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DOSSIE / DOSSIER Formacao de professores: a constituigao de um campo de estudos Teacher education: the establishment of a field of studies MARLIANDRE* + RESUMO ~ 0 texto analisa 0 processo de constituigio do campo de formagto de professores, com base tem cinco critéios propostos por Garcia (1999): existéncia de objeto priprio, metodologia espectfica, uma comunidade de cientstas que define um eédigo de comunicagao proprio, integragao dos paricipantes no desenvolvimento da pesquisa ¢ teconhecimento da formagao de professores como um elemento fundamental ‘na qualidade da agio educativa, por parte dos administradores, politicos e pesquisadores. Apoiado em pesquisas da area, assim como em virias iniciativas da comunidade cientifca, 0 texto conelui que houve muitos avancos, 1nos iltimos dez anos, no sentido da constituigdo de um campo auténome de estudos ¢ aponta alguns caminhos para fortalecer a rea. Deseritores ~ formacio docente; campo de estudos; pesquisa sobre formagio de professores ABSTRACT ~ The paper examines the process of establishing the field of teacher education, based on. five criteria proposed by Garcia (1999): the existence of an abject; particular methodology; a community of scientists that sets a code of communication; involvement of teachers in the rescarch development; and acknowledgment by administrators, politicians and researchers that teacher education is a key clement in the quality of education. Based on research data, as well as on the many activities ofthe scientific community, the paper concludes that there have been many improvements inthe last ten years towards the establishment of an ‘autonomous field of studies and points out some steps to strengthen the area Keywords — teacher education; field of studies; research about teacher education fazer essa afirmagao, mas podemos dizer que no Brasil no foi diferente. Numa mesa redonda que analisou a produgio cien- tifica de 10 Encontros de Didética e Pritica de Ensino InTRODUCAO Pode-se dizer que a formacio de professores constitui uum campo autonomo de estudos? Com o crescente interesse dos pesquisadores pelas questies relacionadas & formasao © ao trabalho docente, interesse esse que sc expressa no aumento da produgao cientifica sobre 0 tema, na visibilidade adquirida pels tematica na midia, pelo recente surgimento de eventos ¢ publicagdes especificamente dedicadas as questdes de formagao docente, toma-se cada vez mais premente uma discussio sobre como vem se configurando esse campo de estudos. Para Carlos Marcelo Garcia (1999), até os anos 1990, a producSo cientifica sobre formago docente estava inchuida no campo da Didética O autor toma certamente como referéncia 0 seu pais de origem, a Espanha, para (X ENDIPE), Oliveira (2000) nos fez um alerta de que ‘© campo da Didética vinha sendo progressivamente invadido por estudos sobre a problemitica da formagao de professores. No mesmo evento, Soares (2000) identificou a formagio de professores como uma drea em constituigao centro do campo pedagégico, distinguindo-se da Diditica, a Pratica de Ensino e do Curriculo. Pela falta de espago especifico, a produgio cientifica sobre formagao docente ficou aninhada, por um certo periodo de tempo, no campo da Diditica. Pouco a pouco, porém, essa produce foi crescendo ¢ tomando vida propria, Nas palavras de Marcelo (1999, p.24) a formagio + Professor pesquisadora do Programa de Pés-Graduagdo em Educa: Pecologia da Educag, da Pontificia Universidade Catdica de Sto Palo emails Arig recehido cm abr eaprovade em junk de 2010 Educagdo, Porto Alegre, v.34 n. 3, p.174-181,set/dez, 2010 Formagio de professores de professores foi se “apresentando progressivamente como uma potente matriz disciplinar”. De fato, aumentou muito, nos iltimos dez anos, 0 niimero de estudos © pesquisas sobre o tema (ANDRE, 2010) e tomaram-se mais frequentes as discusses sobre © professor, seja nos eventos