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BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO — 11 Colecéio dirigida por EDUARDO PORTELLA Professor da Universidade Federot do Rio de Janeiro Tradugée de LILIAN ROSE SHALDERS Rovistio Técnica de CHAIM SAMUEL KATZ capa de MAURICIO JOSE MARCHEVSKY ‘TRADUZIDO DO ORIGINAL FRANCES MALADIE MENTALE ET PSYCHOLOGIE da PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE, Paris, Direitos reservados as FDICOES TEMPO BRASILEIRO LTDA. Rua Gago Coutinho, 61 — Tel.: 205-5049 Caixa Postal 16.099 — CEP 22.221 RIO DE JANEIRO — RJ — BRASIL RIO DE JANEIRO — RJ — BRASIL cage el ©3162 Sec MICHEL FOUCAULT sg, Sel DOENCA MENTAL E PSICOLOGIA 6 edigao pIBLIOTEC’ & e 7 TEMPO BRASILEIRO Rio de Janeiro — RJ —2000 esta em vias de tornar-se xamé “tem aparéncia robusta, mas com o tempo torna-se cada vez mais delicado. nao para de se queixar... Sonha com tédas as espécies de coisas e seu corpo esta enlameado... Tern convulsoes que cessam durante algum tempo quando é borrifado com agua. A primeira falta de atencGes, verte lagrimas, em seguida chora ruidosamente. Um homem prestes a tornar-se adivinho é uma grande causa de disttirbios”. Seria, entio, falso dizer que as condutas caracteristicas do xama so virtualidades reconhecidas e validadas en- tre os Zulu, qualificadas, ao contrario, como hipocon- dria ou histeria entre os uropeus. Aqui, nao s6 a cons- iéncia de doenga nao é exclusiva do papel social, mas inda o requer. A doenea, reconhecida como tal,” vé-se conferir um status pelo grupo que a denuncia, Disso, encontrar-se-iam também outros exemplos no papel de sempenhado, ainda recentemente, nas nossas socieda- des, pelo idiota da aldeia e pelos epiléticos. Se Durkheim e os psicélogos americanos fizeram do desvio e do afastamento a propria natureza da doenca, &, sem diivida, por uma ilusdo cultural que Ihes 6 co: mium; nossa sociedade nao quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou que encerra; no instante mesmo em que ela diagnostica a doenca, exelui o doente. As andll- ses de nossos psicdlogos e sociélogos, que fazem do do- ente um desviado e que procuram a origem do mérbido no anormal, sio, entdo, antes de tudo, uma projecdo de temas culturais. Na realidade, uma sociedade se expri- me positivamente nas doencas mentais que manifestam seus membros; e isto, qualquer que seja o status que ela a a estas formas mérbidas: que os coloca no centro de sua vida religiosa como é freqiientemente 0 easo dos pri- mitivos, ou que procura expatrié-los situando-os no ex- terior da vida social, como faz nossa cultura, Duas questdes se colocam entéo: como chegou nos- sa cultura a dar & doenca 0 sentido do desvio, e ao doente um status que o exclu? E como, apesar’ disso, nossa sociedade exprime-se nas formas mérbidas nas quais recusa reconhecer-se? 74 Capitulo V A CONSTITUICAO HISTORICA DA DOENCA MENTAL Foi numa época relativamente recente que 0 Oci- dente concedeu @ loucura. um status de doenca mental. Afirmou-se, afirmou-se até demais que 0 louco era, considerado até 0 advento de uma medicina positive co mo um “possuido”. E todas as historias da psiquiat até entao quiseram mostrar no louco da Idade Média € do Renascimento um doente ignorado, préso no interior da réde rigorosa de significagoes religiosas © magicas. Assim, teria sido necessdrio esperar a objetividade de colar médico sereno € para scobrir a deterioracdo da natureza 14 onde se decifra- Interpretacao vam apenas perversées sobrenaturais. que repousa num érro de fato: que os I siderados possuidos; num preconceito pessoas definidas como possuidas eram doentes mentais; finalmente, num érro de raciocinio: deduz-se que se 0s possuidos eram na verdade loucos, os loucos eram trata- dos realmente como possuidos. De