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CINEMA E TEATRO A NOGAO CLASSIGA DE REPRESENTAGAO E A TEORIA DO ESPETACULO, DE GRIFFITH A HITCHCOCK Ismail Xavier OANALISARASRELAGOES entre o cinema € 0 teatro, meu objetivo € destacar continuidades, nao rupturas. Muito jé se falou sobre as diferencas entre as duas formas de espetéculo, visando marcar especificidades, Estas existem mas devo aqui explorar os pontos deinterseccao, pois o cinema narrativo quase sempre traz.o teatro dentro_ de si, atualiza géneros dramaticos, envolve mise-en-scine, A propria ex, de grandes diretores consagra o que ha de comum entre palco € De Griffith e Eisenstein a Fassbinder e Bergman, passando por tela. I Welles ¢ Visconti, € enorme o elenco de artistas que atuaram nos dois campos, de modo a atestar em seu cinema a incidéncia de seu teatro € vice-versa. A histéria nos tem oferecido intimeros exemplos de um intercimbio que nio deixou de ser motivo de incémodo para uma parcela da critica cinematografica. Em particular, no inicio do século, por forca de um interesse em inserir 0 cinema como esfera auténoma no sistema das artes, a tOnica dos cinéfilos foi a defesa das virtudes da nova arte muda contra os vicios da cena teatral entendida, de maneira (7. ,/' redutora, como mundo da palavra. Numa combinacao de argumentos técnicos e morais, em_ particular. elogio a verdade dos gestos ¢ as Tevelagdes do rosto emi clase-up ‘ho cinema, montou-se um esquema teleolégico que perdurou por décadas. Segundo tal esquema, a nova arte viria coroar um movimento evolutivo em direcao a formas mais “com- ¢,, pletas” e mais “sinceras” de representagao, mostrando-se mais aparelha- 227s Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO dapara os desafios da vida moderna, O que esta implicito neste raciocinio Ea idéia do cinema ¢ do teatro como blocos homogéneos de expresso, nitidamente separados pela técnica, nao se atentando para o fato decisivo de que sio 0s estilos, as formas de conceber 0 espetaculo, seja no palco, > seja nas telas, que definem a relagio do trabalho com o teor da experignr cia social e com o seu tempo. Dentro de um certo recorte, é a inscrigio de uma pega ou de um filme em determinado movimento estético que constitui o fator mais relevante da andlise, para além das diferengas de suporte técnico. Um cinema expressionista exibe critérios de composigao que o teatro e a pintura expressionistas ensinam, ¢ se afasta dos princf- pios naturalistas de representagio tanto quanto as obras que os inspiram; o teatro ¢ 0 cinema enquanto espetaculos populares nao se discutem nos mesmos termos que 0 teatro ¢ o cinema dirigidos a um ptiblico erudito ¢ burgués mais restrito. Em sintese, niio posso tomar cinema e teatro no singular para encaminhar uma discussio conseqiiente de suas relacdes. Devo fazer demarcacées, atento ao género (de teatro e de cinema) e atento a histéria. et ; ~ Vou me ocupar aqui do cinema clissico, éste que se forma no periodo 1908-1919, se estabilizarnos anos 20 e se mantém como 0 estilo | de narragio privilegiado pela indtistria cinematografica até o final dos | anos 50. Tal cinema atualiza uma forma particular de espetéculo com ~ certas regras de representagio, trazendo uma concepgio peculiar de sua funcdo na sociedade. E a articulacdo entre as normas do espeticulo ea funcdo social que se Ihe atribui que me interessa destacar, e meu percurso envolve a comparacéo entre duas formas pelas quais cineastas-chave dentro da tradi¢ao cléssica afirmaram sua teoria do espetaculo através de seus filmes, Do perfodo de formagio, escolhi a figura maior — D.W. Griffith; do apogeu na década de 50, escolhi a figura mais sofisticada — Alfred Hitchcock. Veremos como, entre 1909 ¢ 1956, uma preocupacao com a ética das imagens se expressa no préprio movimento da repre- sentagao, quando o cineasta, ao montar um dispositivo que inscreve @ cena dentro da cena, atribui ao espetéculo (teatro ¢ cinema, igualmente) uma determinada fungio que o legitima, Ou seja, o cinema classico tra2, em tais pontos extremos de sua trajetéria, obras reflexivas que, traba- Ihando a representagao dentro da representacio, lidaram com as mesmas contradices que mobilizaram fildfosos e moralistas em torno do estat to da cena teatral, ¢ seus derivados modernos, na sociedade. f célebre @ rae aque envolveu Rousseau ¢ os enciclopedistas em torno do pape! ptor do teatro; so também conhecidos os reiterados ° UB» Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO debates, presentes ainda hoje, sobre 0 efeito das imitacées, sobre a representacao da violéncia e do Sexo, no palco, na tela, no video. Neste sentido, coloco em pauta um problema afeto a representagio em sentido amplo, este que permite falar em continuidade quando passamos de um certo tipo de teatro naturalista para o cinema classico, baliza de minhas consideracGes. Em “Diderot, Brecht, Eisenstein", Barthes nos lembra da relagéo existente entre teatro e geometria, pois o teatro € uma pratica que supde um “lugar calculado” de onde se observam as coisas. A condi¢ao para que haja “representagao” € 0 olhar de um sujeito (autor, leitor, especta: dor ou voyeur) que mira numa certa diregéo e corta uma superficie de modo a formar com esta um cone do qual o seu olho (ou seu espirito, como diz Barthes) é 0 vértice.’ Ou seja, temos 0 lugar da agdo, 0 recorte, © sujeito que observa ¢.a.admissio_de_que.algo "separa_observador € observado, condi¢aopara.a_delimitacio..dos~contornos.da_cena, A representagio sempre se d4 dentro de limites, tem seuespago proprio, em oposicao ao espaco de.quema observa, Esta é uma noco clissica que vale para a pratica teatral dentro.de certo. periodo.e se estende ao mundo da tela, pelo menos no.caso do.cinema que me interessa aqui. Tomando o sentido da “representagao” tal como o sugere Barthes, a oposicao cena/espectador oferece o eixo que permite ressaltar uma continuidade cuja caracteriza¢ao envolve um conjunto de elementos que crigéo do cinema numa tradi¢ao bem definida de espetaculo, pelo menos tal como este é entendido a partir do barroco ¢, de forma mais espectfica, desde os postulados do drama sério burgués que Diderot elaborou no século XVIII. Nao se trata de recapitular, passo apasso, um percurso de séculos, mas apenas evocar certos momentos da histéria do espetdculo que, sem duivida, sio retomados pelo cinema narrativo no momento em que este se instaura no inicio do século. Por volta de 1530 se configura, na Itélia, uma ordem espacial do espeticulo definida pelo que depois ficou consagraclo como o “palco italiano”: platéia toda de um lado, agio teatral do, outro, ambos se encarando em oposigio frontal, dos por uma fronteira nitida onde separa “fosso” e cortina materializam a atestam muito bem a inst diferenca de estatuto dos espacos, o da 1 Bowarigade Barthes esto io Louie obtusa entiqus I Paris Sel, 1982) +96 Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO representagio e o da realidade. Tal fronteira emoldura espetéculo, funciona como uma janela que se abre para o mundo imagindrio da cena que se desenrola suspensa numa plataforma, 2 disposicdo do olhar do espectador que, embora cheio de empatia, permanece ciente do “hiato” que os separa. Uma concepcdo da pintura que se consolida a partir da Renascenga, notadamente no que diz respeito ao efcito-janela eA questao da profundidade, bem como alguns postulados do ilusionismo barroco, deixam claramente sua marca neste arranjo espacial do espetaculo teatral.' Este arranjo reforca a idéia de que h4 um microcosmo a se observar através da moldura separadora, o que gera uma aproximacao mais decisiva entre a posicdo do espectador de teatro e a do observador de um quadro (no cinema, em movimento). Uma integragio extraordi- naria de arquitetura e cenografia da ao espaco cénico tal estatuto e enseja um tipo de jogo de cena que, embora tivesse os elementos 4 mo, nem sempre explorou as potencialidades desta estrutura visual para atingir 0 ilusionismo a que estamos agora acostumados. Novamente, € preciso Perguntar: que teatro? que nocdo de espetaculo est4 em pauta? Um momento significativo em que estas perguntas foram feitas de modo a solicitar um movimento em direcao ao ilusionismo foi o século XVII, quando na Franga uma pratica teatral que nao explorava muito bem esta via aberta pelo espaco do “palco italiano” foi criticada por Diderot. Espectador insatisfeito, ele recusa o teatro que fazia da apresen- \acao da tragédia francesa cléssica um desfile de atores estaticos empe- nhados em declamagdes a seu ver enfadonhas, porque apoiadas ity, exclusivamente no efeito da palavra. O fil6foso da ilustracao rejeita um 4 teatro entendido como recitacao de poesia, por mais nobre que esta seja, €solicita a elaboragao de um jogo cénico q jue, dando énfase A expresso dos sentimentos trazida pelo gesto e pela fisionomia, crie a ilusio da realidade das emogies sugeridas pelos atores, faca palpavel aqui e agora| © conjunto de situagdes vividas pelas personagens, Diderot quer acio no Palco, reprodugao eficaz da vida €m todas as dimensées, especialmente & a¢%0 que acompanhamos no paico deve nos envolver pela sua capaci- dade de tornar presentes, ao alcance dos sentidos, os lances do mundo —___ 1 Uma caracte i i Xo oa paras Concisa deste efeito,janela no cinema cléssico se enconitra em Ismail Terra, 1977), emalordfice: a Opacidade «a Transparéncia (Rio de Janeiro: Paz € = 2506 Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO imagindrio da peca. A teoria e a pratica do que ele denominou drama sério burgués, distinto da tragédia, implicam, entre outras mudancas, a apresentagao dos sentimentos tais como se fossem vividos naturalmente, umir além da apresentagio convencional, indireta, das paixdes, método que ele vé como préprio ao sistema de representagdes a gosto do aristocrata do ancien régime. Tal como em outras dimens6es da experién- cia, @ cultura burguesa reivindica aqui a natureza contra a conven¢ao, no teme o sentimentalismo e chega ao lacrimoso em sua concepcao do drama como lugar da afirmacio das disposigdes “naturais", da paixao sincera, do mundo privado, das relagdes familiares agora ndo mais atadas a0 jogo do poder do Estado como na tragédia cléssica." Aspectos centrais do drama sério burgués ganham nova.dimensa uuando a Revolucio Francesa libera a palavra no teatro, popular, dando a pdoso Ueto x cea dialogada, nao somente as companhias autoriza- das pelo rei. O desenvolvimento do teatro popular num momento de crise e instabilidade define um novo formato para o espetaculo de grande apelo e, em torno de 1800, o melodrama se estabelece como gener dramético, codificado entre outros por Pixérécourt, o autor que escreve as jue definiram o cdnone da nova dramaturgia* Z/Melodrama significa Agao, velocid complicados e cheios do que hoje chamamos “golpes. deteat 1 Pam o1 tems de Denis Diderot, ver Discurso sobre @ Potsia Drandtia (Sio Paulo: 1, , Y Brasiliense, 1986), tradugao € apresentagio de L. F. Franklin de Matos, Para uma Oy i discussio das questdes implicadas na teoria de Diderot, ver Peter Szondi, On Textual Cg Understanding and Other Esiays (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986), € Peter Brooke, The Melodramatic Imagination ~ Balzac Henry Jomes ‘Melodrama and the ‘Mode of Excess (New York: Columbia University Bee ictis ou tet 2 Er vatos, como na Itélia, o termo melodrama s¢ ut) pean ao con esr a Gperavacmpasandourna deoacio do dra te Saar rcae tivasenu Hi sfildades'enure @ ginero tell doe ee depois da Revolugio Francesa ¢ a tradiio se ae ae aextragio r do melodrama e 0 fato de qui . nos ee marca a diferenga entre os dois UROS dices sorb melodrama, na acepgio aqui usada, € um expeticulo que Cavin aa ete cuja elocugio segue o ritmo da fala dramética, n° © dew Par, nfimeros de canto, como depois viria a acontecer no cinema ha fundo music eee presenga de melodias a temperar emogdes mas mie "6 TTL 015, mais como ncin na evelugto do espetéculo cinematogralice, to dos espagos um modelo do “grande espetaculo”, da monumentalidat cénicos, exploragao de um principio ‘de luxo ¢ riqueza, ‘excesso, bem a gosto do piblico inter sm enobrecer burgués que era, entdo, alvo da seducio de produtores inte ressados €1 ‘Nova arte, 221s Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO atores grandilogiientes, gestos largos, sentimentalismo, a composi¢io de iableaux a0 gosto de Diderot, ¢ 0 desenvolvimento gradual de toda uma