You are on page 1of 217
O que torna grande a historia de Roma é nao ter sido feita por homens diferentes de nds, e sim por gente como a gente. Esses homens nada tinham de excepcional: se tivessem, nao haveria razao para admiréa-los tanto. Indro Montanelli HISTORIA DE ROMA Publicada em capitulos na Domenica del Corriere, a Historia de Roma suscitou protesto de leitores indignados pela dessacralizacao de um verdadeiro dogma, até entao intocado. No entanto, o fascinio desta abordagem simples e cordial de Indro Montanelli reside justamente ai: “O que torna grande a histéria de Roma nao ¢ ter sido feita por ho- mens diferentes de nds, mas que tenha sido feita por homens como nés. Eles nfo tinham nada de sobrenatural. E, se o tivessem, nos faltariam motivos para admird-los. ...César, quando jovem, foi um grande apro- veitador, manteve-se mulherengo a vida inteira e se penteava com ‘arranjos’ porque-sentia vergonha de sua calvicie. Isso no contradiz. sua grandeza de general e de homem de Estado. Augusto ndo passou © tempo todo, como uma maquina, organizando o Império, mas tam- bém combatendo a colite e os reumatismos, e por pouco nao perdeu sua primeira batalha, aquela contra Cassio ¢ Bruto, por causa de uma diarréia.”” s leitores desta Histéria de Roma tém a oportunidade de travar contato com uma histéria viva e real, feita por homens vivos e reais, e nao por simbolos abstratos € frios. Ai esta todo o seu encanto. Indro Montanelli HISTORIA DE ROMA Tradugao de SANDRA LAZZARINI €DITORA RECORD Titulo original italiano STORIA DI ROMA Para Susina Moizzi Copyright © 1969 by R.C.S. Rizzoli Libri S.p.A., Mildo Direitos de publicacdo exclusivos em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — 20921 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 580-3668 que se reserva a propriedade literdria desta tradugao Impresso no Brasil PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922 AOS LEITORES A medida que a Histéria de Roma era publicada em capitulos na Domenica del Corriere, comecei a receber cartas cada vez mais indignadas. Acusavam-me de superficialidade, de levian- dade, de derrotismo e algumas vezes até de crueldade devido a minha maneira de tratar um assunto considerado sagrado. Nao me surpreendi, pois de fato até hoje, ao se falar de Roma, em italiano, jamais se usou outro estilo além do dulico e apologético. Mas estou persuadido de que justamen- te por isso bem pouco permaneceu na mente de quem leu e de que quase ninguém, ao terminar 0 ensino secundario, é tentado a refrescar a meméria. Nao existe nada mais can- sativo do que acompanhar uma histria povoada apenas de monumentos. Eu mesmo tive de lutar um bocado contra os bocejos quando, alguns anos atras, ao perceber que havia esquecido tudo ou quase tudo, quis estuda-la de novo. En- to deparei por acaso com Sueténio e Dion Cassio, os quais, por serem contempordneos, ou pelo menos coevos, nao nu- triam um respeito tao reverente ¢ temeroso por tais monu- mentos. Seguindo suas pistas, comecei também a folhear outros historiadores e memorialistas italianos. Foi como dar vida & pedra. De sibito, aqueles protagonistas que na escola nos apre- sentaram mumificados numa pose, sempre a mesma, nao ho- mens, mas simbolos abstratos, perderam sua mineral imobilidade, animaram-se, coloriram-se de sangue, de vicios, de fraquezas, de tiques, de pequenas ou grandes manias. En- fim, tornaram-se vivos e reais. Por que devemos ter, em relacdo a esses personagens, mais respeito do que tiveram os préprios romanos? Sera que Ihes fazemos um grande favor em deixd-los sobre o pedestal, nu- ma fria sala de museu, que s6 os estudantes, em funcdo de seus exames, sao obrigados pelo professor a visitar? Conheco alguns jesuitas que, sem ferir a ortodoxia, escreveram hagio- grafias isentas de preconceitos, onde os santos apareciam tal como eram, homens entre os homens, com suas obstinagdes e extravagancias. O fato de muitos deles terem cometido al- guns erros e de todos, sem distingo, terem sido tentados a isso nado diminui em nada sua santidade. Pelo contrario. Je- sus Cristo fez de Sao Pedro um apéstolo — ¢ este o havia re- negado. © que torna grande a historia de Roma nao é ter sido fei- ta por homens diferentes de nds, mas que tenha sido feita por homens como nds. Eles nao tinham nada de sobrenatural. E se 0 tivessem, nos faltariam motivos para admira-los. Entre Cicero e Carnelutti existem muitos pontos em comum. César, quando jovem, foi um grande aproveitador, manteve-se mu- Iherengo a vida inteira e se penteava com ‘arranjos’ porque sentia vergonha de sua calvicie. Isso nao contradiz sua gran- deza de general e de homem de Estado. Augusto nao passou © tempo todo, como uma maquina, organizando o Império, mas também combatendo a colite e os reumatismos, € por pou- co nao perdeu sua primeira batalha, aquela contra Cassio € Bruto, por causa de uma diarréia. Creio que o maior erro que podemos cometer em relagao a essas pessoas seja ocultar sua verdade humana, como se re- cedssemos vé-las diminuidas por ela. Longe disso. Roma foi Roma nao porque os herdis de sua histéria nao cometeram delitos ¢ tolices, mas porque nem mesmo seus crimes € suas tolices, embora grandes e as vezes imensos, poderiam atingir seu direito ao primado. Nao descobri nada com este livro. Ele nao pretende tra- zer novas ‘revelagdes’ nem oferecer uma interpretagdo ori ginal sobre a histéria da Urbe. Tudo 0 que narro aqui j foi narrado antes. Espero apenas té-lo feito de uma forma mais simples e cordial, em um estilo mais leve e facilmen- te aceitavel pela grande maioria dos leitores, mediante uma série de descrigdes que ilumine os protagonistas com uma luz mais verdadeira, despindo-os dos paramentos que os es- condiam. : Alguns poderdo ach4-la uma ambicdo modesta. Eu, nao, Considero-a, pelo contratio, orgulhosa. Se conseguir que uns poucos milhares de italianos se afeigoem a historia de Roma, poderei julgar-me um autor til, de sorte ¢ plenamente reali- zado — que me desculpem os que me acusam de superficiali- dade, leviandade, derrotismo ou, até, de crueldade. INDRO MONTANELLI Mildo, novembro de 1957 SUMARIO Ags leitores Capitulo 1 ‘Ab Urbe condita. Capitulo 2 Pobres etruscos . Capitulo 3 Os reis agrérios .. Capitulo 4 Os reis mercadores Capitulo 5 Porsena. 46 55 Capitulo 7 Pirro .. Capitulo 8 ‘A educacao, 2 Capitulo 9 A carreira.. 80 Capitulo 10 ‘Os deuses . Capitulo 11 ‘A cidade 95 Capitulo 12 Cartage 104 Capitulo 13 Régulo.. Capitulo 14 AMnibal .ssccsscee Capitulo 15 Cito... scoceects 180) Capitulo 16 “Graecia capta...”” 138 Capitulo 17 CALAO ssasve .- 148 Capitulo 18 “ferum vietorem cepit”. . 156 Capitulo 19 ‘Os Gracos .. . 164 Capitulo 20 MATIO ssoeeeeee .. 173 Capitulo 21 Sila . 180 Capitulo 22 ‘Uma ceia em Roma, soe 189 Capitulo 23 Cicero. asa .. 197 Capitulo 24 César... cose 204 Capitulo 25 ‘A conquista da Glia... scecssssessessseensenee 2213 Capitulo 26 (0 Rubicao. 222 Capitulo 27 Os idos de marco. 230 Capitulo 28 Antdnio e Cleopatra... Capituto 29 Augusto Capitulo 300 Horacio ¢ Livio Capitulo 32 Claudio ¢ Séneca ... wulo 33 Capitulo 34 Pompéia. Capitulo 35 Jesus ... Capitulo 36 Os apéstolos .. Capitulo 37 (Os Flavios ....... Capitulo 38 ‘Roma epicuréia Capitulo 39 Seu capitalismo . Capitulo 40 ‘Suas diversbes 317 Capitulo 41 Nerva ¢ Trajano 323 Capitulo 42 ‘Adriano .. 331 jtulo 43 C*Riarco Avrélio jtulo 44 Capitulo 45 Diocleciano......... ss 351 Capitulo 46 Constantino ......... soos 358 Capitulo 47 O triunfo dos cristaos... Capitulo 48 ‘A heranca de Constantino .... Capitulo 49 Ambrosio € Teoddsio.... - 380 Capitulo 50 O fim .. - 388 Capitulo 51 Conclusao .. 397 Cronologia.. 401 indice onomistico ... das ilustracoes .. CAPITULO | AB URBE CONDITA Ao sabemos com preciso quando foram instituidas as pri- meiras escolas regulares, isto é, ‘‘estatais”” em Roma. Plutar- co diz que nasceram por volta de 250 a.C., ou seja, cerca de uinhentos anos depois da fundago da cidade. Até esse mo- mento as criangas eram educadas em casa, as mais pobres pe- los proprios pais, as mais ricas por magistrados, isto é, professores ou instrutores, geralmente escolhidos na catego- ria dos libertos, 0s escravos libertados, que por sua vez eram escolhidos entre os prisioneiros de guerra e de preferéncia en- tre os de origem grega, que eram os mais cultos. Sabemos com certeza, porém, que elas deviam cansar-se menos do que as de hoje. J4 sabiam latim. Se fossem obriga- das a estuda-lo, dizia o poeta aleméio Heine, nao teriam tido tempo de conquistar 0 mundo. Quanto & histéria de sua pa- tria, era contada mais ou menos assi Quando 0s gregos de Menelau, Ulisses e Aquiles conquis- taram Tréia, na Asia Menor, ¢ a meteram a ferro e fogo, um. dos poucos defensores a se salvar foi Enéias, severamente acon- selhado por sua mae (certas coisas também se usavam naque- les tempos), que era nada mais, nada menos que a deusa Vénus-A frodite. Com uma mala nas costas, cheia de imagens o de seus celestiais protetores, entre os quais, naturalmente, o lugar de honra pertencia a sua boa mae, mas sem um tostio no bolso, o pobrezinho comegou a rodar pelo mundo, ao acaso E depois de nao se sabe quantos anos de aventuras e desven- turas, sempre com aquela mala sobre o lombo, foi dar na Ita- lia, tomou a direcao do norte, alcangou o Lacio, casou-se com a filha do rei Latino, que se chamava Lavinia, fundou uma cidade a qual deu o nome de sua mulher, e com ela viveu feliz € contente até o fim de seus dias Seu filho Ascanio fundou Alba Longa, tornando-a a nova capital. E depois de oito geracdes, vale dizer uns du- zentos anos depois da chegada de Enéias, dois de seus des, cendentes, Numitor e Amilio, ocupavam ainda o trono do Lacio. No entanto, duas pessoas num s6 trono ficam aper tadas. E, assim, um dia Amillio expulsou o irmao a fim de reinar sozinho, além de matar todos os seus filhos, menos uma: Réia Silvia. Contudo, para que ndo trouxesse ao mun do um filho que cismasse, quando adulto, em vingar 0 avé, obrigou-a a tornar-se sacerdotisa da deusa Vesta, vale dizer, uma monja. _ Certo dia, Réia, que talvez desejasse muito um, marido € no se resignava bem a idéia de nao poder casar-se, tomava ar fresco junto & margem do rio, pois era um verdo terrivel- mente quente, ¢ adormeceu. Por acaso, naquelas paragens es- tava passando 0 deus Marte, que descia com freqiiéncia & Terra, um pouco para fazer alguma guerrinha, que era a sua ‘ocupacao habitual, um pouco para ir atrés das mocas, que era a sua paixdo favorita. Viu Réia Silvia. Apaixonou-se. E.sem sequer acordé-la, engravidou-a. Amilio, ao saber disso, ficou muito zangado. Mas nao a matou. Esperou que ela desse & luz nao um, mas dois meni- ninhos gémeos. Depois fé-los colocar sobre uma microscépi- a balsa, que entregou ao rio para que os levasse, ao sabor da correnteza, até o mar e ali os deixasse afogar. Mas nao ha- via consultado o vento, que aquele dia soprees cons bevsann forga ¢ que levou a pequena embarcacao a encalh: riage uum pouco mais adiante, em campo aberto. Ali, os dels rene, gados, que choravam copiosamente, chamaram acareea ae uma loba, que correu a aleitd-los. E é por isso que esse ani 10 mal tornou-se simbolo de Roma, a qual seria, depois, funda- da pelos dois gémeos. (Os maliciosos dizem que