fato, 0 complexo pro- hlema da possessao nao releva, diretamente de uma his- toria da loucura, mas de uma histéria das idéias religio- as. Por duas vézes, antes do século XIX, a medicina interferiu no problema da possessao: uma primeira vez oT = ‘Duncan (de 1560 a 1640), e isto a pedido dos Parlamentos, dos govérnos ou mesmo da hierar- quia catdlica, contra certas ordens mondsticas que pros- soguiam as praticas da os médicos foram, entdo, encarregados de “ witos dlabélieos podiam ser explicacos pelos 78 ma imaginagdo desregrada; uma segunda vez, entre 1680 1740, 2 pedido de téda a Igreja catélica e do govérno conira a explosao de misticismo protestante ¢ Jansenista, desencadeada pelas perseguicdes do final do reinado de Luis XIV; os médicos foram entio convoca- dos pelas autoridades ccleslisticas para mostrar que to- dos os fenémenos do éxtase, da inspiracao, do profetis- mo, da possessio pelo Espirito-Santo eram devidos so- mente (no caso dos heréticos, é claro) aos movimentos violentos dos humores ou dos espiritas. A anexagao de todos éstes fendmenos religiosos ou parareligiosos pela medicina ¢, assim, apenas um episédio lateral em rela- c&o ao grande trabalho que definiu a doenca mental; sobretudo, ela nao é resultante de um esférco essencial para o desenvolvimento da medicina; é a propria expe- riéneia religiosa que, para se apolar, ‘apelou, e de modo recundario, para a confirmagao ¢ a critica médicas. Es- tava escrito que uma critica semelhante seria, mais tar- de, feita pela medicina a todos os fenémenos religiosos, ¢ voltada, as custas da Igreja catélica que a tinha, en- tretanto, ‘solicitado, contra téda a experiéncia crista: para mostrar a0 mesmo tempo, e de modo paradoxal, que a religido depende dos podéres fantasticos da neu- rose, e que aquéles que a religido condenou eram viti mas, concomitantemente, de sua religiio e de sua neu- rose, Mas esta reviravolta data apenas do século XIX, isto é de uma época em que a definicao da doenga men- tal em estilo positivisia j4 tinha. sido alcancada, De fato, antes do século KIX, a experiéncia da lou- cura no mundo ocidental era bastante polimorfa; ¢ sua ‘onfiscagéo na nossa época no conceito de “doenga” nao dove iludir-nos a respeito de sua exuberancia originaria. n dtivida, desde a medicina grega, uma certa parte no ominlo da loucura j4 estava ocupada pelas nogdes de patologia e as préticas que a ela se relacionam. Sempre houve, no Ocidente, curas médicas da loucura e os hos- tals da Tdade Média comportavam, na sua malor par- ie, como 0 Hotel-Dieu de Paris, leitos reservados aos lou- ens (freqiientemente Teitos fechados. esnécies de jaulas para manter os furiosos).. Mas isto @r imitado &s formas das louetiva yam curdvyeis (frenesis, opisédios de violéng “melaned odos os lados, a lo uma grande extensdo, mas sem suporte médica, Esta extensao, entretanto, nao provém de medid estaveis; varia com as épocas, pelo menos em suas\die mensoes visiveis: ora permanece implicita e como a tona, ou, ao contrario aparece, emerge largamente ¢ integra- se’sem dificuldade a téda a paisagem cultural. O fim do séeulo XV 6 certamente uma destas épocas em que a loucura renova-se com 0s podéres, essenciais da lin- guagem. As ultimas manifestacoes da idade gotica fo- ram, alternadamente e num movimento continuo, do- minadas pelo payor da’morte eda loucura. A danca Macabra representada no cemitério dos Inocentes, 20 Triunfo da morte cantado nos muros do Campo Santo de Pisa, sucedem as inumoraveis dancas e festas dos Loucos que a Europa celebrard de tao bom grado du- rante todo o Renastimento, Hd as fostas populares em torno dos espetéculos dados pelas “associacoes de lou- cos”, como o Navio Azul em Flandres; ha téda uma ico- nografia que vai da Nave dos loucos de