naquinaria manipuladora de cendrios e reprodutora de aparéncias. Este caracteristicas presentes no teatro melé poderiam estar af a enumerar tracos da cena cinematografica, com rara precisdo se pensar- mos no cinema narrativo-dramatico em torno de 1910. Desde trabalhos como o de A. Nicholas Vardac,! esta muito claro 0 quanto a passagem do palco a tela define uma continuidade pela qual um século de teatro popular desemboca no cinema, mobilizando o mesmo tipo de ptiblico, trazendo os mesmos atrativos e mesmas histérias, trabalhadas com os mesmos critérios dramaticos, agora apoiados em nova técnica. O inte- ressante € que no sio apenas os princfpios dramiticos, o estilo dos gestos, o tipo de aco ¢ a vontade de fazer as emogées circularem entre © espaco da cena e a platéia; € também a prépria tecnologia de efeitos especiais que se repde em novas bases para cumprir os mesmos objetivos. Antes do cinema, o melodrama e a pantomima jé exibiam seus “truques”, suas magias, seus efeitos espetaculares, de modo a criar toda uma tradicao ao longo do século XIX, um sistema de expectativas quanto ao teor ilusionista do espetdculo, expectativas que o cinema veio, a seu modo, preencher. Foi, em verdade, invejavel a maquinaria posta A disposicao do encenador no século passado, havendo inclusive esquemas de mudanga de cendrio capazes de produzir efeitos que caminhavam na mesma dire¢do que a mudanga de posicao de camera no cinema, com alteragées de pano de fundo, sobreposigées € outros recursos cénicos que faziam do teatro uma experiéncia visual excitante, variada, mobili- “zadora. Considerada entao a demanda de Diderot ¢ a versao popular de alguns de seus preceitos — que, é bom lembrar, nao estou supondo terem “influenciado” diretamente os autores do melodrama —, considerado enfim todo um século de teatro apoiado na visualidade do espeticulo e nao na exceléncia de um texto poético, tornase patente a faldcia dos argumentos dos defensores da satide especifica do cinema como arte visual cimplice da natureza em contraposicao a um teatro afogado em Palavras, doente, mentiroso. A pratica do melodrama e da pantomima, mesmo a encenacao de pecas historicas, j4 eram a visualidade-gestuali- dade em ato € nao foi preciso esperar o cinema para ver minimizada a 1 Ver o livro Stage to Screen ~ Thearical Orig i mj t ins of Earl : from ch to D. W. Grit (New York: Da Capo Press 14) an? Pim fom David Gari = 2526 Digitalizado com CamScanner CINEMA TEATRO [pea (ndo surpreende, portanto, que Artaud tenha elogiado 0 melo- drama a proposicéo de seu “teatro da crueldade”, na Sis utente Eeesoaon. texto na experiéncia teatral, na sua defesa da autonomia do Dada esta primazia do visual, a diferenca vem da técnica: 0 que 0 tableau teatral sugere pela configuracio visivel da cena, o cinema pode oferecer, com maior controle, através dos enquadramentos variados. Nestes, € a posicao da camera que materializa a idéia do vértice do cone da representaco — aquele ponto de observacio para o qual a cena se volta. A mobilidade dos pontos de vista, tornada possivel pela camera” | cinematografica, s6 veio ampliar os recursos de expresso, potencializan- \ do 0 que, nos termos do postulado melodramatico de legibilidade moral do mundo, torna mais visivel o sentido dos fatos ¢ gestos, o teor dos dramas vividos. Tal explicitago de sentido, na imagem, é algo que se faré com crescente precisio a partir do momento em que o sério-dramé- tico se torna hegeménico na tela. Por ocasiio dos primeiros passos, Griffith simboliza como ninguém tal conquista da precisio. 1908 é apontado pelos historiadores como ponto de inflexio, ano em que a fase de experiéncias em diferentes direcdes igualmente atrati- vas é substitufda por um quadro da produgio em que o cinema narrativo sério-dramatico ganha terreno no mercado cinematogréfico. No inicio do século, a variedade dos géneros — 0 chamado chase film, as atragoes de circo, a comédia de correrias, o filme de efeitos especiais, os registros de viagen™ configuragéo do que Tom Gunning denominow cinema de Seen ins de excitaco do ptiblico marcadas pelo lidico, ndo propriamente empenhadas na t smissio de mensagens 01 na composicao de lig6es morais. O ‘movimento do cinema em dire¢o ao tiarrativo-dramdtico, mais preocupado com mensagens, faz parte da luta pela legitimacio do espetaculo popular, seu esforco de aburguesamento * naquela conjuntura, 0 que de fato se ligou a mudancas na tome de publico e A conquista de novas esferas da sociedade para além dos trabalhadores iletrados. Ao mesmo tempo, definiu uma inscri¢ao mais decisiva do cinema no conceito de representacio da tradicao burguesa, Gerecio a instalar essa dimensio de continuidade que ata 0 cinema a0 teatro. Navegando nas mesmas dguas, © cinema realizou uma atualizacao rent vedramaticos, e que fez em plena consciéncia, Miades que as vezes se proclamam em retrospec- dos procedimentos mel sem as supostas ingenui +253 « Digitalizado com CamScanner 4 Cin, hy ‘hay CINEMA E TEATRO tos. Neste sentido, é interessante observar que nao precisou esperar os te6ricos para colocar em pauta o problema da funcio social do espeté- culo. Se do século xvitt ao Xx podemos acompanhar a reposigo de uma certa concepcao do espetéculo na sua dimensio tecno-estético-visual, igualmente se pode examinar a forma como, dentro de uma certa nogio de esfera publica ainda burguesa, sem ainda uma maturagao na lida com os problemas da cultura de massa, um cineasta como Griffith entende seu proprio papel de moralista. A menos da envergadura da reflexio, sua concepgio do espetaculo nao esté longe, por exemplo, da forma como Diderot entende a funcao social do drama burgués. Na perspectiva dos fildsofos da ilustracdo, o teatro tem um fundamento pedagégico ¢ se ajusta bem a condigio de forum de debates, tem direta relacio com 0 politico e os rituais da civilidade que marcam a vida da cidade. Dentro de uma formulagio mais acanhada, Pixérécourt ¢ seus seguidores foram muito enfaticos na exaltacio da funcdo moralizante do melodrama, observando com atengio seu papel regulador, ancoragem moral nun tempo de crise de valores, de instabilidade e transformacoes trazidas por esta conjugacao das Revolugdes, a Industrial e a