiéncia. Reconhece que, se pu- der simbolizar 0 que estd se passando com ela nesse momento, essa simboli- zaco ter um significado, se. sir como um guia Util. Como disse um outro cliente: ““Vocé deve mesmo deixar que sua experiéncia the fale sobre seu proprio significado; no momento em que vocé mesmo diz o que significa, vocé estar em guerra consigo mesmo.” Essa é a espécie de reagdo caracteris tica de alguém que subiu muito em diregdo extremidade superior da escala. 3. Mudanga nas Concepgées Pessoais. Uma outra tendéncia do conti- nuum do proceso é uma mudanga na maneira como o cliente constréi sua experiéncia. Na extremidade inferior, suas concepgdes pessoais sobre si mesmo e sobre seu mundo sao rigidas, tidas como fatos, e nio como concep- ges. Assim um cliente diz: “Zamais poderei fazer algo corretamente — ja- mais poderei terminar isso.” Essa parece ser uma descrigiio do fato — o modo como as coisas so, definitivamente. No clima seguro da terapia, ele pode comegar a questionar essa concepgao estatica, No centro da escala do processo, a experiéncia 6 construida menos rigidamente, e mesmo a validade de tais estfuturas comega a ser posta em. divida. Ap6s uma conversa bem humorada, um cliente diz suave e triste- mente: “O humor tem sido minha protegdo, durante toda minha vida; talvez esteja um pouco deslocado ao tentar olhar para mim mesmo. Uma cortina para fechar. ( Pausa.) Sinto-me como se estivesse perdido agora. Onde estava eu? O que estava dizendo?” Ele divisou corretamente a concep- ¢Zo que escorava sua vida... A confusao resultante é evidente. Facilmente se compreende que, nessa fase, os clientes se sentem como se suas amarras — fossem cortadas. Na extremidade superior do continuum, a experiéncia se apresenta ainda apenas como concepgio proviséria, As concepgdes com os quais 0 individuo vinha guiando sua vida dissolvem-se na experiéncia imediata. Construir passa a ser reconhecido como algo que a pessoa faz, e nao como a qualidade inerente a situagdo, Concepgées so tdo facilmente formadas como a seguir postas de lado. O significado é algo atribufdo a uma experién- cia, nao é inevitavelmente ligado ao processo de experimentar, 4, Mudanga na Comunicagio do Eu. Na extremidade inferior dessa linha, assinalo que ha uma forte reluténcia em se comunicar. Os clientes, com freqiiéncia, fazem afirmagdes como essa: “Bem, vou lhe dizer uma coisa, sempre parece um pouquinho sem sentido falar sobre si mesmo, exce- to quando ha uma necessidade extrema,” A comunicacdo, nesse nivel, é so-, mente sobre coisas exteriores é sobre assuntos exteriores ao cu, Gradativamente, o cliente aprende que é seguro e mesmo 'satisfatério falar sobre si mesmo. Hi uma expressdo mais livre sobre 0 eu e as experién- cias do eu como objeto. Ele aprende, entao a possuir e exprimir seus pré- prios sentimentos, Um exemplo de quem superou a parte central do conti- 202 nuum; “A verdade real do caso é que eu nao sou aquele sujeito agradavel paciente que tento aparentar. Fico irritado com as coisas. Sinto-me como se estivesse agredindo as pessoas, sinto que, as vezes, sou egoista e nfo sei por que haveria de fingir que ndo sou assim.” Na extremidade superior, ndo existe mais qualquer apercep¢do espe- cial do eu como objeto. O eu é 4 vivéncia, 0 processo em curso, mudando a cada momento, O individuo perde a consciéncia do eu. O eu perde-se no campo perceptual. Ele encontra satisfacao em ser ¢ em exprimir a comple- xidade de scus sentimentos do momento, Ele esta mais proximo de seu ser organico, visceral, que esta sempre em processo. Ele esti muito mais consci- ente de si proprio, e comega a sentir que os eu que ele mostra pode ser con- frontado, para verificagdo acurada, com o fluir dos seus processos organicos internos. 