Bosch, a Breu- ghel e a Margot a Louea; ha também os textos sabios, as obras de filosofia ou critica moral, como a Stultifera Navis de Brant ou 0 Hlogio da loucura de Brasmo. Have- 4, finalmente, téda a literatura da loucura: as cenas de deméncia no teatro clizabetiano ¢ no teatro fran- cés pré-clissico participam da arquitetura dramatica, como os sonhos e, um pouco mais tarde, as cenas de confissio: elas conduzem o drama da ilusio & verdade, da falsa solugao ao verdadeiro desfécho. Sao uma das molas essenciais déste teatro barroco, com certos romances que lhes sdo contempordneos: as grandes aventuras das narrativas de cavalaria tornam-se volun- tariamente as extravagancias de espiritos que néo mais dominam suas quimeras. Shakespeare e Cervantes no fim do Renaseimento sao testemunhas do grande pres- {gio desta loucura eujo reinado proximo tinha sido anunciado, cem anos antes, por Brant e Bosch. 7 Isto no quer dizer que 0 Renaseimento ndo euidou dos loucos. Pelo contrério, fol no século XV que se viu abrirem-se na Espanha inieialmente (em Saragossa), depois na Italia, os primeiros estabelecimentos reserva- dos aos loucos.’ Sio ai submetides a um tratamento, sem diivida, em grande parte inspirado da medicina frabe. Mas estas praticas sao localizadas. A loucura é no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela cireula, faz parte do cendrio e da linguagem comuns, € para cada um uma experiéncia cotidiana que se pro- cura mais exaltar ‘do que dominar. H4 na Franca, no coméco do sécvlo XVII, loucos célebres com os quais 0 pliblico, € 0 piiblico cuito, gosta de se divertir; alguns como Bluet d’Arbére escrevem livros que sao publicados @ lidos como obras de loucura. Até cérea de 1650, a cul- tura ocidental foi estranhamente hospitaleira a estas formas de experiéncia Nos meados do séetilo XVII, brusca mudanca;_o mundo da loucura vai tornar-se 6 mundo da exclusio. Criam-se (e isto em t6da a Europa) estabelecimen- tos para internagio que nao séo simplesmente destina- dos a receber os loucos, mas téda uma série de indivi- duos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos se- gundo nossos critérios de percepeao: encerram-se os in- validos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opinidticos, os portadores de doencas ve- néreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a fa- milia ou o poder real querem evitar um castigo publi pais de familia dissipadores, eclesidsticos em infracio, em resumo todos aquéles que, em relacéo & ordem da azo, da moral e da sociedade, dio mostras de “altera- Go". com éste espirito que 0 govérno abre, em Paris, 0 Hospital geral, com Bicétre e la Salpétriére; um pouco antes sfio Vicente de Paula tinha feito do antigo lepro- sario de Saint-Lazare uma prisao déste género, e logo depois Charenton, inicialmente hospital, alinhar-se-4 nos modélos destas novas instituicées. Na Franca, cada grande cidade tera seu Hospital geral. 78. Bstas casas ndo tém vocagio médica alguma; néo se 6 admitido ai para ser tratado, mas porque nao se pode ou nao se deve mais fazer parte da sociedade. O internamento que o louco, juntamente com muitos ou- tros, recebe na época classica néo poe em questio as relacoes da loucura com a doenca, mas as relagoes da sociedade consigo prépria, com o que ela reconhece ou no na conduta dos individuos. O internamento é, sem divida, uma medida de assisténcia; as numerosas fun- dagdes' de que éle se beneficia provam-no. Mas 6 um sistema cujo ideal seria estar inteiramente fechado s6- bre si mesmo: no Hospital geral, como nas Workhouses, na Inglaterra, que Ihe sao mais’ ou menos contempora- neas, reina 0 trabalho foreado; fia-se, tece-se, fabri- cam-se objetos diversos que sa0 lancados prego balxo no mercado para que o lucro permita ao hospital