Francesa. Pelo século XIX afora discutiuse o teor progressista, democratic ou reaciondrio do teatro popular, da mesma forma que hoje se pde em pauta o papel da telenovela. No infcio deste século, quando se trata de pensar a produgio de um cinema que se candidata a um papel nuclear na sociedade que mergulha em novo ciclo de transformagées técnicas, Griffith expde sua teoria e define a funcio do espetéculo logo no infcio de sua carreira num filme de 1909: A Drunkard’s Reformation, Este filme nao € 0 tinico a caminhar na diregio reflexiva mas é 0 de maior interesse na minha perspectiva. Ele promove a juncao de cinema ¢ teatro numa fabula em quea fungio social do entretenimento € 0 tema central, 20 mesmo tempo em que faz nova diatribe puritana contra @ “praga” do alcoolismo. O protagonista se desenha como um alcodlatra que bate na mulher e no assume as suas responsabilidades de chefe de familia. Depois de algumas cenas domésticas definidoras da situagdo familiar e de seu cardter, ele sai para levar a filha ao teatro. L4, temos 0 segmento mais longo € mais elaborado do filme, todo ele para apresentar didaticamente a reagio emocional de nosso herdi a uma peca cujo protagonista espelha com exatidio o seu comportamento de alcodlatra, marido violento e pai relapso, levando uma vida que resulta em desgra¢a para todos, Griffith, com precisio, faz uso de um jogo de campo/con tracampo que alterna a visio do palco (a cena é vista da posigao da © he ae = Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO ersonagem na platéia) com a visi : . protagonista, sua gradativa conversao. Qu: um paralelo na atitude do : . - Quando ele volta ao lar, novo espfrito: é carinhoso coma mulher, a celebracdo final, quando 0 filme, num esquema de classico tableau, compée o triangulo da famflia nuclear pai-miefilha ao lado da lareira, apontando para um futuro de felicidade geral, A forca do efeito e sua ficil leitura sio incontestaveis € muito devem ao campo/contracampo da sala de espetéculos. Lé, o paralelismo cria um jogo de correspondén- cias capaz de sugerir — como em geral até hoje no cinema — relacdes de causa-e-efeito, de modo a expor com clareza meridiana a tese do filme: © teor de uma cena no teatro € capaz de produzir uma tomada de consciéncia que leva o espectador a mudar seu comportamento uma vez de volta ao seu cotidiano. Explicita no filme, esta a questo do éféito regenerador do teatro, mas 0 objetivo é propor a validade do argumento para o cinema, experiéncia congénere, Para tanto, existe a ponte criada pelo nitido espelhamento entre o protagonista-espectador-da-peca e nds na platéia espectadores-do-filme-de-Griffith. Se vale para ele a forca da mimese, valer4 para nés. Mesmo porque hd outra semelhanga a contri- buir para tal efeito. Tratase de um filme de 1909, com muitas das caracteristicas do cinema daquele ano. Portanto, a menos do raro € notdvel campo/contracampo que alterna palco e platéia, ndo hé decupa- gem das cenas; estas se apresentam em visio frontal, com os atores aparecendo quase de corpo inteiro a gesticular continuamente até que acena se esgote ¢ pulemos para outro momento da vida das personagens. Ou seja, quando vemos o protagonista em casa a exibir mau comporta- mento, 0 observamos com Angulo ¢ distincia mais ou menos iguais Aqueles com que ele (e nds com ele) observaré as agbes da peca. Estas, 0 Protagonista as observa como encenacio de teatro, enquanto que: Pars és, a aco da peca-dentro-do-filme exibe, de inicio a fim, a aparéncia de ; forma de segmentar a historia, um filme da época, pois é idéntica a idéntica a encenagao e também idéntico o enquadramento E como se Griffith, na forma de apresentar a peca Pan erase a estivesse a confirmar com ironia a idéia do cinema ee ee F inha insisténcia aqui na filmado”, ou também a minha a al amopaiiara Popular (no precisamos ouvir 08 alove TN aetathes curiosos, historia que tanto afeta o protagonista). A par i te do argumen- i Go sentido abrangente do ar que semelhanca de esl re[Ore 6 en ae ido para to de A Drunkard’s Reformation que 0 CH + 255 © © faz com sinalizaa regencragio e prepara Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO os espeticulos em geral. Estes que, apoiados na visualidade ¢ ma sensua- lidade dos corpos, trariam, no entanto, mensagens regencradoras do espirito, cumprindo uma nobre funcio moral, conforme o desejo das instancias do poder. A teoria do espetaculo em Griffith se ajusta as necessidades do momento, pois sabemos 0 quanto o cinema, na época mais ainda do que hoje, era alvo da desconfianga dos moralistas e das igrejas, quando nao objeto de censura policial direta e de uma vontade de exterminio, porque coisa vulgar do populacho. A batalha da legitimidade e a conquista do puiblico mais respeitavel pediam verdadeiros filmes-manifesto como este, onde © senso griffithiano da arte reduzia o problema da catarse a tal efeito mecanico de iluminagao imediata pela contemplacao do exemplo. Aos nossos olhos, esta reagio tio esquemitica do protagonista-especta- dor soa elementar e ingénua, pois atesta uma forca moral disciplinadora alheia ao nosso saber sobre a histéria dos espetaculos, Griffith é direto na inscrigio do cinema no campo da fabula moral — formula que privilegiou por toda a sua carreira. E seu empenho diz bem o quanto o imento da decupagem classic est4 diretamente ligado a uma vontade de traduzir, no cinema, os dispositivos ja consagrados pela direcao teatral. £ sabido qué’seu papel foi a criagio por exceléncia da figura do diretor de cinema, este orquestrador de recursos € técnicas, compatibilizador, de inclinagées pessoais dos membros da equipe. Do Pepa inguagem, ele é sem duivida um-dos maiores arquitetos emq cacti, a : especifico filmico” > montagem, close-up — ironicamente na medida se propés a emular o teatro. fi Nos anos 20, a nogao do “especifico filmico” teve D papel central na teoria, ganhando uma conotagao mais incisiva de Tuptura com 0 passado ar quando os artistas ligados as vanguardas recusaram o filme clissico € fihéliHW/ —postularam uma esséncia do cinema em terreno dista Sac inte da tradicao das Filonly ‘as e dramas populares. Na acepcdo da industria e dos scus imalores nomes, o cinema avanca & medida eny