cientificos, seja na grande midia, Ao lado disso, periédicos ciemtificos tém dedicado -mimeros especiais ou segdes inteiras ao tema da formagio docente (Ver, por exemplo: Cadernos de Pesquisa n, 124, de 2005; Revista Edueacao e Sociedade n, 99, de 2007). Com esse visivel crescimento, ja se faz possivel uma anilise do percurso desses estudos, Logo de inicio uma pergunta se impie: pode-se dizer que a formagio de professores constitu um campo de estudes? Ou, nas palavras de Marcelo, vem progressivamente se delineando como um campo? ara tentar responder essas questbes, busco mais uma ‘vez apoio em Carlos Mareclo (1999, p.24-26), que propde cinco indicadores para atestar a delimitagao do campo de formagio de professores: existéncia de objeto priprio, uso de metodologia especifica, uma comunidade de cientistas, que define um cédigo de comunicagao proprio, integragao dos participantes no desenvolvimento da pesquisa & reconhecimento da formaco de professores como um elemento fundamental na qualidade da acdo educativa, por parte dos administradores, politicos e pesquisadores. Examinemos cada um desses indicadores, tendo como base 0 cenério da educagdo brasileira, FoRMACKO DOCENTE: QUAL £ SEU OBETO? ‘Ter um objeto proprio é, sem divida, um importante critério para delimiter uma area de estudo. Podemos identificar tanto nos escritos de varios estudiosos da temética, quanto em encontros cientificos, em especial has reunides anuais do Grupo de Trabalho Formagio de Professores, da ANPEd (Associagio Nacional de Pesquisa, © Pos-graduagio em Educagio), esforgos reiterados para clarificar 0 que constitui realmente o objeto da formagio a (MIZUKAML et al, 2002). J Imbernén (2002) concebe a formagio docente como um proceso continuo de desenvolvimento profissional, que tem inicio na experiéncia escolar e prossegue ao longo da vida, vai além dos momentos especiais de aperfeicoamento e abrange questées relativas a saldrio, carrcira clima de trabalho, estruturas, niveis de participagio e de decisto, 175 Essa definigdo, bastante abrangente, tem sido aceita por muitos estudiosos da area, que consideram de grande importancia a atengdo nos processos de preparagao, profissionalizagaio e socializagao dos professores, tendo em vista a aprendizagem do aluno, Em anos bem recentes, alguns autores como Novoa (2008), Imbernén (2009) e Marcelo (2009) vém centrando suas discussdes no conceito de desenvolvimento profissional docente (em substituigio ao de formagio inicial ¢ continuada). A preferéncia pelo seu uso é justificada por Marcelo (2009, p. 9) porque marca mais claramente a i do ensino € porqu Essas ponderagSes parecem muito justas e convin- ccentes para que passemos a considerar o desenvolvimento profissional como objeto da formacao. No entanto, precisamos estar atentos a0 fato de que esse conceito é muito abrangente, © que pode levar a uma diluigdo do objeto, Ha um risco de fomentar a dispersio dos estudos, em lugar de delimiti-los. Dai a necessidade de clarearmos ‘muito bem o conceito, “Marcelo Garcia (2009, p.7) nos explica que oconceito sofreu modificagdes na tiltima década, em decorréncia a evolugdo em nosso entendimento de como ocorrem (0s processos de aprender a ensinar. Dessa forma, 0 desenvolvimento profissional passa a ser considerado, segundo ele, como “um processo a longo prazo, no qual se integram diferentes tipos de oportunidades © experiéncias planificadas sistematicamente para promover ‘ crescimento e 0 desenvolvimento profissional”. Nesta atualizagdo do conceito fica mais claro o eariter intencional envolvido nos processos de desenvolvimento profissional e a importincia do planejamento. Marcelo Garcia (2009, p.15) salienta ainda que esses processos visam a promover a mudanca. Ao recorret a um processo| intencional ¢ planejado de atividades ¢ experiéncias que possam promover desenvolvimento profissional dos docentes, objetiva-se atingir a qualidade do ensino , em iiltima (ou primeira) instancia, a