fun- cionar. Mas a obrigacéo do trabalho tem também um papel de sangées e de controle moral. E que, no mun- lo burgués em processo de constituicéo, um vicio maior, © pecado por exceléncia no mundo do comércio, acaba de ser definido: nao é mais o orgulho nem a avidez co- mo na Idade Média; é a ociosidade. A categoria comum que grupa todos aquéles que residem nas casas de inter- namento, é a incapacidade em que se enconiram de to- mar parte na produgao, na circulagéo ou no acimulo das riquezas (seja por sua culpa ou acidentalmente) A exclusfio a que sao condenados esta na razao direta desta incapacidade e indica 0 aparecimento no mundo moderno de um corte que néo existia antes. O interna- mento foi entio ligado nas suas origens e no seu sentido primordial a esta reostruturacao do espago social, Este fendmeno foi duplamente importante para a constituigao da experiéncia contemporénea da loucura. Inicialmente, porque a loucura, durante tanto tempo manifesta e loquaz, por tanto tempo presente no hori- zonte, desaparece, Entra num tempo de siléncio. do qual ndo saird durante um longo perfodo; é despojada le sua linguagem; e se se péde continuar a falar dela, ser-lhe-4 impossivel falar de si mesma. Imposstvel, pelo menos até Freud que, pioneiro, reabriu a possibilidade para a razdo e a destazao de comunicar no perigo de uma linguagem comum, sempre prestes a romper-se e @ destazer-se ho inaccessivel. Por outro lado, a loucura, no internamento, criou parentescos novos e estranhos. Este espaco de excitisdo que agrupava, com os locos, e muitos que no es ‘fo nos espantemos que se tenha deseoberto uma espécie de filiagag ; que a lou- em ‘seu proprio centro, um Tu a descoberta progressiva daquilo que é a loucura na sua verdade de natureza; mas somente a se- dimentacao do que a histéria do Ocidente féz dela em 300 anos. A loucura & muito mais histériea do que se acredita geralmente, mas muito mais jovem também. internamento nao conservou mais do que um sé- culo sua funcdo primeira de manter silenciosa a lou- , a inquictude nas palsagens mais loucura, esta présa no crimes comesd a se deslocer questracdes arbitraérias; cri ges e da forma tradicional da assisténcia; pavor po- ular por estas casas, como Bicétre ou Saint-Lazare, que adquir valor de focos do mal. Restituida a sua antiga liberdade, que vai wrese a loucura? 80 Os reformadores de antes de 1789 ea ria Revo- lugao quiseram ao mesmo tempo nto como ‘simbolo da antiga opresséo e medida do possivel a assist@neia hospitalar como sinal da existéncia de ums isse miserdvel, Procurou-se de- finir uma formula de socorros financciros e de cuidados médicos com os quais os pobres pudessem beneficiar-se , escapando assim ao pavor do hos- conté-los © a sangio penal que se inflige aos que deixam errar “os loucos e os animais perigosos B para resolver éste problema que as antigas casas sob a Revolucdo e o Império, foram sservadas aos loucos, mas desta vez Os que afilantropia da epoca liberou 880 entdo todos os outros, exceto os loucos; éstes encon- trar-se-4o no estado de serem os herdeiros naturais do internamento e como os titulares privilegiados das ve- Ihas medidas de exclusio. Indubitavelmente o internamento toma enta nova significagéo: torna-se Pinel na Franga, Tuke na Inglaterra e na Alemanha Wagnitz ¢ Riel ligaram seus nomes a esta reforma. E néo ha histéria da psiquiatria ou da medicina que néo descubra nestes personagens os simbolos de um duplo advento: 9 de um humanismo e o de uma ciéncia final- mente positiva. As coisas foram inteiramente diferentes. Pinel, ‘Tuke, seus contemporaneos e sucessores néo romperam com as antigas praticas do internamento: pelo contra- no do louco. O asilo ideal por isso mesmo, 81 semelhantes, depois de te: 0 que af se encontravam