qué Completa tal radigao c cumpre a funcio pedagégica J aqui aludida, Na acepgio das vanguar- 5 0 especifico requer novas formulagées: é preciso inobilizar a id&k do pottico € detender uma estrutur des ee imagens; € preciso dialogar c movimentos artisticos do ter ‘om a pintura moderna, inserir o cinema nos 'P0-ou fazé-lo mergulhar num documents: rismo cuja demanda de verdade implica uma condenagao do teatro © 256 « Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO enquanto same We burguesa alienante cujos residuos devem ser expul- ma é i " u sos_do_cinem ertov € 0 paradigma desta tiltima alternativa). O interessante € que, no polo da vanguarda, muito raramente se aciona a dicotomia com tal esquematismo para estigmatizar o teatro como inimi- go, sendo em geral mais complex z am formas de discutir a interagio entre cinema € espetaculos tradicionais. A estética de Risenstein, por exemplo, configura um granide sistema em que a ruptura em pauta envolve questées culturais mais amplas, pois seu alvo é a propria nogio de representagao que alimenta tanto 0 teatro pés-Diderot quanto o cinema dassico americano. Em verdade, sua teoria do cinema deriva de sua teoria do teatro, ¢ todo 0 seu percurso é um corpo a corpo com aquestio geral do espetaculo € seus critérios, seja no palco ou na tela. Uma certa desconfianga do teatro iria retornar na f6rmula Bazin-Kracauer, dois tedricos que se voltaram para a defesa da especificidade do cinema no momento da formacao do cinema moderno, entre 0 neo-realismo € a Nouvelle Vague. A categoria central de suas teorias € a do realismo, entendido em termos de uma abertura para o mundo tal qual se apresenta, sem as grades oferecidas pelos esquemas dramaticos; abertura para o que eles concebem como contingéncia radical da experiéncia cotidiana que, bem observada, dispensaria as amarras de estruturas dramaticas que 0 cinema convencional nao cansa de atualizar. O cons-)¢ trutivismo do pélo Eisenstein € 0 realismo do pélo Bazin-Kracauer correspondem a desdobramentos de um debate que, 20 longo da historia do cinema, foi repondo as nitidas tensdes entre o ideal de cinema | postulado pela constelacao de tedricos anticlassicos ea continuidade da | experiéncia industrial. Esta, incorporando dados novos, manteve sua | hegemonia na comunicagio social, e Hollywood tornou-se 0 paradigma | modelo a se imitar na fic¢Ao da TY, fonte de m marcado 0 imaginirio do século, fiel aos seus principios estéticos maior da cultura de massa, um sistema de representacao que te Pratica cinematografica que permaneceu € 4 sua fungio social até, pelo menos, 1960. ! Quando aponto tal fidelidade fungao, tenho em mente a presenca de uma continuidade a atravessar o intervalo entre 1909 ¢ os anos 50. No entanto, dentro desta, hé diferencas, incorporacoes, fruto de uma interagdo entre industria cultural € sociedade em que os dois termos Sofrem deslocamentos hist6ricos que ensejam uma alteragao de métodos © de premissas ideoldgicas na atividade da inddstria. E necessério, Portanto, explicar em que sentido se deve entender tal permits uma vez que obviamente ficaram superadas as premissas do filme de +2576 Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO Griffith, embora seja exagerado dizer que sua teoria da forga moral do espeticulo sobre a consciéncia ficou Id no pasado como pega de museu e que no ha em nossos dias quem observe o espetéculo com a mesma fé nos exemplos regeneradores. Fosse isto e nao veriamos retornar, as vezes com forca inesperada, as mesmas investidas contra a representagio de sexo e violéncia, as mesmas demandas de mensagens edificantes como fatores de legitimagao desse espetdculo celebrador dos sentidos ¢ do corpo. Diante desta questo da funcio social do cinema, minha preocu- pacio aqui nao é a do teérico funcionalista empenhado em resolver a controvérsia e definir os efeitos psicomorais da fico em nossa socieda- de de massas, em particular da ficcao institucionalizada na midia. O que me interessa é apontar um deslocamento na prépria concepgio que os mestres da ficcao de massa tiveram do problema que, de qualquer modo, persistiu ao longo do século, principalmente na produgao industrial, dando continuidade a uma indagacao sobre os seus efeitos “préticos” na vida cotidiana, sobre a contradigio entre a idéia de responsabilidade moral ¢ as estratégias de sedugao apoiadas na sensualidade e na circula- ao do desejo. O que, sem chivida, se alterou no caminhar da histéria foi a forma de propor a resolucio do problema. E ninguém mais claro no enfrentamento dessas tensdes préprias A instituicZo-cinema do que Hitchcock, o mestre cujas angiistias ¢ ironia bem humorada atravessam 0 binémio transgressio e culpa, nao somente no teor da experiéncia de suas personagens, mas também na prépria maneira como seus filmes assumem uma dimensio reflexiva e trazem o cinema e seu espectador para o centro da discussao. Para 0 que me interessa demonstrar/fanela Indiscreta € 0) melhor flanco de ataque, uma vez que, de todos ds filmes.de Hitchcock, é 0 que apresenta de maneira mais explicita uma experiéncia que, em sua estrutura, reproduz a geometria do espetaculo nos termos da janela renascentista de Alberti, termos que Barthes retoma no texto acima citado. Nao faltam nem os tragos de “teatralidade” impostos pelo teor particular de sua situacio dramatica explorada af pelo cineasta. Muito jé se falou sobre a metafora enderecada ao préprio cinema presente nO “dispositive” montado pela oposigo entre 0 espaco do protagonista — coma perna engessada ¢ imobilizado numa cadeira de rodas —¢ 0 espa¢0 descortinado pela “janela de fundo” do seu apartamento, Junto a janela, ele se entretém a observar os apartamentos vizinhos que cercam o grande «2586 Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO patio interno do quarteirao, e a vida desfila diante de seu olhar como num cinema, conforme ressalta a critica. A consideragio de detalhes de sua pratica de voyeur 0 coloca quase como uma ilustrac ‘eoria do “dispositive”. easmuatonedlicel erases por Jean-Louis Bau- dry: imobilidade, investimento da energia no olhar, prazer nesta posi¢io de “tudo perceber’, regressio infantil," : Jeff, 0 protagonista, vive a etapa final de suas