aquela loba nao era de fato um animal, mas uma mulher, Acca Larentia, chamada Loba de- vido ao seu cardter selvatico e as muitas infidelidades que co- metia contra seu marido, um pobre pastor, indo fazer amor ‘com todos 0s jovens das redondezas. Mas talvez isso nao pas- se de boatos. Os dois gémeos mamaram o leite, depois passaram aos mingauzinhos, tiveram os primeiros dentes, receberam 0s no- mes um de Rémulo, o outro de Remo, cresceram e, por fim, conheceram sua historia. Entdo voltaram a Alba Longa, or- ganizaram uma revolucao, mataram Amilio € recolocaram Nu- mitor no trono. Em seguida, ansiosos por fazer alguma coisa nova, como todos os jovens, em vez de esperar pelo reino ja pronto do avé, que certamente o teria deixado para eles, fo- ram construir um novo, um pouco mais adiante. E escolhe- ram o lugar no qual a balsa havia encalhado, em meio as colinas onde corre o Tibre, no ponto onde desemboca no mar. Ali, como quase sempre acontece entre irmaos, comecaram a discutir sobre o nome a ser dado a cidade. Depois decidi- ram que venceria quem visse mais passaros. Remo, sobre 0 Aventino, viu seis. Rémulo, sobre o Palatino, viu 12: a cida- de, portanto, seria chamada Roma. Jungiram dois bois bran- cos, cavaram um sulco e construiram as muralhas, jurando matar qualquer pessoa que as ultrapassasse. Remo, mal- humorado devido a derrota, disse que eram frageis e com um chute, colocou um pedaco abaixo. Romulo, fiel ao juramen- to, abateu-o com um golpe de enxada. Tudo isso, dizem, aconteceu 753 anos antes do nascimento de Cristo, exatamente no dia 21 de abril, que ainda hoje é fes- tejado como o aniversdrio da cidade, nascida, como se perce- be, de um fratricidio. Seus habitantes consideraram essa data como sendo 0 inicio da histéria do mundo, até o advento do Redentor instaurar uma outra contagem. Talvez os outros povos vizinhos fizessem a mesma coisa: cada um datava a histéria do mundo a partir da fundacao da propria capital — Alba Longa, Reate, Tarqlinia ou Arécio, fosse qual fosse. Mas ndo conseguiram fazer com que os ou- tros 0 reconhecessem porque cometeram o pequeno erro de perder a guerra, ou melhor, as guerras, Roma, no entanto, as venceu. Todas. A terra de poucos hectares que Romulo ¢ Remo sulearam com o arado entre as colinas do Tibre tornou. se, no espago de poucos séculos, 0 centro do Lacio, depois da Itdlia, depois de toda a Terra entdo conhecida. E em toda a Terra entéo conhecida falou-se a sua lingua, respeitaram-se suas leis ¢ contaram-se os anos ab Urbe condita, ou seja, a partir do famoso 21 de abril de 753 a.C., inicio da historia de Roma e de sua civilizagao. Sem diivida, as coisas nao se passaram exatamente assim. Mas assim é que os papais romanos quiseram, por muitos séculos, que fossem contadas a seus filhos: um pouco porque eles mes- mos acreditavam nelas, um pouco porque, grandes patriotas, muito lisonjeava o fato de poderem mesclar deuses influen- tes, como Vénus e Marte, e figuras ilustres, como Enéias, a0 nascimento de sua Urbe. Percebiam, sem muita clareza, que era extremamente importante educar suas criangas na convic- do de pertencerem a uma patria construida com 0 concurso de seres sobrenaturais, que certamente nao teriam se presta- do a isso se no fosse para conferir-Ihe um grande destino. [sto emprestou um fundamento religioso a toda a vida de Ro- ma, que de fato se desmoronou quando ele se perdeu. A Urbe foi caput mundi, capital do mundo, enquanto seus habitantes sabiam poucas coisas ¢ cram bastante ingénuos em relacao aquelas, legendarias, que lhes haviam ensinado seus papais € 0s magistrados; enquanto tinham a convicgao de serem des- cendentes de Enéias, de terem em suas veias sangue divino e de serem “‘ungidos pelo Senhor”’, mesmo que naquele tempo este se chamasse Jupiter. Foi quando comecaram a duvidar que o Império comecou a cair em pedacos € 0 caput mundi tornou-se uma colénia. Mas nao nos precipitemos. Na bela fabula de Romulo e Remo talvez nem tudo seja fabula. Talvez contenha algum elemento de verdade. Tente. mos trazé-lo & tona, baseados nos poucos dados suficiente- mente precisos que a arqueologia e a etnologia nos forneceram. ,Parece que trinta mil anos antes da fundagdo de Roma a Italia j4 era habitada pelo homem. Esse homem, os especia- 12 SiT10 DA FUNDAGAO DE ROMA listas afirmam té-lo reconstruido a partir de alguns Ossinhos de seu esqueleto, encontrados aqui e ali, e que remontam a chamada ‘‘Idade da Pedra’’. Mas nao confiamos muito nes. sas inducdes e, portanto, saltamos de pés juntos a uma era muito mais proxima, a “‘neolitica”’, algo em torno de oito mil anos atrés, ou seja, cinco mil antes de Roma. Parece que a nossa peninsula era entZo povoada por alguns ligures ao nor. tee siculos ao sul, pessoas com a cabea em forma de péra, que viviam um pouco nas cavernas, um pouco em Pequenas cabanas redondas, feitas de esterco ¢ de barro, domest icavam animais € nutriam-se da caga e da pesca. Vamos dar mais um pulo de quatro mil anos, isto é, che- guemos a 2000 a.C. Eis que da regido setentrional, ou seja, dos Alpes, chegam outras tribos, quem sabe ha quanto tem. Po em marcha desde sua patria de origem: a Europa Central. Estes nao s4o muito mais desenvolvidos do que os indigenas com a cabega em forma de péra, mas tm o costume de cons. truir suas habitagdes nao nas cavernas, mas sim sobre traves imersas na Agua, as chamadas “palafitas’’. Vém, como se per- cebe, de lugares alagadicos e, de fato, tendo nos alcancado, escolhem a regiao dos lagos, o Maggiore, o de Como, o de Garda, antecipando em alguns milénios © gosto dos turistas modernos. E introduzem em nosso pais grandes novidades: a de trabalhar matérias brutas, a de cultivar 0 solo, a de tecer panos € a de cercar suas aldeias com bastides de barro e de terra batida para se defenderem tanto do ataque de animais quanto do de homens. Pouco a pouco comecaram a descer em dire¢do ao sul, acostumaram-se a construir cabanas também em terra firme, mas sempre escoradas sobre palafitas; aprenderam com uns Primos distantes, 20 que parece instalados na Germania, a usar 0 ferro, com o qual fabricaram uma série de quinquitharias novas — machados, facas, navalhas, etc. —e fundaram uma verdadeira cidade, que se chamou localizar-se nos arredores daquela que “‘vilanoviana’” € que aos poucos se es insula. Dela acredita-se que se origin lingua, como costumes, os timbrios, 4 am, como raga, como 98 sabinos ¢ os latinos, HELVECIOS NGRICOS. AS ANTIGAS POPULACOES DA ITALIA Nao se sabe o que esses vilanovianos, ao se estabelece rem nas terras a cavaleiro do Tibre, fizeram com os indigense ligures e siculos. Talvez os tenham exterminado, como era cos tume naqueles tempos, denominados “barbaros’” par distingui-los dos nossos, em que fazemos a mesma coisa, em bora os chamemos de “‘civilizados”; talvez se tenham mestlado a eles, depois de té-los submetido. O fato é que, por volta de 1000 a.C., entre a foz do Tibre e a bata de Napoles, os recé chegados fundaram muitas aldeias, as quais, embora habite, das Por pessoas do mesmo sangue, guerreavam entre si e 36 se apaziguavam diante de um inimigo comum, ou por ocasia de alguma festa religiosa, : oh Entre essas pequenas cidades a maior e a mais importan- te foi Alba Longa, capital do Lacio, aos pés do monte Alba, No, que provavelmente corresponde a Castel Gandolfo. E considera-se albalonguense aquele punhado de jovens aven. tureiros que, certo dia, migraram algumas dezenas de quilé. metros rumo ao norte e fundaram Roma. Talver fossem trabalhadores bragais, & procura de um pedago de terra que Pudessem ocupar e cultivar. Talvez fossem malfeitores, com algumas contas a prestar A policia e aos tribunais de sua cida de, Talvez fossem emissarios enviados por seu governo a fim de espionaro local, que fazia Frontera com a Toscan, sobre cules cosas naquele mesmo peiodo, havi desembarcado ua ova populaci, os etrusos, que nao se sabia de que parte go mundo vinha, mas da qual se falavam cobras elagatos. Eales entre ees pions existisem dois que se chamas. mais que uma centena de pessoas," ™ "40 deviam ser deo UBRE aus escolheram tinka muitas vantagens e muitas ea pegs. Fieava a uns vine quimetos do mar, eas0 anter-se a0 abrigo de piratas que o infes. tavam, sem ser preciso renunciar a tornd-lo um rortgc nen com as embareagoes daqucle tempo, 0 brato de henge parava da foz era facilmente navegd 1 nav péntanos circundantes condenavatneso'd acs cnazeos € 05 16 de inicio se aquartelaram, com o objetivo de, em seguida, po- voar também as outras seis que estavam em torno. Mas para povoar era preciso fazer filhos. E para fazer filhos era preciso mulheres. E aqueles pioneiros eram soltei ros. Aqui, por falta de histéria, somos obrigados a voltar & lenda, que nos conta como Rémulo, ou seja I como se cha- mava o chefao daqueles sujeitos, conseguiu arranjar mulhe- res para sie para seus companheiros. Anunciou uma grande festa, talvez com a desculpa de celebrar o nascimento da ci- dade, e convidou seus vizinhos — 0s sabinos (ou quirites) —, com 0 tei deles, Tito Tacio, e sobretudo suas filhas. Os sabi- nos foram. Mas enquanto estavam ocupados em disputar cor- ridas a pé e a cavalo, que eram seu esporte preferido, muito pouco esportivamente os donos da casa raptaram as mocas € os botaram para fora a pontapés. Os nossos antigos eram muito sensiveis 4s questdes rela- tivas a mulheres. Pouco antes, o rapto de uma delas, Helena, custara uma guerra que durou 12 anos e acabou com a des- truigdo de um grande reino: o de Trdia. Os romanos rapta- ram diizias delas, e portanto era natural que no dia seguinte tivessem de enfrentar seus pais e irmdos, que voltaram arma- dos para recuperd-las. Entrincheiraram-se sobre 0 Capitélio, mas cometeram o erro imperdoavel de confiar a chave da for- taleza que servia de guarda a Tarpéia, uma moca romana que, segundo dizem, estava apaixonada por Tito Tacio. Ela abriu a porta aos invasores. Estes, gente cavalheiresca e, portanto, refrataria a qualquer traigao, inclusive as perpetradas em seu favor, recompensaram-na esmagando-a sob seus escudos. Mais tarde, os romanos emprestariam seu nome ao penhasco do qual costumavam langar os traidores da patria, condenados 4 morte. Tudo acabou num pantagruélico banquete nupcial. Pois as outras mulheres, em nome das quais a batalha fora defla- grada, em determinado momento colocaram-se entre os dois exércitos e declararam que nao queriam ficar 6rfas, como acon- teceria se seus maridos romanos vencessem, ou vitivas, como ocorreria se vencessem seus pais sabinos. E que era hora de acabar com aquilo porque, com aqueles maridos, embora pre- cipitados e briguentos, elas estavam muito bem. Mais valia re- 7 gularizar o casamento, em vez de continuarem a se esganar. E assim foi. Rémulo e Tacio decidiram governar juntos, am. bos com o titulo de rei, aquele povo recente, nascido da fusiio das duas tribos, das quais levou o nome, conjuntamente: ro. ‘manos quirites. E como, logo depois, Tacio fez 0 favor de mor. rer, a experiéncia de um sé reino para dois deu certo daquela vez. Quem sabe 0 que existe por tris dessa histéria. Talvez nao passe de uma verso, sugerida pelo patriotismo e pelo orgu- Iho, de uma conquista de Roma, por parte dos sabinos, Mas também pode ser que os dois