qualidade da aprendizagem dos alunos. Marcelo Garcia (2009, p.7) nos lembra ainda que nesses processos de desenvolvimento profissional deve-se dar grande atengio as representagdes,crengas, preconceitos dos docentes porque vio afetar sua aprendizagem da Educagdo, Porto Alegre, v.34 n. 3, p.174-181,set/dez, 2010 176 docéncia e possibilitar ou dificultar as mudangas. Torna- se, pois, necessario, fazer vir a tona essas representagdes analisé-las criticamente, junto com os professores, para poder encontrar formas de transformé-las na diregio desejada como as ensinam, as experiéncias passadas, assim como a propria vulnerabilidade profissional”. proceso de constituigio da identidade profissional deve ser, portanto, um dos componentes da proposta curricular que dara origem aos cursos, atividades, experigncias de desenvolvimento profissional dos docentes. (© que podemos concluir das leituras dos autores mais recentes é que a formago docente tem que ser pensada como um aprendizado profissional ao longo da vida, 0 que implica envolvimento dos professores em processos intencionais e planejados, que possibilitem mudangas em. diregdio a uma pritica efetiva em sala de aula, ‘Além de ouvir 0 que dizem os estudiosos da rea, cabe examinar como esse objeto vem sendo tratado nas pesquisas. Como a maior parte da pesquisa brasileira é produzida no ambito dos programas de pés-graduagao, tomou-se a produgao académica dos pos-graduandos da area de educagio como um recorte representativo da pesquisa na érea, Os dados aqui discutidos so baseados numa metandlise das dissertagées © teses defendidas na area de Edueagio, no ano de 2007, usando-se ainda para fins de comparagio dados de metandlise anterior (ANDRE, 2009), ‘Um exame geral das pesquisas da area de Educagao mostra 0 crescimento dos programas de pés-graduagio © das pesquisas nos tltimos anos. Em 2003 havia 58 programas de pos-graduagao em Edueagio no Brasil, em 2007 eram 73, havendo um correspondente aumento no niiimero de dissertagdes e teses defendidas no periodo: 2104, em 2003, ¢ 2810, em 2007, © aumento no volume de trabalhos cientificos foi acompanhado por um aumento muito grande do interesse dos ps-graduandos pelo tema da formagao de professores, Nos anos 1990, 0 percentual dos trabalhos da area de Educagio que tratavam do tema da formagao docente girava em tomo de 6-7%. No inicio dos anos 2000, esse percentual cresce sistematicamente, atingindo 22%, em 2007, 0 que mostra uma ascensio muito ri ‘A mudanga nao foi, porém, apenas no volume de pesquisas sobre formacdo docemte, mas também nos Marli André “objetos de estudo, Nos anos 1990, a grande maioria das pesquisas centrava-se nos cursos de formacao inicial: licenciatura, Pedagogia e Escola Normal (76% das pesquisas). Nos anos 2000 a temética priorizada passou a ser identidade e profissionalizagio docente. O foco agora € 0 professor, suas opinides, representagdes, saberes € priticas, chegando a 53% do total dos estudos sobre formagio docente, em 2007. (Os estudos mais recentes dos ps-graduandos revelam uma intengio de dar voz ao professor e de conhecer ‘melhor o seu fazer docente. Pode-se, no entanto, indagar: investigar as opiniGes, representagGes, saberes e priticas do professor, para qué? Para constatar o que eles pensam, dizem, sentem, fazem? Nio seria isso muito pouco? Parece importante ir muito além, procurar entender o contexto de producao desses depoimentos e priticas. Queremos conhecer mais ¢ melhor os professores ¢ seu trabalho docente porque temos a intengao de eleigao desse objeto de estudo — professor — por parte da maioria dos pesquisadores poderia ser associada, 4 primeira vista, ao conceito de desenvolvimento profissional, entendido “como um processo individual e coletivo que se deve concretizar no local de trabalho do docente: a escola; e que contribui para o desenvolvimento ddessuas competéncias profissionais, através de experiéncias de indole diferente, tanto formais