5, Mudanga em Relagdo a Problemas. Na extremidade inferior dessa linha do continuum, o cliente nado reconhece problemas, ou os percebe como inteiramenre exteriores a ele. Um paciente de um hospital estadual diz: ‘“Durmo demais. Tenho um sério problema dentério e um ou outro problema parecido.” Ele nio est4 consciente do problema que impede seu pleno funcionamento, e nem se sente envolvido neste problema, A medida que 0 cliente se descontrai na terapia, ele reconhece melhor seus problemas e fica mais responsavel por seu eu em relagao a eles. O clien- te torna-se, cada vez mais capaz de enfrentar o fato de que o que lhe causa mais ‘tensées sio problemas de sentimentos em relagdo a outras pessoas. Hi um crescente desejo, por parte do cliente, de examinar as intimas reagdes que podem estar criando essas dificuldades. Ele aprende a viver esses proble- mas de sentimentos no relacionamento com o terapeuta ¢, a0 acciti-los, passa a uutilizi-los mais construtivamente. 6. Mudanca nas Relagdes Interpessoais. Finalmente, hé uma linha referente ao relacionamento com os outros, Na extremidade inferior do con- tinuum a pessoa receia 0 contato pessoal intimo e evita-o, usando varios artificios, inclusive a intelectualizagHo. Ele faz perguntas ao terapeuta. De- seja desempenhar o papel apropriado, ser um bom cliente. Evita entrar, como pessoa, no mundo perigoso e desconhecido do relacionamento. Gra- dativamente, aprende que é seguro arriscar-se numa base de sentimentos. Assim, 0 cliente atreve-se a dizer ao seu terapeuta: “Pois muito bem, eu ndo confio em vocé.” Cada vez mais. atreve-se a viver abertamente, na relacao terapéutica, com um fluxo de sentimentos sempre mutante, embora in- tegrado, Consegue exprimir livremente seu sentimento em relagdo ao tera- peuta. Vé que 6 capaz de viver cm relacionamento baseado em seus senti- mentos, 7. Extremidade Superior do Continuum. Na extremidade superior da escala, essas linhas tendem a convergir, tornando-se uma s6, O sétimo estagio, ou estdgio final, ¢ mais uma tendéncia ou objetivo do que algo que é plenamente alcangado, £ uma descrigdo da “pessoa em pleno funcionamen- ; to.” (Rogers, 1961a, Capitulo 9). Nesse nivel, a pessoa nio mais receia experimentar sentimentos de forma direta e com todos os detalhes. Isso ocorre tanto em relacionamentos externos, quanto na terapia, Esse fluxo de experiéncia no momento consti- tui um dado referencial pelo qual o indiv{duo é capaz de saber quem ele é, © que quer e quais sio suas atitudes, tanto positivas quanto negativas. 203 Ele se aceita e confia em seu préprio processo global, que é mais sibio que a mente sozinha (ou o corpo sozinho). Cada experiéncia determina seu proprio significado e nao é interpretada como uma concepgao do passado. Seu _eu é a consciéncia subjetiva‘do que ele esti experimentando no momen- to. Ele se tornou congruente, sua experiéncia casa com os simbolos que ele atribui_a ela, em sua consciéncia, e é capaz de comunicar essa unidade. Essa é, portanto, uma breve descrigao do continuum do processo, que surgiu de observagdes de clientes que vivenciaram 0 que significava mudar da fixidez para a fluidez. E um relato de transformagées que tanto podem ser observadas como experimentadas, 4 medida que uma pessoa se encaminha para sua maturidade psicolégica, numa relagao abrangente e terapéutica, CLIMA TERAPRUTICO: 0 PROCESSO NO TERAPEUTA Quais séio, entfo, as condigdes para esse clima terapéutico? Como pode o terapeuta facilitar do melhor modo possivel 0 movimento no conti- nuum do processo? A pesquisa da terapia centrada no cliente parece sugerir que a mudan. _ga da personalidade — ‘movimento positivo na escala do processo — é inicia- ..da mais por aditudes existentes no terapeuta do que por seus conhecimehtos, suas técnicas (Rioch, 1960; Truax & Mitchell, 1971). Esse € o teorema central da terapia centrada no cliente e est4 formal- mente enunciado numa “equacao do processo” (Rogers, 1961b, p. 40): Quanto mais 0 cliente percebe o terapeuta como genuino ou real, Capaz de empatia, possuidor de uma ligacdo incondicional com ele, mais 0 cliente sairé de um tipo de funcionamento estatico, sem sentimentos, fixo, impessoal e mais ele atingira uma forma de “funcionamento que é caracterizado pela vivéncia fluida, cambianto ¢ facilitadora de sentimentos pessoais diferenciados. Varios estudos de pesquisas foram feitos a respeito do relacionamento das atitudes do terapeuta com a eficdcia