povos tenham se mesclado e que © famoso rapto fosse apenas uma ceriménia normal de casa- mento como entdo era celebrado, ou seja, com o furto da es- Posa por parte do marido, mas com consentimento do pai dela, como ainda hoje fazem alguns povos primitives. _ Sena verdade foi assim, & provavel que essa fusdo fosse, mais do que sugerida, imposta pela ameaca de um inimigo co- mum: aqueles etruscos que, entrementes, a partir da costa do Tirreno, se espalhavam pela Toscana e pela Umbria e, arma- dos de uma técnica muito mais avancada, pressionavam em direco ao sul. Roma e a Sabina estavam na rota dessa mar- cha esob uma ameaga direta. De fato, no conseguiram esca- par. _A Urbe acabara de nascer e jd tinha de encarar um dos mais dificeis ¢ insidiosos rivais de toda a sua histéria. Der- rubou-o, primeiro por meio de prodigios de diplomacia, e de- pois, pela coragem e pela tenacidade. Mas Precisou de sécu- los para isso, 18 CAPITULO 2 POBRES ETRUSCOS Ao CONTRARIO dos romanos de hoje, que levam tudo na brincadeira, os da Antiguidade levavam tudo a sério. Espe- cialmente quando cismavam em destruir um inimigo, no s6 moviam guerras contra ele e nao Ihe davam trégua enquanto nao o derrotassem, mesmo perdendo exércitos atrés de exér- citos e dinheiro atras de dinheiro, como também entravam em sua casa e nao deixavam pedra sobre pedra. Reservaram um tratamento particularmente severo. aos etruscos, quando, depois de terem softido inimeras humilha- ges, sentiram-se fortes o bastante para poder desafid-los. Foi tuma luta longa onde nao faltou violéncia, mas ao vencido nao foram deixados sequer os olhos para chorar. Raramente se viu na historia um povo desaparecer da face da Terra e outro apa- gar seus rastos com tao obstinada ferocidade. E a isto se deve fato de nao ter sobrado quase nada de toda a civilizagdo etrus- a, Sobreviveram apenas algumas obras de arte e algumas cen, tenas de inscrigdes, das quais 6 umas poucas palavras foram decifradas. 3 ‘A partir desses parcos elementos, cada um reconstruiu aquele mundo a sua maneira. i ‘No entanto, ninguém sabe com preciso de onde esse po 19 vo veio. Pelo modo como representavam a si mesmos nos bron. zes e nos vasos de ceramica, parece que eram mais atarraca- dos, tinham cranios mais macigos que os vilanovianos ¢ tragos que lembram os povos da Asia Menor. Com efeito, muitos sustentam que chegaram daquelas regides por mar; ¢ isso se- ria confirmado pelo fato de terem sido os primeiros, entre os habitantes da Itélia, a possuirem uma frota. Sem duivida, fo- ram eles que deram o nome de Tirreno, que quer dizer exata- mente ‘etrusco”, ao mar que banha a costa da Toscana, Talvez tenham chegado em massa e subjugado a populacao indige- na, talvez tenham desembarcado em pequeno ntimero e se te- nham limitado a submeté-la com suas armas mais avangadas € sua técnica mais desenvolvida. ~ fato de a civilizagio deles ser superior & vilanoviana foi demonstrado pelos cranios encontrados nas tumbas e que mostram trabalhos de prdteses dentarias bastante refinados. Os dentes so um sinal importante na vida dos povos. Eles se deterioram com o desenrolar do progresso, que torna mais imperiosa a necessidade de tratamentos aperfeigoados. Os etruscos jé conheciam a “ponte” para reforgar seus molares € 0s metais necessdrios para fabrieé-la. Com efeito, sabiam trabalhar nao s6 0 ferro, que foram procurar, e encontraram na ilha de Elba e que da matéria bruta transformaram em aco, mas também 0 cobre, o estanho e o ambar. , As cidades que logo comegaram a construir no interior —Tarqitinia, Arécio, Perisia, Veios — eram muito mais mo- dernas que as aldeias fundadas pelos latinos, sabinos e outros povos vilanovianos. Todas tinham bastides para se defender, estradas e sobretudo esgotos. Seguiam, enfim, um “plano ur. banistico””, como se diz hoje, confiando & competéncia dos engenheiros — que, para a época, eram excelentes — 0 que 0s outros deixavam a sorte e ao capricho dos individuos. $a, biam organizar-se em trabalhos coletivos, de utilidade geral © que é demonstrado pelos canais com que beneficiaram eave, las regides infestadas de maliria. Mas. sobretudo non. merciantes formidaveis, ligados ao dinheito e pron a qualquer sacrificio a fim de multiplicé-lo. Os romper es 2 Favam ainda o que havia atrés do Soracte, uma pedaere ene, tanha um pouco afastada de sua cidade: os etruscos ja avy m 20 alcancado 0 Piemonte, a Lombardia e o Veneto, haviam atra- vessado a pé os Alpes e, subindo 0 Rédano e o Reno, haviam Ievado seus produtos aos mercados franceses, suicos ¢ alemaes para trocé-los pelos produtos locais. Foram eles que trouxe- ram a moeda & Italia como sistema de cambio, que, depois, ‘0s romanos sem diivida copiaram, pois gravaram em suas moe- das a proa de um navio antes de terem construido algum. Eram pessoas alegres, que tomavam a vida pelo lado mais agradavel; e por isso, ao final, perderam a guerra contra os melancélicos romanos, que a tomavam pelo lado mais auste- ro. As cenas reproduzidas em seus vasos e sepulcros mostram- nos homens bem-vestidos, com aquela toga que depois os ro- manos copiaram e tornaram sua vestimenta nacional, cabelos longos e barbas encaracoladas, muitas joias nos pulsos, no pes- ogo, nos dedos, ¢ sempre com disposicao para beber, comer e conversar, quando nao estavam praticando algum dos seus exercicios esportivos. Estes consistiam sobretudo no boxe, no lancamento de discos ¢ dardos, na luta e em outras duas modalidades que imaginamos, erroneamente, serem de uma elegancia moder- na e estrangeira: 0 polo ¢ a tourada. Naturalmente, as regras destes jogos eram diferentes das que se usam hoje. Mas desde aquela época o espetdculo da luta entre 0 touro € 0 homem na arena era muito apreciado, como o prova o fato de que aqueles que morriam desejavam levar na tumba alguma cena- Iembranca pintada nos vasos, para continuarem a se divertir no Além. Um grande avango em relagdo aos arcaicos e patriarcais costumes romanos e dos outros indigenas era a condi¢do da mulher, a qual, entre os etruscos, gozava de grande liberda- de, e de fato é representada na companhia de homens, parti cipando dos divertimentos deles. Parece que eram mulheres muito bonitas e de habitos muitissimo livres. Nas pinturas, apa- recem cheias de joias, borrifadas de cosméticos ¢ sem preocu- pagdes excessivas com 0 pudor. Comem até estourar, bebem a08 gorgolejos, estendidas, com seus homens, sobre amplos sofas. Ou entdo tocam flauta, ou dangam. Uma delas, que de~ pois se tornou muito importante em Roma, Tanaquil, era uma telectual’”, que sabia um bocado de matematica ¢ de me- 21 dicina. Isso significa que, 4 diferenca das suas colegas latinas, condenadas & mais negra ignorancia, iam a escola e estuda. vam. Os romanos, que eram assaz moralistas, chamavam de “toscanas’’, isto é, etruscas, todas as mulheres de costumes faceis. E numa comédia de Plauto ha uma moga acusada de seguir o ‘‘costume toscano”’ porque é prostituta. A religiao, que é sempre a projecéo da moral de um po. vo, estava centrada num deus de nome Tinia, que exercia seu poder com 0 raio e com 0 trovao. Ele nao governava direta- mente os homens, mas confiava suas ordens a uma espécie de gabinete executivo, composto por 12 grandes deuses, tao gran- des que era sacrilégio até pronunciar seus nomes. Abstenhamo- nos também, para nao confundir as idéias de quem nos |é. To- dos juntos formavam um grande tribunal do Além, para on- de os “‘génios’’, espécie de comissarios ou guardas municipais, conduziam as almas dos defuntos assim que abandonavam seus respectivos corpos. E ali comecava um verdadeiro processo. Quem nao conseguia provar que vivera segundo os preceitos dos juizes era condenado ao inferno, a menos que os parentes € os amigos vivos fizessem por ele tantas orages e sacrificios a ponto de obter a absolvicao. Nesse caso, subia ao paraiso, para continuar a gozar aqueles prazeres terrestres, a base de bebedeiras, comilangas, socos e cangdes, dos quais fizera es- culpir as alegres cenas sobre o timulo. Mas parece que os etruscos falavam pouco e rapidamen- te sobre 0 paraiso, deixando-o mais com uma idéia vaga. Tal- vez poucos fossem para Id, para que se soubesse algo exato. Aquilo sobre o que estavam informadissimos era o inferno, do qual conheciam, um por um, todos os tormentos a serem sofridos. Sem diivida, seus sacerdotes pensavam que para man- ter as pessoas na linha valiam mais as ameacas da danac&o que as esperancas da absolvicao. E este modo de ver as coisas perpetuou-se até épocas mais recentes, até a de Dante, que, nascido também na Etriria, permaneceu com a mesma for- ma de pensar e abusou muito mais do inferno que do paraiso. Com isso, nao devemos acreditar que os etruscos fossem florezinhas de delicadeza. Matavam com relativa facilidade, até mesmo com a boa inten¢ao de oferecer a vitima em sacri, ficio para a salvacao de um amigo ou de um parents, O- pri- 22 |AS PRINCIPAIS CIDADES ETRUSCAS sioneiros de guerra, sobretudo, eram destinados a esta neces. sidade. Trezentos romanos, capturados em uma das tantas ba- talhas travadas entre os dois exércitos, foram mortos por lapidagdo em Tarqiiinia. E em seus figados, ainda palpitantes de vida, os adivinhos tentaram conhecer os futuros eventos da guerra. Evidentemente nao 0 conseguiram, senao a teriam interrompido logo. Mas 0 costume era freqiiente, mesmo que em geral se usasse figado de ovelha ou de touro — ¢ os roma- nos 0 copiaram. _ Politicamente, suas cidades dispersas jamais conseguiram unir-se, e por infortinio nenhuma delas era forte o suficiente para ter em suas mAos as outras, como fez Roma com as ri- vais latinas e sabinas. Houve uma federacdo dominada por Tarqiiinia, mas néo conseguiu pér um ponto final 4s tendén- cias separatistas. Os 12 pequenos Estados participantes, em vez de se unirem contra o inimigo comum, deixaram-se aba- ter e destruir por ele, um a um. Sua diplomacia era como a de certas nagdes européias modernas, que preferem morrer so- zinhas a viver juntas. Tudo isso foi reconstruido, a forca de indugdes, a partir dos resquicios da arte etrusca chegados até nds ¢ que consti- tuem a tnica heranca deixada por aquele povo. Trata-se, ¢s- pecialmente, de vasos ¢ de bronzes. Entre os vasos existem alguns muito bonitos, como o “Apolo de Veios””, conhecido também como “Apolo caminhando”, de cermica policroma- da, que demonstra uma grande habilidade técnica e um gosto sofisticado nos corioplastas etruscos. Quase sempre so imi- tages gregas e, & excecao de alum exemplar raro, como 0 rlcaro negro”, ndo nos parecem grande coisa, , lo, embora tais resquici basa pra aa compreender comno es fomanon, una vet 08 etruscos — depois iien um bom tempo sat escolasesuportado'a suecioeti ses les, sobretudo no campo técnico e organizacional “no 86 os destruiram, mas também tentaram apagar todos « gios de sua civilizacdo. Consideravam-na doente ¢ c ra. Copiaram dela tudo o que hes era interessante. Montes seus filhos as escolas de Veios e de T: cay err i as ‘are i 24 + Nao sO ‘os vesti- ‘Adotaram 0 uso da moeda. E talvez tenham tomado empres- tada também a organizagio politica, a qual, porém, os etrus- cos tiveram em comum com outros povos da Antiguidade que passou, também entre eles, de um regime monérquico para © republicano, regido por um /ucumdo, magistrado eletivo, ¢ por fim para uma forma de democracia dominada pelas clas- ses ricas. Mas Roma quis preservar seus préprios costumes, est6icos e sadios, baseados no sacrificio e na disciplina social, contra a volpia dos etruscos. De maneira instintiva, perce- beu que ndo era suficiente vencer o inimigo na guerra € ocu- par suas terras, dando-Ihe depois a oportunidade de contaminar 6s lares de seus senhores mediante a qualidade de escravo ou de preceptor, como se usava naqueles tempos com os venci- dos. Eo destruiu. E quis sepultar todos os documentos e mo- numentos. Isto, porém, aconteceu muito tempo depois de se dar 0 primeiro contato entre os dois povos, que estavam precisamente em Roma quando ali chegaram os albalonguenses e encontra- ram, ao que parece, uma pequena colénia etrusca ja instala- da, que tinha dado ao lugar um nome em sua propria lingua. Parece, de fato, que ‘*Roma’” provém de “‘rumon’”, que em etrusco significa “rio”. E se isso é verdade, cumpre deduzir que a primeira populacdo da Urbe formou-se nao s6 de lati- nos e de sabinos, povos do mesmo sangue ¢ da mesma cepa, como faria crer a histéria do famoso “rapto””, mas também de ettuscos, gente de outra raga, lingua e religido. Alias, se- gundo alguns historiadores, o proprio Rémulo seria etrusco. De qualquer forma, certamente era etrusco o ritual com que se fundou a cidade, o de cavar o sulco com um arado puxado por um touro e por uma novilha brancos, depois de 12 passa~ ros de bom agouro terem volteado sua cabeca. ‘Sem querer competir com os especialistas que ha séculos discutem estas coisas e no conseguem entrar num acordo, apresentaremos a versio que nos parece a mais provavel de todas. ‘Os etruscos, que nutriam uma verdadeira paixdo pelo tu- rismo e pelo comércio, j4 haviam fundado uma pequena al- dela junto ao Tibre quando os latinos e os sabinos ali chegaram. Bessa aldeia devia funcionar como um posto de distribuigao 25 e de reabastecimento as suas linhas de navegaco para o su}, Aqui, e em especial na Campania, j4 haviam instalado rica, colénias: Capua, Nola, Pompéia, Herculano, onde as popu, lagbes locais, que se chamavam samnitas e também eram de origem vilanoviana, iam trocar seus produtos agricolas com 0s industriais chegados da Toscana. Era dificil, vindo de Aré. cio ou de Targiiinia, chegar até lé embaixo por terra. Falta, vam estradas e a regido era infestada de feras ¢ de bandidos, Era muito mais facil para os etruscos, j4 que eram os tinicos a possuir uma frota, chegar por mar. Contudo, a viagem era Tonga, demandava semanas inteiras. As naus, do tamanho de uma casca de noz, nao podiam embarcar provisdes para os homens e precisavam de portos, ao longo do caminho, para se abastecerem de farinha e Agua durante o resto do trajeto A foz do Tibre, exatamente na metade do caminho, oferecia uma coda baia para carregar os pordes vazios; além disso, navegivel como era aquela época, constituia também um meio favoravel para penetrar o interior e fechar algum pequeno ne- g6cio com os latinos e os sabinos que o habitavam. A érea reunia uma constelacdo nao se sabe se de umas trinta ou se- tenta aldeias, cada uma das quais representando um pequeno mercado de trocas. Nao que ali fosse possivel realizar gran- des negécios, pois o Lacio, naquela época, s6 era rico em ma- deiras, devido (quem poderia imaginar?) aos seus maravilhosos bosques. No mais, nao produzia sequer farinha, mas um tos- co pio de farelo, algum vinho e azeitonas. Mas os etruscos. desde que ganhassem dinheiro, satisfaziam-se com pouco, € esse vicio permaneceu entre eles. . Por isso fundaram Roma, chamando-a assim ou com ou- tro nome, mas sem dar muita importéncia a coisa. Quem s2- be quantas Romas havia, espalhadas ao longo da costa do Tirreno, entre Livorno e Napoles. E nelas colocaram, como guardid, uma guarni¢o de marinheiros e comerciantes, que talvez considerassem aquela transferencia uma punigac i nham de manter em ordem sobretudo o canteiro pars o com serto dos barcos danificados pel de abastecimento. Pelas tempestades e os armazéns Um belo dia, porém, come: pos de latinos e sabinos, ‘garam a chegar pequi lenos gru- um pouco talvez por terem. come 26 do a se sentir apertados em suas préprias casas, um pouco por quererem, também eles, comerciar com os etruscos, de cujos produtos necessitavam. Que eles j4 possuissem, desde entao, um plano estratégico de conquista, primeiro da Italia e, de- pois do mundo e para isso considerassem a localizacdo de Ro- ma indispensavel, trata-se de fantasias dos historiadores de hoje. Aqueles latinos e sabinos eram uns grosseirdes de ori gem camponesa, para os quais a geografia se resumia ao quintal de suas casas. E provavel que esses recém-chegados tenham vindo de maos dadas. Mas também é provavel que, depois, em vez de se destruirem reciprocamente, tenham resolvido aliar-se, a fim de enfrentar 0s etruscos, que deviam olhd-los da mesma for- ma como 0s ingleses olham os aborigines em suas colénias Frente aqueles forasteiros que os tratavam de cima para bai- xo e que falavam um idioma para eles incompreensivel, tive- ram de aperceber-se que eram irmaos, unidos pelo mesmo sangue, pela mesma lingua e por idéntica miséria. E foi por isso que dividiram entre si o pouco que tinham: as mulheres. © famoso rapto talvez nao passe de um simbolo desse acor- do, do qual naturalmente os etruscos permaneceram exclui dos, mas por vontade propria. Eles sentiam-se superiores ¢ no queriam misturar-se com aquela ralé. A divisao racial manteve-se por uns cem anos, NO mini- mo, durante os quais latinos e sabinos, jé fundidos no tipo romano, tiveram de engolir intimeros sapos. Depois de Tar- Giiinio, 0 Soberbo, que foi o ultimo rei, quando eles sentiram 6 vento a favor, a vinganca foi indiscriminada. E talvez a fe- rocidade com que comecaram a destruir a Etriiria, ndo s6 co- mo Estado, mas também como civilizagiio, fosse devida justamente 4s humilhagées sofridas por parte dos etruscos, em sua propria patria. E quiseram depurar tudo deles inclusive a histéria, dando uma certidao de nascimento até a Rémulo, que talvez a possuisse etrusca, e fazendo remontar a origem da cidade & unido com os sabinos 27 CAPITULO 3 OS REIS AGRARIOS we UANDO Rémulo morreu, pultado Tito Tacio, os romano: © havia raptado e conduzido deus — o deus Quirino. E de muitos anos depois de ter se- 's afirmaram que o deus Marte © go céu para transformé-lo em a . nto come tal o vi assim, como fazem hoje os napolitanos com So Genstoc io, quuegeu the, como segundo rei de Roma, Numa Pompi- aoe pela tradicao meio fildsofo, meio santo, Se reer cma como o seria, varios séculos mais tarde, Mar- Soca BO, AS auestes que mais o interessavam eram as re Bosak: A que em relacd a tal assunto devia existir uma priosdeuses,enze os quais nao om pected ee oe nai el ent fae importante, Numa devidiu colocé-to em Sein E fee noticia de que todas és notes, enguanto donnie’, sea ee Fa vinha do Olimpo visité-to em sonhos para transmi rh instrucdes. Quem a elas desobed iio ire Prestar contas ao rei, homem entre os homens es ut par, mens, mas a Deus __ O estratagema pode parecer infantil ciona, vez por outra. Em pleno século X: 28 , Mas até hoje fun- %, Hitler, para obri- gar os alemées a obedecer-Ihe, nao conseguiu imaginar outro melhor. E as vezes descia a montanha de Berchtesgaden com alguma nova ordem do bom Deus no bolso: a de exterminar 0 judeus, por exemplo, ou a de destruir a Polonia. E 0 mais incrivel é que, ao que parece, ele proprio também acreditava nisso. A humanidade, nesses assuntos, ndo progrediu muito desde os tempos de Numa. Contudo, talvez também nesta lenda haja um fundo de verdade ou, pelo menos, algum indicio que nos permita reconstrui-la. Quaisquer que fossem seus nomes ou origens, 9s reis da Roma antiqiifssima nao deviam ser reis propriamente ditos; deviam ser papas, como no mais era o “‘arconte basi- leu’’, em Atenas. Todas as autoridades, naquela época, escoravam-se prin- cipalmente na religiao. O poder do préprio pater familias, ou chefe do lar, sobre a mulher, os irmaos menores, os filhos, (08 sobrinhos, os servos era semelhante ao de um alto sacerdo- te, a quem o bom Deus delegara determinadas fungoes. E por isso era tdo forte. E por isso as familias romanas eram tao disciplinadas. E por isso cada um respeitava tanto os proprios deveres e os cumpria na paz ¢ na guerra. ‘Numa, ao estabelecer uma ordem de precedéncia entre 0s varios deuses que cada um dos diversos povos havia trazi- do a Roma, completou talvez uma obra politica fundam tal: a que mais tarde permitiu aos seus sucessores, Tulio Hostilio e Anco Marcio, conduzir o povo unido as guerras vi- toriosas contra as cidades rivais da regio. Porém, em termos de poderes politicos propriamente ditos, no deviam ter mui- tos, pois os maiores e mais decisivos ficavam nas maos do po- vo que os clegia e a quem eram obrigados a responder sempre. Isso, por si s6, poderia nao significar nada, pois em to- dos os tempos ¢ sob qualquer regime, os que comandam semn- pre afirmam faz@-lo em nome do povo. Mas em Roma nao era conversa fiada, pelo menos até a dinastia dos Tarqiiinios, que perderam o trono justamente porque queriam ficar set tados nele como patrdes e ndo como “delegados”. E a divi sao do comando era feita mais ou menos assim: ‘A cidade era dividida em trés fribos: a dos latinos, a dos sabinos, a dos etruscos. Cada ribo dividia-se em trés cuirias, 29 ou quarteirdes. Cada edna em dez gentes, ou estirpes. Cad, estirpe era dividida em familias. As ctirias reuniam-se, em ge. ral, duas vezes por ano e nessas ocasides realizavam 0 coms. cio curial que, entre outras coisas, se ocupava também da eleic&o do rei, quando um morria. Todos tinham 0 mesmo di- reito a voto. A maioria decidia. O rei executava. Era a democracia absoluta, sem classes sociais, ¢ funcio- nou enquanto Roma era uma pequena aldeia, habitada por poucas pessoas, que raramente punham a cabeca fora das m ralhas. Depois os habitantes cresceram, e cresceram também as exigéncias. O rei, que antes, além de tezar a missa, ou seia, celebrar 0s sacrificios e os outros rituais da liturgia, tinha tam- bém de aplicar as leis, isto é, fazer o papel de juiz, nao teve mais tempo para cumprir todas essas obrigagdes e comegou a nomear “funciondrios”’ a fim de Ihas confiar. Assim nas- ceu a chamada “‘burocracia””. Aquele que havia sido sobretu- do um padre torna-se bispo e designa pirocos e curas para que 0 ajudem nas fungdes religiosas. Depois precisa também de quem cuide das estradas, do censo, do cadastro, da higie- ne, € nomeia especialistas para que se ocupem desses assun- tos. Assim nasceu 0 primeiro “ministério”: 0 chamado Conselho dos Ancidos ou Senado, constituido por uma cea- tena de membros que descendiam, por direito de primogeni- tura, dos pioneiros vindos com Rémulo para fundar Roma € que de infcio tém apenas o dever de aconselhar o soberano, mas depols se tornam cada vez mais influent, . __ Epor fim, como organizacao estavel, nasce 0 exército, tam- bém baseado na divisdo de trinta cuirias, serdoducsade a delas devia guarnecer uma centiria, isto é, cem soldados de in- fantaria, e uma dectiria, ou seja, dez cavaleiros com seu cava- lo. As trinta centurias