como informais” (Marcelo, 2009). Uma definigao tao ampla e abrangente pode levar a uma interpretagio de que falar do professor é falar de seu desenvolvimento profissional. Mas & preciso certo cuidado antes de qualquer conclusio precipitada. Investigar 0 que pensa, sente e fazo professor é muito importante, mas é preciso prosseguir nessa investigacio, para relacionar essas opinides e sentimentos aos seus processos de aprendizagem da docéncia ¢ seus efeitos na sala de aula, Nao basta fixar-se em apenas uma das pontas do proceso — fixar-se nas representagdes, saberes e priticas do professor — deixando de articulé-los aos contextos em que surgiram, as circunstancias em que foram produzidas e as medidas a serem tomadas para promover a aprendizagem da docéncia. Pode-se concluir que 0 que as pesquisas revelam sobre © objeto da formagio de professores é um conhecimen- to parcelado, incompleto. Nao tratam realmente do Educagdo, Porto Alegre, v.34 n. 3, p.174-181,set/dez, 2010 Formagio de professores desenvolvimento profissional como um proceso de aptendizagem da docéncia ao longo da vida. ‘As pesquisas precisam ajudar a fortalecer 0 campo, redirecionando 0 objeto na mesma diregio em que sugere Zeichner (2009) quando analisa as pesquisas norteamericanas sobre formagao de professores. O autor argumenta que, para fortalecer a investigagao sobre formagio docente, € preciso que as pesquisas focalizem mais as conexdes entre caracteristicas dos professores, formagao, aprendizagem e pratica docente (p.19).. ‘Da mesma forma, no Brasil, é preciso incrementar as pesquisas que articulem as concepgdes do professor, 20s processos de aprendizagem da docéncia e a suas priticas de ensino, Hi ainda um apontamento geral que se deve fazer a respeito do objeto privilegiado pelos pesquisadores brasileiros sobre formagio de professores: a0 mudarem radicalmente 0 foco ~ dos cursos de formacao, para 0 professor podem vira reforgar uma visdo da midia, com amplo apoio popular, de que o professor & o principal (talvez 0 tinico) responsivel pelo sucesso/fracasso da educagio. Nao ha ditvida que o professor tem um papel fundamental na educagio escolar, mas hi outros elementos igualmente importantes, como a atuagio dos gestores escolares, as formas de organizagio do trabalho na escola, o clima institucional, os recursos fisicos ¢ materiais disponiveis, a participagdo dos pais, as politicas educativas. A pesquisa deve ajudar a superar as crengas © a visio do senso comum, no pode submeter-se a eles, Outro apontamento importante a fazer 6 que tal concentragdo na temitica do professor desviou a atencio dos pesquisadores dos cursos de formacao inicial. Desde 0 inicio dos anos 2000 vem caindo radicalmente o mimero de estudos sobre formacao inicial, chegando a 18% do total das pesquisas em 2007. Esse fato causa muita preocupagao porque ainda ha muito a conhecer sobre como preparar os docentes para enfrentar os desafios da educagio no século XI. METODOLOGIAS DOS ESTUDOS Outro indicador de delimitagdo de um campo de estudos € 0 emprego de metodologias préprias. Nos anos mais recentes, cocrente com as investigagdes que tém como foco as representagdes, saberes © priticas do professor, encontra-se um nimero significativo de trabalhos cientificos que se basciam em coleta de depoimentos escritos e orais e historias de vida, Também, cresceu muito, nos iltimos anos, o nimero de pesquisas colaborativas e de pesquisas-agio. Essas metodologias, além de sinalizar altemativas muito promissoras para a investigago na area, indicam 7 caminhos proprios, 0 que € um elemento positive na cconfiguragao do campo, conforme os critérios de Marcelo Garcia (1999) HG, entretanto, alguns alertas. Na anélise das pesquisas, dos pos-graduandos observou-se, como nas metandlises anteriores (ANDRE, 2009), que 0 tipo de metedologia mais frequente € 0 micro-estudo, ou seja, estudos de situagdes muito particulares, abrangendo um nimero pequeno de sujeitos (de 3 a 