aind: Certamente, éle fee ruir as ligagdes materia, (nao todas entretanto), que reprimiam fisicamente os doentes. Mas reconstituiu em térno déles todo oo formava 0 asilo numa espécie de ‘0 louco tinha que ser vigiado nos seus ges- Caen cna usr pretenstes, contradite no sou do- frio, ridicularizado nos seus érros: a sangao tinha que seguir imediatamente qualquer desvio em relacéo a uma Ele 6, no asilo, o agente das sin- teses morais. Mas hé mais. Apesar da extensao muit medidas de internamento, a idade classica ti subsistirem e desenvolverem-se até um certo ponto as préticas médicas referentes & loucura, Havia nos hospi- tais ordindrios secdes reservadas aos loucos, ora-lhes aplicado um tratamento, e os textos médicos dos séculos TL e XVIII procuravam definir, sobretudo com a grande multiplicagio dos vapores e das doencas nervo- Sas, a5 téenicas mais apropriadas para a cura dos insa- nos. Estes tratamentos nfo eram nem psicolégicos nem fisicos: cram ambos ao mesmo tempo — a distingao car- tesiana da extensao e do pensamento nao tendo afetado a unidade das praticas médicas; submetia-se 0 doente & ducha ou ac ara refrescar seus espiritos ou suas fibras; ara renovar su: see doamediar eee en eee modificar 0 curso da sua imagi- nagao. 82 Ora, estas técnicas que a fisiologia da época justi- ficava foram retomadas por Pinel e seus'sucessores num contexto puramente repressivo e moral. A ducha nao sefrescava mais, punia; néo se deve mais aplicé-la quan- do 0 doente esté “excitado”, mas quando cometeu um érro; em pleno século XIX ainda, Leuret submeterd seus doentes a uma ducha gelada na’ cabeca e empreendera neste momento, com éles, um didlogo durante o qual forgé-los-4 a confessar que sua erenca 6 apenas delirio. século XVIII havia também inventado uma m4quina rotatéria onde se colocava o doente a fim de que 0 curso Ge scus espiritos demasiado fixo nums idéia delirante fOsse recolocado em movimento e reencontrasse seus clr- cuitos naturals. O século KIX aperfeicoa o sistema dan- do-lhe um carter estritamente punitivo: a cada mani- festagéo delirante faz-se girar o doente até desmaiar, se Ae nGo se arrependeu. Emprega-se também uma gaio- Ja mével que gira sObre si mesma segundo um eixo horizontal e cujo movimento é tanto mais vivo quanto esteja mais agitado o doente que af 6 préso. Todos éstes Jogos médicos so as versées asilares de antigas técnicas fundadas numa fisiologia atualmente abandonada. O essencial € que 0 asilo fundado na época de Pi © internamento ndo representa a “medicalizac: um espago social de exclusdo; mas a confusio no inte- rior de um regime moral unico cujas téenicas tinham algumas um carter de precaucdo social e outras um carfiter de estratégia médica. Ora, 6 @ partir déste momento que loucura dei- xou de ser considerada um fendmeno global relativo, ao mesmo tempo, por intermédio da imaginagdo e do delf- ro, ao corpo e a alma. No ndvo mundo asilar, neste yundo da moral que castiga, a loucura 33 eGo mais surda e situada num nivel mais profundo — uma operacio atravé ‘onde 0 Iouco, contestavelmente aparentado vom a crianca, e onde a Ioucura, culpabillzada, acha-se originariamente ligada ao érro.’ Nao nos surpreenda- mos, conseqiientemente, se tdda a psicopatologia — a que comega com Esquirol, mas a nossa também, for co- “psicologia” da loucura 6 apenas o resultado das opera- Ges com as quais se a investiu. Toda esta psicologia Ado exlstira sem o sadismo moralizador no qual a “- Jantropia” do século enclausurou-a, sob os modos lupécritas de uma “liberacdo”. Dir-se-4 que todo saber estd ligado a formas ess cias de erueldade, O conhecimento da loucura nao . “Mas, sem diivida, esta relagio 6 no se deve esquecer que a psic “positiva’ ou “cientifica” encontrou sua origem histérica e seu fundamento