e'as dez deciirias, isto é, 3.300 homens formavam, todas juntas, a legido, 0 primeiro e nico corpo ar. mado da antiqiissima Roma. O rei, que era o comandante su premo, tinha direito de vida ou morte sobre os soldados. Mas nem mesmo esse poder militar era exercido de mancira abso. luta e sem controle. Fle dirigia as operagdes, mas s6 depois 4 pedir conselhos ao comicio centurial, isto €. A legiao armada, 4 qual solicitava também a aprovacdo para as nomeacoes dog oficiais, que naquele tempo se chamavam pretores 30 Portanto, os romanos tomavam todas as precauc6es pa- ra que 0 rei nao se transformasse num tirano. Ele devia per- manecer como um “delegado” da vontade popular. Quando um bando de passaros aparecia em revoada ou um raio des- pedacava uma arvore, era sua obrigacao reunir os sacerdotes, analisar com eles o significado daqueles sinais e, se Ihe pare- cia que queriam dizer algo nao muito bom, decidir que sacri- ficios era preciso fazer para aplacar os deuses, sem diivida ofendidos com alguma coisa. Quando duas pessoas brigavam entre si e porventura uma roubava ou esganava a outra, nao era de sua competéncia meter-se nisso. Mas se alguma come- tesse um crime qualquer contra 0 Estado ou contra a coletivi- dade, entdo fazia com que os guardas a trouxessem perante sie talvez a condenasse & morte. Em relacao a todo 0 resto, porém, nao podia tomar decisdes. Devia solicité-las junto aos Comicios curiais, em tempo de paz, € aos centuriais, em tem- po de guerra. Se fosse esperto, conseguia, como acontece ho- je, apresentar como ‘‘vontade do povo"” sua propria vontade. Caso contrario, tinha de sujeitar-se a ela. Mas sempre devia prestar contas, para executd-la, ao Senado. Essa foi a ordem que o primeiro rei de Roma, fosse ele Romulo ou nao, ¢ de qualquer uma das trés ragas a que tenha pertencido, dew a Urbe. E isso foi o que o sabio Numa deixou a0 seu sucessor Tiilio Hostilio, que tinha um temperamento muito mais vigoroso. Ele tinha a politica, a aventura e a ambicao no sangue. Mas 0 fato de 0 ‘“comicio” ter escolhido logo ele para sobe- rano significa que, depois de quarenta anos de paz assegura- dos por Numa, toda Roma desejava entrar em guerra. Dentre as aldeias e cidades que a circundavam, Alba Longa era a mais rica e a mais importante. Nao sabemos qual pretexto Tullio inventou para Ihe declarar guerra. Talvez nenhum. Mas o fa- to & que um belo dia atacou-a e arrasou-a, embora a lenda tenha transformado essa prepoténcia num episddio cavalhei- resco e quase gentil. De fato, dizem que os dois exércitos de- positaram o destino das armas num duelo entre os trés Hordcios romanos € os trés Curidcios albalonguenses. Estes mataram dois Hordcios. Mas 0 tiltimo, por sua vez, matou-ose decidiu a guerra, Contudo, Alba Longa foi destruida, ¢ seu rei teve 31 suas pernas amarradas a duas carrocas que, langadas em di. re¢ao oposta, o esquartejaram. Foi assim que Roma tratoy aquela que considerava sua mae-patria, a terra de onde dizig que seus fundadores tinham vindo. Naturalmente, 0 acontecimento deve ter alarmado um pouco todas as outras aldeias da regido, as quais, sem ter so- frido a influéncia etrusca, ficaram para trds em relacao ao cha- mado progresso e, portanto, sentiam-se mais frdgeis e menos armadas que os romanos. Um pouco com todas, Tulio Hosti- lio e seu sucessor Anco Marcio, que lhe seguiu 0 exemplo, pro- curaram briga. Em conclusao, o dia em que Tarqiiinio Prisco foi eleva- do ao trono como o quinto rei, Roma jé era o inimigo publi- co numero um daquela regido, cujos limites nao se conhecem com exatidao, mas se sabe que deviam estender-se mais ou me- nos até Civitavecchia ao norte, até Reate a leste ¢ até Frosino- ne ao sul. Ora, € muito provavel que tal politica de conquistas, des- tinada a tornar-se ainda mais agressiva com os trés ultimos reis da familia Tarqitinia, fosse sobretudo de inspiragao etrusca. Por um simples motivo: enquanto os latinos e os sabinos eram agricultores, os etruscos eram industriais e comerciantes. Ca- da vez que explodia uma nova guerra, os primeiros tinham de abandonar suas terras, deixando-as em ruinas, para se alis- tarem na legiao, e arriscavam perdé-las, se o inimigo vences- se. Os segundos, porém, nao tinham nada a perder: ao contrario, aumentavam o consumo, choviam ‘“‘comissées”’ do governo e, em caso de vitéria, conquistavam novos mercados. Em todos os tempos e em todas as nacdes sempre foi assim: os habitantes da cidade, capitalistas, intelectuais, comercian- tes, querem a guerra contra a vontade dos camponeses, que ainda por cima sao obrigados a fazé-la. Quanto mais o Esta- do se industrializa, quanto mais a cidade tem predominio so- bre o campo, mais sua politica torna-se aventureira e agressiva, Até 0 quarto rei o elemento camponés prevaleceu em Ro. ma e sua economia foi sobretudo agricola. Aqueles 3.300 ho. mens que constituiam seu exército demonstram- conjunto da populacao devia somar umas trinta das quais a maior parte estava espalhada pelo ca Nos que o mil almas, impo. Na ci- 32 Terie sibmetido a Rome 5 ast ves Anti LATIUM VETUS DEPOIS DA PRIMEIRA GUERRA LATINA (493 a.C.) dade propriamente dita, devia estar concentrada, mais ou me. nos, a metade dessa populacdo, que do Palatino se havia es. parramado também pelas outras colinas. A maior parte vivia em cabanas de barro, levantadas de forma confusa e desorde. nada, com uma porta para entrar, mas sem janelas, e um tni- co cémodo, onde comiam, bebiam e dormiam todos juntos — papai, mamée, filhinhos, noras, genros, netos, escravos (quem os possuia), galinhas, jumentos, vacas e porcos. Os ho- mens, pela manha, desciam & planicie para arar a terra. E en- tre eles estavam também os senadores que, como todos os outros, jungiam os bois e distribuiam as sementes ou ceifa- vam as espigas. Os meninos os ajudavam, pois o trabalho no campo era sua tnica e verdadeira escola, seu tinico ¢ verda- deiro esporte. E os pais aproveitavam a ocasido para ensinar- Thes que a semente dava bons frutos s6 quando 0 céu manda- vva dgua e sol na dose certa sobre a gleba; que o céu mandava gua ¢ sol na dose certa sobre a gleba s6 quando os deuses © desejavam; que os deuses 0 desejavam s6 quando os homens haviam cumprido todos os seus deveres em relacao a eles; ¢ que o primeiro desses deveres consistia na obedigncia dos jo- vens aos velhos. Assim cresciam os cidadios romanos, pelo menos aque- les de descendéncia latina e sabina, que deviam constituir a maioria, A higiene e os cuidados com 0 préprio corpo deviam reduzir-se a0 minimo, até mesmo entre as mulheres. Nada de cosméticos, nada de vaidades, pouca ou quase nenhuma égua, gue as mulheres tinham de it pegar lé embaixo ¢ leva-la em Anforas sobre a cabega. Nao havia banheiros decentes nem es- gotos. As proprias necessidades eram feitas do lado de fora da porta e deixadas ali. As barbas e os cabelos cresciam des- cuidados. Quanto as roupas, ndo se-fiem nos monumentos, pois pertencem a épocas muito mais recentes, quando Roma teve uma verdadeira industria téxtil e uma categoria de costu- reitos evoluidos, cuja maioria era de origem e de escola gre- gas. Naqueles tempos longinquos, a toga, que depois adquiriu tanta imponéncia, ou ainda nao havia nascido, ou se limita a sua forma mais elementar. Talvez fosse parecida com a fue. ta atualmente usada pelos abissinios: um trapo branco, tec. do em casa pelas esposas e pelas filhas com a lé das ovelhas 4 ¢ com um buraco no meio para enfiar a cabega. Poucos pos- suiam outra para substitui-la. Em geral, usavam sempre a mes- ma, no verdo e no inverno, de dia € a noite, imaginem vocés com quais conseqiiéncias. Nao se permitiam qualquer prazer, nem mesmo os da gula. Contrariando as teorias dos cientistas americanos de hoje, se- gundo os quais a forca de um povo se condiciona ao consu- mo de calorias e de vitaminas, que por sua vez ¢ condicionado pela variedade de sua nutrigao, os romanos demonstraram que € possivel conquistar o mundo comendo apenas um emplas- tro malcozido de farinha e 4gua, algumas azeitonas e um pouco de queijo, regados, mas s6 nos dias de festa, por um copo de vinho. Parece que 0 azeite s6 chegou mais tarde, ¢ no inicio talvez o usassem apenas para untar a pele, como protecao con- tra as queimaduras causadas pelo frio ¢ pelo sol — 0 que de- via aumentar um bocado o mau cheiro generalizado. Desse sistema nao escapava nem mesmo 0 rei, que so com a dinastia dos Tarqiiinios teve um uniforme, um elmo e algu- mas insignias especiais. Até Anco Marcio, ele foi igual entre 08 iguais, também arou a terra atras dos bois jungidos, distri- buiu sementes e ceifou espigas. Nao € certo que possuia um paldcio real ou até mesmo um recinto particular. E certo, po- rém, que andava no meio das pessoas, sem escolta, pois, se tivesse uma, todos o acusariam de querer reinar com a forca em vez de com o consenso do povo. Tomava suas decis6es em- baixo de uma arvore ou sentado a porta de sua casa, depois de ter escutado a opinidio dos ancidos, dispostos em roda. So quando tinha de celebrar um sacrificio ou uma outra cerimé- nia religiosa é que subia & tribuna e talvez vestisse uma roupa especial. Mesmo na guerra, os romanos nao usavam nada que desse a impressfio de uma verdadeira organizacao militar. O pretor que comandava a centiiria ou a deciiria nao possuia insignias de graduacao. As armas eram, sobretudo, bastdes, pedras ¢ umas toscas espadas. Foi preciso muito tempo para se chegar a0 elmo, ao escudo e a couraca, invengdes que 4 época devem ter causado 0 mesmo efeito que a metralhadora e os tanques de guerra, nos nossos dias. Assim, as grandes campanhas que Roma emprcendeu sob seus primeiros ¢ belicosos reis deviam 35 parecer, mais que tudo, expedicdes punitivas, decididas a ba. se de pauladas, de homens contra homens, sem a menor som, bra de tatica ¢ estratégia. Os romanos venceram-nas nao tanto porque fossem os mais fortes, mas porque eram os mais con. vencidos de que sua patria fora fundada pelos deuses para con. cretizar grandes designios, e que morrer por ela constituia nao ‘um mérito, mas apenas 0 pagamento de um débito contraido no momento em que se nascia. O inimigo, uma vez derrotado, deixava de ser “‘sujeito” para se tornar um mero ‘“‘objeto””. O romano que o fizera pri- sioneiro considerava-o uma propriedade particular: se estava de mau humor, o matava; se estava de bom humor, levava-o para casa como escravo e podia fazer dele o que quisesse: maté- lo, vendé-lo, obrigd-lo a trabalhar. As terras eram requisita- das pelo Estado e alugadas aos stiditos. As cidades com mui- ta freqiiéncia eram destruidas e os habitantes deportados. Com semelhantes sistemas, Roma cresceu a custa dos la- tinos ao sul, dos sabinos e dos équos a leste, dos etruscos ao norte. Nao ousava aventurar-se ao mar, do qual distava pou- cos quilémetros, porque ainda nao possuia uma frota e sua populacao camponesa sentia, por instinto, um certo temor em relacdo a ele. Sob R6mulo, Tito Tacio, Tiilio Hostilio e Anco Marcio, os romanos foram “‘terratenentes” e sua politica, “ter- restre”. Foi 0 advento de uma dinastia etrusca que mudou radi- calmente as coisas, seja na politica interna, seja na externa 36 CAPITULO 4 OS REIS MERCADORES me Niko se sabe com exatido quando e como Anco Marcio morreu, Mas deve ter sido uns 150 anos depois do dia que a Tenda quer que Roma tenha sido fundada, ou seja, em torno de 600 a.C. De qualquer maneira, parece que naquele momento se encontrava na cidade um certo Liicio Tarqiiinio, um tipo bem diferente daqueles que os romanos costumavam escolher para reis ¢ magistrados. : ‘Nao era do lugar. Vinha da Tarqiiinia e era filho de um grego, Demarato, emigrado de Corinto e casado com uma etrusca. Desse cruzamento nascera um rapaz esperto, brilhante, atrevido, extremamente ambicioso, que os romanos olharam, quando veio estabelecer-se entre eles, com um misto de admi- ragao, inveja e desconfianga. Era rico e perduldrio entre pes- soas pobres ¢ tacanhas. Era elegante em meio a campénios grosseiros. Era 0 unico que sabia filosofia, eeografia e mate- matica num mundo de pobres analfabetos. Quanto a politi- ca, o sangue grego mais o sangue etrusco deviam fazer dele um diplomata de mil recursos entre concidadaos que deviam possuiir poucos. Tito Livio diz sobre ele: Foi o primeiro a cons- Dirar para se eleger rei ea pronunciar um discurso para asse- gurar 0 apoio da plebe. 