15 em média), referindo-se a ‘uma porgiio muito restrita da realidade. ‘A justificativa para esses recortes tio estreitos 6, via de regra, 0 atendimento aos prazos ex{guos definidos pelas ‘agéncias avaliadoras ou financiadoras da pés-, Para tentar superar as limitagdes de tempo sem grande ‘comprometimento da qualidade, seria interessante tomar mais efetivos os grupos de pesquisa, que possibilitam trabalhos conjuntos, com referenciais te6ricos comuns € recortes especificos passiveis de aprofundamento. Para que se consiga bons resultados, entretanto, & crucial 0 papel dos orientadores, a quem caberia a coordena- ¢do dos grupos para fazé-los cumprir as metas dese- jadas, Nao se pode ainda esquecer das condigées necessérias para a produgio do conhecimento cientifico, como espago € tempo para pesquisa; recursos materiais, humanos € financeiros; preparo adequado dos pesquisadores, sem os ‘quais havera certamente comprometimento da qualidade a produgio. Em muitas pesquisas analisadas (ANDRE, 2010) ficou evidente a falta de dominio dos fundamentos dos ‘métodos. Por exemplo, um autor indicou a utilizagio do cestudo de caso etnogrifico ¢ na coleta de dados aparece apenas anélise documental. Outro autor classificou sua pesquisa como “teérico bibliografica, partindo de informagdes colhidas em visitas e entrevistas do corpo docente e do gestor de seis escolas”. O que seria isso? Quanto as téenicas de coleta de dados, verificou-se ‘uma evolugdo positiva nos tiltimos anos: pesquisadores ppassam a utilizar o questionario, que havia sido banido das, pesquisas nos anos 1990, 0 que mostra uma diminuigaio do preconceito sobre dados quantitativos. ‘Além disso, outro aspecto positive nas pesquisas recentes € a combinagdo de duas ou mais técnicas de coleta. Pesquisadores parecem ter mais consciéneia de ‘que questdes to complexas como as que envolvem a formagio docente precisam ser investigadas sob miltiplos Angulos. Surgem novas formas de coleta de dados como os grupos de discussio, 0 grupo focal, o registro escrito, 0 relato autobiogrifico, a videografia, Uma pergunta que Educagdo, Porto Alegre, v.34 n. 3, p.174-181,set/dez, 2010 178 permanece € se o uso desses procedimentos estaria sendo acompanhado pelos devidos cuidados que uma pesquisa cientifica requer, ou seja, se a preocupagio com o rigor esti realmente presente exame das dissertagdes e teses sobre formagio de professores defendidas nos anos de 2000 mostra que hé certas metodologias que tém sido privilegiadas pelos pesquisadores ¢ vio cada vez mais constituindo uuma tendéneia do campo: sio os estudos que coletam depoimentos, os (autoybiogréficos, as pesquisas colaborativas e a pesquisa-agdo. A entrevista é 0 método mais frequente de coleta de dados, mas ha outras formas. que vem despontando com muita forga: os grupos de discussfo ¢ os relatos escritos, Essas escolhas, que aos poucos se tomam mais nitidas, podem ajudar a identificar melhor o campo. CRIACAO DE UM GRUPO DE CIENTISTAS COM CODIGOS E INTERESSES COMUNS. Um terceiro elemento, citado por Marcelo Garcia, que indica a constituigo de um campo de estudos autdnomo, é a criago de uma comunidade de cientistas que se empenha na elaboragio de um cédigo de comunicacio Proprio, por meio das pesquisas ¢ das sociedades que fomentam conhecimento ¢ formasio. Quanto a esse aspecto, podemos encontrar alguns indicadores na comunidade cientifica brasileira de que a formagio docente vem agregando grupos de pesquisadores em eventos, publicagdes e fruns de debates. Um dos exemplos é a eriago do Grupo de Trabalho (GT) Formagio de Professores, que integra a Associagio Nacional de Pés-graduacio e Pesquisa em Educagao — ANPEgd, uma das agremiages cientificas mais respeitadas da area de Educagao, Esse GT recebe, para as Reunides Anuais da Associagdo, um grande nimero de textos baseados em pesquisas © abre espago para importantes discussdes sobre o objeto e as metodologias de pesquisa, assim como sobre as politicas