semanas de convales- cenga, apés 0 acidente que sofreu quando fotografava uma corrida de carros. O tempo morto desta espera ¢ entediante, e o fotdgrafo procura alguma excitacdo no cendrio a sua volta. Ou seja, ele tem 0 desejo do fato extraordinario, fora da rotina, e seu olhar traz com toda forca o suple- mento de sua imaginacio, de sua vontade de achar indicios, compor histérias, construir mistérios. certos Na apresentagao dos fatos, o filme obedece a uma regra central: 2 excegio da cena do climax perto do fim, a camera se mantém junto a Jeff, observando tudo a partir de sua posigio, de modo a respeitar_ a separaciio entre os espacos — o da cena e o do observador, O esquema ustial sera6 de alternar o rosto de Jeff, visto de perto, coma imagem do que ele vé no patio ou nas janelas vizinhas, imagem que nos mostra o cendrio em frente a partir de uma certa distancia (esta varia quando ele faz uso de uma lente teleobjetiva e oferece, assim, o “motivo” para que as pessoas sejam vistas mais de perto). Estd af claro 0 dispositive geomé- trico da representacio, como observei, € ndo somente a experiéncia do cinema, Faz tanto ou mais sentido pensar em Jeff olhando da janela como alguém que vai ao teatro ¢ observa tudo de um ponto relativamente fixo (qualquer mobilidade dependeria da mobilidade do seu corpo). E isto ganha forca quando lembramos que 6 elemento que separa Jeff da cena em frente é esta espécie de “fosso” constituido pelo patio, 14 em baixo, a uma certa distancia do seu “camarote”. Filme de estidio, Janela Indiscreta é ostensivo na estrutura teatral da cenografia que, ao longo do filme, no se altera, como quando assistimos a uma pega com unidade de lugar. Enfim, nao sio poucos os elementos que permitem expandir a metéfora teatral e tomar a visio de Jeff como a do observador de um €spetculo & Broadway — nao falta a forma curiosa como as persianas do apartamento se abrem gradativamente na apresentagio do filme para —— Ver o texto de Baudry, “Efeitos Weol6gicos do Aparelho de Base", in Isinail Xaviev (onganizador), A Experiéncia do Cinema (Rio de Janeiro: Graal, 1983) = 259+ Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO “descortinar” 0 cendrio em frente, havendo inclusive um movimento de camera que vem ressaltar a presenga do “fosso”. Se vale a metifora do espectador de cinema, com maior razio vale a do espectador de teatro, pois a geometria é indubitivel. Posso dizer até que se reproduz aqui o esquema de Griffith: o protagonista vé teatro para que nés possamos ver algo que é, ao mesmo tempo, cinema (pela técnica) ¢ teatro (pelo estilo do olhar, sempre de um lado s6 e sempre ali, sem as expansdes usuais do cinema). Em sintese, a cada momento, 0 espetaculo se da inteiro, com todas as agdes simulténeas, ¢ cabea Jeff escolher o foco daatencio. Como cabe a nés seguir o olhar da cimera, que nem sempre se confunde com © do protagonista. Desta distingao, depende um lance decisivo do jogo de Hitchcock em sua reflexto sobre a forca do desejo no olhar ¢ 0 estatuto social da representagio. Com a palavra o cineasta e sua teoria do espeticulo. Na construgao dramatica de Janela Indiscreta, ao espaco da cena onde desfila o mundo das projecdes de que Jeff est separado, se opée o espaco do apartamento, sua ancoragem, cuja porta de entrada apresenta, as suas costas, as demandas da vida prética, as lembrangas do trabalho, os conselhos da massagista ea seducao de Liza. Todos os dias, ele recebe a massagista que insiste em atraf-lo de volta para o seu mundo dos compromissos, em especial, 0 do engajamento com a namorada. A conversa com a massagista € 0 canal do comentario e da informagio que contextualiza 0 episédio, lhe dé como que coordenadas histéricas. Num certo momento, ela chama a atengio de Jeff ¢ dos espectadores para 0 fato de que se vive numa sociedade que tem leis contra o voyeurism, este exercido por ele e, em segundo grau, por nés. Noutro, cla comenta a relagao entre crises sociais e a satide das pessoas, advertindo sobre intuigio de que ha pélvora no ar, problemas a vista, Quanto ao caso de Jeff'com Liza, cla aconselha casamento imediato e diz nao compreender 6s Jovens modernos que tanto pensam e tanto falam sobre amor € €X0; complicando as coisas, em oposica n , €M Oposi¢&o ao seu tem, a yessoas Se apaixonavam ee Digitalizado com CamScanner | iis como umn canal simpatico que.traza meméria do mundo dos afetos tal s fomo vivido antes da passagem crucial marcada pela vulgarizagio, no cecido social, da Psicandlise, tarefa que Hollywood assumiu depois da rra, ajudando a transformar Freud em item da cultura de 5 Estados Unidos, Tal meméria evoca o mundo mais simples da’ dramaturgia de Griffith, ainda atuante em Janela Indiscreta mas agora incorporado com ironia, como a parte mais dbvia do enredo, género “comédia de casamento” nos moldes hoje incorporados pela telenovela. Nesta comédia, a dificuldade de Jeff em assumir o namoro para valer, sua exaltagao adolescente da liberdade e da aventura oferecidas pela profissio e pelo estado civil se caracterizam como etapas de um proceso pelo qual ceder & seducao de Liza significa, na sua evolugio, atingir a vida adulta. A sua pratica de voyeur, enquanto regressio infantil, tem uma conotagio perversa, um ar de transgressio que recebe, primeiro, a censura explicita da “mae” e da namorada, e depois, quando as coisas esquentam, a adesao das duas (elas representam 0 movimento de adesio da platéia ao longo do filme). O movimento da comédia ¢ este pelo qual épreciso que a massagista e, especialmente, Liza adiram ao investimento de Jeff na “outra cena”, se integrem em seu imagindrio para poder razé-o de volta ao caminho do casamento que, no cédigo da comédia, significa 0 telas, © sexo maduro. Voltando a geometria do espetdculo, vemos que ela, ao lado das metéforas nucleares que carrega, tem sua funcao pratica dentro da hist6ria, traduzindo e explicitando os conflitos centrais da comédia em ‘ermos da rivalidade entre os espacos: o de Liza — 0 apartament, a vida feal—c 0 do espetdculo — este dos vizinhos de frente onde esté o desejo do Jeff voyeur. A forca deste espaco ligado ao imagindrio se consolida {uando ocorre nele uma “atragao” especial, esta que em geral se