37 Que tenha sido o primeiro, temos nossas diividas. Mas que tenha conspirado, temos absoluta certeza. Provavelmen. te, as familias etruscas, que constitufam uma minoria, mas ri ca e poderosa, viram nele o homem certo; € cansadas de serem governadas por reis pastores e camponeses, de raca latina ¢ sabina, surdos as suas necessidades comerciais e expansionis. tas, decidiram eleva-lo ao trono. Como as coisas se deram, ninguém sabe. Mas a alusao de Tito Livio 4 plebe permite-nos fazer uma idéia. Ela é um elemento novo na historia romana, ou pelo menos um elemento. que nao se fizera ouvir sob os primeiros quatro reis, que nao tinham necessidade alguma de falar & plebe para serem elei- tos pelo simples fato de que, no tempo deles, a plebe nao exis- tia. Nos comicios curiais, que procediam a investidura do soberano, nao existiam diferencas sociais. Todos eram cida- das, todos eram pequenos ou grandes proprietdrios de terra; todos, portanto, tinham formalmente os mesmos direitos, mes- mo que depois, na pratica, por forca das circunstncias, as decisées fossem tomadas e impostas aos outros por alguns pro- fissionais da politica. Era uma perfeita democracia caseira, onde tudo era fei- to a luz do sol ¢ discutido entre cidadaos iguais, e o que tinha importancia, na distribui¢ao dos cargos, era a estima ¢ 0 pres- tigio de que se gozava. Mas ela evidenciava a pequena cidade que Roma era naquele seu primeiro século de vida — fechada em seu estreito circulo de casebres, onde cada um conhecia 0 outro e sabia de quem era filho e 0 que havia feito e como tratava a esposa € quanto gastava para comer e quantos sacri- ficios celebrava em nome dos deuses. Mas com a morte de Anco Marcio a situagdo mudou to- talmente. As exigéncias da guerra haviam estimulado a indis- tria e, portanto, favorecido o elemento etrusco, aquele que thes fornecia os carpinteiros, os ferreiros, os armeiros, os merca- dores. Haviam chegado de Tarqiiinia, de Arécio, de Veios, as pequenas casas de negécios encheram-se de criados e de apren- dizes que, ao aprenderem 0 oficio, abriam outras casas. O au- mento dos saldrios chamara a cidade a mao-de-obra camponesa. Os soldados, depois de terem feito a guerra, vol- tavam a contragosto para os campos e preferiam permanecer 38 ‘em Roma, onde se encontravam mulheres ¢ vinho com mais facilidade. Mas, sobretudo, as vitérias fizeram confluir para 14 levas de escravos. E era essa multidao forasteira que for- mava o plenum, do qual provém a palavra plebe. Liicio Targiifnio e seus amigos etruscos devem ter perce- bido logo o proveito que se poderia tirar dessa massa de pes- soas, em sua maioria excluida dos comicios curiais, se fosse possivel convencé-la de que s6 um rei também forasteiro po- deria fazer valer seus direitos. E para isso exortou-a com dis- cursos, prometendo-Ihe quem sabe 0 qué, talvez aquilo que depois fez de verdade. Eles tinham atrés de si o que se chama- ria hoje a Confindustria:* os Cini, os Marzotto, os Agnelli 05 Pirelli, os Falck da antiga Roma; gente que tinha tanto di- nheiro para gastar em propaganda eleitoral quanto quisesse, eestava decidida a fazé-lo para garantir um governo com uma disposicao maior que os anteriores a tutelar seus interesses € a dar continuidade aquela politica expansionista, que era a con- dicdo de sua prosperidade. Certamente 0 conseguiram, pois Liicio Tarqiiinio foi eleito com 0 nome de Tarqiiinio Prisco, permaneceu no trono 38 anos, e para se livrarem dele os “patricios”, isto é, os “'terra- tenentes”, tiveram de mandar maté-lo. Mas foi intitil. Em pri- meiro lugar, porque a coroa, depois dele, passou para seu filho e, em seguida, para seu neto. Em segundo lugar, porque o ad- vento da dinastia dos Tarqiiinios, mais que a causa, era 0 efeito de uma determinada reviravolta que a historia de Roma so- frera ¢ que nao Ihe permitia mais voltar a sua primitiva e ar- caica ordenagao social e sua conseqiiente politica. (O rei da Confindustria e da plebe foi um rei autoritario, guerreiro, planificador e demagogo. Quis um palacio real € mandou construi-lo de acordo com o estilo etrusco, muito mais sofisticado que o romano. No palacio real, depois, fez erguer um trono, e ali se pds sentado, em magna pompa, com o ce- tro na mao e um elmo coberto de penachos. Deve ter feito is- so um pouco por vaidade, um pouco porque conhecia o seu rebanho e sabia muito bem que a plebe, & qual devia sua elei- ¥ Confederagdo Geral da Indiistria tatiana, (WN. da 7) 39 cdo e em cujas gracas pretendia ficar, amava 0 fausto e que. ria ver o rei em grandes galas, cercado de guardas armados, A diferenca de seus predecessores, que passavam a maior parte do tempo rezando missas e fazendo horéscopos, ele estava sem- pre exercitando 0 poder temporal, ou seja, fazendo politica e guerras. De inicio, subjugou todo 0 Lacio, depois procurou briga com os sabinos ¢ Ihes abocanhou mais um pedaco de terra, Para fazer isso, precisou de muitas armas, que a indis. tria pesada lhe forneceu realizando grandes negécios, e de mui- tas provisdes, que os comerciantes Ihe asseguraram ganhando amplas prebendas. Os historiadores republicanos e antietrus- cos escreveram depois que seu reino foi uma constante troca de favores, uma corrup¢ao generalizada, o triunfo das propi- nas e do suborno, e que o butim tomado dos vencidos foi usado nao para embelezar Roma, mas as cidades etruscas, particu- larmente Tarqiiinia, sua terra natal. Duvidamos disso, pois foi justamente sob seu reinado que Roma deu um salto a frente, em especial em termos de monu- mentos ¢ urbanistica. Antes de mais nada, construiu a cloaca ‘maxima, ou seja, os esgotos, que finalmente livraram os ci- dadaos de seus dejetos, com os quais até entdo tinham convi- vido. Além disso, finalmente a Urbe comecou de fato a se tor- nar tal, com estradas bem tragadas, bairros definidos, casas que nao eram mais simples cabanas, mas construgdes dignas deste nome, com teto inclinado em ambos os lados, janelas e Atrio, e um foro, ou seja, uma praga central, onde todos os cidadaos se reuniam. No entanto, para levar a termo essa auténtica revolugio, que transfigurava no sé a face externa de Roma, mas tam- bém seu modo de viver, ele teve de suportar a hostilidade do Senado, depositario da antiga tradicao e pouco disposto a re- nunciar ao seu direito de controle sobre o rei. Em outros tem- pos, o teria deposto ou obrigado a demitir-se. Mas agora 0 ‘Senado precisava prestar contas plebe, ou seja, a uma mul- tido que ainda nao possuia uma representagao politica ade- quada, mas esperava que Targilinio Iha proporcionasse, ¢ estava pronta a apoié-lo, até mesmo com barricadas, Para o Senado, era mais fAcil maté-lo, e assim o fizeram. Mas come. teram 0 erro imperdodvel de deixar vivos sua mulher e seu fi 40 Iho, convencidos de que ela pelo seu sexo c ele pela sua pouca idade no conseguiriam manter o poder Talvez tivessem razdo se Tanaquil fosse romana, isto é habituada a s6 obedecer. Mas ela era etrusca, havia estuda- do, dividira com o marido, nao s6 0 leito, mas também o tra~ balho, interessando-se pelos problemas de Estado, pela administragao, pela politica externa, pelas reformas; ¢ tudo 1sso ela conhecia bem mais que os prdprios senadores, muitos dos quais eram analfabetos. Sepultado 0 rei, ela ocupou o lugar dele no trono, ¢ 0 man. teve quente para Sérvio, que enquanto isso crescia ¢ foi o pi meiro e ultimo rei de Roma a herdar a coroa sem ser eleito Nao se sabe muito bem se ele era seu filho ou de uma serva ‘como o nome parece indicar. De qualquer maneira, dele tant bém os historiadores romanos, todos republicanos fervorosos procuraram falar mal. Mas ndo o conseguiram. Embora con- tra vontade, tiveram de admitir que seu governo foi esclare cido e sob ele foram levados a termo alguns dos mais importantes empreendimentos. Antes de mais nada, construiu uma muralha em torno da cidade, proporcionando, assim, tra- balho para pedreiros, técnicos e artesdos, que viram nele seu protetor. Em seguida, pds em pratica a grande reforma polit tica e social que serviu de base a todas as subseqlientes orde nagdes romanas. ‘A antiga divisio em trinta cuirias pressupunha uma cida de de trinta ou quarenta mil habitantes, todos mais ou menos ‘com os mesmos titulos, as mesmas benemeréncias ¢ o mesmo patrim6nio. Mas agora ela havia crescido de maneira extraor- dindria, e hd quem faca montar a populagdo urbana do tem po de Sérvio a setecentas ou oitocentas mil almas. Talvez sejam célculos equivocados: esse total devia corresponder, nao aos habitantes de Roma, mas aos de todo o territério conquista- do por ela, Contudo, a cidade devia superar os cem mil, pelo menos, e as grandes obras pibblicas que Tarqilinio ¢ Sérvio em- preenderam talvez tivessem sido impostas, também, por uma aguda crise de moradia. De toda essa massa, s6 a ja incluida nos comicios curiais tha voz ativa e podia votar. Os outros permaneciam exclué dos, e entre eles estavam também os mais importantes indus 4l triais, comerciantes e banqueiros: aqueles que forneciam «i. nheiro ao Estado para fazer as guerras e as grandes obras de beneficiamento. Eles, agora, tinham direito a uma recompensa, Em primeiro lugar, Sérvio concedeu cidadania aos liber. tini, ou seja, aos filhos dos escravos libertados, ou liberti. De- viam ser milhares e milhares de pessoas, que a partir de entég se tornaram seus mais encarnicados defensores. Depois, abo. liu as trinta curias divididas de acordo com os bairros, e no lugar delas instituiu cinco classes, diferenciadas segundo seu patriménio, e nao seu domicilio. A primeira pertenciam aqueles que possuiam pelo menos cem mil asses; & iltima, aqueles que tinham menos de 12.500. E dificil estabelecer a quanto cor- responde um asse, Talvez a dez liras, talvez mais. De qual- quer forma, essas diferenciagdes econémicas determinaram também as de ordem politica. Pois enquanto nas cuirias todos eram iguais, pelo menos formalmente, e 0 voto de cada um valia tanto quanto 0 dos outros, as classes votavam por cen- hhirias, mas nao possuiam um niimero igual. A primeira tinha 98. Em todas, havia 123. Assim, na pratica, bastavam os 98 votos da primeira classe para determinar a'maioria. As ou- tras, mesmo com a formagao de coalizées, no conseguiam superé-la, Era um perfeito regime capitalista ou plutocratico, que concedia 0 monopélio do poder legislative & Confindustria, tirando-o da Federterra,* isto é, do Senado, que tinha muito menos dinheiro. Mas o que este podia fazer? Sérvio nao Ihe devia sequer a elei¢do, pois a coroa fora herdada do pai; e ti- ha a seu lado o dinheiro dos ricos, que deviam a ele seu no- vo poder de influéncia, ¢ 0 apoio do povinho, a quem dera emprego, saldrio e cidadania, Sustentado por estas foreas, cercou-se de uma guarda armada para proteger a propria vi. da contra os mal-intencionados, cingiu a cabeca com um dia- dema de ouro, fez fabricar para si um trono de marfim e sobre ele sentou-se, majestosamente, com um cetro na mo, enci- mado por uma guia, Patricio ou nao patricio, senador ou mendigo, qualquer um que quisesse aproximar-se dele tinha ‘FFederagao dos Trabalhadores da Terra. (W. da 7.) 