de formaco docente. Outro exemplo foi a realizagdo, em 2006, do I Encontro de Grupos de Pesquisa sobre Formacio de Professores, que congregou cento e vinte pesquisadores de diferentes regides do pais, com uma rica produgao de 70 grupos organizados, o que permitiu um mapeamento da produgdo académica e a identificagao de questies que merecem maior atengo da érea. ‘Nesse encontro foi aventada a hipdtese da criagdo de uum periédico ciemtifico centrado na temética da formagao docente, proposta que se concretizou em 2009 com 0 langamento do primeiro nimero da Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formagio de Professores (www. autenticaeditora.com.britevistaformagodocente), ums ini- ciativa importante para a conquista da autonomia da érea, Marli André INCORPORACAO ATIVA DOS PARTICIPANTES NA PESQUISA Somando-se 20s anteriores, outro elemento que, segundo Marcelo Garcia, sinaliza a definigdo de um campo de estudos ¢ a incorporagdo ativa dos préprios protagonistas, os professores, nos programas de pesquisa, assumindo papel importante tanto no seu desenho quanto na sua efetivagio, ou seja, no planejamento, coleta, andlise dos dados e na divulgagao dos resultados. Podemos apontar como exemplo, no Brasil, 0 projeto Universidade-Escola Pablica, da Fundagio de Amparo 1 Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), que no final dos anos 1990 abriu uma linha de financiamento especifico para projetos que envolvessem parceria entre pesquisadores da universidade ¢ professores das escolas piblicas. Vrias iniciativas similares vém tomando corpo em outros estados do pais. ‘A anélise das pesquisas dos pés-graduandos, (ANDRE, 2009) também mostra um grande crescimento os estudos que incorporam os participantes no processo de investigagao, seja pela devolutiva, no caso dos relatos, autobiogrificos, seja pela participagio conjunta, quan- do se desenvolve pesquisa-ago € pesquisa colabora- tiva, Esse esforgo de pesquisar conjuntamente tem um ‘grande mérito social, cientifico ¢ politico, pois aproxima universidade e escola, contribui para a articulagio entre teoria e pritica, possibilita aos professores das escolas 0 aprendizado da pesquisa e consequentemente favorece a bbusca da autonomia profissional ‘Tem ainda um grande peso na constituigfo da profissionalidade docente, pois propiciao desenvolvimento de conhecimentos, habilidades ¢ valores, que, construidos coletivamente, podem dar mais forea e poder aos docentes, cenquanto grupo profissional. RECONHECIMENTO DO PAPEL FUNDAMENTAL DA FORMACAO DOCENTE Um indicador adicional de constituigio da area & a insistente atengo dos politicos, administradores investigadores & formagdo dos professores como pega chave da qualidade do sistema educativo, Esse talvez.seja o aspecto mais visivel de configuragao a drea no Brasil, pois temos ouvido frequentes depoi- ‘mentos de politicos e visto iniimeras matérias em jornais € revistas que enfatizam o papel crucial da formagio docente na melhoria da educagdo brasileira, Serd que as pesquisas sobre formagao de professores podem contribuir para o reconhecimento social da area? Sim, na medida em que puderem trazer a piiblico os seus achados mais importantes, suas principais descobertas Educagdo, Porto Alegre, v.34 n. 3, p.174-181,set/dez, 2010 Formagio de professores © quais as questdes que merecem mais investigagdes. Dai a importincia de que 0s estudos sobre formagao de professores apresentem seus resultados de forma clara e objetiva, de modo que possam ser compreendidos pelo piblico, fornecam subsidios para os gestores formuladores de politicas piblicas e possam abrir novas firentes de pesquisa. ‘Na anilise das 298 dissertagdes e teses sobre formagio dle professores defendidas pelos pos-graduandos em 2007 (ANDRE, 2010), verificamos que em cerca de 30% dos resumos nio havia qualquer mengao aos resultados, o que surpreende e provoca uma grande indagagao: 0 estudo nao produziu resultados ou 0 pesquisador