procura Noteatro no cinema: a hipstese do crime. O elemento motor da histéria * define quando o protagonista, sempre a cata de indicios, se convence © que um dos vizinhos assassinou a mulher ¢ assume a tarcfa de “onvencer a todos — a massagista, Liza, um amigo da policia, os especta- “res do filme, Esta é a matéria para o enredo policial, a seducao do en 4 solugo do enigma. E o filme nio frustra seus eid iauestrndo de comego a fim o paralelismo saite fous ies oe a i © teatro de Liza — e as indagagdes & Sherlock Hol que ergulha fascinado, obsessivo. erases . Quando digo “Jeff se convence” estou a simplificar, pois 0 jogo é S Complexo, Jeff deseja o crime. Imével, pouco a vontade com 0 +2 « ba Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO assédio de Liza, agora inevitével, ele aposta na “outra cena”, numa sgratificagio que vai da fofoca a dentincia. Tanto mais que 0 cendrio do crime nao se oferece apenas como “distragao”, prazer de desvendar 0 mistério. Ele se oferece, mais do que tudo, como espelho, lugar de uma tansferéncia pela qual se condensa toda a misoginia de Jeff. Desde 0 comeco do filme, as suas conversas, seja com 0 chefe ao telefone, seja com a massagista pelas manhis, giraram em torno de sua aversio ao casamento. E 0 vizinho Torwald talvez tenha praticado 0 ato que, em J verdade, desperta fascinio. Na superficie, tratase de fazer justica, pren- der o criminoso; mas o movimento mais fundo éaconstrucao de Torwald | como um duplo, aquele que comete o crime simbolicamente no lugar do | voyeur, para o prazer do voyeur, e o salva da culpa. iz \ > Presentes preocupagao moral, a culpa é tema reiterado nas conversas * ao longo do filme, quando se discute privacidade, invasio e direitos, quando se discute a vida sexual; ela esta sempre pontuando o movimento obsessivo de Jeff em direcio & efetiva transgressao da lei, da bisbilhotice A dissecacéo de privacidade, da invasio de domicilio A usurpacao das tarefas da policia. Jeff transgride, mas a acao de Torwald, também neste nivel, o salva; pois a tonfirmiagio’ do ime redime, em Janela Indiscreta, todos os excessos da caca ao suspeito. O saldo da operacao fica com Liza que, num misto de esperteza e atracio efetiva pela “outra cena”, tornase cimplice da caga e acaba por invadir o apartamento em frente & procura de provas (gesto sedutor decisivo que a coloca no espago do desejo de Jeff ¢ aciona o dispositivo que vai sancionar a conquista e a alianga). Para Jeff, a comédia termina com sua redenc&o enquanto voyeur, sua promocao a vida adulta do casamento. Final feliz que, se cumpre a regra do género, 9 faz. com ironia, pois a “felicidade” do casamento se configura como dupla castracao. O protagonista termina a aventura mais preso ¢ imével do que nunca, com as duas pernas engessadas, sob a tutela de Liza. O dado curioso da trama de Janela Indiscreta vem da habilidade da narragao em encaixar os diferentes aspectos do jogo: a comédia, o policial € 0 movimento reflexivo que remete a uma teoria do espetdculo. Minha tarefa aqui € discutir este tiltimo aspecto, e comeco pela lembranga de que, neste caso, o debate sobre culpa e redencao nao se apéia na idéia de um efeito iluminador da cena sobre o espectador, como ocorria na metifora de Griffith. Existe, de novo, o espelhamento pelo qual ev, ¢spectador, observo Jeff, meu representante, a observar o assassino. Mas © essencial nao est nesta geometria, mas no outro espelhamento que s€ sobrepée a este: eu, espectador, desejo o crime de Torwald, tanto quanto +2. Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO Jeff Por este motivo € com esta expectativa estou Id a assistir um filme que nao traz sendo esta promessa no seu centro. Ou seja, o meu crime é o crime de Jeff que Torwald comete por procuragio. A leiea nto reconhecida do espeticulo éestatransferéncia pela qual sigo a experién, 0/4. cia de meu representante, nao para me chocar com sua transgressio.e > j//) chegar 208 bons sentimentos, mas para fruir de um prazer vicdrio de (J voyeur, tal como Jeff, ¢ sair da sala escura sem Culpa, porque oespetaculo “2, ofereceu um bode expiat6rio. Em outros termos,a fungio do espetaculo (APAA Liye nidomais se concebe como um ativara consciénciamoraldeumindividud i racional soberano que, a partir do exemplo, toma de 0, tom es ¢ se redime; agora, a funcao do espetaculo é a de canalizar a violencia, satisfazer & disposig6es do imaginario, liberar fantasias, enfim “des impulsos considerados inevitéveis, como uma valvula reguladora, Deslo- Yop case completamente o modelo, ¢ a legitimacio do espeticulo passae se ¢ apoiar na conviccao de que est af em agdo um mecanismo cujo efeito 6“ J «, inconsciente, nao dependendo de uma consulta’ consciéncia moral para j.-, © se consumar. Hé ai a clara incidéncia de uma cultura em que apsicologia uf im afé na forca moral da consciéncia ibilidade de decidir entre o Beni”€ 0 Mal. "A cena é entio importante nao porque traga o exemplo regenerador mas exatamente Porque oferece a ocasido para o prazer do crime, mas num plano simbélico, = f "~USei'a expressio “bode expiatério” e minha leitura no se completa sem uma explicagdo decisiva. Na descrigao do enredo, observei que a aventura, para Jeff Liza, termina no casamento e, para a massagista, no Teconhecimento de que as “complicagées” dos jovens em sua lida com 0 desejo so mais realistas do que as supostas naturalidades do passado. Sua adesio ao jogo, temperada de um humor negro inesperado, eviden- cia o seu prazer e desautoriza o discurso moral anterior. Pode-se ver na atitude dela a expresso de um movimento que ocorre simultaneamente naplatéia, de modo a sancionar os prazeres, mas 0 dado de generalizacao mais conseqiiente no filme vem do tratamento dado ao conjunto das historias da vizinhanga. O quarteirao se institui no filme como uma comunidade. O cenario Constréi o pequeno mundo fechado ea evolucio cotidiana torna familiar A Série de experiéncias localizadas, definindo enredos amarosos, lances de anguistiae solido que sugerem uma unidade dé cédigos culturais por ‘rds da variedade de destinos, As figuras vistas de certa distancia chegam * Ganhar personalidade, encarnar dramas cuja resolug’o passa a nos = 263+ Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO interessar. A narrativa alinhava o paralelismo das experincias privadas como componentes de uma rede solidéria de destinos, condicao que é esplicitada com toda énfase na forma como se abre ¢ se fecha 0 relato dos acontecimentos neste nicho urbano do Greenwich Village. Sugeri que adistingZo entre o olhar da cémera eo olhar de Jeff era um dado decisivo no filme, embora a reflexio sobre o problema da representacio depen- desse das identificagdes geradas pela freqiente colocacao do nosso olhar na posicao do protagonista, Chegou o momento de esclarecer melhor este ponto. Na abertura do filme, temos um primeiro movimento pelo qual a camera “salta” da janela, descreve a “comunidade” € completa o giro voltando para Jeff, que dorme, ¢ também para iniciar uma descri¢io do préprio apartamento, com as informacées sobre a profissio ¢ o estilo de vida do protagonista. Tratase de um retrato da vizinhanga que se faz sem a mediacio dele. No final do filme, temos 0 mesmo giro num titimo passeio da cimera, o qual se completa de novo na figura de Jeff'a dormir, agora com Liza ao lado. O interessante neste giro é a idéia de ciclo que se impée pela simetria com o inicio; ciclo que se refere 4 vida dos protagonistas, mas nao somente a eles, pois hd uma cuidadosa descricao de fatos que, em cada vida particular dos vizinhos, definem uma “reso- lucio". O namorado da dancarina finalmente retorna do exército, Miss Lonely Heart sai da solidao para um affair com 0 misico solitario da outra Janela, 0 apartamento de Torwald se pinta e se prepara para nova vida, € assim por diante. Tudo se resolve com a exclusio do criminoso, como Se tivesse ele cumprido um ritual de sacrificio gerador de uma nova promessa para a comunidade, o que dé ao episdio o estatuto de um | acontecimento institucional e a Torwald a condi¢ao de bode expiatério no sentido dado a este termo por René Girard.’ Por esta moldura de sentido claro que ata infcio e fim, a metafora de Hitchcock afirma seu horizonte, pois toda a alusio A experiéncia do ‘catro-c/ou cinema aponta para tal experiéncia ‘como acontecimento Cinstitiiciona mo esp clonal eg ‘erno_pelo qual, como espectadores, cumprimos u a espago onde i transgressi67 mergulhamos no comanda o desejo, para retornar ao Saas pratico ¢ A convivencia cotidiana “liberados” das presses inevi iveis das muileties que améacam cam © tecido social e prenunciam o crime. © esti ae cone, Contengio de disposicdes agressivas Thao ee ee vas, inatas ao ser humano, tem clara mano, tenn Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO inspiracio freudiana. © mostra muito bem o deste concepsio que se tem do espetdcuilo em face de ums tadigio em que a ieg itimagio de Lene € cinema envolvia a idéia da Mensagem edificante dirigida A consciéncia. Agora, o imperative moral se fas Presente na jqwitura do enredo € na conversa das Personagens, mas ha um reconhe- cimento de que seria ingénuo sustentar uma teoria do espetéculo em tais elementos de superficie. Hitchcock, sabendo que tais disposicdes ag sivas tém tudo a ver com o que ha de sedutor em seus filmes, tran em Janela Indiscreta, 0 seu manifesto — talvez.o maior ~ de legitimacao de tal jogo perigoso, tudo feito com muita graca e o bom humor de sempre. Esta passagem de um referencial ético-religiosoppara o referencial da psicandlise § algo qué sé pode constatar no conjunto do processo da cultura de massa — para o cinema nos anos 40.50 e para a televisio mais recentemente. Pode-se observar um melodrama italiano dos anos 50 ¢ ver 0 protagonista a mostrar um livro de Freud Para a namorada num filme que procura dar conta dos tragos modernos da vida urbana. Em Hollywood, nao é apenas Hitchcock, mas também diretores como Sirk € Minelli que exploram esta cultura da psicandlise, antes que a teoria do cinema retorne, j4 nos anos 1969-70, a Freud, na esteira do ensafsmo lacaniano. Se hoje, a teoria dos processos de identificagao e o debate em torno do estatuto politico do espetaculo envolvem uma nova forma de antcular a esfera do desejo ¢ a da cidadania, o filme de Hitchcock nos... , oferece, com elegancia, um paradigma para pensar 0 problema, Sua °<"“/idy hipstese do espetéculo como o crime.por procuragéo, hos antipodas do 7g puntanismo de Griffith e da defesa.do cinema feita por advogados da ‘(7:12 4 camento havido na indistria, elaboraa resposta da inteligéncia maisavancadado sistemano 27 ; momento do apogeu do filme clissico.. bayy Tanto quanto o proprio sistema de representacao que se cristalizou_ \— of 0 ; com Griffith, as tensées entre as demandas da sedugio ¢ as do cédigo moral persistiram no cinema clissico, juntamente com os estratagemas de resolucdo, pelo menos imagindria, do que havia — e podemos dizer ue ainda ha — de contraditério na dindmica cultural produzida na Sociedade de mercado, Nao se trata aqui de avancar a discuss para um contexto mais recente, no qual o debate tem efetivamente se reposto, £m alguns casos com inesperada veeméncia, como nos USA, quando ‘ttornam, muitas vezes na esteira do oportunismo politico de conserva dores, vethos argumentos puritanos do inicio do século. A questio que me interessou — a teoria do espetéculo tal como exposta em dois Momentos polares da tradigdo classica — foi inserida numa problematica = 265+ ba Digitalizado com CamScanner CINEMA E TEATRO que envolve séculos de debate sobre a representagao ou sobre a fungio social da cena, como expliquei. No percurso aqui feito, se assumi uma permanéncia de perguntas, apontei também um deslocamento significa. tivo na modalidade da resposta, uma vez que sio distintas as maneiras de articular as demandas do desejo e as da cidadania na historia recente do espeticulo de massas que se quer legitimo perante 0 establishment, Griffith nos deu uma versio da resposta, com énfase para a educagio religiosa e para os valores da familia. Hitchcock nos deu outra, bem mais moderna ¢ mais convincente, que inclui a psicandlise no seu jogo ¢ resolve as contradicdes do espetaculo nos termos de um senso comum pés-freudiano que permeia a inchistria cultural, do cinema de ontem a TV de nossos dias. Ml 9265 « Digitalizado com CamScanner

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