da terapia. Halkides (1958) usou observadores objetivos para ouvirem entrevistas terapéuticas gravadas, com 0 objetivo de testar essas “condicdes necessdrias e suficientes” (Rogers, 1957) para a mudanga terapéutica, Seus estudos servem de suporte para a hip6low acima, Barret-Lennard (1959), usando um relat6rio feito 4 base de anotagdot com clientes de um centro de aconselhamento, verificou que essas mesinitt trés atitudes, por parte do terapeuta, indicavam possibilidade de éxito nw terapia. Van der Veen (1970) observou que os clientes esquizofrénicos hosp! talizados, cujos terapeutas eram vistos com profissionais que proporclona vam em maior intensidade essas trés condigGes na entrevista terapdutlii, Mostraram um maior movimento no processo da terapia do que os cllonten de terapeutas que proporcionavam condigdes inferiores, Esse autor coneltit que o grau de progresso obtido na terapia era uma fungo das condigOon da terapeuta, tanto percebidas como reais, Truax ¢ Mitchell (1971), apés estudarem as provas contin eit) material publicado, relacionadas com a eficidcia da psicoterapia, conelioi que, embora, em média 0 esforco de tratar seja bastante ineficaz, 01 lat Apo tas que possuem as trés atitudes caracteristicas mencionadas anterlormeily, 204 so eficazes, Esses autores afirmam que um estudo de quatro anos da psico- terapia feita com dezesseis clientes esquizofrénicos hospitalizados, na Uni- versidade de Wisconsin, indicou o seguinte: os pacientes cujos terapeutas ofereceram niveis mais elevados de afeigoamento ndo-possessivo, genuino, assim como de correta compreensio.empatica, mostraram modificagdes positivas e significativas na personalidade e no comportamento; jé os pacien- tes cujos terapeutas mostravam essas caracteristicas em um grau relativa- mente menor apresentaram, durante a terapia, deterioragdo da personalidade e da conduta. Truax e Mitchell também conclufram que uma extensa gama de terapeutas, nao importando sua formagfo ou orientagao tebrica, traba- Jhando como uma ampla variedade de clientes, incluindo estudantes com problemas de aprendizado, delingiientes juvenis, esquizofrénicos hospitaliza- dos, estudantes sob aconselhamento psicolégico, pacientes externos neurdti- cos, ¢ uma série de clientes hospitalizados, so eficazes quando possuidores de uma empatia correta, de um interesse caloroso, ndo-possessivo e genuino, Isso parece aplicar-se também a uma gama variada de contextos terapéuti- cos, inclusive terapias individuais e de grupo, Pensa-se que essas atitudes, quando comunicadas ao paciente (verbal ou nio-verbalmente, mas ndo explicadas) e percebidas por este, constituem os fatores causais decisivos do progresso terapéutico e de mudangas construti- vas na personalidade. Devido a importancia das atitudes do terapeuta na eficiéncia da psico- lorapia, apresentarei com detalhes cada uma dessas caracteristicas, Genuinidade ou Congruéncia — Autenticidade 1 muito provavel que uma terapia eficiente possa realizar-se quando, it relagdio com meu cliente, eu sou quem eu sou, sem artificios, sem estar na dofensiva, Isto significa que aquilo. que estou sentindo no momento, em ivel vivencial ou visceral, est4 claramente presente na minha consciéncia e ult disponivel para comunicagio direta com meu cliente, quando for wonveniente, Ndo somente tenho acesso aos meus sentimentos e experién- (ins, mas sou capaz de viver e ser esses sentimentos no relacionamento, Es- lon ompenhado num confronto pessoal direto com meu cliente, encontra- ‘lomo com ele numa base pessoa-a-pessoa. Eu estou serndo eu mesmo, nio eatou negando a mim mesmo, Obviamente nio é facil, nem sempre é possf- vol, Kor tio transparentemente real. \sta énfase na autenticidade, profundamente contrdria ds primeiras lillian sobre o relacionamento terapéutico, 4s vezes envolve afirmagdes amin; “Esta manhd, nZo estou conseguindo ouvir com muita atencdo tudo #6 voce ost4 dizendo, porque alguns problemas ndo me saem da cabega, im- jwdindome de me concentrar.” “Tenho medo de vocé neste momento — iia do que vocé poderia fazer comigo,” “Sinto-me desconfortavel