nfo soube expressar os seus achados? ‘Nos resumos em que eram indicados os resultados, constatou-se que uma parcela (cerca de 50%) tinha relacdo com os objetivos propostos, como, por exemplo, na pesquisa cujo objetivo foi “investigar o papel das TICs no processo de formagao em servigo de professores do Ensino Fundamental” e que conclui que “a formayao foi significativa no que tange 20 aprimoramento dos professores em relagdio iisnovas teonologias de informagio © comunicagio e na melhoria da atuagio dos profissionais junto a seus alunos com incidéncia direta sobre o processo de ensino-aprendizagem”, ‘Observa-se que os resultados esto relacionados a0s objetivos, mas poderiam ser expressos em termos mais especificos (qual foi o aprimoramento? O que melhorow na aprendizagem dos alunos?) Outro exemplo € 0 de uma pesquisa que tina como objetivo “investigar o processo de transformagio experienciado por uma professora de Matematica em um trabalho colaborativo” e cujos resultados foram assim explicitados: “A andlise dos dados indicou cinco fatores que contribuiram para 0 processo de (trans)formag20 experienciado pela professora. Os dois primeiros dizem respeito aos desejas da professora e os demais fatores referem-se & seguranga da professora em realizar as atividades de investigago”. Houve, neste aso, uma melhor explicitagdo dos resultados do que no exemplo anterior, mas ainda ha uma falta de precisio (quais slo os desejos? O que significa seguranga da professora?). Em cerea de 50% dos estudos que mencionaram resultados, hi constatagSes muito genéricas, pouco rela- cionadas aos dados, como nos exemplos que seguem: + “necessidade de se retomar a formagio continuada de professores” + “necessidade de mudanga nos cursos de licen- ciatura” + “necessidadle de apoio das politicas piblicas em prol do aumento de tempo de estudo coletivo dos professores” 179 + “a formagao continuada nao é a tinica responsével pela melhoria da qualidade do ensino” Esses exemplos mostram afirmagdes que no pre- cisariam de qualquer investigagao para serem enunciadas, parecem mais a repeticio de ideias ja existentes antes de realizar a pesquisa do que conclusbes fundamentadas nos dados, 0 que sinaliza a necessidade de maior cuidado por parte dos pesquisadores a0 reportar os resultados dos seus, estudos. ‘Onque se pode concluirdo exame da produgio cientifica dos pés-graduandos é que deve haver maior empenho na ivulgagio dos resultados das pesquisas e que, ao fazé-lo, haja preocupago com clareza e precisio, pois s6 assim poderilo ser compreendidos e reconhecidos socialmente. A pesquisa podera, sim, contribuir para a valorizagio social do campo, se for desenvolvida com todo rigor cientifico, deixando evidente suas contribuigdes. Os cinco indicadores sugeridos por Marcelo Garcia (1999) foram bastante iteis para identificar os passos que ‘vem sendo dados pelos pesquisadores da drea de formagao de professores no Brasil, na conquista de sua autonomia, Com 0 intuito de sintese, se pode retomar os avangos até agora percebidos nesta trajetéria de constituigio do ‘campo e 0 que ainda precisamos aperfeigoar. AVANCOS E LACUNAS: 0 QUE AINDA. NOS FALTA CONQUISTAR Com base na anilise das dissertagies e teses dos 1p6s-graduandos, podemos concluir que a pesquisa trouxe alguns avangos na delimitagao do campo de formacio de professores. Se, a0 analisar a produgao cientifica dos anos 1990, haviamos identificado o tratamento isolado “dos cursos de formagio e da praxis, da formagao inicial e continuada” (ANDRE et al., 1999, p. 309), pudemos constatar, nos anos 2000, uma tentativa de superagao dessa dicotomia, quando © foco privilegiado das pesquisas passa a ser fas concepedes, representagdes, saberes e priticas do professor, Acrescente-se a isso, a constatagio de que, nos anos mais recentes, os pesquisadores buscam vincular as experincias de formagio com as priticas do professor em sala de aula, o que constitui um avango em relagao a0 que