numa experiéncia patolégica. Foi uma andlise dos desdobramentos que ocasionou uma psicolo- gia da personalidade; uma andlise dos automatismos ¢ do inconselente que fundou uma psicologia da consclén- cia; uma anéllise dos deficits que desencadeo i- cologia de inteligéncia. Ou seja, q et @ partir do momento em que sua rela¢éo com a loueura foi definida pela dimensao exterior da exclu- 84 so € do castigo, ¢ pela.dimensdo interior da hipoteca ral e da culpa. Situando a loueura em relagio a es dois cixos fundame1 éculo XIX tormava possiv cura e através dela uma psicologia geri Esta experiéncia da Desrazdo na qu XVIM, 0 homem ocidental encontrava a noite da sua verdade e sua contestacdo absoluta vai torn: manece ainda para nés, a via de acesso & ral do homem. E compreende-se, entao, que esta via de acesso seja tao ambigua e que, a0 yeducdes objetivas (segundo a in incessantemente a chamada para si (s da hipoteca moral). Tada a e.tru ‘la¢do do homem ‘psicologia” ¢ somente uma fina pe- consigo Meula na_suy mundo ético no qual 0 homem moderno busca sua verdade —e a perde. Nietzsche, a quem se féz dizer 0 contrario, tinha-o visto muito bem mente, uma psicologia da loucura pode isoria, @ entretanto toca no essencial. exige-se da psicologia que ela atente contra suas proprias condigées, que retorne ao que a tornou possivel e que contorne o que € para ela, e por defi ‘Nunca a psicoiogia poder ai uctira, J& que é esta que detém a verdade da E, contudo, uma. psicologia da Joveura nao pode deixar de ir ao esse A que se dirize obscura- mente para o ponto onde cem; quer dizer que ela sobe sua propria corrente e en- caminha-se para estas regides onde 0 homem relaciona- se consigo proprio e inaugura a forma de alienacio que 0 faz tornar-se homo psychologicus. Levada até sua ralz, ia na inio da doenga parecimento, mas a destrui¢ao da propria psicologia e o reaparecimento desta relagao essencial, nao psicolégica porque néo moralizavel, que ¢ a relacdo da Tazao com a desrazao. # esta relaciio que, apesar de tédas as misérias da psicologia, esta. presente e visivel nas obras de Holderlin, Nerval, Roussel e Artaud, e que promete ao homem que’ um dia, talvez, éle poderé encontrar-se livre de téda psi- cologia ‘para o grande afrontamento trégico com a lou- cura. 86 Capitulo VI A LOUCURA, ESTRUTURA GLOBAL © que acaba de ser dito no vale como critica @ priori de qualquer tentativa para cercar os fendmenos da Ioucura ou para definir uma tétiea de cura. ‘Trata- va-se somente de mostrar entre a psicologia e a loucara uma relagdo tal e um desequilibrio tao fundamental que tornam yao cada esférco para tratar o todo da loucuta, sua esséncia e natureza em térmos de psicologia. A ptépria noc&o de “doenga mental” & a expressiio déste es{0rgo condenado de inicio. O que se chama “doenca mental” é apenas loucura alienada, alienada nesta psi- cologia que ela propria tornou possivel ‘Ser preciso um dia tentar fazer um estudo da lou- cura como estrutura global — da loucura liberada e de- salienada, restituida de certo modo a sua linguagem de origem Pareceria, sem dtivida, inicialmente que nao existe cultura que ndo seja sensivel, na conduta e na gem dos homens, a certos fendmenos com relacéo a03 guais a sociedade toma uma atitude particular: éstes omens nfo sio tratados nem completamente como do- entes, nem completamente como criminosos, nem feiti- ceiros, nem inteiramente também como pessoas comuns. Ha algo néles que fala da diferenca e chama a diferen- ‘ciagdo. Evitemos dizer que é a primeira consciéncia, obs- cura e difusa, daquilo que nosso espirito cientifico reco- nheceré como doenca mental; € somente o vazio no in- terior do qual se estabeleceré ‘a experiéncia da loucura 87

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