com o {we vood mo disse agora.” Em cada exemplo, eu estaria exprimindo-um— snuillinonto oxistente dentro de mim, no um fato, ou suposto fato, ou julga- Ht roxpeito de meu cliente, Dizer “Estou aborrecido neste momento. Ujetli nfo mo sentir assim, mas me sinto.” Nao significa julgar que o meu tleile ¢ um individue magante. Somente adiciona ao relacionamento \ sis ilulon haicos dos meus proprios sentimentos. A medida que comparti- IH) Bate Uhorreclmento e essa sensagao de afastamento com relacao a ele, 205- mous sontimontos mudam, Eu, certamente, nfo egtou me sontindo abaieet do, quando tento me comunicar dessa forma. Provavelmento ontai, (i yet dado, sonsivelmente interessado em ouvir a resposta de mou cliente, Quail 6 rostabelecido o contato com ele, minha comprcensio empiitica novaniente comega a ser cxperimentada, Ser real é reduzir as barrciras no reluelonanil to, Meu cliente agora provavelmente pode falar de modo mals adaquutli, _pOrque_ousei ser verdadeiro com ele. Com isso se forma uma relagie pow a-pessoa, agora ganu(na, entre dois seres humanos imperfeito: Esse conceito esta sujeito a possiveis equivocos. Ser real cortamonti nao significa que eu deva sobrecarregar meu cliente com todos os moun pid _blemas ou atitudes. Nao significa que eu externe impulsivamonto «alain! sentimentos que eu experimente. Significa, entretanto, que cu nio noyue perante mim mesmo-ossentimentos que cu estiver experimentando, 0 ninth Ga que quero ser c exprimir quaisquer sentimentos persistentes que ou lonliti aTespeito do relacionamento. Significa que eu nado me escondo por tin du uma mascara de profissionalismo. O que eu disser ao meu paciente niio dove 14 contradizer 0 que eu estiver sentindo com rela¢do a ele. Nao uso frason In vénitadas ou esteriotipadas nem mancirismos profissionais com meu cllonto, Minha postura sem defesas, minha autenticidade, é essencial para estaboloat _@ manter vivo um relacionamento confiante, — Ser genufno tem varios efeitos sobre a relacHo terapéutica. Ajuda-mo 0 me guiar em minhas respostas ou interveng6es. (A esse respeito é bom ter om mente a afirmagao de Gendlin [1970] de que “responder” pode signifiow “compreender” ou “apontar para” ou mesmo “querer saber a respcito.") Noto que meu cliente, com freqiiéncia, sente alfvio quando eu respondo exatamente ao seu “significado sentido”. Quando pode noniear ou identif\ car a experiéncia visceral que esta acontecendo dentro dele, o pacicnte tom uma sensaco fisica de alfvio. Assim, quando experimento o sentido de sou proximo movimento, de estar mais intimamente em contato com sua pré- pria experiéncia, sei que estou no caminho certo. Para mim, é importante ajudar meu cliente a aprofundar seu processo vivencial (Hart, 1970) — permitindo-lhe reconhecer, aceitar e possuir scu sentimentos e dar a estes o significado que, para ele, cliente, é real. Dessa forma, minhas respostas, se eficazes, ajudam-no a medida que ele, em scu processo vivencial, tenta sair de seus problemas. Sua luta no sentido de por em execugio sua busca dos significados sentidos é a propria Iuta 4 qual quero dar ajuda mediante minhas respostas. Acho que é tao natural quan- to jitil, nesse processo, compartilhar meus sentimentos, dar respostas a perguntas, se esse for meu dleseio verdadeiro, referir pensamentos intri- gantes ou fantasias sobre meu cliente ou sobre nosso relacionamento, se persistirem. Se minhas respostas nfo trouxeram nenhuma mudanga ou movimento — nao tiverem nenhuma significacdo para a luta de meu cleinte — rapida- mente me voltarei para seu fluxo de experiéncias. Se, por exemplo, eu faco um comentario referente 4 forma como ougo 0 que ele diz, ou se avango um pouco além das fronteiras de sua consciéncia e ele diz algo como “Sim, parece que é isso que devo estar fazendo”, eu posso corrigir minha desaten- Gao, dizendo, por exemplo, “Parece correto, mas na@o se enquadra muito com seus sentimentos, Agora mesmo vocé disse...” trazendo-o de volta a0 seu fluxo de sentimentos... de suas experiéncias. O processo 6 como resolver 206

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