eta feito na década anterior, pois mostra uma concepgio da formagio docente como um continuum, ‘ou um processo de desenvolvimento profissional, o que ccondiz. com a literatura recente da dea. Outro elemento que mostra o avango das pesquisas a combinagdo de diferentes formas de coleta de dados. “Muitos pesquisadores associam a entrevista como exame de documentos, outras vezes com questionério ou com observacaio, Tal variedade de fontes de coleta indica uma Educagdo, Porto Alegre, v.34 n. 3, p.174-181,set/dez, 2010 180 abordagem mais ampla das questdes sobre formagio de professores, o que traz maior riqueza para a area. No entanto, ainda hé muito que aperfeigoar na pesquisa para que haja uma contribuigdo efetiva na configuracio do campo, porque embora o propésito seja, nobre, o tratamento dos dados das pesquisas, em geral, deixa muito a desejar. As andlises ficam restritas 20s depoimentes dos sujeitos, o que gera um conhecimento muito pontual. © exame da metodologia dos estudos, como foi comentado, indicou um grande percentual de micro estudos—que se caracterizavam por estudos de fendmenos, muito localizados, envolvendo, em geral, tomada de depoimentos de um pequeno nimero de sujeitos © andlises situadas. Toma-se necessario dar um passo além, aprofundar as anilises c interpretagdes, de modo que se possa gerar um conhecimento mais abrangente e consis- tente, deslocamento do foco das pesquisas — dos cursos para o professor — tem seu lado positivo por tentar romper a separagio entre formagio inicial e continuada, entre formagao ¢ pritica docente, mas o alerta deve ser mantido no s6 em termos de que é preciso adensar as andlises, 0 que implica aprofundamento tedrico e metodolégico, mas também no que tange & ampliago dos aspectos a serem investigados Constatar que 52% das pesquisas sobre formagio docente investigam o professor (suas opinides, concepydes, saberes e priticas) causa certa inquietagio e provoca uma indagagio: o que significa essa concentragao de estudos em tomo do professor? Uma area tio complexa requer estudos que contemplem miltiplas dimensdes, recorram. 1 miltiplos enfoques e abranjam uma variedade temé- tica Em mapeamento anterior (ANDRE, 2009) indi- camos varios temas silenciados nas pesquisas dos pés- graduandos sobre formago docente, tais como: as condigdes de trabalho, planos de carreira e organizayao sindical dos docentes; a dimenséo politica na formago do professor, assim como a formagio docente para atuar em movimentos sociais, em ONGs, com populagio indigena e com a diversidade cultural. No levantamento das dissertagdes ¢ teses de 2007 verificamos que essas lacunas ainda permanecem. Dos 298 estudos analisados, apenas 10 (3%) focalizaram as condigdes de trabalho dos docentes, apenas 13 (4%) investigaram as politicas de formagaio, Quanto aos resultados das pesquisas, ha muito que melhorar, tanto na forma de apresentagio quanto na preciso. O que se encontrou nas pesquisas de 2007 foram, em muitos casos, registros muito genéricos dos achados, nem sempre vinculados aos objetivos ou metodo- logia Marli André Em outros casos, os resultados eram reportados, sem que ficasse explicito © que exatamente e o quanto havia sido alcangado. Com tal impreciso, fica muito . Acesso emt $ abr. 2010. ANDRE, Marl et al. Estado da arte da formaso de professores ro Brasil, Edueagio e Sociedade, ano XX, n. 68, p. 301-309, der, 1999, IMBERNON, Francisco, Formagio docente e profisional 3. ed. So Pal: Cortez, 2000. Educagdo, Porto Alegre, v.34 n. 3, p.174-181,set/dez, 2010 Formagio de professores MARCELO GARCIA, Carlos. Formagao de professores. Para uma mudanga educativa, Porto: Porto Editora, 1999. MARCELO GARCIA, Carlos. Desenvolvimento Profissional passado e futuro Sisifo - Revista das Ciéncias da Educagio, 1.08, p. 7-22, jan/abr. 2009. MIZUKAMLI, Maria das GragasN. etal. Escola eAprendizagem dda Doc@ncia, Sio Carlos: Edufsear, 2002. 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