42 de se fazer anunciar e aguardar pacientemente a vez na ante-sala. Era dificil eliminar um homem desse tipo. De fato, seus inimigos, para conseguir isso, tiveram de confiar a tarefa a seu sobrinho e genro, que, como tal, podia circular livremen- te no palacio. Este segundo Tarqiiinio, antes de arriscar 0 golpe, ten- tou depor 0 tio por abuso de poder. Sérvio apresentou-se as centiirias, que o reconfirmaram rei com plebiscitaria aclama- do (quem conta isso € Tito Livio, grande republicano, e por- tanto deve ser verdade). ‘Assim, sobrava apenas o punhal, e Tarqiiinio usou-o sem grandes escripulos. Mas o suspiro de alivio que deram os se- nadores, com os quais estava aliado, ficou preso em suas gar- gantas quando viram o assassino, por sua vez, sentar-se no trono de marfim, sem pedir-lhes licenga, como acontecia na- queles bons velhos tempos que eles esperavam restaurar. novo soberano logo demonstrou ser mais tiranico que aquele que havia despachado para o outro mundo. Com efei- to, batizaram-no ‘o Soberbo" para distingui-lo do fundador da dinastia. Se Ihe deram esse apelido, algum motivo devia existir, mesmo que no seja verdade o que depois se contou sobre sua queda. Parece que se divertia em matar pessoas no Foro. E certamente tinha um temperamento agressivo, pois passou a maior parte de seu tempo, como rei, fazendo guer- ras. Guerras bem-sucedidas, pois sob seu comando o exérci- to, que agora dispunha de algumas dezenas de milhares de homens, conquistou nao sé a Sabina, mas também a Etruria e suas col6nias do Sul, pelo menos até Gaeta. Deste ponto até quase a foz do Arno, Roma fazia o que queria. A guerra nem sempre era quente. Com freqiiéncia era “fria””, como se diz hoje. Mas, enfim, Tarqiiinio foi, um pouco por forca das ar- mas, um pouco por graca da diplomacia, o chefe de algo que, para aqueles tempos, era um pequeno império. Este nao che- gava ao Adridtico, mas j dominava o Tirreno. Talvez Targiinio tenha procurado tanta briga para fazer esquecer a maneira pela qual subira ao trono, sobre o cada- ver de um rei generoso e popular. Os éxitos externos muitas vezes servem para camuflar a fragilidade interna de um regi- 43 me. De qualquer maneira, foi a essa ansia de cong se deveu, ao que parece, a queda de Tarqiiinio. Um dia, contam, ele estava no campo, com seus solda. dos, seu filho Sexto Tarqiiinio e seu sobrinho Lucio Tarqii nio Colatino, Estes, sob a tenda, comecaram a conversar sobre a virtude de suas respectivas mulheres, cada um sustentando, como bom marido, a da propria. Provavelmente, um disse para 0 outro: “‘Minha esposa é honesta. A tua te pde chifres.”” De- cidiram voltar aquela noite para casa a fim de surpreendé-las em agao. Montaram os cavalos, e foram embora. Em Roma, encontraram a mulher de Sexto a se consolar da _momentanea viuvez banqueteando com os amigos ¢ deixando-se cortejar. A de Colatino, Lucrécia, enganava a es- pera tecendo uma roupa para o marido. Colatino, triunfante, ganhou a aposta ¢ voltou para o campo. Sexto, mortificado € ansioso por uma revanche, comecou a cortejar Lucrécia e, ao final, um pouco com violéncia, um pouco com astiicia, ven ceu sua resisténcia. Cometida a infidelidade, a pobre mulher mandou cha- mar seu marido e seu pai, que era senador, confessou a eles © que acontecera e se matou com uma punhalada no cora- a0. Lticio Juno Bruto, também sobrinho do rei, o qual ma- tara seu pai, reuniu o Senado, contou a historia daquela in- famia e propés a destituicao de Soberbo do trono e a expul- sao da cidade de toda a sua familia (exceto ele, é claro). Tar- qiinio, informado, precipitou-se em direcao a Roma, enquan- to Bruto, ao mesmo tempo, galopava para o campo, e prova- velmente se encontraram no meio do caminho. Enquanto 0 rei tentava recolocar a cidade em ordem, Bruto semeava a de- sordem nas legides, que entao decidiram rebelar-se e marchar sobre Roma. ‘Taraiiinio fugiu para o norte, refugiando-se naquela Etri- ria da qual seus antepassados descendiam e cujo orgulho ha- via humilhado ao reduzir suas cidades 4 condigao de vassa- las de Roma. Deve ter sido uma amarga mortificacao para ele pedir hospitalidade a Porsena, um dicumdo, isto é, pri. meiro magistrado de Chiusi, que naquele tempo se chamava Clusium. Mas Porsena, um grande cavalheiro, a concedeu, as que 44 Em Roma, proclamaram a Republica. Como, mais tar- de, a dos Plantagenetas na Inglaterra e a dos Bourbons na Franca, a monarquia de Roma também durou sete reis. Corria 0 ano de 509 a.C. Haviam transcorrido 246 ab Urbe condita. 45 CAPITULO $5 PORSENA (Como todos os povos quando mudam de regime, os roma- nos também saudaram 0 novo com grande entusiasmo e de- positaram nele todas ag suas esperangas, inclusive as de liberdade e justiga social. Foi convocado urn grande comicio centurial, do qual participaram todos os cidadaos-soldados que declararam definitivamente sepultada a monarquia, atribui- ram a cla a responsabilidade sobre todos 0s erros e injusticas de que a administragao da coisa piblica se havia manchado, naqueles primeiros dois séculos e meio de vida; e no lugar do rei puseram dois ednsules, escolhendo-os nas pessoas dos dois protagonistas da revolucao: 0 pobre vitivo Colatino eo pobre 6rfa0 Licio Juno Bruto. O primeiro, tendo renunciado, 101 substituido por Péblio Valério. , Publio Valério passou para a histdria com o apelido de “Publicola”, que quer dizer “amigo do pov”, Publicola demonstrou essa amizade submetendo ao co- ‘icio e fazendo-o aprovar algumas leis que permaneceram bs. sicas durante todo o periodo em que durou.a Republica. Flas ameacavam com pena de morte qualquer pessoa que tentass apoderar-se de um cargo sem a aprovacdo do povo. Coneedice se 20 cidadao condenado a morte o recurso do apelo sae, 46 sembléia, isto é, ao comicio centurial. E concedia-se a todos © direito de matar, até sem processo, quem tentasse proclamar- se rei. Esta ultima lei, porém, esquecia-se de precisar quais os elementos que serviam de base para ser possivel atribuir a al- guém semelhante pretensao. E isso permitiu ao Senado, nos anos que se seguiram, livrar-se de diversos inimigos incémo- dos, apontando-os justamente como aspirantes a rei. O siste- ma ainda é usado em diversos paises: os aspirantes a rei chamam-se, vez por outra, ‘‘desviacionistas’”, “‘inimigos da patria’, “agentes pagos pelo imperialismo estrangeiro”. Os crimes ndo mudam com o progresso. Muda apenas a rubrica. Em seu zelo democratico, Publicola introduziu também © uso, por parte do cénsul, quando entrava no recinto do co- micio centurial, de fazer os lictores, que o precediam, abaixa- rem o emblema: os célebres fasces, que depois Mussolini recolocou em moda e que constituiam o simbolo do poder. Isso era para demonstrar plasticamente que esse poder vinha do povo: 0 qual, depois de delegd-lo ao c6nsul, permanecia como arbitro. Essas coisas eram muito bonitas, e até causaram muita impressao. Porém, serenados os entusiasmos, as pessoas cO- mecaram a se perguntar em que consistiam, em termos prati- cos, as vantagens do novo sistema. Todos os cidadaos tinham direito a voto, estd certo, mas nos comicios continuava-se a praticar esse direito por classes, ainda de acordo com 0 es- quema serviano, pelo qual os milionarios da primeira, tendo 98 centuirias, ¢ portanto 98 votos, bastavam por si sés para impor a propria vontade a todos os outros. De fato, uma das primeiras decisées que tomaram foi revogar as distribuicdes de terras aos pobres, feitas pelos Tarqiiinios nos paises con- quistados. Assim, iniimeros pequenos proprietdrios viram ser confiscadas, da noite para o dia, sua casa e sua herdade e, sem saber como ganhar 0 pao, voltaram para Roma em bus- ca de trabalho. Mas em Roma nao havia trabalho, pois os cénsules, no- meados por apenas um ano, nao podiam empreender nenhu- ma daquelas grandes obras publicas que eram a especialidade dos reis: os cinco primeiros eleitos para a vida inteira € os dois liltimos até com titulo de hereditariedade. Além disso, a Re- 47 publica, dominada pelo Senado que a realizara ese constituia Ge proprietarios de terras de origem latina e sabina, era sovi- na, A diferenca da perdularia monarquia, dominada por in. dustriais e comerciantes de origem etrusca e grega. Ela queria “sanear a balanga””, como se diz hoje, isto é, praticar uma politica financeira parcimoniosa, até porque nao tinha inte- resse algum em multiplicar a categoria dos novos-ricos, seus adversarios naturais. Enfim, a cidade estava em crise, ¢ os pobres campénios, que chegavam para se protegerem contra a falta de recursos a fome nos campos, ai encontravam outra fome e outra fal- ta de recursos. Os canteiros de obras estavam parados, as ca- sas e as estradas pela metade. Os audazes empreendedores, que eram os defensores de Tarqilinio e haviam dado emprego a milhares de técnicos e a dezenas de milhares de operdrios, ti- nham sido degredados ou temiam s@-lo. Os locais puiblicos fe- chavam um atrés do outro por falta de clientes, que escasseavam devido & pouca circulacdo e ao clima puritano que todas as repuiblicas difundiam ou tentavam difundir. Os propagandistas do novo regime discursavam continuamente as massas, a fim de fazé-las lembrar os crimes que os reis ha- viam cometido. Os espectadores olhavam uns para 0s outros € pensavam que entre esses “‘crimes"” havia também o Foro, onde naquele momento se encontravam, e que fora construi- do pelos execrados reis. Outro ponto sobre o qual os propagandistas insistiam eram os crimes perpetrados pela ultima dinastia, que tentara fazer de Roma uma colénia etrusca, Havia alguma verdade nisso, mas justamente gracas a isso Roma agora possuia seu Circo Maximo, sua Cloaca, seus engenheiros, seus artesdos seus histrides (que eram os atores da época), seus pugilistas e gladiadores, protagonistas daqueles espetdculos pelos quais (0s romanos eram to s6fregos, e suas muralhas, e seus eanais, ¢ scus adivinhos, e sua liturgia para adorar os deuses: eram, todas, colsas importadas justamente da Eur, nce jaturalmente, nem todos sabiam di: i haviam estado na Etruria. Porém, mais ee pe sabedores os jovens intelectuais, que haviam estudado e ge for mado nas universidades etruscas de Taraiiinia, de Arécio, de 48 Chisio, para onde seus pais os haviam mandado estudar ¢ de onde guardavam muitas lembrangas. De maneira geral, eles no pertenciam as familias patricias, as quais educavam os pré- prios filhos em casa, cuidando de torna-los, néo homens ins- iruidos, mas homens de cardter. Esses vinham de familias burguesas e sua classe ligava-se 4 dos comércios, das induis- trias e das profissdes liberais, justamente as mais atingidas pelo novo encaminhamento das coisas. Por todas essas razdes, 0 descontentamento ndo demo- rou a surgir. E ele coincidiu com a declaragao de guerra lan- cada por Porsena, sob a influéncia de Tarqiinio. Nao se sabe ao certo como se deu essa questo. Mas, de- vido & situaco, nao ¢ dificil imaginar quais foram os argu- mentos que o monarca deposto desenvolveu para induzir 0 Jucumao a prestar-lhe ajuda. Este, sem diivida, teve de fazé- Jo observar que os Tarqiiinios, embora possuissem sangue etrusco, jamais demonstraram ser bons filhos em relacao 4 Etruria, pois sempre a atormentaram com guerras ¢ expedi: ‘goes punitivas até reduzi-la quase inteiramente ao seu domi. nic, Mas 0 Soberbo talvez Ihe tenha respondido que 20 mesmo tempo em que ele e seus predecessores tornavam a Etriria ro- mana, tornavam etrusca a propria Roma, conquistando-a, por assim dizer, a partir de dentro, & custa do elemento latino € sabino, que antes a dominara. A luta ndo se desenvolvera en- Ire poténcias estrangeiras, mas entre cidades rivais, filhas da mesma civilizago. Roma, embora nascida mais tarde, pro- curara nao destrui-las, mas reuni-las sob um comando tinico para levé-las ao predominio sobre a Itdlia. Talvez tivesse er- rado, talvez aqui e ali tivesse exagerado na dose, com pouco respeito As suas autonomias municipais. Mas a nenhuma de- las 0s Tarqiiinios reservaram a mesma sorte de, por exemplo, ‘Alba Longa e tantas outras aldeias € vilarejos do Lacio ¢ da Sabina, destruidas em seus alicerces. Nenhuma cidade etrus- ca fora saqueada. Os mercadores, os artesdos,"os engenhei- ros, 0s atores, 0s pugilistas de Taraiiinia, de Chisio, de Volterra, de Arécio, assim que emigravam para Roma, néo encontravam 0 destino dos escravos, mas tornavam-se pree- minentes, e toda a economia, a cultura, a industria, 0 comér- cio das cidades estavam praticamente em suas maos. 49 Melhor dizendo, estavam enquanto os Tarqtiinios perma neceram no trono, protegendo-os. Agora, a republica signif cava a volta ao poder daqueles latinos e sabinos caipiras, avarentos, desconfiados, reacionarios e instintivamente racis. tas, que sempre cultivaram um édio surdo em relacdo a bur| guesia etrusca, liberal e progressista. Nao era possivel ter ilusde quanto a maneira como seria tratada por eles, e 0 seu desapa-| recimento significava a afirmacao, na foz do Tibre, de uma poténcia estrangeira e inimiga, no lugar de uma consangii nea e amiga (embora um pouco litigiosa e rixenta), que ama. nha poderia unir-se aos outros inimigos da Etriria e contribu para a sua extingao. Seria capaz, Porsena, de no mostrar interesse por seme- Ihante quebra de equilibrio? Ou nao achava conveniente pre- venir a catdstrofe, pulando sobre Roma, onde agora internamente, reinava o marasmo e, externamente, em espe cial no Lacio’e na Sabina, os ossos das pessoas ainda doiam devido as pancadas recebidas pelos soldados romanos? A um aceno do lucumdo de Chisio todas aquelas cidades ter-se-iam insurgido contra as precérias guarnigdes que as presidiam, ¢ Roma encontrar-se-ia, s6 discordante, a mercé do inimigo. Nao sabemos quase nada sobre Porsena. Mas, pelo mo- do como se comportou, devemos deduzir que aos dons de bom general devia somar os de um sagaz homem politico. Ele per- cebeu que havia verdade nos argumentos de Tarqiiinio. Mas antes de se comprometer, quis ter certeza de duas coisas: que © Lacio e a Sabina estavam prontos a se alinhar com ele e que na propria Roma existia uma “quinta-coluna™” mondrquica, pronta a facilitar-lhe a tarefa com uma insurreigao. A insurreicao aconteceu de fato e nela tomaram parte até 08 dois filhos do cénsul Liicio Jtinio Bruto, esquecidos, como se percebe, do destino que 0 Soberbo reservara ao avo. Fo ram presos ¢ condenados & morte depois dea revolta ser ener gicamente dominada. E 0 pai deles, dizem, quis assistir pessoalmente a sua decapitacao. , ia Mas a guerra foi mal. As diversas cidades latinas ¢ sabi nas massacraram as guarnicdes romanas ¢ uniram suas forens as de Porsena, que chegava do norte a frente de um enous. confederado, ao qual toda a Etriria enviara contingentes: Ree 50 ma, na opiniao de seus historiadores, fez milagres contra essa invasdio. Micio Cévola, penetrando no acampamento de Por- sena para maté-lo, errou o alvo e castigou a propria mao en- ganadora estendendo-a sobre um braseiro ardente. Horacio Cocles, sozinho, bloqueou todo 0 exército inimigo na entra- da da ponte sobre o Tibre, que seus companheiros destruiam as suas costas. Mas a guerra foi vencida, e as proprias lendas o provam. A exaltacdo delas constitui um dos primeiros exem- plos de “propaganda de guerra””. Quando um pais sofre uma Gerrota, inventa ou exagera os “zloriosos episéclios” sobre os quais chama a ateng&o dos contempordneos e das geracdes vin- douras ¢ 0s desvia do resultado final e completo. Eis por que os “herdis”” se encontram, sobretudo, do lado dos exércitos vencidos. Os que vencem nao precisam disso. César, por exer plo, em seus Comentdrios, nao cita nenhum deles. ‘A rendic&o da Urbe foi, como se diz hoje, incondicional. Teve de devolver todos os seus territérios etruscos a Porsena. Os latinos, por sua vez, aproveitaram para atacar Roma, que, no entanto, conseguiu salvar-se com a batalha do lago Regi- lo, onde os Dioscuros, Castor e Pélux, filhos de Jupiter, vie- ram em seu socorro. De qualquer forma, ao final de tantas desventuras, aquela que sob os reis fora a capital de um pe- queno império encontrava-se de novo com o que hoje seria, mais ou menos, um distrito, que ndo chegava a Fregenas 20 norte e, ao sul, terminava antes de Ancio. Foi uma imensa catstrofe, e seria necessdrio um século para dela se refazer. ‘Mas aquela guerra fez uma vitima ainda maior: Tarqai- nio. Ele ja havia feito as malas para voltar a Roma, retomar © poder ¢ executar suas vingancas quando Porsena o deteve e the disse que nao tinha a intenco de restabelecé-lo no tro- no. Percebera que a restauracao monédrquica era impossivel ou desconfiava daquele intrigante que, uma vez no comando de seu povo e de seu exército, talvez esquecesse 0 auxilio rece- bido e recomegasse a atormentar a Etruria? Estamos propensos a aceitar a segunda hipotese. A Etrii- ria era um pais anarquico, cujas cidades queriam permanecer independentes e nao admitiam limites 4 sua autonomia. Tar- giiinio teria transformado Roma numa cidade definitivamen- te etrusca, mas a Etriria numa provincia definitivamente 51 romana. A Etriria ndo quis, € pagou caro por isso. A Lig, que Porsena penosamente erguera na ocasiao dissolveu-se antes que seu exército confederado pudesse restabelecer a comuni- cago com as colénias etruscas meridionais, as quais, entre. mentes, estavam sendo comidas pelos gregos. O /ucumao retornou a Chisio, e ld se fechou, enquanto os gregos avanca. vam pelo sul e, pelo norte, insinuava-se outra terrivel amea- «a: os gauleses, que desciam os Alpes e subjugavam as coldnias etruscas do vale do Pé, Mas nem mesmo face a esse perigo a Etriiria encontrou sua unidade, aquela unidade que Tarqiit nio queria dar-lhe sob o signo e sob o nome de Roma. O ve- Iho rei prosseguiu com suas intrigas, mas foi intitil. As vitoriosas cidades do Lacio, com Veios & frente, colaboraram para impedir seu retorno. Preferiam enfrentar uma Roma re- publicana, cujas dificuldades internas conheciam e, portan- to, sabiam também da sua impossibilidade de tentar uma revanche, que de fato demorou um século para se insinuar. As “‘libertacdes” sempre custam caro. Roma pagou pela sua a partir do rei, com o Império. Empregara dois séculos € meio para conquistar a hegemonia sobre a Itélia central a alcangara sob as rédeas de sete soberanos. A repiiblica, pa- ra permanecer como tal, tev i ie za perm eve de renunciar a tamanho patri- __O que, entdo, nao havia funcionado bem sob a monar- quia para induzir'os romanos a essa rentincia? Nao funcionara bem o crisol, isto é, a fusdo entre as ra- gas € as classes que constituiam o povo. Os primeiros quatro reis sufocaram o elemento etrusco, que constituia a Burgue- sia, a Riqueza, 0 Progresso, a Tecnologia, a Indiistria, 0 Co. mércio. Os tltimos trés sufocaram o elemento latino e zabine, que constituia a Aristocracia, a Agricultura, a Tradieao e 6 Exército, os quais encontraram sua expressao politica no Se. nado. E agora o Senado se vingava. Vingava-se com a Rent blica, que era exclusivamente obra sua, me Desde entao, tudo foi republican em Roma, até mesm ¢ especialmente sua histéria, que comegou a ser narrada de maneira a desacreditar cada vez mais o periodo monarquing e os grandiosos sucessos que sob ele Roma obtivera, Newco pode esquecer isso ao se lerem os livros de historia roweogs> 52 concordes em fazer coincidir o inicio da grandeza da Urbe com © momento em que foi enxotado 0 iiltimo Targiiinio. Mas isso nao ¢ verdade. Roma fora uma poderosa capi- tal no tempo dos reis, e em grande parte seria gragas a obra deles que o voltaria a ser. Os austeros magistrados que toma- ram seu lugar e exerceram o poder ‘tem nome do povo”’ en- contraram ja constituidas as bases dos futuros triunfos: uma cidade bem organizada sob o ponto de vista urbanistico e ad- ministrativo, uma populacao cosmopolita e cheia de recursos, uma elite de técnicos de primeira qualidade, um exército ex- periente, uma Igreja e uma lingua ja codificadas, uma diplo- macia que fizera seu tirocinio formando e rompendo aliangas um pouco com todos os seus vizinhos. Essa diplomacia foi habil até no momento da catéstrofe. ‘Apressou-se em estipular dois tratados: um com Cartago, pa- ra garantir sua tranqiilidade do lado do mar, e um com a Li- ga Latina para garanti-la do lado terrestre. Ambos implicavam as mais radicais renuincias. No mar, Roma abandonava qual- quer pretensao na Cérsega, na Sardenha e na Sicilia, as quais empenhava-se em nao ultrapassar com seus navios ¢ onde po- dia apenas abastecer-se, sem sequer colocar os pés. Mas essa era uma rentincia que custava pouco, j4 que ainda no pos- suja uma frota digna deste nome. Mais dolorosa eram as terrestres, sancionadas pelo c6n- sul Espiirio Cassio ao fim das hostilidades com Veios ¢ seus aliados. Roma manteve sob seu controle apenas quinhentas milhas quadradas e teve de aceitar ser igual entre iguais na Li- ga Latina. O foedus, isto €, 0 pacto de 493 a.C., comega com estas fatidicas palavras: Haja paz entre os romanos e todas as cidades latinas enquanto a posi¢do do céu e da terra per- manecer a mesma... ‘A posicao do céu e da terra ndo mudara absolutamente nada quando, menos de um século depois, a reptiblica roma- na retomou as veredas da guerra, em meio as quais haviam parado seus antigos reis, ¢ ndo deixou as cidades sequer os olhos para chorar. Desde entdo, as aliancas entre os Estados continuaram a ser estipuladas com 0 objetivo de fazé-las durar enquanto a posigdo do céu e da terra permanecesse a mesma. E a dis 53

You might also like